Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelos outros Árbitros), Dr.ª Filomena Salgado de Oliveira e Dr. José Rodrigo de Castro, designados pela Requerente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-12-2018, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., S.A., doravante designada apenas como “A...” ou “Requerente”, com sede social na Rua ... n.º..., ...-... ..., ..., titular do Número de Identificação de Pessoa Coletiva (NIPC) ..., matriculada na conservatória do Registo Comercial competente sob o mesmo número (doravante designada como “Requerente”) veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
A Requerente pede:
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A anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão do ato tributário n.º ...2017...;
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A anulação parcial do ato de liquidação de IRC n.º 2014...;
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Seja ordenado o reembolso da importância de € 54.735,31 a título de imposto indevidamente pago no período de tributação de 2013, relativo a tributação autónoma paga em excesso;
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Condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 14-09-2018.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 12-11-2018 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 03-12-2018.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, suscitando as excepções da incompetência do Tribunal Arbitral por o pedido de pronúncia arbitral ser apresentado na sequência de um pedido de revisão oficiosa e para apreciar o pedido de condenação no pagamento de quantia e defendendo a improcedência do pedido.
Por despacho de 03-07-2018 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.
As Partes apresentaram alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
Importa apreciar prioritariamente a questão da incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
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A Requerente é uma sociedade de direito português, cujo objeto social principal consiste na fabricação de outros componentes e acessórios para veículos automóveis;
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A Requerente encontra-se sujeita ao regime geral de tributação em sede de IRC e o seu período de tributação coincide com o ano civil;
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A Requerente tem a sua situação tributária regularizada;
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Em 07-05-2014, a Requerente procedeu à entrega, da Modelo 22 de IRC referente ao período de tributação de 2013, a qual foi identificada com o código ..., na qual foi apurado um prejuízo fiscal no valor de € 2.680.911,66 (dois milhões, seiscentos e oitenta mil, novecentos e onze euros e sessenta e seis cêntimos) e um montante total de tributações autónomas de € 54.735,31 (cinquenta e quatro mil, setecentos e trinta e cinco euros e trinta e um cêntimos) (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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A Requerente não deduziu qualquer montante relativo a pagamentos especiais por conta no campo 356 da aludida declaração;
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A 31-12-2013, a Requerente dispunha de um saldo de pagamentos especiais por conta que se encontram por deduzir no valor de € 290.954,63 (duzentos e noventa mil, novecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos), conforme quadro que segue:
(documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)
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Em 28-12-2017, a Requerente apresentou um pedido de revisão da autoliquidação efectuada com a referida declaração modelo 22, pedindo a sua anulação na parte em que não foram deduzidos pagamentos especiais por conta à colecta de tributações autónomas pedindo o reembolso da quantia de € 54.736,31 (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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O pedido de revisão referido foi indeferido (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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A decisão de indeferimento manifesta concordância com uma informação em que se refere, além do mais o seguinte:
2 - Parecer
2.1 - Não se vislumbrou que, com o mesmo fundamento, tivesse sido deduzida Reclamação Graciosa (Art.68° e seguintes do CPPT), ou mesmo Impugnação Judicial (Art.99° e seguintes do CPPT).
2.2 - A sociedade / exponente, em questão em questão [A..., S.A. (NIF:...)], tem legitimidade para apresentar, o Pedido de Revisão, ora em análise, nos termos previstos nos Art.9°, do CPPT e Art. 65°, da LGT.
2.3 - Agora quanto à legalidade e tempestividade, do mesmo / presente Pedido de Revisão [enquadrado pela sociedade em questão (recorde-se), no n°1 Art.78º, da LGT, mais concretamente com fundamento em "Erro Imputável aos Serviços" (ver p.f. ponto 1.1, da presente informação)], cumpre-nos expor o seguinte:
2.3.1 - O Art.78°, n°1, da LGT, determina que a Revisão dos Atos Tributários, pela entidade que os praticou, pode ser efetuada, por iniciativa do sujeito passivo, no Prazo de Reclamação Administrativa e com fundamento, em qualquer "Ilegalidade", ou ainda, pode ser efetuada, por iniciativa da Administração Fiscal / Tributária (mesmo que, a pedido do contribuinte), no prazo de 4 anos, após a liquidação, ou a todo o tempo, se o tributo não estiver pago, com fundamento em "Erro Imputável aos Serviços", sendo contudo que:
2.3.1.1 - Tendo em conta a posição da AT, em situações semelhantes, aquela que ora se analisa [posição da AT à qual (como é sabido), este Serviço se encontra vinculado], não vislumbramos, relativamente à Liquidação (e preenchimento), da já referida D.R. "IRC/M.22-2013" (aliás, atualmente vigente), referente à sociedade / exponente, em questão (repita-se: "...", submetida em 07/05/2014), qualquer "ilegalidade", ou mesmo "Erro Imputável aos Serviços" (contrariamente ao invocado / alegado, pela sociedade / exponente em questão), senão vejamos:
B.1 - Para a AT, a coleta proveniente de tributações autónomas, afasta-se da restante coleta de IRC, na medida em que aquela ("coleta proveniente de tributações autónomas"), prossegue vários objetivos bastante específicos, como seja o propósito de evitar práticas de evasão e de fraude (quer através de despesas confidenciais, ou não documentadas, quer através de pagamentos realizados, a entidades localizadas em jurisdições, com regimes fiscais privilegiados, quer disfarçando / encobrindo, pagamentos / atribuições de vantagens / remunerações acessórias, sob a forma de despesas de representação, ou através da atribuição de viaturas, a trabalhadores e/ou membros de órgãos sociais);
B.2 - Para a AT, os "PEC's - IRC/2013", apenas são dedutíveis à coleta de IRC/2013, baseada na matéria coletável, que se identifica com o lucro / rendimento do exercício, sujeito (por sua vez), às "taxas gerais" (digamos assim), do Art.87°, do CIRC/2013 [em oposição, portanto, à coleta de IRC/2013, baseada nos montantes das despesas / encargos / pagamentos, sujeitos às "Taxas de Tributação Autónoma" (Art.88° do CIRC/2013), pois estes, são uma espécie de realidade à parte, devido às suas finalidades muito específicas (conforme aliás, já se referiu)];
B.3 - Para a AT, o disposto no Art.12", do CIRC/2013 ("As sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal, não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas"), como que reforça o já referido carácter especifico / à parte, da coleta de tributações autónomas, a qual [como aliás o próprio nome indica, bem como também o indica, a respetiva representação / localização, ao nível do Quadro 10 ("Cálculo do Imposto"), da D.R. "IRC/M.22-2013" (representação / localização essa, aliás, pacificamente aceite, pelo menos de uma forma geral, por todos os utentes, das mesmas D.R. M.22)], não é suscetível de qualquer tipo de dedução;
B.4 - Para a AT, portanto, a regra contida no já referido, n° 21, do Art. 88°, do CIRC/2016 ("às tributações autónomas de IRC, não são efetuadas quaisquer deduções"), já era (conforme já se referiu), pelo menos de forma genérica (apesar de não unânime), aceite e adotada, aquando da vigência da anterior redação, do mesmo Art.88°, do CIRC [nomeadamente, aquando da vigência, da respetiva redação, ao longo do ano em análise (2013)], pelo que não se trata, de qualquer "regra nova" (isto é, vigente apenas, para o ano de 2016 e seguintes), mas sim de uma regra / lei interpretativa, ou seja, com carácter de retroatividade (aliás, constitucionalmente permitida, em situações como a que ora se descreve), sendo que (acrescente-se ainda):
B.4.1 - O Art.135°, da Lei do Orçamento de Estado para 2016 (Lei n°7-A/2016, de 30/03), ao qualificar, como "Lei Interpretativa" [portanto com carácter de retroatividade, permitida constitucionalmente (conforme já se referiu)], o já referido n° 21, do Art. 88°, do CIRC/2016, não vem fazer mais, do que sedimentar / consolidar, um entendimento que no fundo, já era anteriormente adotado e aceite, pelo menos de forma genérica (conforme já se referiu);
B.5 - A AT reforça ainda que:
B.5.1 - Embora em matéria fiscal, os princípios constitucionais da legalidade e da proibição, da retroatividade da lei [prevista (conforme já se referiu) no Art. 103°, da CRP], imponham algumas restrições ao legislador, não existe uma proibição constitucional genérica, de leis fiscais interpretativas [portanto, com carácter de retroatividade (conforme já se referiu)];
B.5.2 - A admissibilidade constitucional, de leis interpretativas, em matéria fiscal (tal como relativamente, a quaisquer normas, de natureza fiscal), deverá ser aferida em função das matérias, sobre as quais versam e do respetivo, conteúdo normativo, uma vez que a proibição constitucional, da retroatividade da lei fiscal, se cinge (apenas) ás matérias de incidência (objetiva, subjetiva, temporal e territorial), do imposto [matérias estas (aliás), que não se afigura, estarem propriamente em questão, na presente análise];
B.5.3 - Desde a criação, da figura jurídico-fiscal das "Tributações Autónomas", no início da década de 90, passando pela respetiva evolução legislativa, sempre foi pacífico que as "Tributações Autónomas", não admitiam (nem admitem), qualquer dedução, sendo que (e enfatize-se), o já referido, Art.135°, da Lei do OE/2016, ao qualificar, como "Lei Interpretativa" (portanto, com carácter de retroatividade), o já referido n°21, do Art.88°, do CIRC/2016, não se afasta (o mesmo Art. 135°, da Lei do OE/2016), das soluções, que já antes se viam firmadas, quer pela Lei, quer pela prática jurídico-tributária, pelo que o teor, do mesmo/já referido, n°21, do Art 88°, do CIRC/2016, não se poderá classificar /qualificar, de forma alguma, como uma "solução inovatória", sendo ainda que (acrescente-se também):
B.5.3.1 - É inquestionável, que tanto quem julga, como quem interpreta, em face da "legislação antiga" [portanto, anterior a 2016 (bem entendido)], não podiam sentir-se autorizados, a adotar outra solução, que não a solução / regra, preconizada pelo teor, do já referido, n° 21, do Art. 88°, do CIRC/2016;
2.3.1.2 - Assim, isto é, tendo em conta o exposto até aqui (isto é, no ponto 2.3.1.1 e respetivos sub-pontos, da presente informação), entendemos que o mesmo / referido disposto, no n°1, do Art. 78°, da LGT, não poderá ser invocado, pela sociedade em questão, no Pedido de Revisão, ora em análise.
3 - Conclusão
3.1 - Deste modo, é nosso entendimento propor o indeferimento, do presente Pedido de Revisão, na medida em que o mesmo não se enquadra, no invocado (pelo contribuinte), n° 1 do Art. 78°, da LGT.
3.2 - Propõe-se ainda, que a mesma sociedade em questão [A..., S.A. (NIF:...)], seja notificada da presente Informação / Projeto de Indeferimento, no sentido de exercer (se assim o entender, naturalmente), o respetivo Direito de Audição, conforme disposto na alínea b), do n°1, do Art.60°, da LGT.
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Em 14-09-2018, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e afirmações da Requerente que não são questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto.
3. Questão da incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação precedidos de revisão oficiosa
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, que o pedido de pronúncia arbitral sub judice vem formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) relativo ao ano de 2013, formulado, a 28-12-2017, quando já decorreu o prazo de reclamação graciosa a que alude o artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e que o artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual a Autoridade Tributária e Aduaneira ficou vinculada à jurisdição arbitral exclui as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT.
A Requerente respondeu, defendendo, em suma, que o pedido de revisão oficiosa deve ser considerado equivalente a uma reclamação graciosa, por dar oportunidade à Autoridade Tributária e Aduaneira de apreciar a legalidade da autoliquidação, antes de a questão ser submetida à apreciação do Tribunal Arbitral.
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).
Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».
Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.
Na alínea a) do artigo 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».
A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles artigos 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (artigo 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do artigo 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.
No caso em apreço, é pedida a declaração anulação de uma liquidação subsequente a autoliquidação, na sequência do indeferimento de um pedido de revisão de acto tributário efectuado após o decurso do prazo de dois anos previstos no artigo 132.º do CPPT.
Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no artigo 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo artigo 2.º do RJAT.
Na verdade, neste artigo 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».
No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele artigo 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.
Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. ( [1] )
O mesmo sucede com a decisão do recurso hierárquico, expressamente indicada na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT como termo inicial do prazo de apresentação de pedido de constituição do tribunal arbitral.
A referência expressa aos artigos 131.º a 133.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos dos tipos aí referidos.
Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
Quanto à correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.
Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto». ( [2] )
A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.
É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos dos tipos referidos nos artigos 131-º a 133.-º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.
Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para a essa exigência, o facto de estar prevista reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.
Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3 do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º», regime este que é aplicável aos actos de retenção na fonte por remissão do n.º 6 do artigo 132.º do CPPT. Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação ou retenção na fonte e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.
Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação ou retenção na fonte é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º e 3 e 6 do artigo 132.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. ( [3] )
Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes foram expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT. E aos actos de autoliquidação, praticados pelo sujeito passivo, são equiparáveis, por mera interpretação declarativa, os de retenção na fonte que são praticados pelo substituto tributário, que é considerado sujeito passivo (artigo 18.º, n.º 3, da LGT).
Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e retenção na fonte e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.
Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência aos artigos 131.º a 133.º do CPPT, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos dos tipos referidos, acabaram por incluir referência aos artigos 131.º a 133.º que não esgotam as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.
Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».
Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto e a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.
Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.
E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a solução mais acertada.
É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de retenção na fonte que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.
Esta interpretação não é incompatível com a Constituição.
Na verdade, a Constituição não impõe que a interpretação dos diplomas normativos tenha de cingir-se ao teor literal e, no caso em apreço, como se explicou, devidamente interpretadas as normas do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, conclui-se que a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD abrange os casos em que actos de autoliquidação foram precedidos de pedidos de revisão oficiosa. Por isso, a interpretação que se fez não aumentou a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira em relação ao que está regulamentado, antes definiu exactamente os seus termos, que resultam do diploma regulamentar.
Por outro lado, ao interpretar e aplicar as normas jurídicas, este Tribunal Arbitral está a desempenhar a função que lhe está constitucionalmente atribuída (artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 209.º, n.º 2, da CRP), pelo que nem se vislumbra como possa existir violação dos princípios da separação de poderes, do Estado de Direito e da legalidade, pois o decidido por este tribunal evidencia, precisamente, a perfeita concretização desses princípios: a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar (artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril); o Governo, no uso de poderes legislativos, emitiu o RJAT; a Administração, através de dois membros do Governo, emitiu a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março; o Tribunal Arbitral interpretou e aplicou os diplomas normativos referidos.
Por outro lado, no que respeita ao acesso à tutela jurisdicional, está perfeitamente garantida por esta via, pois a questão é colocada perante um Tribunal Arbitral, um órgão absolutamente independente de ambas as Partes, que lhes deu oportunidade de alegarem o que entenderam conveniente para defesa das suas posições sobre a questão da incompetência, que ponderou as suas razões e aplicou a sua interpretação do regime legal aplicável numa decisão profusamente fundamentada: é precisamente nisto que consiste a essência do direito de acesso à justiça, a possibilidade de obter uma decisão de um órgão independente que,
Improcede, assim, esta excepção de incompetência, derivada de não ter sido apresentada reclamação graciosa dos actos de retenção na fonte.
Essencialmente neste sentido, relativamente a actos de autoliquidação, pode ver-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, proferido no processo n.º 08599/15.
4. Questão da incompetência para apreciação do pedido de condenação a reembolso da importância de € 54.735,31 a título de imposto pago indevidamente
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de um montante a reembolsar, que é a sua base de cálculo, tem de se concluir que a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD abrange a condenação no pagamento de quantias indevidamente pagas na sequência de anulação dos actos de liquidação ou de autoliquidação que foram fundamento do pagamento.
Improcede, assim, esta excepção.
5. Matéria de direito
5.1. Aplicabilidade dos artigos 89.º e 90.º do CIRC ao cálculo das tributações autónomas
Os artigos 89.º e 90.º do CIRC estabelecem o seguinte, na redacção que lhes foi dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, vigente no ano de 2014:
Artigo 89.º
Competência para a liquidação
A liquidação do IRC é efectuada:
a) Pelo próprio sujeito passivo, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º;
b) Pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos restantes casos.
Artigo 90.º
Procedimento e forma de liquidação
1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;
c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.
2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;
b) A correspondente à dupla tributação económica internacional;
c) A relativa a benefícios fiscais;
d) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;
e) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.
3 – (Revogado)
4 - Ao montante apurado nos termos do n.º 1, relativamente às entidades mencionadas no n.º 4 do artigo 120.º, apenas é de efetuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC.
5 - As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respetivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria coletável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo.
6 - Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no n.º 2 relativas a cada uma das sociedades são efetuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do n.º 1.
7 - Das deduções efetuadas nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.( [4] )
8 - Relativamente aos sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável, ao montante apurado nos termos do n.º 1 apenas são de efetuar as deduções previstas nas alíneas a) e) do n.º 2.
9 - Das deduções efetuadas nos termos das alíneas a) a d) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.
10 - Ao montante apurado nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 apenas são feitas as deduções de que a administração fiscal tenha conhecimento e que possam ser efetuadas nos termos dos n.ºs 2 a 4.
11 - Nos casos em que seja aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 79.º, são efetuadas anualmente liquidações com base na matéria coletável determinada com caráter provisório, devendo, face à liquidação correspondente à matéria coletável respeitante a todo o período de liquidação, cobrar-se ou anular-se a diferença apurada.
12 - A liquidação prevista no n.º 1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas.
Os referidos artigos 89.º e 90.º do CIRC, bem como outras normas deste Código, como as relativas as declarações previstas nos artigos 120.º e 122.º, são aplicáveis às tributações autónomas.
Na verdade, é hoje pacífico, na sequência de inúmera jurisprudência arbitral e das posições assumidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que o imposto cobrado com base em tributações autónomas previstas no CIRC tem a natureza de IRC. De resto, para além da jurisprudência, o artigo 23.º-A n.º 1, alínea a), do CIRC, na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não deixa hoje margem para qualquer dúvida razoável, corroborando o que já anteriormente resultava do teor literal do artigo 12.º do mesmo Código.
Ora, o artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações previstas no Código.
Por isso, aquele artigo 90.º aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, na sequência da apresentação ou não de declarações, não havendo, com vigência no ano de 2014, qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação.
Assim, no ano de 2013, as diferenças entre a determinação do montante resultante de tributações autónomas e o resultante do lucro tributável restringem-se à determinação da matéria tributável e às taxas aplicáveis, que são as previstas nos Capítulos III e IV do CIRC para o IRC que tem por base o lucro tributável e no artigo 88.º do CIRC para o IRC que tem por base a matéria tributável das tributações autónomas e as respectivas taxas.
Mas, as formas de liquidação que se prevêem no Capítulo V do mesmo Código são de aplicação comum às tributações autónomas e à restante matéria tributável de IRC.
No entanto, a circunstância de uma autoliquidação de IRC, efectuada nos termos do n.º 1 do artigo 90.º, poder conter vários cálculos parciais, com base em várias taxas aplicáveis a determinadas matérias colectáveis, não implica que haja mais que uma liquidação, como resulta dos próprios termos daquela norma ao fazer referência a «liquidação», no singular, em todos os casos em que é «feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º», tendo «por base a matéria colectável que delas conste» (seja a determinada com base nas regras dos artigos 17.º e seguintes seja a determinada com base nas várias situações previstas no artigo 88.º).
Aliás, não são apenas as liquidações previstas no artigo 88.º que podem englobar vários cálculos de aplicação de taxas a determinadas matérias colectáveis, pois o mesmo pode suceder nas situações previstas nos n.ºs 4 a 6 do artigo 87.º. ( [5] )
De qualquer forma, sejam quais forem os cálculos a fazer, é unitária a autoliquidação que o sujeito passivo ou a Autoridade Tributária e Aduaneira devem efectuar nos termos dos artigos 89.º, alínea a), 90.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), e 120.º ou 122.º, e é com base nela que é calculado o IRC global, sejam quais forem as matérias colectáveis relativas a cada um dos tipos de tributação que lhe esteja subjacente.
Aliás, se este artigo 90.º não fosse aplicável à liquidação das tributações autónomas previstas no CIRC, teríamos de concluir que não haveria qualquer norma que, em 2013, previsse a sua liquidação, o que se reconduziria a ilegalidade, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que exige que a liquidação de impostos se faça «nos termos da lei».
Refira-se ainda a nova norma do n.º 21 aditada ao artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, independentemente de ser ou não qualificável como verdadeiramente interpretativa ( [6] ), em nada altera esta conclusão, pois aí se estabelece, no que concerne à forma de liquidação das tributações autónomas, que ela «é efectuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores». Com efeito, se é certo que esta nova norma vem explicitar como é que se calculam os montantes das tributações autónomas (o que já decorria do próprio texto das várias disposições do artigo 88.º) e que a competência cabe ao sujeito passivo ou à Administração Tributária, nos termos do artigo 89.º, é também claro que não se afasta a necessidade de utilizar o procedimento previsto no n.º 1 do artigo 90.º, designadamente nos casos previstos na sua alínea c) em que a liquidação cabe à Administração Tributária e Aduaneira, com «base nos elementos de que a administração fiscal disponha», que abrangerão a possibilidade de liquidar com base em tributações autónomas, se a Autoridade Tributária e Aduaneira dispuser de elementos que comprovem os seus pressupostos.
O mesmo se passa com a redacção dada àquele n.º 21 do artigo 88.º pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro.
Por isso, quer antes quer depois da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, e da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, o artigo 90.º, n.º 1, do CIRC é aplicável à liquidação de tributações autónomas.
5.2. Aplicabilidade das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC
à colecta de IRC resultante de tributações autónomas
Pelo que se referiu, pelo menos até à Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, não havia qualquer disposição legal que indicasse qualquer procedimento especial de liquidação do IRC resultante das tributações autónomas, pelo que, sob pena de inconstitucionalidade por violação do n.º 3 do artigo 103.º, por a liquidação não ser efectuada «nos termos da lei», tinha de ser feita aplicação do procedimento previsto no artigo 90.º do CIRC.
Sendo a colecta de IRC, quer a resultante do lucro tributável, quer a resultante de tributações autónomas, apurada através do procedimento de liquidação previsto no artigo 90.º do CIRC, são potencialmente aplicáveis a tal colecta as deduções previstas no n.º 2 o mesmo artigo, que se reportam «ao montante apurado nos termos do número anterior», sem qualquer distinção sobre a natureza dos tipos de colecta de IRC que nesse montante estão incluídos.
Por isso, do teor literal do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, não resulta qualquer obstáculo à aplicação das deduções à parte do montante apurado nos termos do n.º 1 derivado de tributações autónomas.
Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 267/2017, de 31-05-2017, proferido no processo n.º 466/16, «a autonomia da tributação em apreço quanto à sua base de incidência, quanto às taxas aplicáveis e até quanto ao momento de pagamento, só por si, não determina – nem lógica nem juridicamente – a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento da coleta do próprio IRC – questão regulada, em geral, no artigo 90.º, n.º 1, do CIRC –, nomeadamente quanto à integração daquela nesta última e, por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeito da realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Tal questão, na ausência de norma específica de sentido contrário – como aquela que, por exemplo, veio a ser consagrada no artigo 88.º, n.º 21, do CIRC – releva da própria configuração legislativa do IRC, nesta incluída a relevância ou irrelevância, para efeitos de apuramento da coleta final de IRC, dos montantes pagos a título de tributações autónomas».
Na verdade, só com a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que aditou ao artigo 88.º do CIRC um n.º 21, passou a existir uma norma em que se afasta a possibilidade de aplicação das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC ao montante apurado com tributações autónomas, estabelecendo-se o seguinte:
21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.
Na parte final desta norma, restringe-se o âmbito de aplicação das deduções previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC à colecta de IRC derivada do lucro tributável.
A Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, veio reafirmar o afastamento da aplicabilidade das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC à colecta de IRC resultante de tributações autónomas ao estabelecer o seguinte:
21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, ainda que essas deduções resultem de legislação especial.
A este n.º 21 do artigo 88.º do CIRC foi atribuída natureza interpretativa, pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016 e pelo artigo 233.º da Lei n.º 114/2017, respectivamente.
No entanto, o Tribunal Constitucional, no citado acórdão n.º 267/2017, já afirmou a inconstitucionalidade daquele artigo 135.º na parte em que, por efeito do carácter meramente interpretativo que atribui à 2.ª parte do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, afasta a possibilidade de dedução ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC de deduções permitidas em anos fiscais anteriores a 2016.
Esta decisão do Tribunal Constitucional baseou-se no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroactiva, de que o Tribunal Constitucional entendeu resultar que «o legislador não pode criar impostos com tal natureza ou introduzir nos impostos existentes modificações que, com efeitos retroativos, os agravem» e que «está em causa a proibição de estatuir consequências jurídicas novas que constituam ex novo ou agravem situações fiscais já definidas, nomeadamente o quantum devido a título de certo imposto e previamente definido em razão da verificação de todos os factos relevantes à luz do direito aplicável antes da estatuição das consequências jurídicas novas».
Por isso, na linha desta jurisprudência, a constitucionalidade da interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, de forma a excluir a possibilidade de deduções à colecta de IRC resultante de tributações autónomas, depende de ela já dever ser efectuada à face do regime anterior àquela lei n.º 7-A/2016, pois é constitucionalmente inadmissível a retroactividade desfavorável aos contribuintes de normas fiscais de que resulte obrigação de pagamento de impostos.
Deve notar-se, porém, desde logo, que a nova redacção dada pela Lei n.º 114/2017 ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, ao afastar a possibilidade de deduções ao montante global das tributações autónomas «ainda que essas deduções resultem de legislação especial» esclarece, com natureza interpretativa (nesta parte sem problemas de constitucionalidade, por se tratar de retroactividade favorável aos contribuintes), que existia legislação especial de que resultava que fossem feitas deduções ao montante das tributações autónomas, vindo assim, reconhecer, com a autoridade legislativa de uma interpretação autêntica, o que já vinha sendo paciente e reiteradamente explicado pela jurisprudência arbitral.
Por isso, sendo constitucionalmente inadmissível, pelo que referiu o Tribunal Constitucional no acórdão citado, que esta nova lei venha afastar a possibilidade de deduções admissíveis à face da legislação vigente até a entrada em vigor da Lei n.º 7-A/2016, a questão que se coloca, para solucionar as questões de legalidade da autoliquidação e posterior liquidação e da decisão da do pedido de revisão oficiosa que são colocadas no presente processo, é a de saber se, antes desta lei, já deveria fazer-se a interpretação restritiva que nela veio a ser explicitada, já deveriam fazer-se restrições à aplicação das deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC à parte da colecta de IRC resultante de tributações autónomas.
Na verdade, o facto de a letra do n.º 2 do artigo 90.º apontar no sentido da aplicação das deduções à colecta resultante das tributações autónomas, essa dedutibilidade não excluía a possibilidade de interpretação restritiva, se «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva. O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquela ratio. O argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)». ( [7] )
Poderá, no entanto, aventar-se a possibilidade de uma interpretação restritiva com base no facto de que algumas tributações autónomas, designadamente algumas das que têm por base de incidência «despesas» ou «encargos» ( [8] ), visam desincentivar certos comportamentos dos contribuintes susceptíveis de afectarem o lucro tributável, e, consequentemente, diminuírem a receita fiscal, e a sua força desincentivadora será atenuada com a possibilidade de a respectiva colecta poder ser objecto de deduções.
No entanto, como foi legislativamente reconhecido pela redacção dada ao n.º 21 do artigo 88.º pela Lei n.º 114/2017 (aqui com força interpretativa constitucionalmente irrepreensível à face do artigo 103.º, n.º 3, da CRP), há legislação especial de que resultam deduções à colecta derivada de tributações autónomas, que são necessariamente situações em que legislativamente se deu preferência a satisfação dos interesses que justificam as deduções em relação aos que se visam com as tributações autónomas, o que sucede com as normas sobre benefícios fiscais dedutíveis à colecta de IRC.
Por outro lado, a natureza de normas antiabuso, destinadas a evitar a fraude e a evasão fiscal, não exclui a possibilidade de deduções à colecta de IRC que com a aplicação dessas normas for determinada, o que é manifesto em relação à colecta proporcionada por correcções baseadas em normas de natureza indiscutivelmente antiabuso, como, por exemplo, as relativas aos preços de transferência ou subcapitalização e também as correcções resultantes da aplicação da norma geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
Ainda por outro lado, é também evidente que a natureza antiabuso de algumas das tributações autónomas que visam desincentivar despesas e evitar evasão fiscal não poderia servir para justificar a não dedução dos benefícios fiscais a toda a colecta de IRC resultante de tributações autónomas, pois a prevista no n.º 11 do artigo 88.º do CIRC não incide sobre despesas ou encargos, mas sim sobre «lucros», sendo uma forma de tributação de lucro complementar ou alternativa em relação à prevista para a generalidade dos rendimentos. Para além disso, a tributação autónoma prevista no n.º 8 do artigo 88.º não tem subjacente qualquer intenção de desincentivar a realização das operações a que se refere, mas sim impor aos contribuintes especiais deveres probatórios em situações em a tributação mais favorável dos destinatários das despesas pode suscitar dúvidas sobre a realidade e normalidade das operações, pois a tributação autónoma é afastada «se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um montante exagerado».
A isto acresce que, mesmo em relação a algumas tributações autónomas que incidem sobre despesas, não seria compatível com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade impor tributação com fundamento numa hipotética intenção legislativa de desincentivar a utilização de motociclos para certas actividades para que eles são indispensáveis, como sucede com os espectáculos com motociclos, ou para que têm evidente adequação, correspondendo a sua utilização a manifesta boa gestão empresarial ( [9] ) e seria especialmente inconcebível incluir no âmbito dessa intenção desincentivadora o próprio pagamento dos «impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização», a que se refere a parte final do n.º 5 do artigo 88.º, que até deverá ser assegurado coercivamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira, no caso de o contribuinte se sentir desincentivado a efectuar esse pagamento.
Assim, o entendimento de que todas as tributações autónomas visam tributar despesas ou desincentivar ou sancionar comportamentos, que pode resultar de uma primeira análise aligeirada, depara, numa percepção mais incisiva, com uma incontornável falta de correspondência com a realidade, sendo mais coerente, como explicação global, a ideia de que estamos «perante um mecanismo cujo objetivo último é o de contribuir para a “normalização” da tributação em sede de IRC, isto é, para o funcionamento deste imposto na sua forma mais pura e mais próxima das suas raízes de imposto sobre o lucro obtido pelas pessoas coletivas. Nesse sentido, as tributações autónomas não são mais do que mecanismos coadjuvantes do eixo central do IRC, que é o de tributar lucros permitindo a dedução das despesas em que os sujeitos passivos têm que incorrer com vista à realização dos rendimentos tributáveis». ( [10] )
Como também se refere no acórdão do CAAD proferido no processo n.º 59/2014-T, as tributações autónomas em IRC, devem ser consideradas uma forma de tributação de rendimentos empresariais:
«A Exposição de Motivos que consta da Proposta de Lei n.º 46/VIII, que veio dar origem à Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que ampliou enormemente as situações de tributações autónomas, não deixa margem para dúvidas de que se trata de uma amplificação consciente e pretendida das entorses previamente existentes, por se ter entendido que elas eram necessárias, em suma, para compensar outras distorções resultantes de significativa fraude e evasão fiscais e, assim, aumentar a equidade da repartição da carga fiscal entre cidadãos e empresas».
(...)
«as tributações autónomas incidentes directamente sobre certas despesas, no âmbito de impostos que originariamente incidiam apenas sobre rendimentos, são consideradas entorses do sistema de tributação directa do rendimento que se visava com o IRC, mas um valor que legislativamente se considerou ser mais relevante do que a coerência teórica dos impostos, como é a implementação da justiça fiscal, impôs uma opção por essas formas de tributação, por estarem em consonância com os princípios da equidade, eficiência e simplicidade.
(...)
Mas, esta tributação indirecta não deixa de ser efectuada no âmbito do IRC, como resulta da inclusão das tributações autónomas no respectivo Código, que tem como corolário a aplicação das normas gerais próprias deste imposto, que não contendam com a sua especial forma de incidência.
Assim, se é certo que as tributações autónomas constituem uma forma diferente de fazer incidir impostos sobre as empresas, que poderia constar de regulamentação autónoma ou ser arrumada no Código do Imposto do Selo, também não deixa de ser certo que a opção legislativa por incluir tais tributações no CIRC revela uma intenção de considerar tais tributações como inseridas no IRC, o que se poderá justificar por serem uma forma indirecta, mas, na perspectiva legislativa, equitativa, simples e eficiente, de tributar rendimentos empresariais que escapam ao regime da tributação com directa incidência sobre rendimentos».
Na verdade, as tributações autónomas em sede de IRC, em face da crescente amplitude que o legislador lhes tem vindo a atribuir ( [11] ), para serem compagináveis com o princípio constitucional da tributação das empresas incidindo fundamentalmente sobre o seu rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP), devem ser entendidas como formas indirectas de tributar rendimentos empresariais, através da tributação de certas despesas e encargos que revelam capacidade contributiva, ou mesmo, nos casos das tributações autónomas previstas nos n.ºs 8 e 11 do artigo 88.º, como formas complementares de tributar directamente rendimentos, em situações em que eles serão presumivelmente gerados, sem tributação, na esfera jurídica de terceiros.
Aliás, é um facto que a imposição de qualquer despesa sem contrapartida a uma pessoa colectiva tem como corolário a um potencial decréscimo do seu rendimento, pelo que a imposição de uma obrigação tributária unilateral, mesmo calculada com base em despesas realizadas ou encargos suportados, constitui uma forma de tributar indirectamente o seu rendimento. ([12])
O novo artigo 23.º-A do CIRC, introduzido pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ao dizer que «não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: a) O IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros», deixa entrever que, na perspectiva legislativa, o IRC e as tributações autónomas são impostos que incidem directa ou indirectamente sobre os lucros, pois é esse entendimento que pode justificar que se inclua a expressão «quaisquer outros impostos», que pressupõe que o IRC e as tributações autónomas também são impostos destes tipos, são impostos que directa ou indirectamente incidem sobre os lucros reais ou presumidos.
Por isso, sendo as tributações autónomas previstas no CIRC, em última análise, formas indirectas de tributar o rendimento empresarial, não se vê que haja necessariamente incompatibilidade entre elas e as regras gerais que prevêem a forma de efectuar a liquidação de IRC.
De qualquer modo, uma interpretação restritiva só pode resultar, à face da redacção do CIRC anterior à Lei n.º 7-A/2016, da conclusão de que o texto do n.º 2 do artigo 90.º, em alguma medida, não corresponda ao pensamento legislativo, designadamente se se puder concluir que a razão justifica alguma ou algumas das deduções, apenas se compagina com a sua aplicação à colecta de IRC resultante do lucro tributável.
E, naturalmente, em face da proibição constitucional da aplicação retroactiva do afastamento global da dedutibilidade a situações anteriores à Lei n.º 7-A/2016, serão de aplicar as deduções quando elas resultam da legislação especial a que se refere a redacção do n.º 21 do artigo 88.º introduzida pela Lei n.º 114/2017.
Na verdade, pelo menos nestes casos em que as deduções resultam de lei especial, estará afastada necessariamente a possibilidade de as afastar por via de uma interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 90.º, pois é essa lei especial, precisamente por o ser, que impõe a sua aplicação, já que as leis especiais se sobrepõem às leis gerais nos seus específicos domínios de aplicação.
É a esta luz que importa apreciar a pretensão a Requerente de efectuar dedução pagamentos especiais por conta à colecta de IRC resultante de tributações autónomas.
5.3. Questão da dedutibilidade às quantias devidas a título de tributações autónomas das quantias pagas a título de pagamentos especiais por conta
Os pagamentos especiais por conta que a Requerente pretende deduzir foram efectuados no exercício de 2013.
O artigo 93.º do CIRC foi alterado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, e a nova redacção aplica-se «aos pagamentos especiais por conta relativos aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2014» (artigo 12.º, n.º 1, desta Lei).
O artigo 93.º do CIRC, na redacção vigente em 2013, resultante do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, estabelecia o seguinte:
Artigo 93.º
Pagamento especial por conta
1 – A dedução a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º é efectuada ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do próprio período de tributação a que respeita ou, se insuficiente, até ao quarto período de tributação seguinte, depois de efectuadas as deduções referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 e com observância do n.º 7, ambos do artigo 90.º
2 – Em caso de cessação de actividade no próprio período de tributação ou até ao terceiro período de tributação posterior àquele a que o pagamento especial por conta respeita, a parte que não possa ter sido deduzida nos termos do número anterior, quando existir, é reembolsada mediante requerimento do sujeito passivo, dirigido ao chefe do serviço de finanças da área da sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável em que estiver centralizada a contabilidade, apresentado nos 90 dias seguintes ao da cessação da actividade.
3 - Os sujeitos passivos podem ainda, sem prejuízo do disposto no n.º 1, ser reembolsados da parte que não foi deduzida ao abrigo do mesmo preceito desde que preenchidos os seguintes requisitos:
a) Não se afastem, em relação ao período de tributação a que diz respeito o pagamento especial por conta a reembolsar, em mais de 10 %, para menos, da média dos rácios de rentabilidade das empresas do sector de actividade em que se inserem, a publicar em portaria do Ministro das Finanças;
b) A situação que deu origem ao reembolso seja considerada justificada por acção de inspecção feita a pedido do sujeito passivo formulado nos 90 dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da declaração periódica relativa ao mesmo período de tributação.
Com a Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, este artigo passou a ter a seguinte redacção:
Artigo 93.º
Pagamento especial por conta
1 - A dedução a que se refere a alínea d) do n.º 2 do artigo 90.º é efetuada ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do próprio período de tributação a que respeita ou, se insuficiente, até ao 6.º período de tributação seguinte, depois de efetuadas as deduções referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 e com observância do n.º 9, ambos do artigo 90.º
2 - Em caso de cessação de atividade no próprio período de tributação ou até ao 6.º período de tributação posterior àquele a que o pagamento especial por conta respeita, a parte que não possa ter sido deduzida nos termos do número anterior, quando existir, é reembolsada mediante requerimento do sujeito passivo, dirigido ao chefe do serviço de finanças da área da sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em que estiver centralizada a contabilidade, apresentado no prazo de 90 dias a contar da data da cessação da atividade.
3 - Os sujeitos passivos podem ainda, sem prejuízo do disposto no n.º 1, ser reembolsados da parte que não foi deduzida ao abrigo do mesmo preceito no final do período aí estabelecido, mediante requerimento do sujeito passivo, dirigido ao chefe do serviço de finanças da área da sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em que estiver centralizada a contabilidade, apresentado no prazo de 90 dias a contar do termo daquele período.
Como já foi referido, antes do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, não existia qualquer disposição legal que estabelecesse a forma de liquidação das tributações autónomas, pelo que, sob pena de inconstitucionalidade por violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, derivada de falta de previsão legal de procedimento de liquidação, teria de se entender que elas eram liquidadas em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 90.º.
Assim, antes da Lei n.º 7-A/2016, as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, que têm por alvo o «montante apurado nos termos do número anterior», aplicavam-se a esse único montante que de tal apuramento resultava, sempre que não se estivesse perante uma das situações especialmente previstas nos n.ºs 4 e seguintes do mesmo artigo, que não têm aplicação no caso dos autos.
A dedução dos pagamentos especiais por conta a todo o valor apurado nos termos daquele artigo 90.º, n.º 1, alínea a), resulta também do teor explícito do artigo 93.º, n.º 1, do CIRC, tanto na redacção vigente em 2013 como na introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ao estabelecerem que «a dedução a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º é efectuada ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do próprio período de tributação a que respeita ou, se insuficiente, até ao quarto período de tributação seguinte, depois de efectuadas as deduções referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 e com observância do n.º 7, ambos do artigo 90.º» (redacção do DL n.º 159/2009, de 13 de Julho) e que «a dedução a que se refere a alínea d) do n.º 2 do artigo 90.º é efetuada ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do próprio período de tributação a que respeita ou, se insuficiente, até ao 6.º período de tributação seguinte, depois de efetuadas as deduções referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 e com observância do n.º 9, ambos do artigo 90.º» (redacção da Lei n. 2/2014).
O montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º inclui os montantes relativos a tributações autónomas, não havendo qualquer outra declaração específica para este efeito, nem antes nem depois da Lei n.º 7-A/2016.
Na verdade, as declarações previstas no artigo 120.º do CIRC são elaboradas num único modelo oficial aprovado por despacho do Ministro das Finanças, nos termos dos artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CIRC.
Assim, em face do preceituado no n.º 2 do artigo 90.º e no n.º 1 do artigo 93.º do CIRC, até à Lei n.º 7-A/2016, nada no teor literal do CIRC obstava à dedução das quantias dos pagamentos especiais por conta à totalidade da colecta de IRC que foi determinada nos termos daquele n.º 1 do artigo 90.º, inclusivamente a derivada de tributações autónomas, dentro do condicionalismo aí previsto.
Por outro lado, tendo o pagamento especial por conta a natureza de empréstimo forçado ([13]), que cria na esfera jurídica do sujeito passivo um crédito sobre a Administração Tributária, não se afigura irrazoável que ele seja tido em conta em situações em que se gera um inverso crédito desta em relação ao contribuinte.
Para além disso, se é certo que, à face do regime vigente antes da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro ter alterado o n.º 3 do artigo 93.º do CIRC, as quantias pagas a título de pagamento especial por conta nem sempre podiam ser deduzidas ( [14] ), também o é que esse regime foi alterado por aquela Lei, sendo o reembolso admitido sem condições que não sejam a de o sujeito passivo o pedir, no prazo previsto.
Por isso, o texto dos artigos 93.º, n.º 1, e 90.º, n.º 1, do CIRC, corroborado por outras razões, aponta no sentido da dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta de IRC derivada das tributações autónomas.
No entanto, o intérprete não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que é necessário apurar se se justifica uma interpretação restritiva.
Ora, o regime de reembolso dos pagamentos especiais por conta tem ínsita uma presunção de rendimentos não declarados, como bem se explica na decisão arbitral de 30-12-2015, proferida no processo do CAAD n.º 113/2015-T:
Como se viu o PEC passou a fazer parte do sistema do IRC cuja liquidação consagrada no artigo 93º foi concebida para apurar o imposto diretamente incidente sobre o rendimento declarado. Quando haja lugar a prejuízo fiscal o sujeito passivo tem ainda assim que suportar o PEC; essa foi aliás a razão da sua introdução. Se determinada empresa tiver sucessivamente prejuízos fiscais, suportará sistematicamente imposto, pois o sistema duvida da sua possibilidade de funcionamento em situação permanentemente deficitária, exigindo-lhe que satisfaça provisoriamente (por conta), determinado valor. Poderá reembolsá-lo se provar que essa situação é comum no seu setor de atividade ou se a AT verificar a regularidade das suas declarações. Este foi o equilíbrio que o CIRC exigiu para manter um sistema baseado nas declarações feitas pelos contribuintes.
Já o imposto resultante da tributação autónoma fundamenta-se tão só na perseguição à evasão fiscal por transferência de rendimento e tem o efeito dissuasor e compensatório.
Se se permitir a dedução do PEC à coleta resultante da tributação autónoma, gorar-se-ão os propósitos do sistema em que a norma do 93º-2-e CIRC se insere, pois o produto do pagamento especial por conta que deveria manter-se “estacionado” na titularidade da Fazenda Pública será afetado à extinção da dívida do sujeito passivo resultante das tributações autónomas, aligeirando assim a pretendida pressão para evitar a evasão fiscal “declarativa”. Existe efetivamente um conflito inconciliável entre a ratio do PEC – o combate à evasão ou a pressão para correção das declarações – e a afetação dos seus créditos à satisfação de outras obrigações que não sejam as que resultam do apuramento do IRC calculado sobre o resultado tributável.
Este facto de o pagamento especial por conta ter por finalidade primacial evitar evasão fiscal, tendo por base, na perspectiva legislativa, suspeita de que o lucro tributável que resulta da declaração de rendimentos é inferior ao real ( [15] ) permite concluir que se visa com ele atingir um objectivo que se sintoniza e é cumulável com a finalidade das restantes tributações autónomas, para além de a existência destas em nada afastar aquela suspeita: a existência de colecta de IRC gerada por tributações autónomas não permite deixar de suspeitar que o lucro tributável é inferior ao real e que há evasão fiscal.
Esta finalidade que se pretendeu legislativamente atingir com a criação do pagamento especial por conta justifica uma interpretação restritiva da referência que no artigo 93.º, n.º 1, do CIRC se faz ao «montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º».
Na verdade, seria incongruente que pudessem ser deduzidos à colecta de IRC gerada pelas tributações autónomas os montantes não recuperáveis dos pagamentos especiais por conta por insuficiência de lucro tributável, já que, na perspectiva legislativa, mantêm-se as razões para suspeitar que o que resulta da declaração é inferior ao real e não há razões para afastar a efectividade das tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC. ( [16] )
A congruência valorativa e axiológica do sistema jurídico, a que alude o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil ao referir «unidade do sistema jurídico» é o factor interpretativo primacial ( [17] ): «o interesse tutelado por uma norma não pode ser isolado da totalidade dos interesses considerados e tutelados pelo sistema jurídico global. O ordenamento jurídico só pode ser entendido como um sistema de valores tomado como unidade e totalidade, dentro do qual se coordenam e hierarquizam os diferentes valores parciais afirmados pelas diferentes normas» ( [18] ). Embora o regime de reembolso do pagamento especial por conta tenha sido formalmente facilitado pela nova redacção que a Lei n.º 2/2014 deu ao n.º 3 do artigo 93.º do CIRC, não deixa de ser necessária a apresentação de um requerimento do sujeito passivo, dirigido ao chefe do serviço de finanças, o que manifestamente tem em vista suscitar uma apreciação casuística do direito ao reembolso, que só se pode justificar pela existência de dúvidas quanto à correcção dos rendimentos declarados.
Neste contexto, compreende-se que os pagamentos especiais por conta sejam imediatamente deduzidos na medida em que há colecta de IRC de lucro tributável suficiente para a dedução dos valores pagos (o que na perspectiva legislativa significará que não há razão para duvidar da existência de rendimentos não declarados), mas já não quando aquela colecta seja insuficiente, pois, mesmo que haja colecta derivada de tributações autónomas, não ficará afastada a presunção de omissão de rendimentos.
O novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, sintoniza-se com este entendimento, pois vem estabelecer expressamente que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efectuadas quaisquer deduções», mas, pelo que se referiu, a interpretação que veio a ser explicitada neste n.º 21 do artigo 88.º do CIRC era já, quanto aos pagamentos especiais por conta (e diferentemente do que sucedia com os benefícios fiscais), a que deveria ser adoptada anteriormente.
Neste contexto, nem será de duvidar da verdadeira natureza interpretativa que o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, atribuiu àquele novo n.º 21.º do artigo 88.º, à luz dos ensinamentos de BAPTISTA MACHADO, pois a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor:
– a solução que resultava do teor literal do artigo 93.º, n.º 1, do CIRC era controvertida, como evidencia aquela decisão arbitral e a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia;
– o julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário optimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.
Por outro lado, ao contrário do que sucede com os benefícios fiscais (como o SIFIDE, o RFAI e o CFEI) não há, no que concerne à dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta, preocupação de protecção de confiança, pois, os pagamentos especiais estão conexionados com o volume de negócios, não dependendo de qualquer específico comportamento que o sujeito passivo fosse levado a adoptar por lhe ser criada a expectativa de obter como contrapartida uma vantagem fiscal.
Não se desconhece que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 267/2017, de 31-05-2017, declarou «inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC - número esse aditado pelo artigo 133.º da citada Lei - segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016».
Mas, esse acórdão do Tribunal Constitucional, quanto à interpretação da lei ordinária, parte de uma errada interpretação da jurisprudência arbitral, pois considerou que «inexistem razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC resultante da alteração feita pelo artigo 133.º da LOE 2016», invocando as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015-T, quando nenhuma destas decisões se pronuncia sobre a questão de os pagamentos especiais por conta serem dedutíveis à colecta de IRC proveniente de tributações autónomas.
Na verdade, os processos n.ºs 769/2014-T e 219/2015-T reportam-se à dedução de benefícios fiscais à colecta de IRC derivada de tributações autónomas, questão que é substancialmente diferente da que se coloca em relação aos pagamentos especiais por conta, por os benefícios fiscais implicarem uma preferência legislativa pela prossecução dos objectivos extrafiscais que os justificam, que se sobrepõem aos restantes objectivos da tributação.
O processo n.º 163/2014-T tratou a questão da dedutibilidade das quantias respeitantes às tributações autónomas como encargos para efeitos de determinação do lucro tributável e decidiu no sentido negativo.
O único processo dos referidos em que se colocou a questão da dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta de IRC derivada de tributações autónomas, foi o processo n.º 370/2015-T, mas o Tribunal Arbitral não tomou conhecimento dessa questão, por a considerar prejudicada.
Pelo contrário, em 31-05-2017, quando o Tribunal Constitucional proferiu o acórdão n.º 267/2017, havia já jurisprudência arbitral no sentido de os pagamentos especiais por conta não serem dedutíveis à colecta de IRC gerada pelas tributações autónomas, designadamente o acórdão de 30-12-2015, proferido no processo n.º 113/2015-T, e já depois da entrada em vigor a Lei n.º 7-A/2016, os seguintes acórdãos, além de outros: de 28-04-2016, proferido no processo n.º 673/2015-T; de 04-05-2016, proferido no processo n.º 781/2015-T; de 13-05-2016, proferido no processo n.º 784/2015-T; de 14-06-2016, proferido no processo n.º 736/2015-T; de 14-06-2016, proferido no processo n.º 745/2015-T; de 11-07-2016, proferido no processo n.º 670/2015-T (com um voto de vencido); de 15-07-2016, proferido no processo n.º 749/2015-T; de 28-08-2016, proferido no processo n.º 722/2015-T; de 25-08.-2016, proferido no processo n.º 746/2015-T; de 07-09-2016, proferido no processo n.º 639/2015-T; de 07-10-2016, proferido no processo n.º 727/2015-T.
De qualquer forma, pelo que se referiu, a interpretação que veio a ser explicitada neste n.º 21 do artigo 88.º do CIRC era já, quanto aos pagamentos especiais por conta (e diferentemente do que sucedia com os benefícios fiscais), a que deveria ser adoptada anteriormente.
Por isso, independentemente da inconstitucionalidade ou não da interpretação autêntica efectuada pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2015, de 30 de Março, e redacção que deu ao artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, na parte em que se reporta aos pagamentos especiais por conta, a pretensão da Requerente de que os pagamentos especiais por conta sejam deduzidos à colecta de tributações autónomas não pode proceder.
Consequentemente, a autoliquidação e o indeferimento do pedido de revisão oficiosa não enfermam de ilegalidade.
5.4. Questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira
A Autoridade Tributária e Aduaneira faz algumas referências a princípios constitucionais que entende que seriam violados com as deduções dos montantes dos pagamentos especiais por conta à colecta de IRC derivada de tributações autónomas.
Assim, concluindo-se que a solução legal não é a dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta a colecta de IRC derivada de tributações autónomas, fica prejudicado, por ser inútil, a apreciação de tais questões de constitucionalidade [artigos 130.º e 608.º n.º 2, 2.ª parte, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
6. Reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios
A Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
O reembolso de quantia paga na sequência de autoliquidação depende da existência de um pagamento indevido de imposto, o mesmo sucedendo com o direito a juros indemnizatórios [artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 43.º, n.º 1, da LGT].
Não tendo havido pagamento indevido, improcedem os pedidos de reembolso e de juros indemnizatórios.
7. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedentes as excepções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral de anulação da autoliquidação e da decisão do pedido de revisão oficiosa, bem como os pedidos de reembolso e de juros indemnizatórios e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos estes pedidos.
8. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 54.735,31.
Lisboa, 25-02-2019
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Filomena Salgado de Oliveira)
(vencida, conforme declaração anexa)
(José Rodrigo de Castro)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida na presente decisão porquanto, pelos argumentos constantes, entre outras, das decisões que fizeram vencimento nos Processos arbitrais n.º 775/2015-T, n.º 602/2016-T, n.º 65/2017-T, n.º134/2017-T e n.º 223/2018-T, considerar que a interpretação literal que decorre do texto dos artigos 93.º, n.º 3, e 90.º, n.º 2, do CIRC, é a dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta de IRC derivada das tributações autónomas.
Não me parece admissível uma interpretação restritiva que atenda mais ao elemento sistemático e à intenção atribuída ao legislador do que à letra da lei, sobretudo quando a mesma não tem expressão bastante nessa letra da lei. Em minha opinião, a lei é clara e não comporta senão um sentido, sendo esse o da dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta do IRC, seja a mesma constituída, ou não, pela colecta de IRC resultante de tributações autónomas.
Não obstante se afirmar na presente decisão que:
Assim, em face do preceituado no n.º 2 do artigo 90.º e no n.º 1 do artigo 93.º do CIRC, até à Lei n.º 7-A/2016, nada no teor literal do CIRC obstava à dedução das quantias dos pagamentos especiais por conta à totalidade da colecta de IRC que foi determinada nos termos daquele n.º 1 do artigo 90.º, inclusivamente a derivada de tributações autónomas, dentro do condicionalismo aí previsto.
(…)
Por isso, o texto dos artigos 93.º, n.º 1, e 90.º, n.º 1, do CIRC, corroborado por outras razões, aponta no sentido da dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à colecta de IRC derivada das tributações autónomas.
a conclusão do presente Acórdão baseia-se numa interpretação restritiva dos artigos 93.º, n.º 1, e 90.º, n.º 2, do CIRC.
Nesta matéria, acompanho e concordo com a jurisprudência arbitral do Processo n.º 672/2016-T quando refere que:
“(…) tal interpretação [restritiva] atende mais ao elemento sistemático e à intenção atribuída ao legislador do que à letra da lei, nada nos fazendo crer que o legislador se manifestou incorrectamente, e nada recomendando, consequentemente, a interpretação restritiva.
Com efeito, os pagamentos especiais por conta nem por serem especiais deixam de ser pagamentos por conta. Ou seja, adiantamentos do imposto que a final se liquide, ao qual devem ser deduzidos os pagamentos já efetuados, créditos resultantes de um empréstimo que o contribuinte foi forçado a fazer ao Estado – sejam eles especiais ou não.
É verdade que estes pagamentos especiais por conta visam tributar as empresas que sistematicamente apresentam prejuízos fiscais, e não as que evidenciam resultados fiscais positivos. Mas tal não é obstáculo ao que vimos afirmando.
Assim, no nosso entender, a coleta encontrada mediante a liquidação efetuada nos termos do artigo 90º nº 1 inclui as tributações autónomas, e o nº 2 do mesmo artigo, na sua alínea c), manda deduzir ao montante apurado, que é um só, o «pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106º».
Não vemos como esta norma possa legitimamente interpretar-se senão literalmente.
Todos os elementos a que se atende para a interpretação das leis, designadamente, a intenção do legislador, ou a unidade do sistema, de nada valem se o resultado a que se chega não tem expressão bastante na letra da lei. E essa letra, no caso, é clara e não comporta, a nosso ver, senão um sentido.
(…)
A nosso ver, tal interpretação [restritiva] atende mais ao elemento sistemático e à intenção atribuída ao legislador do que à letra da lei, nada nos fazendo crer que o legislador se manifestou incorretamente, e nada recomendando, consequentemente, a interpretação restritiva.”
Por outro lado, conforme proferido no Acórdão n.º 775/2005-T, de 28 de Junho de 2016, cujo colectivo integrei:
“Não existe no CIRC outro artigo para além do art.º 90.º em que se distinga o processo de liquidação das tributações autónomas do restante IRC. E, nestes termos, a liquidação de ambos – tributações autónomas e restante IRC – é única e tem o mesmo suporte legal.
As tributações autónomas não resultam de um processo distinto de liquidação do imposto.
Entendido que é serem as tributações autónomas (parte do) IRC, compreende-se que seja única a liquidação de IRC, incluindo a parte que provém das tributações autónomas.
Há uma liquidação de IRC única que comporta duas partes: a liquidação das tributações autónomas e a do restante IRC, cada uma com matéria colectável determinada de modo próprio e com taxas de tributação próprias, mas ambas liquidadas nos termos do art.º 90.º do CIRC. Havendo uma liquidação única, conclui-se que a parte da coleta que provém das tributações autónomas é parte integrante da coleta deIRC.
Ao contrário, não se encontra em qualquer outro artigo do CIRC a referência à liquidação das tributações autónomas como processo distinto. Aceitar que não se inclui a coleta das tributações autónomas no art.º 90.º do CIRC, seria aceitar que existe uma lacuna na lei e, sendo esta uma lei fiscal, não permite a integração.
Aceitar que a liquidação das tributações autónomas está fora do art.º 90.º n.º 1 do CIRC e, portanto, afastar da sua coleta a dedutibilidade do PEC prevista na alínea c) do n.º 2, seria obrigar o contribuinte a pagar um imposto cuja liquidação se não faz nos termos da lei, contrariando o n.º 3 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da legalidade tributária que a Lei Geral Tributária, no seu art.º 8º, n.º 2, alínea a), estabelece.
Não havendo norma sobre liquidação das tributações autónomas separada, parece ter de aceitar-se que a coleta de IRC a engloba, incluindo-se no art.º 90º, n.º 1 do CIRC, sendo, portanto, dedutível o pagamento especial por conta referido na alínea c) do n.º 2.
Note-se, aliás, que nos números seguintes daquele artigo 90.º o legislador se preocupou em enunciar várias exceções e limites às regras da dedutibilidade do número 2. No número 4, quando prevê que «apenas é de efetuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC», o é revelador: compreende-se que assim, seja, porque é na coleta de IRC que se pretende deduzi-las, ou, no número 7, quando prescreve que das deduções à coleta a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar, de uma forma geral e sem distinguir a coleta resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma, valor negativo.
Em nenhuma delas – e seria este, indubitavelmente, o local certo – e em nenhuma outra norma se refere a qualquer limitação à dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à parte da coleta de IRC que resulta das tributações autónomas, sendo, portanto, forçoso concluir que não quis fazê-lo.
Note-se, aliás, que, embora alterado o artigo 90.º com a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que republicou o CIRC, o que aqui se disse não só perdura como, de um ponto de vista interpretativo, sai até reforçado, porquanto o legislador aditou algumas limitações e exceções às deduções à coleta previstas no número 2 e voltou a não se referir à parte da coleta que resulta da aplicação das taxas de tributação autónoma.
(…)
Considerar que a liquidação das tributações autónomas está fora da coleta que se calcula pelo art.º 90º. n.º 1 do CIRC, é aceitar que tal entendimento estaria previsto noutro preceito legal e, como este não existe, a liquidação não pode deixar de ser efetuada no âmbito do art.º 90.º do CIRC.
Assim, terá de aceitar-se a dedução PEC à coleta de IRC, nela se incluindo necessariamente a parcela proveniente das tributações autónomas.”
Por outro lado, discordo da justificação para aplicação de uma interpretação restritiva, baseada no regime de reembolso dos pagamentos especiais por conta, por se considerar que estes têm ínsita uma presunção de rendimentos não declarados.
Considerar que o pagamento especial por conta tem “(…) por finalidade primacial evitar evasão fiscal, tendo por base, na perspectiva legislativa, suspeita de que o lucro tributável que resulta da declaração de rendimentos é inferior ao real” e que “(…) permite concluir que se visa com ele atingir um objectivo que se sintoniza e é cumulável com a finalidade das restantes tributações autónomas, para além de a existência destas em nada afastar aquela suspeita: a existência de colecta de IRC gerada por tributações autónomas não permite deixar de suspeitar que o lucro tributável é inferior ao real e que há evasão fiscal.” e que esta suposta “(…) finalidade que se pretendeu legislativamente atingir com a criação do pagamento especial por conta justifica uma interpretação restritiva da referência que no artigo 93.º, n.º 1, do CIRC se faz ao «montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º».”, leva-me a discordar da conclusão da decisão.
A Lei do Orçamento de Estado para 2019, a Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro, ao adiantar a alínea e) ao número 11 do artigo 106.º do Código do IRC, contraria o referido argumento, ao suspender o pagamento especial por conta para todos os sujeitos passivos que tenham cumprido as obrigações declarativas previstas nos artigos 120.º e 121.º, relativas aos dois períodos de tributação anteriores. Esta suspensão mantém-se por um período de três anos. A medida foi justificada no âmbito do reforço da tesouraria das empresas.
Por outro lado, no caso em análise, não estamos perante um reembolso do pagamento especial por conta, mas antes, perante a dedução do pagamento especial por conta à colecta de IRC resultante das tributações autónomas.
Uma vez que não parece existir, qualquer dúvida, sobre o carácter unitário da liquidação de IRC e que a colecta de IRC resultante das tributações autónomas é parte integrante da colecta de IRC, não entendo como se pode dar outro sentido ao disposto no n.º 1 do Artigo 93.º, na redacção em vigor em 2013, que refere “A dedução a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º é efectuada ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do próprio período de tributação a que respeita ou, se insuficiente, até ao quarto período de tributação seguinte, depois de efectuadas as deduções referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 e com observância do n.º 7, ambos do artigo 90.º”.
A dedução é efectuada sem restrições, não podendo apenas, dessa dedução, resultar valor negativo.
Assim, o regime do reembolso do pagamento especial por conta só será aplicado, caso exista insuficiência de colecta, apurada nos termos do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, uma vez que o n.º 2 é claro quanto à possibilidade de dedução do “Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
(..)
c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;”
Nestes termos, a aplicação do regime do reembolso só ocorreria, conforme já referido, caso da dedução do pagamento especial por conta resultasse valor negativo, uma vez que o n.º 7 “Das deduções efectuadas nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.”, o que não é o caso em apreciação.
A redacção introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, em nada altera o sentido desta dedução, para além de deixar de condicionar o reembolso da parte não deduzida dos pagamentos especiais por conta à colecta de IRC.
Deste modo, sendo aceite por este colectivo que a colecta das tributações autónomas são parte integrante da colecta de IRC, não consigo entender como se pode concluir que a dedução do pagamento especial por conta está limitada à restante colecta de IRC. Isso seria contrariar toda a argumentação explanada (e com a qual estou totalmente de acordo) de que a liquidação é unitária e que apenas existe uma colecta de IRC, sendo a colecta resultante das tributações autónomas, logicamente, colecta de IRC.
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 267/2017, de 31 de Maio, que tem por base uma decisão arbitral na qual também se tinha respondido positivamente à questão da dedutibilidade do PEC à colecta de IRC resultante das tributações autónomas vem, precisamente, confirmar e reforçar a dedutibilidade dos pagamento especiais por conta à colecta de IRC resultante das tributações autónomas.
O Tribunal Constitucional decidiu “Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC – número esse aditado pelo artigo 133.º da citada Lei – segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016;”.
É bem evidente, não só no texto do Acórdão, como na Declaração de Voto Vencido que o colectivo, a respeito da possibilidade de dedução dos PEC à colecta da tributação autónoma, analisou a própria possibilidade desta dedução se efectivar.
No Acórdão pode ler-se:
“Porém, a autonomia da tributação em apreço quanto à sua base de incidência, quanto às taxas aplicáveis e até quanto ao momento de pagamento, só por si, não determina – nem lógica nem juridicamente – a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento da coleta do próprio IRC – questão regulada, em geral, no artigo 90.º, n.º 1, do CIRC –, nomeadamente quanto à integração daquela nesta última e, por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeito da realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC. Tal questão, na ausência de norma específica de sentido contrário – como aquela que, por exemplo, veio a ser consagrada no artigo 88.º, n.º 21, do CIRC – releva da própria configuração legislativa do IRC, nesta incluída a relevância ou irrelevância, para efeitos de apuramento da coleta final de IRC, dos montantes pagos a título de tributações autónomas.”
A Declaração de Voto faz igualmente referência este texto do Acórdão, referindo que:
“O Acórdão começa por considerar que «inexistem razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa do artigo 88.º, n.º 21, do CIRC, resultante da alteração feita pelo artigo 133.º da LOE 2016». Tal asserção tem implícito que o “direito certo” ditado pela norma interpretada era no sentido de que as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (onde se inclui o pagamento especial por conta) podem ser efetuadas à coleta das tributações autónomas.
A maioria que fez vencimento não teve qualquer dúvida quanto a esse sentido quando, noutra passagem do Acórdão, afirma que a autonomia das tributações autónomas –quanto à base de incidência, quanto às taxas, e até quanto ao momento de pagamento – não determina a irrelevância da coleta obtida com as tributações autónomas no âmbito do apuramento do próprio IRC, designadamente quanto à integração daqueles nesta última, e «por conseguinte, quanto à admissibilidade de consideração do valor da citada coleta para efeitos de realização das deduções legalmente previstas no artigo 90.º, n.º 2, do CIRC».”
Termos em que, não obstante o maior respeito pela argumentação constante do presente Acórdão, não posso concordar com a interpretação restritiva constante da presente decisão que atende mais ao elemento sistemático e à intenção atribuída ao legislador do que à letra da lei constante dos artigos 93.º, n.º 1, e 90.º, n.º 2, do CIRC.
Entendo que a lei é clara e não comporta, a meu ver, senão um sentido, a dedutibilidade dos Pagamentos Especiais por Conta à colecta de IRC, incluindo a colecta de IRC resultante das tributações autónoma.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2019
(Filomena Salgado de Oliveira)
(texto redigido de acordo com a antiga ortografia)
[1] Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06.
[2] BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 4.ª edição, página 100.
[3] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.
[4] O n.º 7 veio a ser revogado pela Lei n.º 82-C/2014, de 31 de Dezembro.
[5] O n.º 6 do artigo 87.º do CIRC foi revogado pela Lei n.º 55/2013, de 8 de Agosto, o que não tem relevância para este efeito de demonstrar que fora do âmbito das tributações autónomas havia e há cálculos parciais de IRC com base em taxas especiais aplicáveis a determinadas matérias colectáveis.
[6] Será materialmente inconstitucional, por violação da proibição constitucional da retroactividade dos impostos, que consta do n.º 3 do artigo 103.º da CRP, como entendeu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 267/2017, de 31-05-2017.
[7] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 186.
[8] Actualmente apenas em relação a algumas tributações autónomas se poderá encontrar a natureza de normas antiabuso, pois, como ensina CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, página 543, «é, porém, evidente que o alargamento e agravamento de que tais tributações autónomas têm presentemente uma finalidade clara de obter mais receitas fiscais».
[9] Como, por exemplo, a distribuição de pizzas ao domicílio nas cidades ou de correio nas zonas rurais, situações que já foram apreciadas em decisões arbitrais proferidas nos processos n. 628/2014-T e 553/2016-T.
[10] Como bem se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 210/2013-T.
[11] Como adiante se refere, tem-se constatado reiteradamente que a colecta primacial de IRC resultante directamente do lucro tributável é muito inferior à colecta global de IRC.
[12] Não se pode esquecer, neste contexto da identificação da natureza de um tributo, que, levando a análise ao limite, como ensinava o saudoso Prof. Doutor SALDANHA SANCHES, «o destinatário do imposto é sempre a pessoa singular - a tributação da sociedade comercial é instrumental e a sua tributação é sempre um pagamento por conta do imposto que mais tarde vai ser suportado pelo titular do capital da sociedade».
[13] Neste sentido, pode ver-se CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, página 541, acompanhado pelo Supremo Tribunal Administrativo nos acórdãos de 18-2-2009, processo n.º 0926/08, e de 13-5-2009, processo n.º 0927/08. No mesmo sentido, FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 3.ª edição, página 45.
[14] À face do n.º 3 do artigo 93.º do CIRC, na redacção resultante da republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, se não houvesse colecta de IRC suficiente para deduzir os pagamentos especiais por conta até ao quarto período de tributação subsequente, o reembolso apenas poderia ocorrer se se verificassem as condições previstas nesse n.º 3 do artigo 93.º do CIRC: não haver afastamento, em relação ao período de tributação a que diz respeito o pagamento especial por conta a reembolsar, em mais de 10 %, para menos, da média dos rácios de rentabilidade das empresas do sector de actividade em que se inserem, a publicar em portaria do Ministro das Finanças e a situação que deu origem ao reembolso seja considerada justificada por acção de inspecção feita a pedido do sujeito passivo formulado nos 90 dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da declaração periódica relativa ao mesmo período de tributação.
[15] O pagamento especial por conta é, ele mesmo, uma forma de tributação autónoma, não sendo calculado com base no lucro tributável, mas com base no volume de negócios relativo ao período de tributação anterior, nos termos do n.º 2 do artigo 106.º do CIRC.
[16] A situação é, assim, absolutamente diferente da dedução de benefícios fiscais à colecta de IRC derivada de tributações autónomas, pois neste caso, as finalidades extrafiscais visadas com os benefícios fiscais estão em dissonância e prevalecem sobre as finalidades das tributações autónomas.
[17] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 191.
[18] BAPTISTA MACHADO, Âmbito de eficácia e âmbito de competência das leis, 213-214.