Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 349/2016-T
Data da decisão: 2019-02-07  Selo  
Valor do pedido: € 26.537,20
Tema: Imposto do Selo – Verba 28.1 TGIS – Terreno para construção. Reforma da decisão arbitral (anexa à decisão). - Substitui a Decisão Arbitral de 13 de março de 2017
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Decisão Arbitral

- Revista após Decisão Sumária do Tribunal Constitucional -

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 13 de setembro de 2016, vem, na sequência da decisão do Tribunal Constitucional de 21.11.2018 e transitada em julgado a 06.12.2018[1], que decidiu conceder provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Público da decisão proferida em 13.03.2017, julgando não inconstitucional a norma constanta da Verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aprovada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro e alterada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, na parte em que impõe a tributação anual sobre a propriedade de terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a € 1.000.000,00, reformar a decisão anteriormente proferida, a qual passa a ser a seguinte:

  1. RELATÓRIO

 

  1. Enquadramento processual

 

No dia 27-06-2016, a sociedade “A...– FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO”, NIPC..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14-09-2016.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29.08-2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.

Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 13-09-2016.

O Tribunal proferiu decisão sobre o processo no dia 13.03.2017, tendo o processo sido arquivado em 29.03.2017.

O Ministério Público apresentou um requerimento de recurso da decisão para o Tribunal Constitucional a 18.04.2017, sobre o qual foi proferido despacho notificado às Partes e ao Ministério Público no dia 27.04.2017.

A decisão sumária do Tribunal Constitucional foi recebida e notificada a 17.12.2018.

  1. Síntese dos fundamentos invocados pela Requerente

No presente processo, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade, por vício de violação de lei, dos seguintes atos de liquidação de imposto do selo referentes ao ano de 2015:

  1. O primeiro relativo ao lote de terreno inscrito na matriz predial da freguesia da..., concelho de Lisboa, sob o artigo U-..., no valor de € 13.042,50;
  2. O segundo relativo ao lote de terreno inscrito na matriz predial da freguesia da..., concelho de Lisboa, sob o artigo U-..., no valor de € 13.494,70.

Os fundamentos apresentados pela Requerente são os seguintes:

  1. Falta de fundamentação dos atos de liquidação, uma vez que dos mesmos não constam as razões de ordem fáctica e jurídica que determinaram a respetiva emissão, designadamente a natureza e afetação dos imóveis sobre os quais incide o imposto e a razão da sua subsunção à verba 28.1 da TGIS, com os consequentes apuramentos das coletas respetivas;
  2. Preterição de formalidade legal essencial por força da circunstância de o Requerente não ter sido notificado nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º da Lei Geral Tributária;
  3. Errónea aplicação da verba 28.1 da TGIS, uma vez que, à luz do CIMI, o conceito de “prédio habitacional” se encontra integrado na definição de prédio urbano habitacional constante do artigo 6.º, n.º 2, do referido diploma legal, o qual abrange unicamente “os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins”. Já os terrenos para construção, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito legal, são aqueles terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou emitida autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afetos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos. Ora, segundo a Requerente, de acordo com o artigo 50.º do Regulamento do PDMLisboa, embora o terreno inscrito na matriz predial da freguesia da ... sob o n.º U-... seja um terreno para construção, o mesmo não tem capacidade edificativa, nos termos do PDML em vigor e por esta razão está excluído da base de incidência da verba 28.1 da TGIS, que só incide sobre “(…) terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação. Por outro lado, o artigo 58.º do Regulamento do PDMLisboa integra o terreno inscrito na matriz predial da freguesia da ... sob o artigo U-... numa área cuja reconversão urbanística ainda não está definida, não sendo possível, até que essa reconversão ocorra, promover qualquer tipo de construção.
  1. Síntese da contra-argumentação da AT

Quanto à falta de fundamentação:

O ato tributário de liquidação da verba 28.1 da TGIS tem carácter periódico, a sua liquidação é feita anualmente, com base em elementos pré-estabelecidos na matriz, e as liquidações, notificações e prazos de pagamento dos respectivos documentos de cobrança seguem, com as necessárias adaptações, as regras previstas para o IMI;

Todos os elementos – identificação fiscal do contribuinte, ano de imposto, identificação do prédio, ano de imposto, taxa, VPT, coleta e imposto a pagar - estão expressos nas notas de cobrança para pagamento, inexistindo qualquer procedimento administrativo subjacente a cada ato de liquidação.

Quanto à alegada violação do artigo 60.º da LGT - por não ter sido assegurado ao sujeito passivo a participação na decisão - sempre se dirá que, a AT invoca jurisprudência que lhe é favorável, nomeadamente da parte do STA, que tem vindo a decidir que (não obstante a audiência prévia constituir uma importante manifestação do princípio do contraditório e visar associar o administrado à tarefa de preparar a decisão final e permitir-lhe participar e influenciar a formação da vontade da Administração), a mesma constitui uma formalidade não essencial quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornar inútil - Acórdão do STA datado de 3/3/04, Recurso n.º. 240/02 e Acórdão de 24/10/2007, proferido no Rec. 429/07.

Quanto ao argumento de errónea aplicação da lei por (i) o imóvel inscrito na matriz sob o artigo ... se encontrar classificado na planta de ordenamento como área consolidada/espaços verdes de recreio e produção e (ii) o imóvel inscrito sob o artigo ... se encontrar classificado como área consolidada/espaços centrais e residenciais, a AT defende-se da seguinte forma:

- o ato aquisitivo dos referidos imóveis pela Requerente em 2010 descreveu-os como terrenos para construção, donde, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do CIMI, mesmo que não existissem operações urbanísticas aprovadas que determinassem tal qualificação, os mesmos sempre se considerariam terrenos para construção;

- os imóveis estão abrangidos pelo âmbito do conceito previsto na verba 28.1 do TGIS, desde que o respectivo VPT seja igual ou superior a € 1.000 000,00. Considerando o âmbito de incidência da norma aos terrenos para construção de edifícios, a tributação recai sobre valores correspondentes a prédios a construir que, segundo a respectiva autorização ou previsão se destinam a ter uma afetação para habitação. Quanto aos terrenos em questão, contesta que os mesmos não tenham capacidade edificativa e afirma que, para os desqualificar de “terrenos para construção”, a Requerente teria que apresentar um pedido de alteração à matriz, devidamente instruído por documento da câmara municipal a certificar a impossibilidade de construção.

- no caso concreto, embora os lotes de terreno estejam sujeitos a fortes restrições urbanísticas, não existe uma impossibilidade construtiva que determine a não sujeição a imposto.

Na Resposta apresentada, a AT refere ainda que “existe um meio processual próprio que acautela as alterações matriciais e que visa adequar a matriz em face da realidade física e económica dos prédios.” Faz referência ao n.º 3 do artigo 130º do CIMI, nos termos do qual os sujeitos passivos podem, a todo o tempo, reclamar de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, concluindo que “não é a impugnação da liquidação o meio adequado para discutir matérias relacionadas com atos de inscrição matricial os quais constituem um ato administrativo em matéria tributária, e para o qual o Tribunal Arbitral não é competente para decidir.” No entanto, não extrai daqui qualquer incompetência do tribunal arbitral quanto ao pedido formulado pela Requerente e, aliás, conclui a Resposta dizendo que não existem quaisquer exceções de que o tribunal deva conhecer. Este é, de resto, o entendimento do Tribunal, quer quanto à sua competência face aos atos impugnados, quer quanto à sua competência para conhecer das questões em que a Requerente entende traduzir-se o vício de violação de lei que imputa àqueles atos.

Assim, quanto a este ponto, nada mais há a referir, não carecendo de análise mais aprofundada o requerimento apresentado pela Requerente como “Resposta às exceções”.

Quanto ao requerimento de inquirição de testemunhas apresentado pela Requerente, importa salientar que o Tribunal, através de despacho de 19-10-2016, transmitiu às partes o seu entendimento de que as questões controvertidas estavam suficientemente documentadas nos autos.

II. SANEAMENTO

 

1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

3. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

Antes de entrar na apreciação das questões de direito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

III.1 Factos provados

 

  1. A requerente é proprietária de um terreno para construção inscrito na matriz predial da freguesia da ..., concelho de Lisboa, sob o artigo U-..., no valor de € 13.042,50;
  2. A requerente é ainda proprietária de um lote de terreno inscrito na matriz predial da freguesia da ..., concelho de Lisboa, sob o artigo U-..., no valor de € 13.494,70
  3. Nos termos da respetiva caderneta predial, o terreno inscrito sob o artigo U-...tem como tipo de coeficiente de localização a “habitação”.
  4. O mesmo terreno tem a área total de 10.500,0000 m2, a área bruta de construção de 4.000,0000 m2 e a área de implantação do edifício de 2.000,0000 m2.
  5. Tem ainda o valor patrimonial tributário de € 1.304.250,00.
  6. Quanto ao terreno inscrito sob o artigo U-..., tem como tipo de coeficiente de localização a “habitação”,
  7. A área total de 16.500,0000 m2, a área bruta de construção de 4.000,0000 m2 e a área de implantação do edifício de 2.000,0000 m2.
  8. Tem ainda o valor patrimonial tributário de € 1.349.470.
  9. A AT emitiu um ato de liquidação de imposto do selo, referente ao ano de 2015, que incidiu sobre o terreno identificado em a., o qual foi cobrado em três prestações, no valor total de € 13.042,50.
  10. A AT emitiu um ato de liquidação de imposto do selo, referente ao ano de 2015, que incidiu sobre o terreno identificado em b., o qual foi cobrado em três prestações, no valor total de € 13.494,70.
  11. Ambos os terrenos foram descritos no respetivo ato aquisitivo como terrenos para construção.
  12. O terreno inscrito sob o artigo U-... está inserido, nos termos do PDML, numa zona classificada como “Espaço Central e Residencial a consolidar”.
  13. De acordo com o artigo 58.º do PDML, o terreno referido no parágrafo anterior tem a sua capacidade edificativa dependente de operações de reconversão urbanística ainda não realizadas.
  14. O terreno inscrito sob o artigo U-...encontra-se classificado como “Espaço Verde de Recreio e Produção Consolidado”.
  15. Nos termos do artigo 50.º do PDML, nas áreas classificadas como espaço verde de recreio e produção consolidado não é possível a constituição de lotes por operações de loteamento nem a construção em parcelas com área inferior a 2ha.

 

III.2 Factos não provados

 

Não existem factos relevantes para a decisão que tenham sido dados como não provados.

 

III.3 Fundamentação da decisão quanto à matéria de facto

 

A decisão quanto à matéria de facto fundamenta-se nos documentos juntos aos autos, que aqui se dão por reproduzidos, bem como na ausência de controvérsia sobre eles quanto aos pontos indicados.

 

IV. THEMA DECIDENDUM

 

As questões que a Requerente colocou à apreciação deste tribunal foram as seguintes:

(i)        Falta de fundamentação dos atos de liquidação, uma vez que dos mesmos não constam as razões de ordem fáctica e jurídica que determinaram a respetiva emissão, designadamente a natureza e afetação dos imóveis sobre os quais incide o imposto e a razão da sua subsunção à verba 28.1 da TGIS, com os consequentes apuramentos das coletas respetivas;

(ii)       Preterição de formalidade legal essencial por força da circunstância de o Requerente não ter sido notificado nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º da Lei Geral Tributária;

(iii)      Errónea aplicação da verba 28.1 da TGIS por os prédios em questão não deverem ser considerados terrenos para construção.

 

O tribunal entendeu também ser relevante para a decisão acerca da validade das liquidações objeto do litígio determinar se a norma constante da verba 28.1 da TGIS, na parte em que sujeita a tributação os prédios habitacionais e os terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, se traduz numa inconstitucionalidade por violação do princípio da capacidade contributiva decorrente do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

Foi sobre esta última questão que incidiu a decisão do Tribunal Constitucional, a qual, por remissão para os fundamentos constantes do Acórdão n.º 378/2018, de 04 de julho, julgou não inconstitucional a norma constante da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aprovada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro e alterada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, na parte em que impõe a tributação anual sobre a propriedade de terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a € 1.000.000.

 

Assim, impõe-se decidir a questão da inconstitucionalidade em conformidade com a decisão do Tribunal Constitucional, ou seja, no sentido de que a norma aplicada pela Autoridade Tributária e Aduaneira na liquidação efetuada não padece de inconstitucionalidade.

 

Quanto às demais questões:

  1. Falta de fundamentação dos atos de liquidação, uma vez que dos mesmos não constam as razões de ordem fáctica e jurídica que determinaram a respetiva emissão, designadamente a natureza e afetação dos imóveis sobre os quais incide o imposto e a razão da sua subsunção à verba 28.1 da TGIS, com os consequentes apuramentos das coletas respetivas

 

Refere a AT, a este propósito, que o ato tributário de liquidação da verba 28.1 da TGIS tem carácter periódico, a sua liquidação é feita anualmente, com base em elementos pré-estabelecidos na matriz, e as liquidações, notificações e prazos de pagamento dos respetivos documentos de cobrança seguem, com as necessárias adaptações, as regras previstas para o IMI. Todos os elementos – identificação fiscal do contribuinte, identificação do prédio, ano de imposto, taxa, VPT, coleta e imposto a pagar - estão expressos nas notas de cobrança para pagamento, inexistindo um procedimento administrativo subjacente a cada ato de liquidação.

 

A fundamentação do ato tributário deve conter os elementos de direto e de facto que permitam ao sujeito passivo compreender o motivo da liquidação. Ora, no presente caso, não se vê que, desse ponto de vista, tenha havido qualquer insuficiência na liquidação. Foi possível à Requerente saber que prédios estavam em questão, o valor patrimonial sobre o qual foi aplicada a taxa de imposto, o tipo de imposto, o ano a que se refere, a verba da TGIS aplicada, a taxa concretamente aplicada e o resultado da aplicação da taxa à matéria por forma a determinar o valor da coleta.

 

Concretamente quanto à alegação de que do ato de liquidação não constava a natureza e afetação dos imóveis sobre os quais a mesma incidiu, não se entende verificada qualquer ilegalidade ou sequer irregularidade uma vez que, através da indicação matricial, é possível à Requerente verificar esses dois elementos nas cadernetas prediais respetivas.

 

Sobre esta matéria é, aliás, antiga e consistente a jurisprudência emitida pelos tribunais portugueses, de que serve de exemplo a o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23/04/2014, proferido no âmbito do processo n.º 01690/13: “O ato estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487.º, n. 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do ato ou o acionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efetivo controle da legalidade do ato, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual”.

 

Não parecem existir dúvidas de que foi precisamente isto que aconteceu no caso concreto. Não procedem, portanto, os argumentos da Requerente a este propósito.

 

  1. Preterição de formalidade legal essencial por força da circunstância de o Requerente não ter sido notificado nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º da Lei Geral Tributária;

 

Verifica-se, in casu, que o Requerente não foi notificado, em sede de audiência prévia, para participar na decisão de liquidação do imposto.

 

Contudo, tal omissão não pode ser valorada da forma que a Requerente sustenta na sua argumentação. Com efeito, é pacífico quer na jurisprudência do STA quer na doutrina que, não obstante a audiência prévia constituir uma importante manifestação do princípio do contraditório, pretendendo associar o administrado à preparação da decisão final, a mesma constitui uma formalidade não essencial quando, tendo em conta as circunstâncias do caso, a intervenção do interessado for inútil (cf. o Acórdão do STA datado de 3/3/04, Recurso n.º. 240/02). No caso concreto, atendendo a que a liquidação se fez com base em dados objetivos constantes do sistema informático da AT, onde se inclui o cadastro dos prédios em questão, a audiência prévia não constituía uma formalidade essencial, pelo que a sua preterição não impacta a legalidade dos atos emitidos.

Quanto a este ponto, também não procede a argumentação da Requerente.

 

  1. Errónea aplicação da verba 28.1 da TGIS, uma vez que, à luz do CIMI, o conceito de “prédio habitacional” se encontra integrado na definição de prédio urbano habitacional constante do artigo 6.º, n.º 2, do referido diploma legal, o qual abrange unicamente “os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins”.

 

A Requerente sustenta que a situação de facto no caso concreto não se subsume à norma de incidência aplicada pela AT porquanto os prédios em questão não deveriam ter sido considerados terrenos para construção.  Isto porque, de acordo com o artigo 50.º do Regulamento do PDM Lisboa, embora o terreno inscrito na matriz predial da freguesia da ... sob o n.º U-... seja um terreno para construção, o mesmo não tem capacidade edificativa. Por outro lado, o artigo 58.º do Regulamento do PDM Lisboa integra o terreno inscrito na matriz predial da freguesia da ... sob o artigo U-... numa área cuja reconversão urbanística ainda não está definida, não sendo possível, até que essa reconversão ocorra, promover qualquer tipo de construção.

 

As circunstâncias invocadas pela Requerente poderão ser de molde a alterar a atual classificação de terreno para construção para a categoria residual de “outros”. Com efeito, enquanto que a lei considera “terrenos para construção” como os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afetos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos”, considera “outros” os “terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º do CIMI e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da exceção do n.º 3” do artigo 6.º do CIMI.

Contudo, essa aferição e eventual alteração de espécie de prédio urbano terá que ser feita no âmbito de um pedido de revisão do valor patrimonial tributário do prédio nos termos do artigo 130.º do CIMI e não através da impugnação das liquidações de imposto do selo. Com efeito, este último, como qualquer outro imposto incidente sobre o valor patrimonial tributário de um prédio, decorre de uma aplicação automática do imposto aos prédios que são objeto da norma de incidência e tendo em conta o concreto valor patrimonial tributário do prédio. No caso, os prédios estão classificados como terrenos para construção, pelo que a liquidação foi efetuada em cumprimento da lei vigente. Entendendo a Requerente que os prédios em questão não são terrenos para construção por força das circunstâncias que invocou, poderá questionar essa classificação utilizando o procedimento próprio para o efeito. Caso venha efetivamente a alterar-se essa classificação, poderá, então, pedir a restituição do imposto que tiver sido pago indevidamente.

 

Também neste ponto assiste, portanto, razão à AT.

 

VI. DECISÃO

Em conformidade com que fica exposto supra, decide-se julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, manter na ordem jurídica as liquidações de imposto do selo impugnadas.

 

Valor: em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 315.º do CPC, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do art. 97.º-A do CPPT e com o n.º 2 do art. 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 26.537,20.

 

Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1 530,00, a suportar pela Requerente nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 07 de fevereiro de 2019

A Árbitro,

 

Raquel Franco

 

 

 

 

 

 

 

 

Decisão Arbitral

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral singular constituído em 13 de setembro de 2016, decide nos termos que se seguem:

  1. RELATÓRIO

 

  1. Enquadramento processual

 

No dia 27-06-2016, a sociedade “A…– FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO”, NIPC…, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14-09-2016.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 29.08-2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação da árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.

Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 13-09-2016.

  1. Síntese dos fundamentos invocados pela Requerente

No presente processo, pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade, por vício de violação de lei, dos seguintes atos de liquidação de imposto do selo referentes ao ano de 2015:

  1. O primeiro relativo ao lote de terreno inscrito na matriz predial da freguesia da…, concelho de Lisboa, sob o artigo U-…, no valor de € 13.042,50;
  2. O segundo relativo ao lote de terreno inscrito na matriz predial da freguesia da…, concelho de Lisboa, sob o artigo U-…, no valor de € 13.494,70.

Os fundamentos apresentados pela Requerente são os seguintes:

  1. Falta de fundamentação dos atos de liquidação, uma vez que dos mesmos não constam as razões de ordem fáctica e jurídica que determinaram a respetiva emissão, designadamente a natureza e afetação dos imóveis sobre os quais incide o imposto e a razão da sua subsunção à verba 28.1 da TGIS, com os consequentes apuramentos das coletas respetivas;
  2. Preterição de formalidade legal essencial por força da circunstância de o Requerente não ter sido notificado nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 60.º da Lei Geral Tributária;
  3. Errónea aplicação da verba 28.1 da TGIS, uma vez que, à luz do CIMI, o conceito de “prédio habitacional” se encontra integrado na definição de prédio urbano habitacional constante do artigo 6.º, n.º 2, do referido diploma legal, o qual abrange unicamente “os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins”. Já os terrenos para construção, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito legal, são aqueles terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou emitida autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afetos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos. Ora, segundo a Requerente, de acordo com o artigo 50.º do Regulamento do PDMLisboa, embora o terreno inscrito na matriz predial da freguesia da … sob o n.º U-… seja um terreno para construção, o mesmo não tem capacidade edificativa, nos termos do PDML em vigor e por esta razão está excluído da base de incidência da verba 28.1 da TGIS, que só incide sobre “(…) terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação. Por outro lado, o artigo 58.º do Regulamento do PDMLisboa integra o terreno inscrito na matriz predial da freguesia da … sob o artigo U-… numa área cuja reconversão urbanística ainda não está definida, não sendo possível, até que essa reconversão ocorra, promover qualquer tipo de construção.
  1. Síntese da contra-argumentação da AT

Quanto à falta de fundamentação:

O ato tributário de liquidação da verba 28.1 da TGIS tem carácter periódico, a sua liquidação é feita anualmente, com base em elementos pré-estabelecidos na matriz, e as liquidações, notificações e prazos de pagamento dos respectivos documentos de cobrança seguem, com as necessárias adaptações, as regras previstas para o IMI;

Todos os elementos – identificação fiscal do contribuinte, ano de imposto, identificação do prédio, ano de imposto, taxa, VPT, coleta e imposto a pagar - estão expressos nas notas de cobrança para pagamento, inexistindo qualquer procedimento administrativo subjacente a cada ato de liquidação.

Quanto à alegada violação do artigo 60.º da LGT - por não ter sido assegurado ao sujeito passivo a participação na decisão - sempre se dirá que, a AT invoca jurisprudência que lhe é favorável, nomeadamente da parte do STA, que tem vindo a decidir que (não obstante a audiência prévia constituir uma importante manifestação do princípio do contraditório e visar associar o administrado à tarefa de preparar a decisão final e permitir-lhe participar e influenciar a formação da vontade da Administração), a mesma constitui uma formalidade não essencial quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornar inútil - Acórdão do STA datado de 3/3/04, Recurso n.º. 240/02 e Acórdão de 24/10/2007, proferido no Rec. 429/07.

Quanto ao argumento de errónea aplicação da lei por (i) o imóvel inscrito na matriz sob o artigo … se encontrar classificado na planta de ordenamento como área consolidada/espaços verdes de recreio e produção e (ii) o imóvel inscrito sob o artigo … se encontrar classificado como área consolidada/espaços centrais e residenciais, a AT defende-se da seguinte forma:

- o ato aquisitivo dos referidos imóveis pela Requerente em 2010 descreveu-os como terrenos para construção, donde, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do CIMI, mesmo que não existissem operações urbanísticas aprovadas que determinassem tal qualificação, os mesmos sempre se considerariam terrenos para construção;

- os imóveis estão abrangidos pelo âmbito do conceito previsto na verba 28.1 do TGIS, desde que o respectivo VPT seja igual ou superior a € 1.000 000,00. Considerando o âmbito de incidência da norma aos terrenos para construção de edifícios, a tributação recai sobre valores correspondentes a prédios a construir que, segundo a respectiva autorização ou previsão se destinam a ter uma afetação para habitação. Quanto aos terrenos em questão, contesta que os mesmos não tenham capacidade edificativa e afirma que, para os desqualificar de “terrenos para construção”, a Requerente teria que apresentar um pedido de alteração à matriz, devidamente instruído por documento da câmara municipal a certificar a impossibilidade de construção.

- no caso concreto, embora os lotes de terreno estejam sujeitos a fortes restrições urbanísticas, não existe uma impossibilidade construtiva que determine a não sujeição a imposto.

Na Resposta apresentada, a AT refere ainda que “existe um meio processual próprio que acautela as alterações matriciais e que visa adequar a matriz em face da realidade física e económica dos prédios.” Faz referência ao n.º 3 do artigo 130º do CIMI, nos termos do qual os sujeitos passivos podem, a todo o tempo, reclamar de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, concluindo que “não é a impugnação da liquidação o meio adequado para discutir matérias relacionadas com atos de inscrição matricial os quais constituem um ato administrativo em matéria tributária, e para o qual o Tribunal Arbitral não é competente para decidir.” No entanto, não extrai daqui qualquer incompetência do tribunal arbitral quanto ao pedido formulado pela Requerente e, aliás, conclui a Resposta dizendo que não existem quaisquer exceções de que o tribunal deva conhecer. Este é, de resto, o entendimento do Tribunal, quer quanto à sua competência face aos atos impugnados, quer quanto à sua competência para conhecer das questões em que a Requerente entende traduzir-se o vício de violação de lei que imputa àqueles atos.

Assim, quanto a este ponto, nada mais há a referir, não carecendo de análise mais aprofundada o requerimento apresentado pela Requerente como “Resposta às exceções”.

Quanto ao requerimento de inquirição de testemunhas apresentado pela Requerente, importa salientar que o Tribunal, através de despacho de 19-10-2016, transmitiu às partes o seu entendimento de que as questões controvertidas estavam suficientemente documentadas nos autos.

II. SANEAMENTO

 

1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

3. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

Antes de entrar na apreciação das questões de direito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

III.1 Factos provados

 

  1. A requerente é proprietária de um terreno para construção inscrito na matriz predial da freguesia da …, concelho de Lisboa, sob o artigo U-…, no valor de € 13.042,50;
  2. A requerente é ainda proprietária de um lote de terreno inscrito na matriz predial da freguesia da …, concelho de Lisboa, sob o artigo U-…, no valor de € 13.494,70
  3. Nos termos da respetiva caderneta predial, o terreno inscrito sob o artigo U-… tem como tipo de coeficiente de localização a “habitação”.
  4. O mesmo terreno tem a área total de 10.500,0000 m2, a área bruta de construção de 4.000,0000 m2 e a área de implantação do edifício de 2.000,0000 m2.
  5. Tem ainda o valor patrimonial tributário de € 1.304.250,00.
  6. Quanto ao terreno inscrito sob o artigo U-…, tem como tipo de coeficiente de localização a “habitação”,
  7. A área total de 16.500,0000 m2, a área bruta de construção de 4.000,0000 m2 e a área de implantação do edifício de 2.000,0000 m2.
  8. Tem ainda o valor patrimonial tributário de € 1.349.470.
  9. A AT emitiu um ato de liquidação de imposto do selo, referente ao ano de 2015, que incidiu sobre o terreno identificado em a., o qual foi cobrado em três prestações, no valor total de € 13.042,50.
  10. A AT emitiu um ato de liquidação de imposto do selo, referente ao ano de 2015, que incidiu sobre o terreno identificado em b., o qual foi cobrado em três prestações, no valor total de € 13.494,70.
  11. Ambos os terrenos foram descritos no respetivo ato aquisitivo como terrenos para construção.
  12. O terreno inscrito sob o artigo U-… está inserido, nos termos do PDML, numa zona classificada como “Espaço Central e Residencial a consolidar”.
  13. De acordo com o artigo 58.º do PDML, o terreno referido no parágrafo anterior tem a sua capacidade edificativa dependente de operações de reconversão urbanística ainda não realizadas.
  14. O terreno inscrito sob o artigo U-… encontra-se classificado como “Espaço Verde de Recreio e Produção Consolidado”.
  15. Nos termos do artigo 50.º do PDML, nas áreas classificadas como espaço verde de recreio e produção consolidado não é possível a constituição de lotes por operações de loteamento nem a construção em parcelas com área inferior a 2ha.

 

III.2 Factos não provados

 

Não existem factos relevantes para a decisão que tenham sido dados como não provados.

 

III.3 Fundamentação da decisão quanto à matéria de facto

 

A decisão quanto à matéria de facto fundamenta-se nos documentos juntos aos autos, que aqui se dão por reproduzidos, bem como na ausência de controvérsia sobre eles quanto aos pontos indicados.

 

IV. THEMA DECIDENDUM

 A questão fundamental que a Requerente colocou à apreciação deste tribunal é a de saber se, no caso concreto, o ato de liquidação se baseou numa aplicação ilegal da norma constante da verba 28.1 da TGIS por não estar em causa um “terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação”.

 

O tribunal entende também ser relevante para a decisão acerca da validade das liquidações objeto do litígio determinar se a norma constante da verba 28.1 da TGIS, na parte em que sujeita a tributação os prédios habitacionais e os terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, se traduz numa inconstitucionalidade por violação do princípio da capacidade contributiva decorrente do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição.

 

V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

A verba 28 da TGIS previa, à data dos factos, o seguinte:

28 Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI: (Aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012 de 29 de outubro)

 

 28.1 Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI (Redação da Lei n.º 83-C/2013 de 31 de dezembro) - 1%

 

De acordo com a verba 28.1 da TGIS, na sua redação inicial, estavam sujeitos a esse imposto a propriedade, o usufruto e o direito de superfície sobre prédios urbanos com afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do IMI, fosse igual ou superior a € 1.000.000. Mais tarde, com a alteração ocorrida em 2013 e que se repercutiu nos exercícios de 2014 e seguintes – nomeadamente ao exercício de 2015, ao qual respeita a liquidação impugnada -, os terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI, passaram a estar também sujeitos a tributação à taxa de 1%.

 

No âmbito de vigência dessa anterior redação da verba 28.1 da TGIS, concluiu-se em diversos processos de arbitragem tributária que a expressão “afetação habitacional”, constante do texto da norma então em vigor, se referia a uma “utilização” habitacional, ou seja, a prédios urbanos que tivessem uma efetiva utilização para fins habitacionais (cf., nomeadamente, os processos 42/2013-T, 48/2013-T, 49/2013-T, 53/2013-T, 75/2013-T, 144/2013-T e 158/2013-T).

           

A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, introduziu um conjunto de alterações nos diplomas codificadores de três impostos – IRS, IRC e Imposto do Selo – assim como na Lei Geral Tributária, entre as quais a norma constante da verba 28.1 da TGIS, todas norteadas à obtenção de receita fiscal suplementar e, em geral, a contrariar o desequilíbrio orçamental então vivido de forma extrema pelo país. Introduziram-se medidas de reforço do combate à fraude e evasão fiscal e criou-se, no âmbito do Imposto do Selo, a tributação de situações jurídicas (expressão aditada ao n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo), que se entendeu serem demonstrativas da capacidade dos respetivos titulares para suportar um esforço fiscal acrescido, distribuindo desse modo mais equitativamente o sacrifício para atingir a consolidação orçamental exigido aos contribuintes. É isto que resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª, que esteve na origem da referida Lei n.º 55-A/2012:

«A prossecução do interesse público, em face da situação económico-financeira do País, exige um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental.

Estas medidas são fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento. O Governo está fortemente empenhado em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho. Em conformidade com esse desiderato, este diploma alarga a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de setores da sociedade portuguesa.

Nestes termos, será agravada a tributação dos rendimentos de capitais e das mais-valias mobiliárias, passando as respetivas taxas de 25% para 26,5% em sede de IRS. As taxas de tributação aplicáveis aos rendimentos obtidos de, ou transferidos para, os paraísos fiscais são também agravadas para 35%.

Por outro lado, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre os prédios urbanos de afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros.

Finalmente, este diploma introduz uma medida de reforço de combate a fraude e a evasão fiscais, através do reforço do regime aplicável às manifestações de fortuna dos sujeitos passivos (IRS) e às transferências de e para paraísos fiscais. Em primeiro lugar, reforça-se a operacionalização da liquidação do IRS com base em manifestações de fortuna, reduzindo-se o diferencial de 50% para 30% entre as manifestações de fortuna e os rendimentos declarados em sede de IRS. Por outro lado, as transferências de e para paraísos fiscais efetuadas entre contas do sujeito passivo, não declaradas nos termos da lei, passam a ser consideradas uma manifestação de fortuna e, nessa medida, sujeitas a tributação em sede de IRS por métodos indiretos

 

A simples extensão de uma norma de incidência a situações para as quais ela não foi pensada inicialmente encerra o risco de se passar a sujeitar a um mesmo regime de tributação situações que são em si mesmas distintas e que mereceriam, portanto, diferenciação na tributação. No caso da verba 28.1 da TGIS, se a tributação de imóveis de luxo com afetação habitacional poderá ser considerada constitucional justamente porque, havendo uma efetiva utilização dos mesmos pelos respetivos proprietários, essa situação revela um comportamento materialmente relevante do ponto de vista da aferição da riqueza do proprietário, o mesmo não se poderá dizer do caso da tributação dos terrenos para construção, em que, enquanto não existirem quaisquer construções suscetíveis de utilização para habitação e como tal licenciadas pelas autoridades competentes, os terrenos em si se encontram, objetivamente, impossibilitados de ter tal afetação. Ora, coisa totalmente diferente da utilização efetiva de um imóvel para habitação é a expetativa, ou potencialidade, de um prédio urbano poder vir a ter uma “afetação habitacional” – sendo justamente essa expetativa que carateriza os terrenos para construção. Com efeito, os terrenos para construção, porque não estão edificados, não satisfazem, por si só, qualquer condição para serem considerados como prédios “com afetação” (seja ela qual for). Neles não existe mais do que a expetativa, ou potencialidade, de um prédio poder, após a respetiva edificação, vir a ter uma “afetação”. Por conseguinte, somente quando essa “afetação” se concretizar, o que nunca sucederá antes da sua edificação, é que poderemos considerar que o terreno para construção passa a apresentar alguma semelhança com o prédio urbano, nomeadamente por permitir ao respetivo titular dele retirar algum proveito.

 

Nas palavras de JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, “o valor de um terreno para construção corresponde, fundamentalmente, a uma expetativa jurídica, consubstanciada num direito de nele vir a construir um prédio com determinadas caraterísticas e com determinado valor.” (cf. “Lições de Impostos sobre o Património e do Selo”, Almedina, 2010, p. 101). Um terreno para construção, não obstante a sua classificação como prédio urbano para efeitos de IMI, é caraterizado sobretudo pela sua viabilidade construtiva, a qual mais não dá ao seu proprietário do que a possibilidade de nele vir a construir um prédio com as caraterísticas permitidas pelos instrumentos de gestão urbanística aplicáveis.

 

Deste modo, se é verdade que o titular de um terreno para construção de valor superior a € 1.000.000,00 tem na sua esfera jurídica um bem de elevado valor, também é verdade que a sua situação é diferente da do proprietário de um prédio com afetação habitacional, que efetivamente tira partido do prédio de que é titular. Poderia dizer-se, a este propósito, que o facto de o proprietário do prédio com afetação habitacional poder retirar um rendimento do prédio enquanto o proprietário do terreno para construção não pode não é relevante neste âmbito por se tratar de tributação do património e não do rendimento. Porém, não é verdade que isso seja irrelevante. Por um lado, no caso do proprietário do prédio habitacional que não arrenda o imóvel, mas dele usufrui diretamente, o valor dos patrimónios de ambos é o mesmo, mas temos, ainda assim, duas situações totalmente distintas: a de um proprietário que usufrui de uma habitação de luxo, por um lado, e a do proprietário do terreno para construção, que não usufrui de nada. Poderá dizer-se ainda que o proprietário do terreno para construção pode vender o prédio de que é proprietário e realizar rendimento dessa forma e que é essa possibilidade que justifica a tributação em sede de imposto do selo. É verdade que pode. Porém, esse rendimento já será tributado em sede de IRS ou de IRC, conforme os casos. Além disso, também o proprietário do prédio rústico de valor igual ou superior a 1 milhão de euros pode vender o prédio e não é por isso que é tributado pela verba 28.1 da TGIS.

 

É inegável que o que o legislador pretendeu, quando criou a verba 28.1 da TGIS, foi tributar as propriedades habitacionais de luxo; no entanto, estamos em crer que, ao introduzir-se os terrenos para construção no âmbito de aplicação da norma, se desvirtuou o regime inicial, alargando-o a situações totalmente distintas das que o mesmo inicialmente visava. A alteração introduzida na verba 28.1 da TGIS em 2014 tem, aliás, a virtualidade de clarificar a distinção entre a realidade “prédio habitacional” e a realidade “terreno para construção”, demonstrando que uma e a outra não são a mesma.

 

Acresce que o alargamento da norma de incidência aos terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, não veio acompanhado de uma distinção atinente ao valor da construção edificada, razão pela qual, aplicando-se as normas gerais, mesmo quando a construção autorizada ou prevista para o terreno seja habitação em várias frações, é o valor patrimonial do terreno, o único que existe antes de ser concretizada a edificação e que é «utilizado para efeito de IMI», que é relevante para aferir da incidência do imposto.

 

Esta circunstância coloca questões de constitucionalidade da norma em questão, as quais aqui se analisam de forma muito próxima à constante do acórdão proferido no âmbito do processo 507/2015-T. Assim, em termos sintéticos:

- o valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação», sendo que «o valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas» (artigo 45.º, n.ºs 1 e 2, do CIMI).

- em relação a terrenos para construção relativamente aos quais esteja prevista ou autorizada edificação apenas com unidades habitacionais de valor inferior a € 1.000.000,00, a justificação da elevada capacidade contributiva revelada pela detenção de tal património não vale pois o facto de o terreno ter valor igual ou superior àquele não permite identificar um sujeito passivo com uma capacidade contributiva a nível dos «padrões mais elevados da sociedade portuguesa».

- a titularidade de direitos sobre um terreno para construção de frações suscetíveis de utilização independente até revela menos capacidade contributiva do que a revelada pela titularidade de direitos sobre o prédio já construído, pelo que não se pode encontrar uma justificação racional para ser tributada a titularidade de direitos sobre o terreno, quando este tiver valor igual ou superior a € 1.000.000,00, e não a titularidade dos direitos do mesmo sujeito passivo sobre o prédio já construído, quando todas as frações tenham valores inferiores àquele.

- carece de justificação racional tributar com base em hipotética capacidade contributiva elevada as situações em que há titularidade de direitos sobre terrenos para construção em que estão autorizadas ou previstas edificações exclusivamente constituídas por frações de valor individual inferior a € 1.000.000,00 e não aplicar a mesma tributação às situações em que no terreno já foram construídas essas edificações, com enorme aumento do valor patrimonial tributário da edificação, já que «o valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas».

- quanto aos terrenos para construção destinados a edificação de habitações autónomas de valor igual ou superior a € 1.000.000,00, a titularidade de direitos sobre terrenos com esta finalidade revela, só por si, uma situação de riqueza, a nível dos «padrões mais elevados da sociedade portuguesa».

 

A verba 28.1 da TGIS, na parte relativa a terrenos para construção, não faz qualquer distinção em função do valor das habitações autorizadas ou previstas, pelo que tem de se concluir que apenas faz depender a sua aplicação do valor patrimonial tributário do próprio terreno. Sendo assim, é de concluir que a norma da verba 28.1 da TGIS, na redação introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, é materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da igualdade, enunciado genericamente no artigo 13.º da CRP, por se aplicar a terrenos para construção de valor patrimonial tributário de valor igual ou superior a € 1.000.000,00 para os quais a construção autorizada ou prevista não inclui qualquer fração suscetível de utilização independente com valor igual ou superior àquele.

 

Acresce que, no caso aqui em análise, os terrenos não têm qualquer autorização, projeto ou previsão de construção com destino a habitação. Pelo contrário, nos termos do PDML, aplicável a ambos, quer um quer o outro estão sujeitos a fortes restrições em termos de edificabilidade. No que se refere ao terreno inscrito sob o artigo U-…, está inserido numa zona classificada como “Espaço Central e Residencial a consolidar”, o que, de acordo com o artigo 58.º do PDML, implica ter a sua capacidade edificativa dependente de operações de reconversão urbanística ainda não realizadas. É certo, como diz a AT, que, quando essas operações ocorrerem, poderá ser possível construir no terreno em questão. Contudo, a verdade é que, neste momento, se a Requerente apresentar um projeto junto da Câmara Municipal de Lisboa com vista à construção no terreno em questão, vai ter uma resposta negativa – ou seja, a potencialidade de construção é meramente futura e incerta. Quanto ao terreno inscrito sob o artigo U-…, encontra-se classificado como “Espaço Verde de Recreio e Produção Consolidado”, o que significa, nos termos do artigo 50.º do PDML, que não é possível a constituição de lotes por operações de loteamento nem a construção em parcelas com área inferior a 2ha. Atendendo à área do terreno em questão (inferior a 2ha), também a respetiva potencialidade construtiva é, neste momento, nula.

 

Em suma, e em face do que antecede, conclui-se que os prédios em causa não podem, à data dos factos, ser sujeitos a IS nos termos da verba 28.1 da TGIS.

 

Em virtude da inconstitucionalidade material de que padece a norma contida na verba 28.1 da TGIS, na redação introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, por violação do princípio constitucional da igualdade, as liquidações que são objeto do presente processo enfermam de vício de violação de lei, consubstanciado em erro sobre os pressupostos de direito, o que justifica a sua anulação nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea d) do CPPT.

 

Fica, assim, prejudicada a apreciação das restantes questões colocadas à apreciação deste tribunal, referentes à falta de fundamentação dos atos de liquidação e à preterição de formalidades essenciais.

 

VI. DECISÃO

Em conformidade com que fica exposto supra, decide-se julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar a inconstitucionalidade consequente das liquidações de imposto do selo impugnadas, com a consequente anulação dessas mesmas liquidações.

 

Valor: em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 315.º do CPC, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do art. 97.º-A do CPPT e com o n.º 2 do art. 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 26.537,20.

 

Custas: nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1 530,00, a suportar pela Requerida nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 13 de março de 2017

A Árbitro,

 

Raquel Franco

 

 

 



[1] O Tribunal Constitucional pronunciou-se através de uma decisão sumária dada a simplicidade da questão jurídica em análise, sobretudo em face da prolação prévia, em 04/07/2018, do Acórdão n.º 378/2018, do Plenário.