Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 91/2014-T
Data da decisão: 2014-06-19  IRS  
Valor do pedido: € 90.895,00
Tema: Benefícios fiscais, n.º 3 do artigo 43.º do CIRS; litispendência
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Decisão Arbitral

 

CAAD – Arbitragem Tributária

Processo n.º 91/2014-T

Tema: IRS. Benefícios fiscais. Litispendência.

 

 

Os árbitros Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (árbitro presidente), José Rodrigo de Castro e Ricardo Jorge Rodrigues Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

            I. RELATÓRIO

1. No dia 6 de fevereiro de 2014, …, NIF …, residente na Rua …, Braga, e …, NIF …, residente na Rua …, Braga, apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade parcial das liquidações de IRS n.os 2013. … e 2013. …, relativas ao ano de 2012, respetivamente no valor de € 115.276,69 e de € 76.520,73, por vício de violação de lei, sendo Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT). Os Requerentes juntaram 5 (cinco) documentos, não tendo arrolado testemunhas.  

No essencial e em breve síntese, os Requerentes alegaram o seguinte:

Os Requerentes, na situação de casados, apresentaram a declaração mod. 3 de IRS do ano de 2011, a qual veio a originar uma liquidação de imposto relativamente à qual, em 31 de dezembro de 2012, ainda estava em dívida a quantia de € 9.158,82. Atualmente, já se encontra paga a totalidade daquele montante em dívida à Fazenda Pública.

No respeitante ao ano de 2012, os Requerentes apresentaram a declaração mod. 3 de IRS na situação de divorciados, tendo englobado, no quadro 8 do anexo G dessa declaração, a alienação onerosa de partes sociais e outros valores mobiliários. As partes sociais alienadas eram referentes a micro e pequenas empresas.

A Administração fiscal desconsiderou o disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS nas liquidações de imposto efetuadas relativamente ao ano de 2012 – liquidações n.os 2013 … e 2013 … –, tendo liquidado tributações autónomas no valor de € 102.485,75 quanto ao Requerente … e de € 79.301,25 quanto à Requerente …. Sendo certo que, se tivesse sido aplicado o disposto na citada norma do Código do IRS, só deveriam ter sido liquidados, respetivamente, os valores de € 51.244,38 e de € 39.650,63.

Os Requerentes apresentaram reclamações graciosas contra aquelas liquidações de IRS, as quais foram indeferidas com o fundamento de que o n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS é um benefício fiscal, tendo o mesmo sido cessado ao abrigo do disposto no artigo 14.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais quanto a ambos os Requerentes. Ainda segundo a Administração fiscal, mesmo que a referida norma do Código do IRS não consubstanciasse um benefício fiscal, sempre aquelas liquidações de IRS teriam de ser efetuadas sem que essa mesma norma fosse tida em consideração, uma vez que as empresas de que os Requerentes alienaram participações sociais não estavam certificadas como PME.

Na perspetiva dos Requerentes, a norma do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS não consubstancia um benefício fiscal, mas sim um desagravamento fiscal estrutural.

Ademais, defendem os Requerentes que a remissão que é efetuada pelo n.º 4 do artigo 43.º do Código do IRS para o Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, visa apenas o respetivo Anexo e não todo esse diploma legal. Nessa medida, o que o legislador pretendeu foi apenas importar, para efeitos de aplicação do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, os conceitos de micro e de pequena empresa e não importar um meio de prova da condição de PME. Ora, as empresas de que foram alienadas as participações sociais reúnem os pressupostos do n.º 3 do artigo 2.º do Anexo do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, para serem consideradas pequenas empresas.

Os Requerentes concluem, pois, pela ilegalidade das liquidações efetuadas na parte em que não foi aplicada a norma do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS.      

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 7 de fevereiro de 2014.

            3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 25 de março de 2014, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 9 de abril de 2014.

6. No dia 21 de maio de 2014, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual, para além de haver deduzido a exceção de litispendência, com a sua consequente absolvição da instância, impugna, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e conclui pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido. A Requerida não juntou qualquer documento, nem arrolou testemunhas. Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua contestação:

A AT começou por deduzir a exceção de litispendência entre os presentes autos e o processo que, sob o n.º …/13.6BEBRG, está a correr termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, consubstanciado numa ação administrativa especial, no qual, segundo a Requerida, os Requerentes submetem à apreciação judicial a mesma questão que está em causa nestes autos. Efetivamente, a AT alega que as petições iniciais de um e outro processo são material, formal e textualmente iguais; a fundamentação de facto e de direito, num e noutro processo, é exatamente a mesma; as relações jurídicas controvertidas de que procedem uma e outra ação são as mesmas; pelo que, é inequívoca a repetição da causa.

Por impugnação, a AT preconiza que a norma do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, apesar de não estar inserida no Estatuto dos Benefícios Fiscais, não deixa de ter a natureza de benefício fiscal, sendo uma medida excecional que visa tutelar um interesse extra fiscal, como seja a capitalização das pequenas e médias empresas, por via do incentivo ao investimento nas mesmas; por isso, é uma medida que não está excluída do conceito presentes nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

Neste enquadramento, existindo dívidas dos Requerentes à Fazenda Pública, à data de 31 de dezembro de 2012, mostram-se verificados todos os pressupostos legais para fazer perecer o direito à isenção em causa, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 14.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, relativamente ao ano ou período de tributação em que ocorrem os pressupostos, ou seja, 2012; por consequência, extinto o benefício fiscal, há lugar à reposição automática da tributação regra, conforme determina o artigo 12.º, n.os 5, alíneas a) e b), e 6, do Estatuto dos Benefícios Fiscais.   

Por outro lado, para efeitos de aplicação do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, a AT defende que é exigida a verificação de dois requisitos cumulativos, um de natureza material – as mais-valias obtidas têm de decorrer de participações sociais que constituam efetivamente pequenas empresas, i.e., que empreguem menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não exceda 10 milhões de euros – e outro de natureza formal – as entidades em causa devem gozar do estatuto de pequenas empresas certificado através do IAPMEI, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, válido à data das alienações.

Ora, os Requerentes não juntaram nem a certidão do IAPMEI relativa à qualificação das ditas entidades como micro ou pequenas empresas, nem quaisquer outros elementos ou documentos probatórios da dimensão das empresas.   

Conclui a Requerida no sentido de os atos de liquidação impugnados não padecerem de qualquer ilegalidade.

7. No dia 30 de maio de 2014, realizou-se a reunião do Tribunal Arbitral coletivo, nos termos e para os efeitos previstos no art. 18.º do RJAT, cumprindo aqui destacar que, naquele ato, a Requerida juntou cópia da petição inicial do processo judicial por si invocado como fundamento da alegada exceção de litispendência e, por seu lado, os Requerentes juntaram as suas alegações escritas – nas quais mantiveram a posição anteriormente assumida no pedido de pronúncia arbitral –, tendo então a Requerida sido notificada para, querendo, em 10 (dez) dias apresentar as suas alegações escritas.

            8. No dia 6 de junho de 2014, a Requerida apresentou as respetivas alegações escritas, nas quais reiterou a posição anteriormente defendida no articulado de resposta.

***

            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

*

            II.1. DA EXCEÇÃO DE LITISPENDÊNCIA

A Requerida, na sua resposta, alega que existe uma total similitude entre o presente processo arbitral e o processo que, sob o n.º …/13.6BEBRG, está a correr termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, consubstanciado numa ação administrativa especial, no qual, segundo a Requerida, os Requerentes submetem à apreciação judicial a mesma questão que está em causa nestes autos.

            Conforme o alegado pela Requerida, as “petições iniciais de um e outro processo são, nesta parte [questão de fundo], material, formal e textualmente iguais”, a “fundamentação de facto e de direito, num e noutro processo é exactamente a mesma”, as “relações jurídicas controvertidas de que procedem uma e outra acção são as mesmas”, pelo que é “inequívoca a repetição da causa”, uma vez que é “a mesma a causa de pedir, é o mesmo o pedido e são os mesmos os sujeitos”.

            Consequentemente, visto que o presente processo arbitral foi instaurado em segundo lugar, a Requerida termina invocando a exceção dilatória da litispendência entre este processo e aquele processo judicial, peticionando a sua absolvição da instância.

Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 580.º do CPC postula que a exceção da litispendência pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso (n.º 1), tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (n.º 2).

Os requisitos da litispendência são enunciados no artigo 581.º do CPC, no qual se estatui que se repete uma causa “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (n.º 1), sendo que há “identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (n.º 2), há “identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” (n.º 3) e há “identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico” (n.º 4).

Importa, pois, verificar se in casu ocorre ou não a tríplice identidade exigida pelo n.º 1 do art. 581.º do CPC entre este processo arbitral e o aludido processo judicial.

Aparentemente, inexiste identidade entre os pedidos formulados naquela ação administrativa especial e no presente processo arbitral. Efetivamente, naquela ação o que se pede é a anulação de dois despachos proferidos pelos Diretor-Geral da AT que fizeram cessar relativamente aos Autores o benefício fiscal previsto no artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS[1]; já neste processo arbitral o que se peticiona é a anulação parcial das liquidações de IRS n.os 2013…, referentes ao ano de 2012.

Também aparentemente estamos perante causas de pedir diversas: dois atos administrativos em matéria tributária, quanto ao processo judicial, e dois atos de liquidação (atos tributários stricto sensu), neste processo arbitral.

Acontece que, efetivamente, assim é apenas na aparência, pois, na essência, estamos perante causas de pedir e pedidos idênticos, o que logramos percecionar com meridiana clareza se atentarmos no âmbito/extensão da impugnação das ditas liquidações de IRS que é feita através deste processo arbitral.

Para poder apreciar a invocada ilegalidade parcial das referidas liquidações de IRS, este Tribunal Arbitral não pode deixar de apreciar e pronunciar-se relativamente ao que está na origem das mesmas, ou seja, os mencionados despachos proferidos pelo Diretor-Geral da AT. Por outras palavras, a apreciação da pretensão deduzida pelos Requerentes neste processo arbitral não abrange somente os atos de liquidação de IRS propriamente ditos, mas também, de modo mediato, a atuação administrativa a montante que retirou aos Requerentes o mencionado «benefício fiscal»[2].

Por outro lado, na perspetiva da ação administrativa especial, o juízo decisório que o TAF de Braga – ou um Tribunal superior, caso venha a ser interposto algum recurso pelas partes – vier a fazer sobre o pedido de anulação dos ditos despachos do Diretor-Geral da AT terá inegáveis consequências a jusante, desde logo, sobre as liquidações de IRS cuja anulação parcial é peticionada neste processo arbitral[3].

Resulta pois inequívoco que os aqui Requerentes peticionaram ao TAF de Braga e a este Tribunal Arbitral que apreciassem as mesmas questões, embora sob perspetivas distintas, mas totalmente confluentes, a saber: determinar se a norma do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS configura ou não um benefício fiscal e qual a extensão e consequências práticas da remissão operada pelo n.º 4 do artigo 43.º do Código do IRS para o Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.   

Por último, importa referir que, também quanto aos sujeitos processuais, na perspetiva da sua qualidade jurídica, as partes são as mesmas naquela ação administrativa especial e neste processo arbitral.

Revela-se, assim, inquestionável que se verificam as três identidades exigidas pelo artigo 581.º, n.º 1, do CPC, estando o TAF de Braga e este Tribunal Arbitral colocados perante a alternativa ou de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, o que conduz à verificação de uma situação de litispendência entre este processo arbitral e o identificado processo judicial, uma vez que ambas as ações estão ainda pendentes, o que implica que se deva absolver a AT da instância na ação proposta em segundo lugar, deixando de pé unicamente a primeira.

Pelo exposto, julga-se procedente a invocada exceção dilatória de litispendência e, consequentemente, a Requerida é absolvida da instância.

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II.2. Atenta a procedência da invocada exceção dilatória de litispendência, fica prejudicado o conhecimento do mérito das pretensões deduzidas pelos Requerentes.

***

            III. DECISÃO

            Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral coletivo decide:

  1. Julgar procedente a invocada exceção dilatória de litispendência e, por consequência, absolver a Requerida da instância;
  2. Condenar os Requerentes a pagarem as custas do presente processo.

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VALOR DO PROCESSO:

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 90.895,00 (noventa mil oitocentos e noventa e cinco euros).

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CUSTAS:

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

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Lisboa, 19 de junho de 2014.

 

Os árbitros,

 

 

(Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa)

 

 

 

 

(José Rodrigo de Castro)

 

 

 

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 



[1] O emprego do termo «benefício fiscal» reflete apenas a terminologia usada naquela ação judicial e não qualquer tomada de posição deste Tribunal Arbitral quanto à questão de fundo em causa neste processo arbitral.

[2] A propósito dos benefícios fiscais, Nuno Cerdeira Ribeiro (O Controlo Jurisdicional dos Atos da Administração Tributária: reflexões acerca da articulação com o processo administrativo, Coimbra, Almedina, 2014, p. 213) refere que amiúde “os benefícios automáticos são considerados num procedimento mais lato de liquidação, que desemboca na emanação de um ato tributário stricto sensu.” Nesse caso, uma vez que “o benefício fiscal se insere no procedimento de liquidação, o ato aqui impugnável será este último, através do processo de impugnação judicial, e é nessa sede que o contribuinte pode atacar a legalidade da liquidação tendo por base a desconsideração ou a errada consideração do benefício em causa, o que vicia o ato final”.

[3] Poder-se-á até, eventualmente, colocar a questão de aqueles despachos do Diretor-Geral da AT configurarem atos administrativos em matéria tributária que comportam a apreciação da legalidade dos atos de liquidação em causa.