Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 247/2013-T
Data da decisão: 2014-07-28  Selo  
Valor do pedido: € 12.996,46
Tema: Verba nº 28 da TGIS; arts. 4º e 6º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro
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Decisão Arbitral

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 247/2013

Tema: verba nº 28 da TGIS/arts. 4º e 6º da Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro

 

 

I – Relatório

 

1. No dia 31 de outubro de 2013, a A…– Cooperativa de Habitação e Construção, CRL, pessoa coletiva com o NIF …, com sede na Rua …, em Lisboa, doravante a Requerente, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante a Requerida ou a AT.

 

2. O pedido de tribunal arbitral singular foi aceite pelo Exm.º Presidente do CAAD, em 1 de Novembro de 2013, e notificado à AT em 4 de novembro de 2013.

O Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular o Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia, que comunicou a aceitação do cargo, designação que não foi contestada pelas partes, tendo o TAS sido constituído em 8 de janeiro de 2014.

 

3. Em 26 de março de 2014, compareceram no CAAD o árbitro designado, bem como os mandatários das partes, o …, em representação da AT, e o Dr. …, em representação da requerente.

Conforme explicitado na respetiva ata, o TAS prescindiu da inquirição de testemunhas e das alegações finais, tendo admitido a junção aos autos da sentença do Tribunal do Comércio de Lisboa (2º juízo), que declarou a insolvência da requerente.

 

II – Caracterização do litígio

 

4. No que à caracterização do litígio diz respeito, a Requerente solicitou ao TAS a declaração de nulidade, por ilegalidade, de dois atos tributários de liquidação de imposto de selo – nº 2011…, de 26 de novembro de 2012, no valor de 7.682,00 euros, e nº 2012…, de 26 de novembro de 2012, no valor de 5.313, 82 euros – emitidas nos termos da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referentes ao prédio urbano sito em …, em Lisboa, composto por parcela de terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2566.

Os fundamentos invocados para o pedido prendem-se com o facto de não se lhe poder aplicar a norma da invocada verba 28 da Tabela Geral do Imposto de Selo por tal prédio urbano não ter qualquer edifício ou construção erigida sobre o seu solo, nem reunindo as condições necessárias para tal, não obstante ao mesmo ter sido atribuído um valor patrimonial de 1.480.990,00 euros. Em resumo: não preenche o referido prédio o conceito legal de prédio com “afetação habitacional”.

 

5. Notificada para contestar, a AT veio dizer que se deveria aplicar a norma da verba 28 da TGIS, devendo-se indeferir o pedido, considerando que o prédio em causa teria uma afetação habitacional, levando em conta o que “…consta do PA”.

A argumentação da AT assenta fundamentalmente na consideração de o terreno em causa ser suscetível de urbanização, ainda que tais direitos não tenham sido conferidos, referindo que o documento da CML prevê como “área de construção prevista 7520m2” e como “área de implantação no lote do edifício 828m2”, além de frisar o facto de a Requerente ter aceitado qualificar o terreno em questão como prédio habitacional na inscrição matricial que do mesmo fez.

Noutra perspetiva, atendendo à natureza de a Requerente ser uma cooperativa, a AT recordou que as cooperativas são também sujeitos passivos do IMI, pelo que não haveria aqui de ponderar qualquer isenção subjetiva do imposto de selo.

           

6. O TAS foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre decidir.

 

III – A irrelevância processual da insolvência da requerente

 

7. Com a junção aos autos da sentença de declaração de insolvência da Requerente do Tribunal de Comércio de Lisboa, 2º juízo, o TAS deve apreciar os termos da relevância para a decisão arbitral de tal facto.

Nos termos do CPPT, uma vez declarada a insolvência de um contribuinte, o tribunal da causa avoca todos os processos em curso, nos termos do art. 181º daquele diploma legal.

É isto o que conta na parte decisória daquele sentença, ao dizer-se que “Avoco todos os processos de execução fiscal pendentes contra a insolvente a fim de serem apensados ao presente processo (artigo 181º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Tributário)”.

 

8. Mas não se julga que tal efeito tenha uma relevância direta no processo arbitral, porquanto não se trata aqui de qualquer execução fiscal, antes de uma tutela judiciária no sentido da obtenção de qualquer o direito aplicável.

Com efeito, a execução fiscal diz respeito a uma fase em que o direito se considera declarado, colocando-se em marcha os procedimentos que permitem realizar a cobrança coerciva dos direitos em causa.

A partir do momento em que as partes aceitaram a tutela arbitral para solucionar o seu litígio, não consideram – nem podiam considerar – que o seu direito fosse certo ao ponto de pretenderem a sua cobrança coerciva.

 

IV – A matéria de facto relevante

           

            9. A matéria de facto relevante é simples e consiste na verificação da propriedade, em favor da requerente, do prédio supra-identificado, considerando-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente … – Cooperativa de habitação e Construção, CRL, NIPC …, é proprietária de prédio urbano sito em ..., em Lisboa, composto por parcela de terreno;
  2. Tal prédio está registado na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha ..., sendo inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2566;
  3. Esse prédio tem o valor patrimonial tributário de 1.480.990,00 euros;
  4. Em 26 de novembro de 2012, a AT emitiu as liquidações de imposto de selo nº 2011..., no valor de 7.682,00 euros, e nº 2012..., no valor de 5.313, 82 euros;

 

A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se, por um lado, nos documentos juntos pela Requerente e pela Requerida e, ainda, das posições expressas pelas partes sobre os factos alegados pela contraparte, bem como da não impugnação dos documentos juntos aos autos.

 

V – O Direito aplicável

 

A)    Preliminares

 

10. O presente litígio tem como aspeto fulcral a validade e a aplicação da verba nº 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aditada pela Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro, conjugada com a norma do art. 6º, nº 2, al. f) e i), do mesmo diploma.

Estabelece esta nova disposição que fica sujeita a imposto do selo a propriedade de prédios com afetação habitacional com VPT igual ou superior a 1.000.000 euros, nos seguintes exatos termos:

“28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a 1 000 000 euros – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 – Por prédio com afetação habitacional – 1%;

28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares, sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%”.

 

11. A requerente formula o seu pedido de declaração de nulidade das duas liquidações oficiosas do imposto de selo com base na errada subsunção feita pela AT ao mencionado prédio.

Mas a nosso ver a questão deve ser igualmente observada, ainda que isso não tenha sido solicitado, sob o ponto de vista da validade daquela norma que corporiza a verba 28 na TGIS, considerando haver motivos para se avaliar a validade das liquidações do imposto de selo a luz da Constituição que qualquer tribunal deve aplicar, mesmo que seja um tribunal arbitral, nos termos do art. 204º da Constituição da República Portuguesa.

 

B)    Razões de inconstitucionalidade e de erro de aplicação da verba 28 da TGIS

 

 12. Do ponto de vista do Direito aplicável, no presente litígio e no sentido de obter a procedência do seu pedido de anulação das mencionadas liquidações de imposto de selo, não é invocada pela Requerente qualquer razão de inconstitucionalidade, mas esse é um juízo que se impõe por força do império da Constituição e do dever de os tribunais a aplicarem, pelo que se pode questionar a constitucionalidade da norma que consubstancia a verba 28 do TGIS nos seguintes termos:

- inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade; e

- inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança.

Mas a argumentação expendida pelas Requerentes em relação à matéria de facto que ficou atrás fixada igualmente inclui o erro na aplicação da nova disposição que criou a verba nº 28 da TGIS, visto que no seu entendimento não se aplicaria ao prédio referido nas ditas liquidações, o qual não preencheria o conceito previsto naquela norma.

Vamos começar pelos argumentos referentes à validade constitucional da norma que criou a verba nº 28 da TGIDS, para depois passarmos à apreciação da sua aplicação aos prédios que foram considerados para efeitos de liquidação do imposto do selo.

 

C)    A invalidade da verba nº 28 por violação do princípio da igualdade

 

13. A igualdade é um valor e um princípio inerente ao paradigma do Estado de Direito que permeia toda a Constituição material portuguesa, o qual acaba mesmo por ser uma parte componente da própria ideia de Direito ou de Ordem Jurídica como Cosmos Jurídico.

O princípio da igualdade é mesmo diretamente enunciado pelo texto constitucional português no seu art. 13º, além da sua evidente refração no plano do princípio da capacidade contributiva, o qual traduz uma orientação especial da igualdade em matéria tributária.

É assim que importa referir esta central disposição constitucional do art. art. 13º da CRP:

- art. 13º, nº 1: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”;

- art. 13º, nº 2: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

 

14. O mesmo se diga da LGT, que também formula o princípio da igualdade no contexto da legislação tributária portuguesa, como se pode observar no seu art. 5º:

- art. 5º, nº 1: “A tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e promove a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento”;

- art. 5º, nº 2: “A tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material”.

 

15. O princípio da igualdade, em Estado Social, é substancialmente diverso do princípio da igualdade que vigorou no período do Estado Liberal, com todo um conjunto de novas dimensões e modos de agir para se alcançar uma igualdade material e uma igualdade de oportunidades.

Mas em matéria de tributação do património – não cuidando agora de saber da questão teorética da natureza do imposto do selo na contraposição entre impostos sobre o consumo e impostos sobre o património – a própria CRP estabelece uma orientação central no seu art. 104º, nº 3: “A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”.

Na sua singeleza, não deixa esta disposição constitucional, especificamente estabelecida para este tipo de tributação, de ser bem o exemplo de um princípio da igualdade fiscal que leva em consideração as novas dimensões do princípio social.

 

16. Estamos em crer que o preceito em questão, que aditou a verba nº 28 à TGIS, se encontra ferido de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade.

Importa referir que a configuração do facto tributário, que opera a distinção entre diversas utilizações e destinações dos prédios em causa, não se afigura justificada em nome da finalidade da medida fiscal adotada.

Se a preocupação é a da tributação dos patrimónios mais elevados, qual a razão de essa tributação, na espécie em causa de património real de que o contribuinte é titular, não tributar todas essas propriedades, nas suas múltiplas subdistinções?

Se bem se reparar, há diversas categorias de prédios que não logram submeter-se a esta nova tributação:

- os prédios não urbanos;

- os prédios urbanos que não correspondam às especificações das verbas nºs 28.1 e 28.2.

Não se vislumbra a racionalidade de nela não incluir todas essas utilizações e destinações, sendo certo que se todas elas fossem incluídas, a receita fiscal seria maior e igualaria os contribuintes com base num mesmo valor patrimonial referido.

Mesmo considerando a diferença no valor económico dos prédios rústicos e urbanos, ou dentro destes nas suas diversas utilizações e destinações, como o critério é remetido para o valor patrimonial do CIMI, por este mecanismo já se teria aferido objetivamente a riqueza em causa, sendo ela diversa conforme aquelas diferentes distinções que são tidas em conta na avaliação empreendida pelas normas pertinentes do CIMI. 

 

17. Com esta diferenciação, introduz-se mesmo uma perversão valorativa no sistema fiscal português, ao arrepio da orientação geral que se pode obter da CRP, que é a do maior sacrifício imposto aos contribuintes que sejam proprietários de prédios com uma destinação ou utilização habitacional em detrimento de outras destinações ou utilizações que não são tão valiosas à luz dos valores e dos princípios constitucionais, sendo de invocar nesse sentido:

- não apenas a proeminência valorativa do direito à habitação, previsto no art. 65º da CRP, que mesmo sendo um direito económico e social, oferecendo uma eficácia jurídica inferior à dos direitos, liberdades e garantias, não deixa de ter um lugar constitucional privilegiado que surge de diapasão para, pelo menos, evitar uma discriminação em relação a outras utilizações que não têm a mesma importância constitucional;

- como também não se pode esquecer a projeção do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, princípio retor da ordem constitucional portuguesa e enunciado logo no art. 1º da CRP, que certamente implicará a especial valorização das utilizações que os cidadãos levam a cabo nos seus âmbitos de vida, havendo aqui uma concretização desse valor na maior proteção que deve ter a propriedade afeta ou destinada à habitação – que é uma habitação humana – de propriedades que têm outras utilizações ou destinações.

 

18. Há uma outra razão para considerar que a verba nº 28 da TGIS infringe o princípio da igualdade tributária, neste caso considerando a proibição constitucional da dupla tributação jurídica, que também é aqui uma dupla tributação económica.

A dupla tributação jurídica significa que a mesma manifestação de riqueza, que se traduz no mesmo facto fiscal, é tributada duas vezes, tal significando uma discriminação negativa em relação a outros contribuintes cuja tributação apenas foi realizada uma única vez sobre o mesmo facto tributário.

Ainda que sem expressão literal no texto constitucional, a proibição da dupla tributação jurídica não só se deduz do princípio da capacidade contributiva, sendo expresso no plano do Direito Constitucional Penal através do princípio non bis in idem.

A mais autorizada doutrina fiscal portuguesa tem insistido nesta vertente do princípio da igualdade, como é o caso de JOSÉ CASALTA NABAIS: “…ao impor limites intra-sistemáticos, ou seja, coerência entre os diversos impostos e coerência do sistema fiscal no seu conjunto, o princípio em causa deve ser convocado para a solução de problemas tais como a dupla tributação interna, concretize-se esta numa dupla tributação (dupla tributação jurídica) ou numa sobreposição de impostos (dupla tributação económica), a tributação múltipla ou plural, que se traduz em os mesmos bens, por exemplo os imóveis, serem objeto de diversos impostos, a conversão de impostos, que se materializa na transformação de impostos sobre o rendimento em impostos sobre o património em virtude, por exemplo, da inércia do legislador face ao fenómeno da inflação, etc.” (JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7ª ed., Coimbra, 2012, p. 164).

 

19. Mas, afinal, em que consiste essa dupla tributação? Ela consiste no facto de a titularidade de direitos reais ser simultaneamente tributada em sede de CIMI e em sede de IS, a qual incide sobre a mesma realidade, o que fica por demais evidente quando os termos da tributação da verba nº 28 do IS são remetidos para as regras aplicáveis do CIMI.

            Temos assim duas tributações coincidentes em matéria de prédios urbanos, aos quais se aplicam dois impostos, com as suas taxas próprias:

            - a tributação estabelecida no art. 1º do CIMI; e

            - a tributação estabelecida na verba nº 28 da TGIS.

            Não se julga como argumento contrário pertinente o facto de o sujeito ativo da relação jurídica fiscal ser diverso, o Estado no IS e os municípios no IMI, uma vez que apenas aqui releva a posição do sujeito passivo.

 

20. Já não nos parece pertinente para defender o resultado da inconstitucionalidade o facto de a norma em questão estabelecer um limite abaixo do qual manifestações de riqueza equivalentes, também atinentes a prédios com afetação habitacional, ficam por tributar, seja porque se aproximam do limiar do 1 000 000 de euros, seja porque no mesmo contribuinte se podem cumular diversos prédios que, em conjunto, ultrapassam aquele limiar, sendo a tributação prédio a prédio e não uma tributação global do prisma da situação tributária do contribuinte em termos patrimoniais.

Obviamente que o legislador tem a necessidade de trabalhar com limites na quantificação da tributação, fenómeno que sucede em muitos outros ramos do Direito, como no limite da maioridade do Direito Civil ou no limite de velocidade no Direito Rodoviário.

Conquanto esses limites, que sempre dividem artificialmente a realidade subjacente à aplicação das normas, não sejam arbitrários e se imponham pela necessidade de regular as situações da vida, além da necessidade da segurança que o Direito igualmente pressupõe, devem os mesmos ser aceites e validados do ponto de vista da sua constitucionalidade e legalidade. Ora, é isso o que sucede no caso em apreço.

Por outro lado, este limite traduz a definição – dentro da liberdade conferida pela Constituição ao legislador ordinário – de um limite acima do qual se considera aceitável tributar mais ou até tributar de todo em nome de um princípio da capacidade contributiva que expressa uma preocupação de justiça social.

Quer isto dizer que o princípio da igualdade tem ínsita hoje a admissão de uma discriminação negativa contra aqueles grupos que, auferindo maiores rendimentos ou possuindo mais valiosos patrimónios, se podem submeter a uma maior tributação, em dois sentidos:

- quer através de uma tributação progressiva, tal como a mesma se realiza no impostos sobre o rendimento pessoal;

- quer através de uma tributação proporcional, neste caso só atingindo o património acima de 1 milhão de euros.

Não se considera inconstitucional esta disposição por violação do princípio da capacidade contributiva.

 

D)    A violação do princípio da proteção da confiança

 

21. Estando evidentemente o TAS submetido ao princípio do pedido, no sentido de o objeto processual ser forçosamente definido pelas partes, não está o mesmo vinculado, quanto ao Direito aplicável, aos argumentos jurídicos expendidos pelas partes.

Quer isto dizer que para o TAS a norma da verba nº 28 da TGIS suscita uma outra questão de inconstitucionalidade, por violação do princípio da proteção da confiança, que pode e deve ser apreciada.

 

22. Não sendo literalmente consagrado no texto da CRP, nem por isso deixa este princípio de se afirmar na normatividade constitucional portuguesa por dedução da formulação geral do princípio do Estado de Direito, referida no art. 2º da CRP.

Por outro lado, têm sido abundantes – sobretudo nestes recentes acórdãos prolatados no contexto das medidas de combate à crise económico-financeira – as referências e aplicações que do mesmo o Tribunal Constitucional tem feito.

O princípio da proteção da confiança, em termos gerais, significa que o poder público – ou o poder legislativo em especial – está impedido de editar medidas jurídicas cujos efeitos signifiquem uma revogação ou limitação de interesses ou expectativas dos cidadãos, legitimamente construídos através dos regimes jurídicos precedentes, sem que para tanto haja um fundamento racional bastante.

 

23. Uma das dimensões específicas do princípio da confiança é a da aplicação retroativa das leis, a qual se encontra expressamente proibida num conjunto de casos enunciados no texto constitucional.

Só que a operatividade deste princípio não está apenas conexa com a retroatividade, nem mesmo com a versão suave da retrospetividade, que tem uma aplicação específica no Direito Fiscal quando se está em face de impostos periódicos.

Este princípio também pode invalidar alterações futuras da legislação, se estas se apresentarem abruptas, surgindo como decisões-surpresa, com as quais os cidadãos não pudessem contar e tivessem a legítima expectativa de que não surgiriam nos moldes em que o decisor legislativo as modelou.

“O princípio da confiança, requerendo que o quadro normativo vigente não mude de modo a frustrar as expectativas geradas nos cidadãos acerca da sua continuidade, implica a proibição de uma intolerável retroatividade das leis, assim como a necessidade da sua alteração futura em conformidade com as expectativas que sejam constitucionalmente tuteladas” (JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, II, 5ª ed., Coimbra, 2013, p. 726).

 

24. A apreciação da norma da verba nº 28 da TGIS não suscita, a este propósito, um problema de retroatividade, nem sequer um problema de retrospetividade, sendo na verdade um imposto de prestação única: o novo facto tributário é construído para o futuro, mais exatamente, no dia seguinte ao da entrada em vigor da norma que o cria.

Suscita, sim, um problema de quebra na confiança que deve existir entre o Estado-Legislador e o Cidadão, que confiou na estabilidade das disposições fiscais sobre o imposto de selo, tendo sido “apanhado de surpresa” por uma medida legislativa que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Eis um facto que em si não teria um significado especial se se tratasse de uma medida economicamente neutra ou se se inserisse num contexto jurídico em que a vigência prospetiva dos atos legislativos se pudesse indistintamente estabelecer entre o dia seguinte ou qualquer outro depois da sua entrada em vigor.

Não é o caso porque a colocação da vigência desta nova norma no dia seguinte ao da sua publicação vem abalar profundamente a previsibilidade com que os contribuintes tinham o direito de contar na configuração do imposto de selo, cujo facto tributário é sempre aferido no dia 31 de dezembro.

De repente, surge uma alteração substancial do momento relevante desse facto tributário para o dia 31 de outubro, não lhes dando tempo de agirem em função da nova disposição fiscal criada. Esse é o propósito do art. 6º da Lei nº 55-A/2012, de 29 de outubro. 

 

25. O que mais impressiona é que nem sequer esta alteração assume outra racionalidade que não seja a de colher subitamente um aumento de receita, através da antecipação do facto tributário de 31 de dezembro para 31 de outubro: é que para o ano seguinte, o ano de 2013, visto que a norma do art. 6º apenas vigora para o ano de 2012, volta o facto tributário ser a 31 de dezembro.

Compreende-se porque a aceitação da regra geral do IMI: já não haveria no ano seguinte qualquer fator surpresa. Não se julga que em Estado de Direito seja legítimo, em termos de proteção da confiança, o legislador agir deste modo.

Um comportamento destes por parte do legislador fiscal viola a boa-fé que o cidadão depositou no Estado, confiando que da parte deste não haveria medidas-surpresa sem qualquer fundamento racional adequado. 

 

E)    A errada aplicação do conceito de “prédio com afetação habitacional” prevista na verba nº 28 da TGIS

 

26. Mesmo com a conclusão pela inconstitucionalidade da norma que aditou a verba nº 28 à TGIS, pelas razões expostas, cumpre apreciar a outra questão de Direito que está em causa, que é a da aplicação às liquidações efetuadas do imposto de selo do conceito de “prédio com afetação habitacional”.

A norma em causa refere textualmente que a verba nº 28.01 incide sobre “prédio com afetação habitacional”, mas em nenhum lugar se ocupa da explicitação desse conceito.

Metodologicamente, há dois caminhos a percorrer:

            - ou esse conceito se encontra remissivamente definido na legislação subsidiária, que é o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), expressamente indicado como tal pela Lei nº 55-A/2012, de 29 de Outubro, por diversas vezes referindo tal diploma legal;

            - ou esse conceito é autónomo, não estando definido em nenhum lugar, sendo necessário construí-lo a partir dos índices disponíveis, naturalmente também recorrendo àquilo que estabelece o CIMI.

 

27. A leitura do CIMI, para começarmos pela primeira hipótese, não permite encontrar um qualquer preceito em que se utilize a expressão “prédio com afetação habitacional”.

Lá deparamos com a distinção fundamental entre prédios urbanos e prédios rústicos, além da categoria dos prédios mistos, depois se explicitando que os prédios urbanos podem subdividir-se em várias espécies, sendo uma delas os “prédios habitacionais”, conforme se estabelece no art. 6º, nº 1, al. a), do CIMI.

O ponto que importa decidir é este: há diferença entre a expressão que o CIMI utiliza de “prédio urbano habitacional” e a expressão usada pelo art. 4º da Lei nº 55-A/2012, ao aludir a “prédio com afetação habitacional”?

Estamos em crer que não, uma vez que prevalece, ainda que usando palavras um pouco diversas, o mesmo sentido fundamental de tributar a titularidade de prédios com um mesmo destino, a efetividade ou a possibilidade de o uso ser para efeitos de habitação humana, com todas as consequências que a legislação em geral e o CIMI em particular lhe dá.

Quer isto dizer que esta restrição não só afasta desde logo os prédios que sejam rústicos, ou nos prédios mistos a parte que não seja urbana, como também afasta os usos ou destinações dos prédios urbanos que não sejam habitacionais, como sucede com os destinos comerciais, industriais, terrenos para construção, nos termos das diversas categorias previstas no art. 6º, nº 1, als. b) a d), do CIMI.

 

28. Aceite a primeira possibilidade de haver um conceito remissivo para interpretar a Lei nº 55-A/2012 a ser fornecido pelo CIMI, há ainda que saber se a destinação habitacional tem de ser efetiva – isto é, tratar-se de um prédio como tal licenciado – ou se basta essa destinação como destinação normal, sem haver ainda uma licença de utilização para fins habitacionais.

Julga-se que há razões para exigir uma afetação efetiva e concretizada, e não apenas uma mera potencialidade, tal sendo o sentido fundamental a obter da expressão prédio de “afetação habitacional”, que se percebe incorporar um destino efetivo, porque já concretizado. Neste sentido, veja-se a argumentação expendida no Acórdão nº 27/2014 do Tribunal Arbitral do CAAD, que aqui reiteramos.

 

29. Em face do exposto, consideramos que o prédio indicado não se oferece uma afetação habitacional por lhe falecer aquela referida concretização no tocante ao seu uso, pelo que não se subsume no conceito legal de prédio da verba nº 28 da TGIS.

 

VI – Decisão

 

30. Pelos termos expostos, decide o Tribunal Arbitral:

 

a)      Declarar a ilegalidade, com a sua consequente anulação, das liquidações de imposto de selo nº 2011..., no valor de 7.682,00 euros, e nº 2012..., no valor de 5.313, 82 euros, por as mesmas não se subsumirem na norma de incidência da verba nº 28 da Tabela Geral do Imposto de Selo;

b)      Não aplicar a norma da verba nº 28 da Tabela Geral do Imposto de Selo, por infringir o princípio da igualdade e o princípio da proteção da confiança consagrados na Constituição da República, em obediência à norma consagrada no art. 204º da CRP, ficando as liquidações de imposto de selo efetuadas sem base legal, declarando-se, também, em consequência, a ilegalidade e a consequente anulação das liquidações efetuadas por não existir o preenchimento do conceito de prédio com “afetação habitacional”, julgando-se, assim, totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

c)      Determinar o pagamento à Requerente pela Requerida de juros indemnizatórios aplicáveis, nos termos do artigo 43.º da LGT, bem como dos custos com as garantias que venham a ser prestadas no âmbito dos processos de execução fiscal instaurados por falta de pagamento das liquidações objeto do pedido, como consequência da invalidade das liquidações de imposto de selo que foram praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira.

 

Valor da ação: € 12.996,46 (doze mil, novecentos e noventa e seis euros e quarenta e seis cêntimos).

 

Custas pela Requerida, no valor de € 918,00.

 

O Árbitro

 

Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia

 

            Lisboa, CAAD, 28 de julho de 2014.