DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
No dia 09 de Abril de 2018, A..., de nacionalidade francesa, com o NIF..., residente em..., ..., ...-... ..., ..., requereu, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (daqui em diante “RJAT”), e da Portaria 112-A, de 22 de Março, a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante simplesmente “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação de IRS e juros compensatórios com o n.º 2017..., no valor total de € 57.389,01, referente ao ano de 2013.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à Requerida em 16 de Abril de 2018.
O Conselho Deontológico designou como árbitro o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 01 de Junho de 2018, as Partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 21 de Junho de 2018, tendo, na mesma data, a AT sido notificada para responder.
Antes da apresentação da resposta pela AT, o Requerente, notificado do indeferimento da reclamação graciosa apresentada com relação a acto de liquidação conexo com o abrangido pelo pedido de pronúncia arbitral, no valor de € 17.697,74, veio, a 03 de Setembro de 2018, peticionar a ampliação do objecto do pedido, passando o mesmo a versar sobre a anulação dos dois actos – o de liquidação primariamente identificado e o de indeferimento da reclamação graciosa.
Já após o que antecede, em 10 de Setembro de 2018, a Requerida apresentou resposta em que peticionou que o pedido de pronúncia arbitral fosse julgado improcedente por falta de fundamentação legal, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.
Notificado da resposta da Requerida, o Requerente pronunciou-se, em “resposta à resposta”, confirmando o já alegado no pedido de pronúncia arbitral. Notificada do requerimento do Requerente, a Requerida peticionou o desentranhamento do mesmo por inadminissibilidade da “réplica” apresentada pelo Requerente.
Em 10 de Outubro de 2018, pronunciando-se sobre o pedido de ampliação do objecto apresentado pelo Requerente, solicitou este tribunal ao Requerente a indicação da intenção de manutenção do mesmo, atento o seu impacto no valor da causa e que importaria, no entender do tribunal, a sua incompetência por, com o alargamento, exceder o valor da alçada do tribunal singular, nos termos do artigo 5.º do RJAT.
No silêncio do Requerente sobre o esclarecimento solicitado pelo Tribunal, e entendo-se essencial a sua pronúncia quanto à intenção de manutenção do pedido de ampliação do objecto, no âmbito da consagrada autonomia do tribunal na condução do processo, decidiu o tribunal convocar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo ainda agendado, para a mesma data, a inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente.
Na referida reunião, que teve lugar a 10 de Dezembro de 2018, o Requerente manifestou a intenção de desistir do pedido de alargamento do objecto do pedido de pronúncia arbitral, tendo ainda sido inquiridas as testemunhas por si arroladas, por Skype e com tradução por meio de tradutor indicado pelo Requerente.
Notificadas para alegações simultâneas no prazo de 15 dias, as Partes apresentaram alegações (o Requerente a 04 de Janeiro de 2018 e a Requerida a 08 de Janeiro de 2018), mantendo, com ajustes, os argumentos já expendidos.
Síntese da posição das Partes
a. Do Requerente:
Nos termos do pedido de pronúncia arbitral e alegações, entende o Requerente que:
- O Requerente residiu em França até ao final de 2013, onde desempenhava funções como Administrador na B...;
- No final de 2013, o Requerente e a sua mulher decidiram emigrar para Portugal, aí tendo estabelecido a sua residência;
- Para o efeito, o Requerente obteve, a 14 de Novembro de 2013, um número de contribuinte de não residente, tendo posteriormente, mas ainda em 2013, alterado o seu estatuto para residente fiscal em Portugal;
- No início de 2014, o Requerente solicitou a atribuição do estatuto de residente não habitual, por referência a 2013, o qual foi aceite pela AT;
- Paralelamente, o Requerente e a sua mulher compraram uma casa em ..., a qual declararam como sendo a sua habitação própria e permanente;
- Na qualidade de residente fiscal em Portugal em 2013, e atendendo às regras vigentes à data, o Requerente apresentou declaração de rendimentos, para efeitos de IRS, nela incluindo os rendimentos auferidos em França, não obstante não ter auferido qualquer rendimento ou exercido qualquer actividade em Portugal;
- A primeira declaração foi submetida a 30 de Maio de 2014, tendo sido entregue uma declaração de substituição a 30 de Junho de 2014;
- A 04 de Setembro de 2014, o Requerente foi notificado da nota de liquidação de IRS com o valor total a pagar de € 17.697,74;
- Não obstante a referida liquidação, o Requerente entendeu não ser devido qualquer imposto em Portugal por força do regime dos residentes não habituais, uma vez que havia sido pago imposto em França sobre esses rendimentos;
- Mais ainda, apercebeu-se que a referida liquidação tinha como base o rendimento declarado de € 117.977,00 e que o rendimento efectivamente recebido teria sido de € 86.677,00 e, bem assim, que aquele rendimento teria sido declarado de forma errada na declaração apresentada;
- Destarte, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a referida liquidação, a 21 de Janeiro de 2015, requerendo a correcção de erros materiais e defendendo a anulação da liquidação de IRS por inobservância do disposto no artigo 81.º do Código do IRS relativamente à tributação em Portugal de rendimentos obtidos por residentes não habituais;
- Em particular, e como referido, entende o Requerente que, por ter sido efectivamente pago imposto em França sobre o rendimento auferido – importância recebida no âmbito de contrato de seguro do ramo Vida –, não será devido qualquer imposto adicional em Portugal;
- Sem ter recebido resposta à reclamação, o Requerente foi notificado de nova liquidação, em 07 de Dezembro de 2017, agora no montante total de € 57.398,02, com o montante total a pagar de € 39.491,27 (considerando o acerto de contas com o montante anteriormente pago relativamente à liquidação inicial) sem nunca ter sido notificado para exercício do direito de audição, o que apenas aconteceu a 27 de Março de 2018 e após ter apresentado um pedido de fundamentação;
- Entendeu, assim, o Requerente impugnar a nova liquidação, prestando garantia bancária para o efeito;
- Já depois da submissão do pedido de pronúncia arbitral, o Requerente foi notificado do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra a primitiva liquidação;
- Face ao exposto entende o Requerente, desde logo, que a liquidação impugnada – a segunda liquidação – padece do vício de preterição de formalidade essencial por falta de notificação para exercício do direito de audição;
- Adicionalmente, entende também o Requerente que a liquidação impugnada padece de vício de falta de fundamentação, por não resultar da liquidação objecto do presente pedido de pronúncia arbitral a razão de ser desta liquidação, nem tão pouco serem perceptíveis os termos e iter decisório da Requerida e respectiva fundamentação legal do acto praticado;
- Assim, entende o Requerente que a liquidação é inválida por preterição de formalidade essencial, imputando ainda, à impugnada liquidação, o vício de violação do prazo de caducidade;
- Quanto aos aspectos materiais da liquidação, e como já referido, entende o Requerente que a liquidação enferma de vício de violação de lei, em particular do disposto no artigo 81.º do Código do IRS no que respeita à eliminação da dupla tributação jurídica internacional relativamente a rendimentos auferidos no estrangeiro por residentes em Portugal abrangidos pelo regime de residente não habitual;
- Destarte, entende o Requerente que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 81.º do Código do IRS, o rendimento aqui em causa, obtido em França, deverá ficar isento de imposto em Portugal, tendo em conta que o mesmo foi efectivamente tributado em França, assim se preenchendo o requisito legal para aplicação do método da isenção em Portugal;
- Não obstante, argui ainda o Requerente que, em todo o caso, deverá ser considerado residente em França no ano de 2013, na medida em que viveu em França até ao final do ano, como entende comprovado pelo depoimento das testemunhas inquiridas e demais documentação junta ao processo, pelo que Portugal não deverá ter competência tributária;
- Em particular, e a este respeito, entende o Requerente que, em 2013, a ligação ao território português é meramente residual e que, por essa razão, não poderá ser estabelecida a residência fiscal em Portugal para efeitos de tributação dos rendimentos aqui em causa;
- Conclui o Requerente no sentido de que, ainda que se estabeleça residência fiscal em Portugal naquele ano, ao abrigo do disposto na lei interna, sempre o artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) celebrada entre Portugal e França mandaria considerar a residência fiscal em França para efeitos de eliminação da dupla tributação.
b. Da Requerida:
Por seu turno, nos termos da resposta e alegações apresentados, defende a Requerida que:
- Relativamente ao putativo vício de falta de fundamentação, entende a Requerida que as liquidações em causa limitam-se a liquidar o imposto com base nas declarações do Requerente, pelo que a nota de liquidação se basta como fundamentação;
- Mais entende a Requerida, que ao ter respondido ao pedido de certidão efectuado pelo Requerente ao abrigo do artigo 37.º do CPPT, se encontra sanado qualquer vício que, por mero exercício teórico, pudesse ser imputado aos actos de liquidação;
- No que respeita à preterição de formalidade essencial (audição prévia) entende a Requerida que, no que respeita à primeira liquidação, a liquidação é efectuada com base nos elementos declarados pelo Requerente, ao passo que, no que respeita à segunda liquidação, aqui impugnada, apenas se corrige um erro de cálculo no processamento informático, não havendo lugar, por essas razões, a exercício do direito de audição prévia;
- Tendo em conta o exposto, entende a Requerida que o direito de audição apenas existe no caso de procedimento, que incide sobre a matéria de facto e não sobre as normas de direito aplicáveis;
- No que respeita à fundamentação de direito das liquidações efectuadas, contestada pelo Requerente no presente pedido de pronúncia arbitral, entende a Requerida existir um lapso no entendimento das normas aplicáveis, bem como uma contradição insanável na linha de argumentação, por parte do Requerente;
- Assim, no que respeita à leitura do disposto no artigo 81.º do Código do IRS, salienta a Requerida que a isenção de imposto em Portugal depende de o rendimento em causa poder ser tributado, neste caso, em França, ao abrigo do disposto na CDT celebrada entre Portugal e França;
- Ou seja, não está em causa o facto de o rendimento ter sido efectivamente tributado em França ou não, mas o facto de saber se o rendimento poderia ter sido tributado em França ao abrigo da CDT aplicável;
- Como tal, enquadrando este rendimento no artigo 23.º da referida CDT, chega a Requerida à conclusão de que o mesmo apenas poderá ser tributado no estado da residência;
- E deste enquadramento retira a Requerida a conclusão de que o rendimento sempre se deverá ter por tributável em Portugal, quer porque o Requerente é, como o próprio declara e por força da legislação aplicável, residente fiscal em Portugal no ano de 2013, quer porque a CDT aplicável não permite a França a tributação do rendimento em causa (ainda que tal tenha acontecido);
- Em particular quanto à condição de residente em Portugal, salienta a Requerida a contradição em que entende incorrer o Requerente ao declarar-se, por um lado, como residente fiscal em Portugal em 2013 e abrangido pelo regime de residente não habitual e, por outro lado, como não residente fiscal em Portugal...;
- A este respeito, e por último, entende a Requerida que as declarações das testemunhas arroladas pelo Requerente foram confusas não confirmando ao certo o momento em que o Requerente se mudou para Portugal;
- No entender da Requerida, o Requerente é efectivamente residente fiscal em Portugal em 2013 – porque assim o declarou em cumprimento das regras fiscais aplicáveis à data –, sendo que, nessa medida, e por efeito do disposto no artigo 81.º do Código do IRS, conjugado com a CDT celebrada entre Portugal e França, o rendimento auferido ficará efectivamente sujeito a imposto em Portugal, sem prejuízo do imposto pago em França.
II. SANEAMENTO
1. O Tribunal Arbitral é competente e foi regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. Não foram invocadas excepções que cumpra apreciar.
4. O processo não padece de vícios que o invalidem.
5. No que respeita ao requerimento do Requerente de “resposta à resposta” da Requerida, por não ser esse o momento processual para o efeito, deverá o mesmo ser desentranhado dos autos, atendendo-se à prova produzida com o pedido de pronúncia arbitral, resposta, prova testemunhal e respectivas alegações.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta à petição inicial, do processo administrativo, da resposta e das alegações do Requerentes e da Requerida, fixa-se como segue:
A – Factos Provados
a. O Requerente residiu em França até ter vindo residir para Portugal, ali tendo sido residente fiscal até essa data;
b. O Requerente solicitou um número de identificação fiscal português como não residente, em 14 de Novembro de 2013;
c. Posteriormente, no final de 2013, o Requerente inscreveu-se como residente fiscal em Portugal;
d. Tendo solicitado a inscrição como residente não habitual, com efeitos retroactivos à data de aquisição da residência, a 13 de Janeiro de 2014;
e. Durante o ano de 2013, enquanto residente fiscal em França, o Requerente auferiu rendimentos no âmbito de contrato de seguro do ramo Vida, pagos por entidade residente em França;
f. O Requerente declarou esses rendimentos na declaração de rendimentos que apresentou em Portugal, relativamente a 2013, ainda que os tenha reportado como rendimentos isentos de imposto ao abrigo do regime de residente não habitual.
B – Factos não provados
Não foram dados como não provados quaisquer factos com relevo para a discussão da causa.
III.2. MOTIVAÇÃO
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido apresentado pelo Requerente.
No tocante à apreciação da prova, o Tribunal formula o seu juízo, em atenção ao princípio da livre apreciação, a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência.
Assim a convicção do Tribunal fundou-se no acervo documental junto aos autos bem como nas posições assumidas pela Requerente e pela Requerida.
III.3. DO DIREITO
1. THEMA DECIDENDUM:
Tendo em conta o exposto, o presente pedido de pronúncia arbitral versa, essencialmente, sobre a legalidade da (segunda) liquidação de IRS levada a cabo pela Requerida.
Nestes termos, e atendendo ao disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29, n.º 1, alínea a) do RJAT, as questões controvertidas no presente processo, e a que importa dar resposta, são, de forma singela, as seguintes:
1. Deve o Requerente ser considerado residente fiscal em Portugal, em 2013, para efeitos de tributação do rendimento aqui em causa?
2. Caso a resposta à segunda questão seja positiva, deve o rendimento auferido pelo Requerente ficar isento de imposto em Portugal nos termos das normas para eliminação da dupla tributação jurídica internacional aplicáveis (artigo 81.º do Código do IRC e CDT celebrada entre Portugal e França)?
3. Caso a resposta às duas primeiras questões vá no sentido de se manter a liquidação ora impugnada, deve considerar-se que a sobredita liquidação padece de algum vício formal que a invalide?
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Aqui chegados, importará recordar, para boa decisão da causa, as posições das Partes a este respeito.
Por um lado, o Requerente entende que, sem prejuízo de se ter declarado como residente no período em causa, se deverá ter como não residente em Portugal nesse mesmo período, prevalecendo a residência em território francês por ter com este um vínculo mais forte.
Já a Requerida entende que tal argumentação se apresenta como contraditória e irremediavelmente irreconciliável.
Importa, a este respeito, recordar que, à data dos factos – 2013 –, previa o artigo 13.º, n.º 7 do Código do IRS que “A situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos (...) é aquela que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite.”.
Ademais, ao contrário do que hoje acontece nos termos do n.º 3 do artigo 16.º do Código do IRS, o imposto em causa não previa o conceito de residência fiscal parcial.
Nessa medida, uma pessoa que adquirisse residência fiscal em Portugal, como foi o caso do Requerente no ano aqui em causa, no decurso do ano, adquiria essa qualidade em relação a todo o ano.
Como tal, não deve suscitar dúvidas a conclusão de que o Requerente se deverá ter como residente fiscal em Portugal para o ano de 2013, ao abrigo do disposto no Código do IRS.
Contudo, a questão colocada não se esgota aqui.
De facto, tendo o Requerente sido também residente em França nesse ano – diga-se, na maior parte desse ano –, em momento anterior à aquisição da residência fiscal em Portugal, e tendo o rendimento sido auferido na pendência dessa residência fiscal em França, haverá que constatar a existência de um conflito de residências.
E se nos termos das legislações internas de cada país, cada um deles tem direito a considerar – e considera – o Requerente como seu residente para efeitos de tributação do rendimento em causa, não se pode, contudo, obnibular o facto de que os países em causa celebraram uma CDT que regula, entre outras, precisamente situações de dupla residência, evitando, como no caso em apreço, a multiplicação – melhor dizendo, a sobreposição – de pretensões tributárias.
Destarte, e como alega o Requerente, ainda que de forma não totalmente conclusiva e sem daí retirar as devidas consequências, a referida CDT – em particular o seu artigo 4.º – vem precisamente regular estas situações de dupla residência, determinando, para efeitos da referida CDT, qual dos países deve ser tido como país da residência.
Aqui, pela sua importância, importará reforçar alguns conceitos basilares.
O primeiro é o de que a aferição da residência nos termos e para os efeitos da CDT, pressupõe que a pessoa em causa – o Requerente – seja residente em um ou ambos os países.
Ou seja, quer isto dizer que o Requerente terá que ser residente fiscal de, pelo menos, um dos países em causa, nos termos das respectivas legislações internas.
O segundo é o de que, para efeitos de aplicação da CDT, a pessoa apenas poderá ser considerada residente de um país.
Ou seja, a pessoa em causa – o Requerente –, para aplicação da CDT, terá que ser residente de um dos estados contratantes e apenas poderá ser residente de um dos estados contratantes.
É, assim, por esta razão que o já referido artigo 4.º da CDT prevê diversos critérios de desempate para situações em que ambos os estados contratantes consideram – como é aqui o caso – a pessoa como residente nos termos da legislação interna.
Assim, havendo que determinar, para efeitos de aplicação da CDT, um estado da residência (prevalecente), e percorrendo as várias alíneas do número 2 da referida norma, facilmente se concluirá que, em particular ao tempo da recepção do rendimento em causa, era com França que o Requerente tinha “(...) mais estreitas relações pessoais e económicas (...)”, sendo também aí que dispunha, à data dos factos, de uma habitação permanente à sua disposição.
Nestes termos, no confronto das duas normas fiscais nacionais – portuguese e francesa – sobre a residência fiscal do Requerente, deverá, para efeitos da CDT, considerar-se prevalecente a residência francesa.
E não se diga, como o pretende a Requerida, que tal raciocínio é, em si mesmo, incompatível e incoerente.
É que a residência para efeitos domésticos não se deve confundir – não se pode confundir – com a residência para efeitos convencionais. Como bem se refere no referido artigo 4.º, a referência a residência ali ínsita apenas vale para efeitos da referida CDT.
Como tal, pode bem ser que uma pessoa seja residente em Portugal ao abrigo da lei interna, não o sendo ao abrigo de uma qualquer CDT celebrada por Portugal, e sem que perca a qualidade de residente em Portugal, nomeadamente para efeitos do regime de residente não habitual.
Pretender que a residência fiscal em Portugal, determinada nos termos do artigo 16.º do Código do IRS, impeça a consideração de uma outra residência ao abrigo da CDT implica uma interpretação desajustada das regras de funcionamento da CDT, da mesma forma que pretender que a residência determinada nos termos de uma CDT afecte a residência determinada nos termos da lei interna, no caso de Portugal, implica retirar uma consequência que não decorre da lei nem da própria CDT.
Assim, é perfeitamente concebível, principalmente tendo em conta o dispositivo legal contido no artigo 16.º à data dos factos, que uma pessoa pudesse ser considerada como residente fiscal em dois países de forma simultânea, prevalecendo uma residência, em natural prejuízo da outra, para efeitos da referida CDT.
Contudo, ao contrário do que parece fazer o Requerente, o raciocínio não se pode quedar por aqui. De facto, e como se disse, e aqui se reitera, a determinação da residência em França, em prejuízo de Portugal, para os efeitos da CDT, não prejudica que o Requerente se continue a considerar residente fiscal em Portugal para efeitos da legislação interna.
Destarte, a não sujeição a imposto dos rendimentos em causa, em Portugal, dependerá, ainda, de se demonstrar que, nos termos da CDT, tais rendimentos não poderiam ser tributados em Portugal.
Ora, aqui chegados, e sem prejuízo da interessantíssima questão de qualificação do rendimento em causa que aqui se poderia levantar, estando em causa um residente em França (ainda que apenas para efeitos da CDT), que aufere rendimentos de França, nada mais restará, neste caso, que trazer à colação o artigo 23.º da referida CDT, nos termos do qual os (outros) rendimentos apenas podem ser tributados no estado da residência (leia-se, residência convencional).
Nesta medida, e pelas razões acima indicadas, sem prejuízo da manutenção do estatuto fiscal do Requerente para efeitos da legislação doméstica portuguesa, o mesmo deverá ser tido como residente em França no que respeita ao período e rendimentos aqui em causa, sendo esse o estado com competência tributária exclusiva.
Nestes termos, fica definitivamente determinada a resposta a dar ao presente pedido de pronúncia arbitral.
Ainda que não caiba, assim, analisar as demais questões colocadas pelo presente tribunal, sempre se dirá que, no que à segunda questão colocada respeita, e para efeitos do disposto no número 4 do artigo 81.º do Código do IRC, não basta que os rendimentos sejam efectivamente tributados no outro país – sendo até esse um facto irrelevante – sendo, isso sim, essencial, descortinar se, nos termos da CDT em causa, o “país da fonte” tem competência tributária sobre os mesmos, para o que haveria que desenvolver o necessário exercício de qualificação dos rendimentos aqui em causa (como aliás decorre do iter cognoscitivo percorrido pela Requerida).
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide o Tribunal Arbitral:
I) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
II) Anular a liquidação de IRS e juros compensatórios com o n.º 2017..., no valor total de € 57.389,01 (cinquenta e sete mil, trezentos e oitenta e nove euros e um cêntimo) com o consequente reembolso dos montantes indevidamente pagos;
III) Cancelar a garantia bancária prestada pelo Requerente;
III) Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 57.389,01 (cinquenta e sete mil, trezentos e oitenta e nove euros e um cêntimo).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2.142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerida tendo em conta a procedência do pedido de pronúncia arbitral.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2019
O Árbitro,
José Calejo Guerra
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.