Decisão arbitral
Na sequência do acórdão n.º 692/2015, proferido pelo Tribunal Constitucional a 16 de dezembro de 2015, procede-se à pronúncia de nova decisão arbitral.
I – Relatório
1.1. A... (doravante designado por «requerente»), tendo sido notificado das liquidações de imposto de selo (1.ª prestação) que constam dos documentos n.os 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013... e 2013..., apresentou, no dia 7/6/2013, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 99.º do CPPT e 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 2, al. c), do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração da “ilegalidade dos actos de liquidação do imposto do selo objecto da presente impugnação e a respectiva anulação, com todas as consequências legais.”
1.2. Em 8/8/2013 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 1/10/2013, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido do requerente.
1.4. A 8/10/2013, o Tribunal Arbitral solicitou à AT cópia do processo administrativo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 17.º, n.º 2, do RJAT. A referida cópia foi enviada a 18/10/2013 e junta ao presente processo a 22/10/2013.
1.5. Em 21/10/2013, foi solicitado às partes que apresentassem alegações escritas. O requerente apresentou alegações em 31/10/2013, tendo reiterado a argumentação já antes exposta na sua p.i.. A requerida não apresentou alegações.
1.6. A reunião nos termos e para os efeitos do disposto no art. 18.º do RJAT realizou-se em 12/11/2013. Dá-se aqui por reproduzido o conteúdo da respectiva acta. Foi designada a data de 16/12/2013 para a prolação da decisão arbitral.
1.7. Por despacho arbitral de 15/11/2013, determinou-se a junção ao presente processo do requerimento enviado a 14/11/2013, relativo à ampliação do objecto do presente pedido, de modo a incluir as liquidações de imposto do selo - 3.ª prestação - suportadas nos documentos n.os 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013... e 2013..., no montante total de €4442,22. As referidas liquidações foram efectuadas em 22/3/2013.
1.8. Em 18/11/2013, a requerida foi notificada do despacho, não se tendo pronunciado.
1.9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
1.10. Atento o disposto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 692/2015, proferido a 16/12/2015 e que teve origem na decisão do presente Tribunal de 16/12/2013 (Acórdão que foi introduzido no SGP do CAAD em 12/4/2016), procede-se, na presente data, à reforma – dada a suspensão dos efeitos da notificação de arquivamento até ao proferimento do Acórdão do TC – da anterior decisão, em conformidade com o disposto no art. 80.º, n.º 2, da LTC.
II – Alegações das Partes
2.1. Vem o ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “o VPT constante da matriz, para efeitos de aplicação da norma de incidência constante da verba n.º 28 da TGIS, só pode ser o da inscrição matricial correspondente a cada uma das partes do prédio com afectação habitacional e não o correspondente à soma de todos os VPT dos andares que o compõem”; b) “os VPT dos andares que compõem o prédio em questão nestes autos oscilam entre 104.140,00 € e 113.780,00 €, sendo, portanto, todos eles inferiores a 1.000.000,00 €”, pelo que “sobre os mesmos não incide o imposto do selo a que se refere a verba n.º 28 da TGIS”; c) “a aplicação desta norma ao caso dos autos não tem qualquer suporte legal, uma vez que a AT considera para efeitos de incidência do imposto do selo o valor resultante da soma dos VPT de todos os andares do prédio e não os VPT de cada um deles”; d) “a interpretação da AT da norma constante da verba nº 28 da TGIS não tem qualquer correspondência na letra da lei, uma vez que, insista-se, esta última manda atender ao VPT constante da matriz e não ao somatório dos VPT dos andares do prédio, os quais possuem inscrições matriciais separadas”; e) “a mesma interpretação também não ter qualquer correspondência no espírito da mesma norma, na medida em que esta só pode visar a sujeição a imposto dos andares com afectação habitacional existentes nos prédios, considerados separadamente, e não estes últimos, considerados como somatório daqueles andares, pois só desta forma se poderá compreender que o imposto não incida sobre a parte dos prédios que não tenham a referida afectação habitacional”; f) “ao delimitar a incidência da norma da verba n.º 28 da TGIS, a lei não considera a pluralidade de imóveis, ou partes deles, afectos à habitação, que porventura se encontrem na titularidade do mesmo sujeito passivo, mas apenas a propriedade de cada parcela habitacional, na sua individualidade, seja ela uma fracção autónoma ou uma parte independente de um prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal”; g) “os actos de liquidação que aqui se impugnam são ilegais, por violarem a norma de incidência prevista na verba n.º 28 da TGIS.”
2.2. Invocou ainda o requerente a inconstitucionalidade: a) da verba n.º 28 da TGIS, por alegada violação dos artigos 13.º e 104.º, n.º 3, da CRP (questão esta que já foi decidida pelo acima mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional: vd. 1.10. e infra, ponto IV); b) da “interpretação perfilhada pela AT do artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referindo a liquidação do imposto do selo respectivo ao ano de 2012”, por alegada “ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva”. A respeito desta interpretação, o requerente acrescentou, ainda, que: “se, nos termos dos artigos 22.º, n.º 7, do CIS e 113.º, n.º 1, do CIMI, o imposto é liquidado anualmente, e se, nos termos dessas disposições legais, a AT devia liquidar imposto em 2013, relativo ao ano de 2012, coloca-se a questão de saber a que ano devia, então, respeitar a liquidação do imposto de selo prevista no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2012, de acordo com as respectivas regras, que, nomeadamente, determinam a verificação do facto tributário no dia 31 de Outubro de 2012. Ora, na lógica resultante da unidade do sistema jurídico, essa liquidação teria que respeitar ao ano de 2011, uma vez que o facto tributário gerador da obrigação de pagar imposto relativo ao ano de 2012 seria o previsto no artigo 113.º, n.º 1, do CIMI. No entanto, a Lei n.º 55-A/2012 foi publicada em 29 de Outubro e entrou em vigor no dia seguinte [pelo que a] interpretação de que a liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da TGIS, de acordo com as regras do artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2012, dizia respeito ao ano de 2011, equivale a considerar que foi criado um imposto para incidir sobre factos tributários já transcorridos. [...]. O autor/impugnante invoca essa inconstitucionalidade [«ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva»] para todos os efeitos legais. No entanto, existe outra interpretação da mesma norma, com correspondência na letra e no espírito da Lei, que não conduz a um resultado não inconstitucional, que é o de considerar a norma em causa como referida ao imposto do ano de 2013, e não à liquidação a efectuar neste ano, que deverá ser a perfilhada na decisão da presente impugnação. Nesta última interpretação, não deveria ter havido lugar às liquidações impugnadas, pelo que as mesmas deverão ser declaradas ilegais e, em consequência, anuladas.”
2.3. Conclui, por fim, o requerente pela inteira procedência do pedido e, por via dela, pede que seja “declarada a ilegalidade dos actos de liquidação do imposto do selo objecto da presente impugnação e a respectiva anulação, com todas as consequências legais.”
2.4. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que, “no presente caso, o valor patrimonial tributário de que depende a incidência do imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral tinha de ser, como foi, o valor patrimonial global do prédio e não o de cada uma das suas partes independentes”; b) que “resulta [do artigo 2.º, n.º 4, do Código do Imposto de Selo e do artigo 3.º, n.º 3, al. u), do CIMI] o facto tributário do imposto de selo da verba 28.1. consistir na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (C.I.M.I.), seja igual ou superior a € 1 000 000,00”; c) que “o valor patrimonial relevante para efeitos da incidência do imposto é, assim, o valor patrimonial total do prédio urbano e não o valor patrimonial de cada uma das partes que o componham, ainda quando susceptíveis de utilização independente [pelo que] não se vislumbra, assim, como a liquidação de IMI impugnada possa ter violado o teor literal da verba 28.1 da Tabela Geral”; d) que “o art. 80.º, n.º 2, do C.I.M.I. declara que, salvo o disposto nos arts. 84.º e 92.º, a cada prédio corresponde um único artigo inscrito na matriz. O princípio de que a cada prédio corresponde um só artigo matricial apenas é excepcionado, assim, relativamente aos prédios mistos em que, segundo o referido art. 84.º, cada uma das partes distintas é inscrita na matriz na parte que lhe competir e relativamente aos prédios constituídos em propriedade horizontal em que, apesar de, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do C.I.M.I., cada fracção autónoma ser havida como constituindo um prédio, a cada edifício em regime de propriedade horizontal corresponde uma só inscrição matricial”; e) que “o prédio urbano não está em regime de propriedade horizontal, caso em que cada uma das fracções autónomas seria havida como prédio urbano, incluindo para efeitos da sujeição ao imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral, mas em regime de propriedade vertical. Dispõe, no entanto, como consta da respectiva matriz predial de andares ou divisões independentes, avaliadas nos termos do art. 12.º, n.º 3, do C.I.M.I., que diz que cada andar ou prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina igualmente o respectivo valor patrimonial tributário sobre o qual é liquidado IMI. [...]. Tal norma legal releva, deste modo, para efeitos da inscrição na matriz predial, a autonomia que, dentro do mesmo prédio, pode ser atribuída a cada uma das suas partes, económica e funcionalmente independentes”; f) que “a unidade do prédio urbano em propriedade vertical composto por vários andares ou divisões não é, no entanto, afectada pelo facto de todos ou parte desses andares ou divisões serem susceptíveis de utilização económica independente. Tal prédio não deixa de ser um apenas, não sendo, assim, as suas partes distintas juridicamente equiparadas ás fracções autónomas em regime de propriedade horizontal. [...]. No presente caso, o valor patrimonial tributário de que depende a incidência do imposto de selo da verba 28.1. da Tabela Geral tinha de ser, como foi, o valor patrimonial global do prédio e não o de cada uma das suas partes independentes”; g) que “a tributação em causa [não] viola o princípio da irretroactividade dos impostos [visto que] a irretroactividade dos impostos verifica-se em caso da criação de impostos posterior ao facto tributário [o que,] por natureza, não se verifica no presente caso [uma vez que] o facto tributário do imposto de selo de 2012 verifica-se a 31 de Dezembro de 2012, como resulta do art. 6.º, n.º 2, do Código do Imposto de Selo, na redacção da mencionada Lei n.º 55-A/2012”; e h) que “o imposto de selo da verba 28 foi, assim, criado anteriormente a 31 de Dezembro de 2012”.
2.5. Em conclusão, a AT sustentou que: “a) a verba 28.1. da Tabela Geral do Imposto de Selo incide sobre os prédios urbanos com afectação habitacional; b) o valor patrimonial tributário igualou superior a € 1.000.000,00 de que depende a aplicação dessa norma legal é, como resulta expressamente da sua letra, o valor patrimonial de cada prédio e não das suas partes distintas, ainda que susceptíveis de utilização independente; c) nessa medida, o imposto de selo da verba 28 foi correctamente liquidado; d) a tributação em imposto de selo não violou igualmente o princípio da irretroactividade dos impostos; e) é o que resulta de a Lei n.º 55-A/2012 ser anterior à ocorrência do facto tributário do imposto de selo desse ano, que ocorreu a 31 de Dezembro de 2012.”
III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação
3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) No dia 1/4/2013, a AT notificou o requerente das doze liquidações da 1.ª prestação do imposto de selo, relativas ao ano de 2012.
ii) As referidas liquidações incidiram sobre os seguintes VPTs (valores patrimoniais tributários): 1) €104.140,00 - relativo a duas inscrições matriciais, respectivamente, ... ... – U –...– RC D e ... ...– U –...– RC E; 2) €111.550,00 - relativo a quatro inscrições matriciais, respectivamente, ... ...– U –...– 1 D, ... ...– U – ... – 1 E, ... ...– U –...– 2 D e ... ...– U –...– 2 E; 3) €112.660,00 - relativo a quatro inscrições matriciais, respectivamente, ... ...– U –...– 3 D, ... ...– U –...– 3 E, ... ...– U –...– 4 D e ... ...– U –...– 4 E; 4) €113.780,00 - relativo a duas inscrições matriciais, respectivamente, ... ...– U –...– 5 D e ... ... – U –...– 5 E.
iii) Todas as referidas inscrições matriciais correspondem ao prédio urbano sito na ..., n.º..., em Lisboa (freguesia de ...). O mencionado prédio é composto por doze andares, cada um com utilização independente e afectação habitacional, não estando constituído em propriedade horizontal.
iv) O valor patrimonial dos referidos doze andares com utilização independente e afectação habitacional, que compõem o prédio urbano, foi determinado separadamente, nos termos do disposto no art. 7.º, n.º 2, al. b), do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI). O valor correspondente à soma dos VPTs dos doze andares é igual a €1.332.680,00.
v) A AT liquidou o imposto do selo previsto na verba n.º 28 e 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na redacção que lhe foi dada pelo art. 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, à taxa de 1%, considerando como “VPT – total sujeito a imposto” o já referido valor de €1.332.680,00.
vi) Por despacho arbitral de 15/11/2013, determinou-se a junção ao presente processo do requerimento enviado a 14/11/2013, relativo à ampliação do objecto do presente pedido, de modo a incluir as liquidações de imposto do selo - 3.ª prestação - suportadas nos documentos n.os 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013..., 2013... e 2013..., no valor total de €4442,22. As referidas liquidações foram efectuadas em 22/3/2013. A 18/11/2013, a requerida foi notificada do despacho arbitral de 15/11/2013, não se tendo pronunciado sobre o mesmo.
vii) A ampliação do objecto do pedido determinou a alteração do valor do processo, o qual passou a ser de €17.769,02 (€13.326,80 + €4442,22).
3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
IV – Questão Preliminar
Da sentença deste Tribunal, proferida a 16/12/2013, foi, em devido tempo, interposto recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, o qual decidiu nos seguintes termos, que se transcrevem (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 692/2015, de 16/12/2015, proferido nos Autos de Recurso n.º 51/14):
“«No presente recurso está precisamente em causa o princípio da igualdade fiscal, sobretudo na sua vertente de uniformidade, ou seja, na medida em que exige que o dever de pagar impostos (neste caso, o imposto do selo) seja aferido por um mesmo critério, traduzido pelo princípio da capacidade contributiva. Impõe-se apreciar se, ao sujeitar a imposto especial os prédios urbanos habitacionais em propriedade total compostos por partes suscetíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial, atendendo para tal ao somatório dos valores patrimoniais tributários atribuídos às diversas partes do prédio, contrariamente ao que sucede nos prédios constituídos em propriedade horizontal, a referida norma tratou de modo diferenciado situações reveladoras de idêntica capacidade contributiva e, na afirmativa, se essa desigualdade de tratamento se revela arbitrária, por introduzir discriminações entre contribuintes desprovidas de fundamento racional bastante.
Importa, pois, antes de mais comparar as duas situações em análise, designadamente a situação dos prédios urbanos habitacionais em propriedade total compostos por partes suscetíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial e a situação dos prédios em regime de propriedade horizontal, começando, para tal, por fazer uma breve referência dos institutos da propriedade proprio sensu e da propriedade horizontal. [...].
Estamos, pois, perante realidades com um estatuto jurídico distinto, em que a titularidade dos direitos reais referidos da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo que incidem sobre as frações de um prédio constituído em propriedade horizontal podem pertencer a diferentes pessoas, enquanto num prédio constituído por unidades suscetíveis de utilização independente, mas que não se encontra constituído em propriedade horizontal, essa titularidade é necessariamente da(s) mesma(s) pessoa(s).
Assim, sendo inegável que, no plano do direito civil, estamos perante duas situações juridicamente diferentes, importa, no entanto, questionar se tais diferenças justificam um tratamento diferente no plano tributário, ou seja, se tais diferenças jurídicas existem e são relevantes também no plano substancial para efeitos fiscais, a ponto de se poder afirmar que, em termos económicos, estamos perante diferentes manifestações de capacidade contributiva.
Como vimos, com a alteração legislativa sobre a qual incidiu a interpretação sub iudicio, conforme resulta quer da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 96/XII, que esteve na origem da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, bem como da sua discussão na generalidade na Assembleia da República, o legislador teve o propósito de «reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento» e de «garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho». Para tal, decidiu através do referido diploma legislativo alargar «a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade» e, entre outras medidas, procedeu à «criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor».
Assim, no que respeita à tributação da propriedade, entendeu o legislador, com base no aludido «princípio da equidade social na austeridade», ser de exigir uma contribuição acrescida aos titulares de bens imóveis de elevado valor destinados a habitação. Daí que o facto a que atribuiu relevância enquanto elemento determinante da incidência desta nova «taxa especial» e enquanto manifestação da capacidade contributiva, tenha sido a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos, com afetação habitacional, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a €1.000.000,00. Ou seja, o legislador entendeu que a disponibilidade, fundada na titularidade de um direito de propriedade, de usufruto ou de superfície, de uma unidade habitacional deste valor (a calcular com base no valor patrimonial que é tido em conta para efeitos de IMI), constitui um elemento revelador de uma capacidade contributiva acrescida em relação aos demais contribuintes, apta a justificar esta tributação especial, destinada a garantir a referida «repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento» feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho. Selecionou-se, pois, como realidade tributável a titularidade de uma unidade predial habitacional com um valor superior a € 1.000.000,00, resultando esse valor daquele que é calculado para efeitos de cobrança de IMI.
Ora, se num prédio constituído em propriedade horizontal, essa titularidade só pode reportar-se a cada uma das frações autónomas, pois cada uma das diferentes frações pode ser objeto de uma situação jurídica real própria, o mesmo não sucede num prédio em que, apesar de dividido fisicamente em unidades suscetíveis de utilização independente, a sua titularidade reporta-se necessariamente ao todo correspondente à soma das diferentes unidades, não podendo os direitos reais referidos na verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo ter por objeto isolado uma dessas unidades.
Assim, para efeitos do imposto aqui sob fiscalização, enquanto o valor de todo um prédio que não se encontra constituído em propriedade horizontal, apesar de ser composto por diferentes unidades suscetíveis de terem uma utilização independente, revela a capacidade contributiva do seu único titular, já o mesmo não sucede com um prédio idêntico constituído em propriedade horizontal, uma vez que, sendo cada uma das frações suscetíveis de uma situação jurídica real própria, só o valor de cada uma delas é idóneo a revelar a capacidade contributiva do seu titular.
As diferenças decorrentes dos diferentes regimes dominiais constituem fundamento bastante para, no que diz respeito à incidência do imposto de selo no caso de edifícios em propriedade horizontal se tenha em atenção o valor patrimonial tributário individualizado de cada uma das frações, o que já não sucede, no caso dos prédios urbanos habitacionais em propriedade total compostos por partes suscetíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial.
Daí que, uma interpretação da norma de incidência constante da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, no sentido de nela se incluírem os prédios urbanos habitacionais em propriedade total, compostos por partes suscetíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial, procedendo-se para tal ao somatório do valor patrimonial tributário de cada uma das unidades independentes com afetação habitacional, não se revela violadora do princípio da igualdade tributária e do princípio da capacidade contributiva, conforme acima exposto.»” [Fim de citação.]
Conforme se disse no texto da decisão anterior deste Tribunal arbitral, eram aí três as questões a decidir: 1) saber se a sujeição a imposto de selo, nos termos do que dispõe a verba n.º 28 da TGIS, é determinada pelo VPT que corresponde a cada uma das partes do prédio com afectação habitacional, ou se, ao invés, é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia à soma de todos os VPTs dos andares que o compõem; 2) saber se a verba n.º 28 da TGIS é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, bem como do disposto no artigo 104.º, n.º 3, da CRP; e 3) saber se “a interpretação perfilhada pela AT do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referindo a liquidação do imposto do selo respectivo ao ano de 2012” é inconstitucional, por “ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva”.
Tendo o referido Acórdão do Tribunal Constitucional decidido, de forma definitiva, a supra referida questão 2) (“saber se a verba n.º 28 da TGIS é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, bem como do disposto no artigo 104.º, n.º 3, da CRP”) – concluindo, em síntese, que “uma interpretação da norma de incidência constante da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, no sentido de nela se incluírem os prédios urbanos habitacionais em propriedade total, compostos por partes suscetíveis de utilização independente e consideradas separadamente na inscrição matricial, procedendo-se para tal ao somatório do valor patrimonial tributário de cada uma das unidades independentes com afetação habitacional, não se revela violadora do princípio da igualdade tributária e do princípio da capacidade contributiva” –, cumpre, agora, ao presente Tribunal, pronunciar-se sobre as acima referidas questões 1) e 3), as quais já foram objecto de um amplo debate contraditório entre as partes, pelo que, atendendo ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, se mostra manifestamente desnecessária a promoção de novas diligências.
V – Do Direito
Em consequência, reforma-se a decisão anterior, restando agora, em face do exposto, as seguintes duas questões de direito controvertidas (que, como se notou, já foram objecto de debate contraditório): 1) saber se a sujeição a imposto de selo, nos termos do que dispõe a verba n.º 28 da TGIS, é determinada pelo VPT que corresponde a cada uma das partes do prédio com afectação habitacional, ou se, ao invés, é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia à soma de todos os VPTs dos andares que o compõem; e 2) saber se “a interpretação perfilhada pela AT do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referindo a liquidação do imposto do selo respectivo ao ano de 2012” é inconstitucional, por “ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva”.
Vejamos, então.
1) Na origem da primeira questão está a verba n.º 28 da TGIS, aditada pelo art. 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, que dispõe o seguinte:
“28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000,00 – sobre o valor patrimonial tributário para efeito de IMI: 28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1%. 28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%.”
A Lei n.º 55-A/2012, que entrou em vigor em 30/10/2012, não procedeu à qualificação dos conceitos que constam da referida verba n.º 28, nomeadamente, do conceito de «prédio com afectação habitacional». Contudo, observando o que dispõe o art. 67.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo (CIS), também aditado pela citada Lei n.º 55-A/2012, verifica-se que «às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o CIMI.» Existindo dúvida quanto ao alcance da referida verba, justifica-se, portanto, observar o que diz o CIMI.
Da leitura do CIMI percebe-se que o conceito de «prédio com afectação habitacional» remete, naturalmente, para o conceito de «prédio urbano» que está definido nos arts. 2.º e 4.º. Por seu lado, constata-se que a determinação do VPT obedece aos artigos 38.º e ss. do CIMI.
Entre as várias espécies de «prédios urbanos» (art. 6.º), menciona-se, expressamente, os «prédios urbanos habitacionais» [v. n.º 1, al. a)], acrescentando, depois, o n.º 2 do mesmo artigo do CIMI, que estes “são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.”
Se é certo que o n.º 4 do art. 2.º do CIMI refere que, “para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio”, também é certo que nada há na lei que aponte para a discriminação entre prédios em propriedade horizontal e vertical no que se refere à sua identificação como «prédios urbanos habitacionais». Daqui se conclui que partes autónomas de prédios em propriedade vertical com afectação habitacional devem ser consideradas como «prédios urbanos habitacionais».
Com efeito, não faz sentido distinguir na lei aquilo que a própria lei não distingue (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Com efeito, nada denuncia, nem na verba n.º 28, nem no disposto no CIMI, uma justificação para aquela particular diferenciação. Note-se, a este propósito, o que dispõe o artigo 12.º, n.º 3, do CIMI: “cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário.”
O critério uniforme que se impõe é, assim, o que determina que a incidência da norma em causa apenas tenha lugar quando alguma das partes, andares ou divisões com utilização independente de prédio em propriedade horizontal ou total com afectação habitacional, possua um VPT superior a €1.000.000,00. Fixar como valor de referência, para a incidência do novo imposto, o VPT global do prédio em causa, não encontra base na legislação aplicável, que é o CIMI, considerando a remissão feita pelo acima referido art. 67.º, n.º 2, do CIS.
Assim, e observando, agora, o caso em análise, constata-se que os VPTs dos andares (unidades autónomas) do prédio com afectação habitacional variam entre os €104.140,00 e os €113.780,00, pelo que qualquer um deles tem VPT inferior a €1.000.000,00. Daqui se conclui, em resultado do que foi acima referido, que sobre os mesmos não deve incidir o imposto do selo a que se refere a verba n.º 28 da TGIS, sendo, pelo exposto, ilegais os actos de liquidação aqui impugnados pelo requerente.
Com efeito, e como bem refere a DA proferida no proc. n.º 552/2015-T, de 27/1/2016, em processo idêntico ao ora em análise, “a principal questão trazida aos autos [...] é a de saber se a sujeição a Imposto do Selo (verba 28 da TGIS) de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal é determinada pelo VPT que corresponde a cada uma das divisões de utilização independente e com afetação habitacional [...], ou se é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia ao somatório de todos os VPT dos andares ou divisões de utilização independente e com afetação habitacional que o integram [...]. Efetivamente, do ponto de vista formal, bem anda a AT ao referir que um prédio constituído em propriedade horizontal é uma realidade jurídico-tributária distinta de um prédio urbano em propriedade vertical ou total. Porém, se o n.º 4 do artigo 2.º do CIMI, estabelece a ficção legal de que cada uma das frações autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal consubstancia um prédio, daí não decorre, necessariamente, que uma parte de utilização independente de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal seja considerada prédio. Se o legislador utilizou, na norma da verba 28.1 da TGIS, a expressão «prédio urbano de afetação habitacional», não se afigura legítimo que a AT nela pretenda incluir os andares ou divisões de utilização independente de prédios não constituídos em propriedade horizontal que, como a própria reconhece, não são prédios, não podendo, por isso, ser equiparados às fracções autónomas de prédios constituídos em regime da propriedade horizontal. No que respeita à determinação do valor patrimonial tributário dos prédios não constituídos em propriedade horizontal, rege o artigo 7.º, n.º 2, do CIMI, mas apenas quanto aos «prédios urbanos com partes enquadráveis em mais de uma das classificações do n.º 1 do artigo anterior», caso em que, de acordo com a sua alínea b) «(…) cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes». E é esta a única norma do CIMI em que se faz referência ao «valor [global] do prédio», sem que, contudo, este tenha qualquer relevância ao nível da liquidação do imposto. Assim, da conjugação das normas do n.º 2 do artigo 7.º e do n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIMI, resulta que, se um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal integrar exclusivamente partes ou divisões destinadas a habitação [como sucede no caso dos presentes autos], o valor [global] do prédio não equivale à soma das suas partes.”
É de notar, por último, que este entendimento (de ordem infraconstitucional), que tem sido aqui defendido, tem sido sufragado pelo STA, como se pode ver pelo recente Acórdão n.º 47/15, de 9/9/2015, no qual se assinalou, de uma forma clara, que, “tratando-se de um prédio constituído em propriedade vertical, a incidência do IS deve ser determinada, não pelo VPT resultante do somatório do VPT de todas as divisões ou andares susceptíveis de utilização independente (individualizadas no artigo matricial), mas pelo VPT atribuído a cada um desses andares ou divisões destinadas a habitação.”
2) Mostrando-se procedente o entendimento do ora requerente relativamente à questão da legalidade das liquidações (questão decidida no ponto 1)), torna-se desnecessário verificar da procedência da alegação de outros vícios apontados às mesmas.
***
VI – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
– Declarar a ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo impugnadas, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação, com todos os efeitos legais.
Fixa-se o valor do processo em €17.769,02 (dezassete mil setecentos e sessenta e nove euros e dois cêntimos), (€13.326,80 + €4442,22), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerida, no montante de €1224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 19 de Abril de 2016.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
I – Relatório
1.1. A… (doravante designado por «requerente»), tendo sido notificado das liquidações de imposto de selo (1.ª prestação) que constam dos documentos n.os 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 … e 2013 …, apresentou, no dia 7/6/2013, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 99.º do CPPT e 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 2, al. c), do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a declaração da "ilegalidade dos actos de liquidação do imposto do selo objecto da presente impugnação e a respectiva anulação, com todas as consequências legais."
1.2. Em 8/8/2013 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 1/10/2013, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido do requerente.
1.4. A 8/10/2013, o Tribunal Arbitral solicitou à AT cópia do processo administrativo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 17.º, n.º 2, do RJAT. A referida cópia foi enviada a 18/10/2013 e junta ao presente processo a 22/10/2013.
1.5. Em 21/10/2013, foi solicitado às partes que apresentassem alegações escritas. O requerente apresentou alegações em 31/10/2013, tendo reiterado a argumentação já antes exposta na sua p.i.. A requerida não apresentou alegações.
1.6. A reunião nos termos e para os efeitos do disposto no art. 18.º do RJAT realizou-se em 12/11/2013. Dá-se aqui por reproduzido o conteúdo da respectiva acta. Foi designada a data de 16/12/2013 para a prolação da decisão arbitral.
1.7. Por despacho arbitral de 15/11/2013, determinou-se a junção ao presente processo do requerimento enviado a 14/11/2013, relativo à ampliação do objecto do presente pedido, de modo a incluir as liquidações de imposto do selo - 3.ª prestação - suportadas nos documentos n.os 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 … e 2013 …, no valor total de €4442,22. As referidas liquidações foram efectuadas em 22/3/2013.
1.8. Em 18/11/2013, a ora requerida foi notificada do referido despacho, não se tendo pronunciado.
1.9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Fundamentação: A Matéria de Facto
2.1. Vem o ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) "o VPT constante da matriz, para efeitos de aplicação da norma de incidência constante da verba n.º 28 da TGIS, só pode ser o da inscrição matricial correspondente a cada uma das partes do prédio com afectação habitacional e não o correspondente à soma de todos os VPT dos andares que o compõem"; b) "os VPT dos andares que compõem o prédio em questão nestes autos oscilam entre 104.140,00 € e 113.780,00 €, sendo, portanto, todos eles inferiores a 1.000.000,00 €", pelo que "sobre os mesmos não incide o imposto do selo a que se refere a verba n.º 28 da TGIS"; c) "a interpretação da AT da norma constante da verba n.º 28 da TGIS não tem qualquer correspondência" com a letra e com o espírito da lei, nem "tem qualquer afinidade com o elemento histórico"; d) "os actos de liquidação que aqui se impugnam são ilegais, por violarem a norma de incidência prevista na verba n.º 28 da TGIS."
2.2. Invoca ainda o requerente a inconstitucionalidade: a) da verba n.º 28 da TGIS, por alegada violação dos artigos 13.º e 104.º, n.º 3, da CRP; b) da "interpretação perfilhada pela AT do artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referindo a liquidação do imposto do selo respectivo ao ano de 2012", por alegada "ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva".
2.3. Conclui o requerente pela inteira procedência do pedido e, por via dela, pede que seja "declarada a ilegalidade dos actos de liquidação do imposto do selo objecto da presente impugnação e a respectiva anulação, com todas as consequências legais."
2.4. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) que "a verba 28.1. da Tabela Geral do Imposto de Selo incide sobre os prédios urbanos com afectação habitacional"; b) que "o valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00, de que depende a aplicação dessa norma legal é, como resulta expressamente da sua letra, o valor patrimonial de cada prédio e não das suas partes distintas, ainda que susceptíveis de utilização independente"; c) que é "inconstitucional, por ofensiva do princípio da legalidade tributária, a interpretação da verba 28.1. da Tabela Geral, no sentido de o valor patrimonial de que depende a sua incidência ser apurado globalmente e não andar a andar ou andar a divisão"; d) que a tributação em causa não violou o princípio da igualdade ou o princípio da irrectroactividade dos impostos. Em síntese, a AT sustenta que o "imposto de selo da verba 28 foi correctamente liquidado".
2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) No dia 1/4/2013, a AT notificou o requerente das doze liquidações da 1.ª prestação do imposto de selo, relativas ao ano de 2012.
ii) As referidas liquidações incidiram sobre os seguintes VPTs (valores patrimoniais tributários): 1) €104.140,00 - relativo a duas inscrições matriciais, respectivamente, … – U – … – RC D e … – U – … – RC E; 2) €111.550,00 - relativo a quatro inscrições matriciais, respectivamente, … – U – … – 1 D, … – U – … – 1 E, … – U – … – 2 D e … – U – … – 2 E; 3) €112.660,00 - relativo a quatro inscrições matriciais, respectivamente, … – U – … – 3 D, … – U – … – 3 E, … – U – … – 4 D e … – U – … – 4 E; 4) €113.780,00 - relativo a duas inscrições matriciais, respectivamente, … – U – … – 5 D e … – U – … – 5 E.
iii) Todas as referidas inscrições matriciais correspondem ao prédio urbano sito na Av. …, n.º …, em … (freguesia de …). O mencionado prédio é composto por doze andares, cada um com utilização independente e afectação habitacional, não estando constituído em propriedade horizontal.
iv) O valor patrimonial dos referidos doze andares com utilização independente e afectação habitacional, que compõem o prédio urbano, foi determinado separadamente, nos termos do disposto no art. 7.º, n.º 2, al. b), do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI). O valor correspondente à soma dos VPTs dos doze andares é igual a €1.332.680,00.
v) A AT liquidou o imposto do selo previsto na verba n.º 28 e 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na redacção que lhe foi dada pelo art. 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, à taxa de 1%, considerando como "VPT – total sujeito a imposto" o já referido valor de €1.332.680,00.
vi) Por despacho arbitral de 15/11/2013, determinou-se a junção ao presente processo do requerimento enviado a 14/11/2013, relativo à ampliação do objecto do presente pedido, de modo a incluir as liquidações de imposto do selo - 3.ª prestação - suportadas nos documentos n.os 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 …, 2013 … e 2013 …, no valor total de €4442,22. As referidas liquidações foram efectuadas em 22/3/2013. A 18/11/2013, a requerida foi notificada do despacho arbitral de 15/11/2013, não se tendo pronunciado sobre o mesmo.
vii) A ampliação do objecto do pedido determinou a alteração do valor do processo, o qual passou a ser de €17.769,02 (€13.326,80 + €4442,22).
2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
III – Fundamentação: A Matéria de Direito
No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: 1) saber se a sujeição a imposto de selo, nos termos do que dispõe a verba n.º 28 da TGIS, é determinada pelo VPT que corresponde a cada uma das partes do prédio com afectação habitacional, ou se, ao invés, é determinada pelo VPT global do prédio, o qual corresponderia à soma de todos os VPTs dos andares que o compõem; 2) saber se a verba n.º 28 da TGIS é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, bem como do disposto no artigo 104.º, n.º 3, da CRP; e 3) saber se "a interpretação perfilhada pela AT do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referindo a liquidação do imposto do selo respectivo ao ano de 2012" é inconstitucional, por "ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva".
Vejamos, então.
1) Na origem da primeira questão está a verba n.º 28 da TGIS, aditada pelo art. 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, que dispõe o seguinte:
"28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000,00 – sobre o valor patrimonial tributário para efeito de IMI: 28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1%. 28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5%."
A Lei n.º 55-A/2012, que entrou em vigor em 30/10/2012, não procedeu à qualificação dos conceitos que constam da referida verba n.º 28, nomeadamente, do conceito de «prédio com afectação habitacional». Contudo, observando o que dispõe o art. 67.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo (CIS), também aditado pela citada Lei n.º 55-A/2012, verifica-se que «às matérias não reguladas no presente código respeitantes à verba 28 da Tabela Geral aplica-se subsidiariamente o CIMI.» Existindo dúvida quanto ao alcance da referida verba, justifica-se, portanto, observar o que diz o CIMI.
Da leitura do CIMI percebe-se que o conceito de «prédio com afectação habitacional» remete, naturalmente, para o conceito de «prédio urbano» que está definido no respectivo art. 2.º e 4.º. Por seu lado, constata-se que a determinação do VPT obedece ao disposto nos artigos 38.º e ss. do mesmo Código.
Entre as várias espécies de «prédios urbanos» (art. 6.º), menciona-se, expressamente, os «prédios urbanos habitacionais» [v. n.º 1, al. a)], acrescentando, depois, o n.º 2 do mesmo artigo do CIMI, que estes "são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins."
Se é certo que o n.º 4 do art. 2.º do CIMI refere que, "para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio", também é certo que nada há na lei que aponte para a discriminação entre prédios em propriedade horizontal e vertical no que se refere à sua identificação como «prédios urbanos habitacionais». Daqui se conclui que partes autónomas de prédios em propriedade vertical com afectação habitacional devem ser consideradas como «prédios urbanos habitacionais».
Com efeito, não faz sentido distinguir na lei aquilo que a própria lei não distingue (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). Acresce que distinguir, neste contexto, entre prédios constituídos em propriedade horizontal e em propriedade total seria uma "inovação" sem um suporte legal associado, até porque, como se tem aqui afirmado, nada denuncia, nem na verba n.º 28, nem no disposto no CIMI, uma justificação para essa particular diferenciação. Note-se, exemplarmente, o que diz o art. 12.º, n.º 3, do CIMI: "cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário."
O critério uniforme que se impõe é, assim, o que determina que a incidência da norma em causa apenas tenha lugar quando alguma das partes, andares ou divisões com utilização independente de prédio em propriedade horizontal ou total com afectação habitacional, possua um VPT superior a €1.000.000,00. Fixar como valor de referência para a incidência do novo imposto o VPT global do prédio em causa, como pretendia a ora requerida, não encontra base na legislação aplicável, que é o CIMI, dada a remissão feita pelo citado art. 67.º, n.º 2, do CIS.
Por último, como já se lembrou em diversas Decisões Arbitrais (vd. DA n.º 48/2013-T e DA n.º 50/2013-T), não se vislumbra, nos trabalhos relativos à discussão da proposta de lei n.º 96/XII na Assembleia da República, a invocação de uma ratio interpretativa distinta da aqui apresentada. Com efeito, justificou-se tal medida, apelidada de "taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor", com a necessidade de cumprir com os princípios da equidade social e da justiça fiscal, onerando mais significativamente os titulares de propriedades com elevado valor destinadas a habitação, e, nessa medida, fazendo incidir a nova "taxa especial" sobre as "casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros."
Ora, se tal lógica parece fazer sentido quando aplicada a «habitação» - seja ela «casa», «fracção autónoma» ou «parte de prédio com utilização independente» / «unidade autónoma» -, porque se supõe uma capacidade contributiva acima da média e, nessa medida, se justifica a necessidade de realização de um esforço contributivo adicional, pouco sentido faria passar a desconsiderar os apuramentos "unidade a unidade" quando só através do somatório dos VPTs das mesmas (porque detidas pelo mesmo indivíduo) é que se superaria o milhão de euros.
Acresce, ainda, que admitir a diferenciação de tratamento poderia produzir resultados incompreensíveis do ponto de vista jurídico e atentatórios dos objectivos que o legislador dizia ter para aditar a verba n.º 28. A título exemplificativo, suponha-se a seguinte hipótese, que parece plausível à luz da interpretação que foi feita pela ora requerida: um cidadão que é proprietário de um prédio constituído em propriedade total destinado a habitação, sendo o valor global das unidades autónomas igual ou superior a €1.000.000,00 e o VPT de cada uma inferior a €1.000.000,00, sujeita-se a uma tributação anual de 1% desse valor (como sucedeu na situação em análise); já um outro cidadão que detenha um prédio com as mesmas exactas características do anterior mas que tenha sido constituído em propriedade horizontal, sendo, igualmente, o valor global das fracções autónomas igual ou superior a €1.000.000,00 e o VPT de cada uma inferior a €1.000.000,00, não será sujeito a tributação nos termos da mencionada verba n.º 28...
Por outro lado, poder-se-ia perguntar: se tais fracções têm o mesmo proprietário, por que é que não faz sentido agregar, para efeitos de tributação, os respectivos VPTs? A resposta pode ser ilustrada através de uma outra hipótese: um cidadão que é proprietário de um prédio em propriedade horizontal, em que cada uma das suas 20 fracções possui um VPT inferior a €1.000.000,00, seria sujeito a tributação se – caso se admitisse tal agregação – o VPT global ultrapassasse aquele valor; já um outro cidadão com idênticas 20 fracções distribuídas por 5, 10 ou 20 prédios não estaria sujeito a qualquer tributação nos termos da referida verba n.º 28...
Se esta linha de raciocínio faz sentido – justificando-se, portanto, a não agregação dos VPTs das fracções de prédios em propriedade horizontal –, não se vê razão plausível para que a mesma não seja aplicada às unidades autónomas de prédios em propriedade total.
Observando, agora, o caso em análise, constata-se que os VPTs dos andares (unidades autónomas) do prédio com afectação habitacional variam entre €104.140,00 e €113.780,00, pelo que qualquer um deles é inferior a €1.000.000,00. Daqui se conclui, em resultado do que foi referido, que sobre os mesmos não pode incidir o imposto do selo a que se refere a verba n.º 28 da TGIS, sendo, portanto, ilegais os actos de liquidação impugnados pelo requerente.
2) Do que foi anteriormente dito, depreende-se, em síntese, que a interpretação feita pela AT não é conforme à Lei e à Constituição, por violação do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP), bem como do que dispõe o art. 104.º, n.º 3, da CRP. Não há dúvida de que uma interpretação mais conforme à Lei e à Constituição, como a que se expôs anteriormente, pode permitir a protecção do mencionado princípio. Mas também é evidente que subsistem, no caso em análise, motivos suficientes para se considerar que a referida verba n.º 28, ainda assim, continuaria a padecer de inconstitucionalidade por violação do citado princípio da igualdade.
Com efeito, como justificar, inclusive à luz de princípios de equidade social e justiça fiscal defendidos pelo legislador – note-se, a este respeito, que o comunicado do Conselho de Ministros de 20/9/2012 referia que a medida, entre outras, era fundamental "para reforçar o princípio da equidade social na austeridade" –, que esta tributação incida apenas sobre o património imobiliário habitacional e não sobre o património imobiliário não habitacional? E como compatibilizar esta discriminação com o que se dispõe no art. 104.º, n.º 3, da CRP?
Atendendo ao acima exposto, conclui-se que a verba n.º 28, ao abrir a possibilidade de se tributar de modo diferenciado a titularidade de património imobiliário de igual valor detido por pessoas diferentes em razão de critérios que podem contender, sem a mínima necessária justificação, com, nomeadamente, o princípio da capacidade contributiva (como seja o caso da "dispersão" ou "concentração" do património imobiliário habitacional de cada um), não pode deixar de ser considerada inconstitucional, dada a violação do princípio da igualdade.
3) Por último, o requerente alega, no ponto 69.º da p.i., que "a interpretação perfilhada pela AT do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, referindo a liquidação do imposto do selo respectivo ao ano de 2012, conduz a um resultado inconstitucional – ofensa da proibição da obrigação de pagamento de impostos de natureza retroactiva".
Mostrando-se procedente o entendimento do requerente quanto às questões anteriores, torna-se desnecessário verificar da procedência da alegação de outros vícios das liquidações ora impugnadas.
***
IV – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos actos de liquidação impugnados.
Fixa-se o valor do processo em €17.769,02 (dezassete mil setecentos e sessenta e nove euros e dois cêntimos), (€13.326,80 + €4442,22), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerida, no montante de €1224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2013.
O Árbitro
Miguel Patrício
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.