Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 141/2018-T
Data da decisão: 2018-12-04  IUC  
Valor do pedido: € 12.691,35
Tema: IUC – Incidência subjetiva – locação financeira e operacional.
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Decisão Arbitral

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A..., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva nº..., domiciliada na Rua..., ..., Lisboa, área do ... Serviço de Finanças (SF) de Lisboa, vem, na qualidade de sociedade incorporante, por fusão, da sociedade B...– INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, SA, doravante “B...”, anterior pessoa coletiva nº..., que tinha sede na mesma morada, apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral, para impugnar o despacho de indeferimento da reclamação Graciosa, proferido em 27.11.2017 pela Direção de Finanças de Lisboa, deduzida contra 161 autoliquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) e respetivos juros compensatórios (JC), relativas aos anos de 2016 e 2017, no valor global de € 12.691,35.
  2. Foi apresentado em 23-03-2017 o pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo. 102º do CPPT, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida ou AT).
  3. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, já supra identificado, apresentada contra 161 liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) e juros compensatórios (JC), relativas aos anos de 2016 e 2017, pugnando pela ilegalidade das liquidações de imposto, com a consequente anulação e reembolso dos montantes indevidamente pagos.
  4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 26-03-2018. A requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a ora signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, que oportunamente comunicou a aceitação da designação. As partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento. Deste modo, e em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 05-06-2018.
  5. Ainda em 05-06-2018 foi proferido despacho arbitral, nos termos do disposto no artigo 17º do RJAT, e notificada a requerida para apresentar resposta, o que veio a suceder em 2 de julho de 2018. A requerida juntou então, também, o Processo Administrativo (PA) que se encontra junto aos autos.
  6. Em 18-09-2018 foi proferido despacho arbitral, no seguimento do requerido pela AT na resposta apresentada, auscultando a requerente sobre a possibilidade de dispensa da reunião prevista no artigo 18º e dispensa da inquirição de testemunhas dado que a matéria em discussão nos autos se afigura como exclusivamente de direito. A este despacho arbitral veio a requerente responder que nada tinha a opor à referida dispensa, prescindindo da inquirição das testemunhas indicadas. Nesta conformidade, foi proferido despacho arbitral, em 23-10-2018, que fixou prazo de 10 dias, igual e sucessivo, para as partes produzirem alegações por escrito. Neste despacho foi, ainda, indicada como data para prolação da decisão arbitral o dia 4 de dezembro de 2018.

 

  1.  A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente pretende a declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa e das respetivas liquidações subjacentes, para o que alega, em síntese, o seguinte:

 

  1. Com efeito, não obstante ter procedido àquele pagamento, a A... e a Requerente opuseram-se e opõem-se a tais autoliquidações, na medida em que não era a A... o sujeito passivo do IUC e inerentes JC aqui em discussão.
  2. Segundo a AT, a A... deve IUC e JC com referência aos veículos discriminados no documento 4 em anexo ao pedido arbitral e aos anos de 2016 e 2017, no total de € 12.691,35, com base nos artigos 3º, nº 1, 4º, nº 2, 6º, nºs 1 e 3 do CIUC. Alega, todavia, a Requerente que as liquidações, bem assim como o despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada. Segundo a Requerente, o despacho de indeferimento da reclamação graciosa aqui impugnado, bem como aquelas autoliquidações de IUC e JC, padecem de erro nos pressupostos de facto e de vício de violação de lei, dado que todas as viaturas referenciadas nas liquidações se encontravam contratualizadas com os respetivos locatários, por contratos de locação financeira e operacional, em vigor ao tempo dos factos (2016 e 2017), pelo que deve ser declarada a ilegalidade daquele despacho e daquelas autoliquidações, com a sua consequente anulação.
  3.  Alega, ainda, a Requerente que a AT/DF de Lisboa, no indeferimento daquela Reclamação, se baseou- única e exclusivamente na presunção do Registo Automóvel. Com efeito, teve por base única e exclusivamente a informação constante do Registo Automóvel (IRN – Instituto de Registos e Notariado, e IMTT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres), designadamente a falta de “averbamento” de qualquer locatário e a circunstância das viaturas estarem registadas em nome da A... nas datas da exigibilidade do IUC (datas de aniversário das viaturas em relação à data da matrícula inicial).
  4. Foram anexados à Reclamação Graciosa os seguintes documentos: “Documento n.º 1: Quadro resumo relativo às 161 Autoliquidações do IUC respeitantes aos veículos identificados pelo respetivo número de matrícula, no qual se pode verificar a alocação das viaturas aos respetivos contratos de locação financeira e de locação operacional com promessa de compra e venda; Documento n.º 2: Dossier referente a cada uma das viaturas em análise que inclui cópia dos contratos de locação financeira bem como de locação operacional com promessa de compra e venda, consoante os casos”.
  5. Sendo certo, alega a Requerente, que nos contratos de locação financeira e de locação operacional com promessa de compra e venda (renting) estão claramente identificados os utilizadores dos veículos em questão, e que, nos termos do artigo 58º da LGT, “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”. O despacho aqui impugnado foi antecedido do projeto de decisão de indeferimento, cuja cópia a Requerente juntou em anexo ao pedido arbitral (documento nº2), para efeitos do eventual exercício do direito de audição.
  6. A Requerente convoca em defesa da sua posição numerosa jurisprudência arbitral, tendo junto em anexo ao pedido arbitral deduzido nos autos algumas das invocadas decisões arbitrais e, ainda, alguma jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Conclui, peticionando a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e, em consequência, das liquidações de IUC e de JC subjacentes.

 

  1. Segundo a Requerida AT, a Requerente devia IUC e JC com referência aos veículos discriminados na PI, por ser a titular no registo automóvel doesses veículos, em conformidade com o disposto nos artigos 3º nº 1, 4º nº 2, 6º nº 1 e 3 do CIUC. Assim, na ótica da AT, por constar no registo automóvel como proprietária das viaturas em causa é esta a devedora do imposto. Do seu ponto de vista, o legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados. Realça que o legislador não usou a expressão “presume-se”, como poderia ter feito, caso fosse sua intenção estabelecer uma presunção. Alega, ainda, que a Requerente não cumpriu com a obrigação prevista no artigo 19º do CIUC, pelo que não tem dúvidas sobre a legalidade das liquidações de imposto em causa e pugna pela sua manutenção com todas as consequências legais. Tece alguns considerandos sobre a força da jurisprudência arbitral invocada pela Requerente e, em conclusão, pugna pela validade dos atos tributários impugnados e pela improcedência total dos pedidos.

 

Em síntese, estas são as posições em confronto nos autos, das quais emerge a questão de direito fundamental a decidir e que é a de saber quem está obrigado a pagar o IUC das viaturas identificadas nas liquidações e no despacho de indeferimento da reclamação graciosa proferido e aqui impugnado, tendo aquelas sido objeto de contratos de locação financeira e operacional, nos períodos de tributação de 2016 e 2017.

 

II – Saneamento

 

9. O tribunal é competente e foi regularmente constituído.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO

 

10. Matéria de facto

O Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida, consideram-se provados os seguintes factos:

Assim, face aos elementos constantes dos autos, aos meios de prova documental juntos aos autos pela Requerente e constante do processo Administrativo (PA) junto aos autos pela Requerida, importa firmar a matéria de facto provada e não provada.

 

11. FACTOS PROVADOS

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A requerente A... (A...) incorporou B..., por fusão transfronteiriça, com transmissão global do património (ativos e passivos), afetação do mesmo património à Requerente (sucursal em Portugal) e consequente extinção da A... .
  2. A A... é uma Instituição Financeira que, no âmbito do seu objeto social, pratica operações permitidas aos Bancos, com a exceção da receção de depósitos, celebrando com os seus clientes contratos de Aluguer de Longa Duração (ALD), renting e contratos de Locação Financeira (leasing) de veículos automóveis, contratos de aluguer de veículo sem condutor com promessa de compra e venda, renting (contratos de locação operacional com promessa de compra e venda), contratos de locação financeira e contratos de financiamento.
  3. A A..., no âmbito da sua atividade, adquire viaturas novas aos importadores nacionais C... e D... e por norma faz locações – leasing (locação financeira), renting (locação operacional) ou ALD (aluguer de longa duração) - dessas mesmas viaturas a favor de terceiros.
  4. Por consulta na sua área reservada Portal das Finanças, a requerente constatou a existência de IUC em fase de autoliquidação referente às viaturas identificadas nos documentos nºs 4 a 7, juntos em anexo ao pedido arbitral, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
  5. Procedeu à autoliquidação dos referidos valores de liquidação de IUC e respetivos juros compensatórios, que no total perfazem 161 liquidações e um valor global de €12.691,35 (doze mil, seiscentos e noventa e um euros e trinta e cinco cêntimos);
  6. A requerente pagou os montantes de todas as liquidações referidas (IUC e JC) conforme resulta dos documentos juntos aos autos, ao procedimento de reclamação graciosa e ao processo administrativo (PA);
  7. A requerente apresentou, em 11-07-2017, Reclamação Graciosa que correu termos no Serviço de Finanças competente com o nº de processo ...2017...;
  8. Foram anexados à Reclamação Graciosa os seguintes documentos:
    1. Documento n.º 1: Quadro resumo relativo às 161 Autoliquidações do IUC respeitantes aos veículos identificados pelo respetivo número de matrícula, no qual se pode verificar a alocação das viaturas aos respetivos contratos de locação financeira e de locação operacional com promessa de compra e venda;
    2.  Documento n.º 2: Dossier referente a cada uma das viaturas em análise que inclui cópia dos contratos de locação financeira bem como de locação operacional com promessa de compra e venda, consoante os casos, nos quais estão identificados os locatários e utilizadores dos veículos em questão.

 

  1. Da documentação junta ao procedimento de reclamação graciosa e aos presentes autos (constante do pedido arbitral e do processo administrativo junto pela AT), constata-se que nas datas da exigibilidade do IUC respeitante às viaturas em causa, a A... já havia locado esses veículos a favor de terceiros, através de contratos de locação financeira ou contratos de locação operacional com promessa de compra e venda, como resulta do teor do documento nº 5 junto em anexo ao pedido arbitral cujo teor se dá como inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais;
  2. A Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, para efeitos de exercício do seu direito de audiência prévia;
  3. Foi proferida decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, notificada à requerente em 27-11-2017, com os fundamentos constantes do documento nº 2 junto em anexo ao pedido arbitral e que se dá por integralmente reproduzido;
  4. O fundamento do indeferimento assenta na informação constante do Registo Automóvel (IRN – Instituto de Registos e Notariado, e IMTT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres), designadamente a falta de “averbamento” de qualquer locatário e a circunstância das viaturas estarem registadas em nome da A... nas datas da exigibilidade do IUC (datas de aniversário das viaturas em relação à data da matrícula inicial).

       n) A Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em 23-03-2018.

 

10.1     Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.

 

10.2.    A matéria dada por provada e não provada teve como base os documentos juntos ao processo pela Requerente e ao processo administrativo junto pela Requerida, bem assim como os factos que resultam da concordância expressa das partes quanto à matéria de facto, assumindo a sua dissonância apenas quanto à questão de direito subjacente.

 

 

11. Matéria de direito

 

11. Fixada a matéria de facto, importa conhecer da questão de direito essencial suscitada pela Requerente, a qual consiste em apreciar os termos da configuração da incidência subjetiva do IUC à luz do disposto no artigo 3º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), nomeadamente, no caso em que as viaturas se encontrem a ser utilizadas por terceiros titulares de contratos de locação financeira, locação operacional ou renting, bem assim como a questão de saber se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel, ou se, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no art. 73.º, da Lei Geral Tributária. Em conexão com esta questão essencial sucedem-se as questões de saber se, tratando-se de mera presunção, como poderá esta ser ilidida pelo sujeito passivo, a quem cabe o ónus da prova.

Sobre esta matéria é já abundante e bastante definida a jurisprudência arbitral vertida em diversas decisões arbitrais, salientando que em cada caso há que atender às especificidades próprias resultantes da matéria de facto provada.

Por último, dependendo da decisão das questões anteriores, importará decidir a questão colocada pela Requerente quanto a juros indemnizatórios. Vejamos pois.

 

12 A título prévio, refira-se que o regime de contencioso previsto no RJAT é de mera legalidade, visando-se apenas a declaração de ilegalidade de atos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do seu artigo 2.º. Por isso, tem de se aferir da legalidade dos atos impugnados tal como foram praticados pela AT, com a fundamentação que neles foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros atos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o ato praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o ato cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo jurisdicional.

Por outro lado, deve mais uma vez assinalar-se que os Tribunais (em que se incluem obviamente os arbitrais) não têm que apreciar todos os argumentos formulados pelas partes, mas tão só os determinantes para a decisão da causa. (Cfr., inter alia, Ac do Pleno da 2ª Secção do STA, de 7 junho 95, recurso 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, págs. 36-40 e Ac STA – 2ª Série – de 23 abril 97, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094).

 

Posto isto, cumpre decidir as questões de direito essenciais à decisão final a proferir sobre a (i)legalidade dos atos impugnados: o indeferimento da Reclamação Graciosa e as liquidações subjacentes.

 

  1. Quanto à incidência subjetiva:

 

13 Sobre esta questão, este tribunal segue a numerosa a Jurisprudência arbitral tributária, maioritária, vertida em numerosos processos arbitrais. [Cfr, designadamente, decisões proferidas nos processos do CAAD nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013, 170/2013, 154/2014, 212/2014 e, mais recentemente, nos processos nºs 539/2016-T, 580/2016-T, 623/2016-T, 109/2017-T; 145/2017-T, 185/2017-T, todas publicadas em www.caad.org.pt]. A estes acrescem, entre outras, as decisões arbitrais invocadas pela Requerente no seu pedido arbitral, das quais juntou aos autos as seguintes: Decisão arbitral proferida no processo nº455/2017 T; 374/2017 T; 7/2018, T.

 

Vejamos pois:

 

Sobre esta questão dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação), o seguinte:

“Artigo 3º

Incidência subjetiva

1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Quanto à interpretação da norma jurídico fiscal estabelece, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

Nesta conformidade, promovendo a necessária atividade interpretativa das normas em presença, há que escrutinar a melhor interpretação[1] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz dos princípios hermenêuticos fundamentais. Assim, e em primeiro lugar, deve atender-se ao elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

A questão que se coloca é a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de “presunção” ao dispositivo legal em apreço.

A nosso ver e ao contrário do que defende a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.

Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”. Veja-se, a título de exemplo, no âmbito do direito civil, - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”. Também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…) as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”. Ora, também no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do artigo. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.

Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

De resto, sobre esta questão é já tão abundante a jurisprudência arbitral, acompanhada pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores. Trata-se, pois, de presunção ilidível.

 

Acresce que esta conclusão é igualmente reforçada quando revisitados os demais elementos de interpretação, ou seja, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

Dissertando sobre a atividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento. O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “(Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. FRANCESCO FERRARA, Ensaio, pp. 134/135).

Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis” (loc. cit., p.128).

 

Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos elementos interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).

 

Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas. O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir dela, o “pensamento legislativo”. Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

 

No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16).

E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “(...) este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo(...)” (loc. cit. p. 189/190). Logo a seguir, chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).

Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “(...)representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa(...)” (loc. cit., p.190).

Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.

No que respeita à “unidade do sistema jurídico”, BAPTISTA MACHADO considera este o fator interpretativo mais importante: “a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191). É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).

Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

 

 É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “(...)este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário(...)” (loc.cit., p. 183).

Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (...)” (Ensaio, p. 27).

 

Em conclusão, através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular a matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.

 

14 – Constata-se que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar (para o caso que ora interessa) o verdadeiro e efetivo proprietário[2] e utilizador do veículo, por força do princípio da equivalência subjacente ao IUC. Assim, o legislador, ao adotar pelo princípio da equivalência, optou por onerar o sujeito utilizador da viatura na medida do custo provocado devido às externalidades negativas provocadas pelos veículos motorizados. Na letra da lei estabelece apenas a presunção de que o proprietário constante no Registo automóvel, coincida também com o seu utilizador e que o registo evidencie a realidade afeta à utilização do veículo. Esta opção de política extrafiscal justifica, ainda, a solução vertida no nº 2 do art.º 3º do CIUC quanto aos locatários, eleitos pelo legislador como os sujeitos onerados pelo pagamento do imposto mesmo durante a vigência de um contrato de locação do qual pode não resultar, necessariamente, a aquisição da propriedade da viatura. Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.

Ora, a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[3]. Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível. Pelo que, também a interpretação de natureza racional ou teleológica nos conduz a idêntica conclusão.

 

Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.

 

15 Posto isto, há que atender, por último, mas com enorme acuidade para o caso concreto, o disposto no art. 73º da LGT, o qual estabelece que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.

 

Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção ilidível, a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida ou que a sua utilização se encontra, ao abrigo de contrato de locação ou equiparado, cedida a outrem.

            Esta última parte é, no caso dos autos, particularmente relevante atento o facto comprovado pela existência de contratos de locação financeira e equivalentes a favor de terceiros clientes da requerente. E, atendendo ao disposto no nº2 do artigo 3º não há dúvida qu, provada a existência desse tipo de contratos, são os lactários tratados como equiparados a proprietários para os efeitos de incidência subjetiva de IUC. Ora, sobre o disposto neste nº 2 não pode subsistir qualquer dúvida razoável, dada a clareza da lei, sobre os devedores do IUC, no caso, os locatários utilizadores das viaturas.

            Porém, no caso dos autos, como resulta da matéria assente, verifica-se que não existia qualquer averbamento no registo automóvel que identificasse os titulares dos respetivos contratos de locação ou equivalente. Essa falha é imputável à Requerente, sem margem para dúvida. Mas, ainda assim, na falta de averbamento no registo automóvel, estamos remetidos para o disposto no nº1 do referido artigo 3º e, consequentemente, estamos perante uma presunção ilidível.

            Ora, a emissão das autoliquidações baseou-se na obrigação gerada automaticamente pelo sistema constante no Portal das Finanças, que levou a Requerente a proceder à respetiva autoliquidação. Sendo que até esse momento o SF não tinha conhecimento, nem podia ter, dos verdadeiros utilizadores das viaturas. Tanto mais que, à falha de averbamento constante do registo automóvel acresce o incumprimento da obrigação prevista no artigo 19º do CIUC. Apenas com a apresentação da Reclamação graciosa a Requerente dá conhecimento e fornece toda a documentação e informação relativa à situação contratual das viaturas automóveis objeto de tributação em IUC, e identifica os respetivos locatários.

A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador - sujeito ativo do facto sujeito a registo (cfr. artº.8-B – 1, do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artº. 29º, do DL nº 54/75, de 12/2, conjugado com o artº.5º-1/a), deste último diploma).

            No entanto, o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que, em virtude da sua atividade comercial, procedam com regularidade à transmissão da propriedade de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no artº.25º-1/d), do DL nº 55/75, de 12/2 (versão resultante do DL nº 20/2008, de 31/1), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

            O IUC está legalmente configurado para funcionar em integração com o registo automóvel, o que se infere, desde logo, do citado artº 3º-1, do C.I.U.C., norma onde se estabelece que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, mais acrescentando que se consideram como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.   

            O afastamento da presunção legal obedece à regra constante do artº. 347º, do C. Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova - a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos (cfr. art 346º, do C.Civil) que torne os factos presumidos duvidosos;  pelo contrário, ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais.

 

Vejamos, pois, se dessa forma alcançou elidir a presunção constante no nº1 do artigo 3º do CIUC.

 

 

  1. Do ónus da prova e dos meios de prova idóneos para elidir a presunção

 

16 – Passando agora à questão do ónus da prova, não resta dúvida que cabe ao sujeito passivo apresentar meios idóneos para promover a prova necessária ao afastamento da presunção. Pode alcançar esse desiderato por duas vias, ou pela “prova do contrário”, ou seja, a prova de que não era o proprietário à data do facto tributário, ou pela prova de quem era, à data do facto tributário, o locatário e utilizador da viatura em causa, em virtude de contrato de locação financeira ou operacional ou afim celebrado e em vigor ao momento dos factos tributários.

Vejamos como poderá alcançar este objetivo.

 

17 - Importa, antes de mais, notar que o Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, com a última alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Janeiro, dispõe no seu art.º 9.º que são, nomeadamente, obrigações do locador as de conceder o gozo do bem para os fins a que se destina e o de vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato, conforme, respetivamente, as alíneas b) e c) do seu n.º 1.

Por outro lado, face ao estabelecido no art.º 10 º do referido diploma legal, nomeadamente nas alíneas a) dos seus n.ºs 1 e 2, ficamos a saber que são obrigações do locatário pagar as rendas e usar e fruir o bem locado, o que significa que, na vigência de um contrato de locação financeira que tenha por objeto um veículo, só o locatário tem o seu gozo exclusivo.

 

18 - As obrigações do locatário, à luz das referidas normas, apontam, claramente, no sentido de que é esse sujeito contratual que tem o exclusivo gozo do veículo objeto do contrato de locação financeira, sendo ele que o usa como se fora o verdadeiro proprietário desse bem. O locador é, assim, o proprietário formal do veículo, não tendo, consequentemente, qualquer potencial poluidor, o que significa que os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis devem ser assumidos pelos seus reais utilizadores, como custos que só eles deverão suportar. O locatário financeiro, sendo equiparado a proprietário no sentido de ser sujeito passivo do imposto (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC), tem o pleno uso e fruição do veículo, conforme legalmente estabelecido, pelo que é o seu verdadeiro utilizador e efetivo gerador dos danos ambientais, devendo, assim, responder pelo correspondente imposto, sendo este o entendimento que se deve colher do disposto no n.º 2 do art.º 3.º do CIUC, o que, a nosso ver, faz todo o sentido.

Trata-se de concretizar e dar sentido útil ao princípio da equivalência, que informa e enforma o atual CIUC, princípio que concretiza a ideia, subjacente ao princípio do poluidor - pagador, de que quem polui deve, por isso, pagar.

 

19. Em qualquer dos casos referidos nos autos (locação financeira, locação operacional, renting ou financiamento com reserva de propriedade) são os locatários considerados como sujeitos passivos do imposto. Com efeito, o locatário financeiro está expressamente previsto no n.º 2 do art.º 3.º do CIUC, como sendo o sujeito passivo do IUC, o mesmo sucedendo com “outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”. Pelo que, face ao que vem exposto e em conformidade com numerosa jurisprudência arbitral já supra indicada, é entendimento deste Tribunal Arbitral que, se vigorar um contrato de locação financeira, ou de locação operacional, renting, aluguer de veículo sem condutor (ALD) com promessa de compra e venda, na data da exigibilidade do imposto, que tenha como objeto um veículo automóvel, os sujeitos passivos desse imposto são, à luz do disposto no n.º 2 do art.º 3º do CIUC, os locatários, e não o locador.

 

20. Chegados aqui, importa ainda referir que o disposto no art.º 19.º do CIUC, quando, justamente, para efeitos do art.º 3.º do referido Código, ou seja, para efeitos da incidência subjetiva, vem impor às entidades que procedem à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos a obrigação de fornecer à AT os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados, o que revela, nomeadamente, que, para efeitos da referida incidência, se pretendeu conhecer quem são, afinal, os reais utilizadores dos veículos locados, para que sejam eles, e não o locador a suportar o imposto único de circulação, o que, aliás, se revela em total sintonia com o princípio da equivalência, enquanto princípio estruturante do CIUC.

Já quanto ao incumprimento da obrigação de informação prevista no artigo 19º do CIUC é pacífico que embora possa ser eventual fundamento para aplicação de alguma coima ou penalidade infracional, daí não poderá resultar como consequência a obrigação de pagar o imposto pelo proprietário formal, ou seja, pelo locador.

 

21. Por último, os contratos de locação apresentados pela Requerente em anexo ao processo de Reclamação graciosa não podem deixar de ser considerados como meios idóneos e com força bastante para fazer prova da qualidade dos locatários, nomeadamente, para efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 3.º do CIUC, ou seja, para efeitos da sua vinculação ao pagamento do imposto em causa. Não existem, aliás, quaisquer elementos que permitam entender que os dados inscritos em tais contratos não correspondem à verdade contratual, sendo também certo que a lei, no caso, o n.º 1 do art.º 75.º da LGT, atribui a esses documentos uma presunção de veracidade.

 

22. Assim sendo, e por tudo o que vem exposto, a AT, quando entende que, no caso, a Requerente é o sujeito passivo do IUC, sem considerar devidamente o disposto no n.º 2 do art.º 3.º do CIUC, nem ter em conta a vigência dos contratos de locação financeira, de locação operacional e de aluguer de veículo sem condutor com promessa de compra ou outro contrato de financiamento com reserva de propriedade, à data da exigibilidade do IUC, está a proceder à liquidação ilegal desse imposto, assente na errada interpretação e aplicação da referida norma de incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação, o que configura a prática de um ato tributário ilegal por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que conduz à anulação dos correspondentes atos tributários, por violação de lei.

 

23. Acresce que as presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa, revisão de ato tributário ou de impugnação judicial dos atos tributários, que nelas se baseiem.

No caso dos autos, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pela apresentação de Reclamação graciosa, seguido do pedido arbitral, sendo que em ambos invocou e juntou prova para demonstrar que só era o proprietário formal das viaturas à data em que ocorreu o facto tributário, em virtude dos contratos de locação em vigor, identificando todos os locatários e titulares de direitos de utilização sobre as viaturas. Pelo que, os documentos juntos aos autos de reclamação graciosa e ao presente pedido arbitral, que serviram de base à matéria de facto assente, nos termos supra fundamentados, constitui meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC, em que assentam as liquidações tributárias cuja anulação é peticionada nestes autos.

Os elementos documentais juntos aos autos gozam da presunção de veracidade que lhes é conferida pelo sobredito art.º 75º, nº 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas com base exclusivamente, como a Lei prevê, no registo automóvel.

 

24. A AT, quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontram registados, sem considerar o disposto no art.º 3.º, n.º 1 e 2 do CIUC, e ao desconsiderar os elementos probatórios que lhe foram apresentados, como resulta, designadamente, do processo administrativo tributário, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, relativamente aos veículos atrás mencionados, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação, constantes do referido art.º 3.º do CIUC, o que configura a prática de atos tributários falhos de legalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, determinantes da anulação dos correspondentes atos tributários, por violação de lei.

 

  1. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios:

 

25 - No pedido arbitral vem a Requerente peticionar, como consequência da ilegalidade e anulação das liquidações impugnadas, o direito a juros indemnizatórios.

Há, assim, que apurar se, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da Requerente (Cfr. art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT), deve proceder.

Quanto a esta questão, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.  A este respeito, responde a AT com a invocação da jurisprudência vertida na decisão arbitral proferida no processo n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação semelhante à ora em apreciação) ou seja, que “(...) o direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”[4]

Quanto a esta questão, há que apurar, se os motivos de anulação se fundam ou não em erro imputável aos serviços.

Vejamos, pois, se assiste razão à Requerente nesta matéria.

 

No caso dos presentes autos foi a Requerida que procedeu, num primeiro momento, por sua iniciativa, às autoliquidações (evitando o prejuízo e perda de direitos decorrentes da existência de dívidas fiscais registadas no sistema). Procedeu seguidamente ao seu pagamento e, só posteriormente, veio em sede de procedimento de reclamação graciosa, expor as suas razões de facto e de direito pelas quais reclama a anulação das liquidações, previamente autoliquidadas e pagas. Tanto assim é que, a Requerente só então se deu conta da falha do averbamento dos locatários no respetivo registo automóvel, o que era de sua exclusiva responsabilidade. Não pode ser assacada responsabilidade à AT por essa falha.

Em conformidade com esta factualidade não se pode concluir, desde logo pela existência de erro imputável à AT nas liquidações em crise.

Porém, após a apresentação do pedido de Reclamação Graciosa pela Requerente, a AT teve oportunidade de verificar a factualidade correta e concluir que o imposto previamente pago era indevido. Nesse momento tendo em conta as informações de que dispunha, devia ter reparado o erro. Ao não o fazer e tendo decidido como decidiu pela improcedência da reclamação, tornou-se responsável a partir desse momento pelo pagamento de juros indemnizatórios, a calcular, note-se, apenas após a data em que tomou conhecimento dessa factualidade, ou seja, desde 27-11-2017, data em que proferiu a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente. Só a partir deste momento podemos considerar preenchidos os pressupostos contidos no artigo 43º da LGT.

No caso, os erros que afetam as liquidações são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, na medida em que devia ter reparado o ato quando foi confrontada com essa realidade e com a prova subjacente. Ao indeferir o pedido de reclamação graciosa deduzido pela Requerente a AT decidiu com base em erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes e, nessa medida e apenas após essa data, os atos de liquidação ilegais subsistiram por sua iniciativa.

Por outro lado, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

Em conclusão, tem a Requerente direito a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e n.º 1 do artigo 24.º do RJAT) e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data do indeferimento do pedido de reclamação graciosa do ato tributário, até reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

Por último, quanto às custas do processo, resulta que o pagamento das custas no final do processo cabe à parte vencida, na proporção em que o for. Só não será, porém, se apesar de vencida, esta parte não deu causa à ação, o que não é o caso, pois a AT teve, como se disse no ponto anterior, a oportunidade de revogar o ato após ter sido chamada a decidir a questão em sede de procedimento de reclamação graciosa. Logo, ao optar por não o fazer, deu origem ao presente pedido arbitral, e, nessa medida, é responsável pelo pagamento das custas do processo.

            Consequentemente terá de ser a AT a suportar integralmente as custas.    

 

IV -  Decisão

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedentes os pedidos de declaração da ilegalidade do indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa e dos atos tributários consubstanciados nas autoliquidações de IUC e juros compensatórios objeto dos autos, no valor total de 12.691,35€, com a consequente anulação das referidas liquidações;
  2. Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios pela Autoridade Tributária e Aduaneira, a calcular a partir da data do indeferimento da reclamação Graciosa (27-11-2017) até integral pagamento;
  3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do presente processo.

 

V-VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em 12.691,35 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI- CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 918,00€, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de dezembro de 2018

 

 

O Tribunal Arbitral Singular,

                       

 

(Maria do Rosário Anjos)

 



[1] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido veja-se, entre muitos outros autores, Freitas Pereira, M. H., Fiscalidade, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).

 

[2] Ou equiparados como é o caso dos locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação (artigo 3º-2, do CIUC).

[3] Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da atividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria atividade” (Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.

 

[4] (Cfr ainda neste mesmo sentido, v. g., as decisões arbitrais tributárias proferidas nos processos CAAD n.ºs 170/2013-T, de 14/2/2014, 136/2014-T, de 14/7/2014, 230/2014-T, de 22/7/2014 e 140/2014-T, de 29/8/2014.