DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., S.A., pessoa colectiva número ..., com sede na Rua ..., Lugar de ..., ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., relativa ao período de tributação de 2014, que originou a demonstração de acerto de contas n.º 2017..., no valor de € 1.405.215,82, requerendo ainda a condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é uma sociedade anónima que tem como objecto principal o comércio por grosso de vestuário e acessórios, comércio de confecções e de pronto-a-vestir e detém uma estrutura de distribuição constituída por uma rede de estabelecimentos comerciais num total de 824 estabelecimentos com presença em 60 países.
O Grupo no qual a Requerente se insere, denominado Grupo B..., é encabeçado pela sociedade C..., S.A. a qual é detida pela sociedade D..., S.A., entidade sediada e residente para efeitos fiscais no Luxemburgo, e opera no mercado através de lojas próprias e contratos de franchising.
Tendo decidido adoptar uma estratégia de expansão internacional, o Grupo constatou a necessidade de se posicionar no mercado através de subsidiárias da sociedade-mãe do Grupo, a C..., e, em especial, através da E... SL, em Espanha, da F... SARL, em França, da G..., na Polónia, da H... GmbH, na Alemanha, e da I... SRL, em Itália, com as quais a Requerente estabeleceu um modelo de relacionamento comercial, cujos termos e condições constam do Supply and Prime Retailing Agreement.
O Retailing Agreement vem estabelecer uma relação de parceria entre a Requerente e as essas entidades, que exercem no mercado a função de distribuidoras dos produtos B..., actuando nos locais que forem indicados pela Requerente e sob a sua orientação estratégica, assumindo tais entidades a natureza de distribuidor de risco limitado.
A lógica subjacente ao Retailing Agreement pressupõe um modelo de relacionamento intragrupo no âmbito do qual as irmãs da Requerente são remuneradas tendo em consideração a atividade que desenvolvem e os riscos que assumem, através de uma margem target ao nível operacional, sendo que a Requerente assume os ganhos ou perdas decorrentes do negócio, após descontada a remuneração entregue às subsidiárias.
O Retailing Agreement actua como elemento catalisador da publicidade da B..., o que é comprovado pelo aumento do número de lojas, entre 2013 e 2015 (de 471 para 671), e um crescimento do volume de negócios superior a 25% ao ano, além de se traduzir em efeitos indirectos relacionados com o aumento da dimensão da Requerente e o consequente incremento da sua capacidade negocial junto dos seus principais fornecedores, com vantagens nos preços de compra dos produtos que comercializa e na sua margem bruta.
As Prime Retailers actuam, assim, como distribuidoras exclusivas dos produtos B... nos mercados onde se localizam, mas não têm o poder de fixar os preços de venda ao público dos seus produtos, assim como não influem na política de descontos ou de saldos, mas têm o direito de ser compensadas das funções exercidas e do investimento suportado.
Por essa razão, os produtos B... são vendidos exclusivamente pela A... e facturados nos termos normais, mas fica acordado que a referida compensação se opera mediante uma garantia de margem operacional fixada à data em 3% a atribuir ao Prime Retailer (artigo 5.º, n.º 5, do Retailing Agreement).
Assim, na eventualidade da margem bruta de revenda de uma das Prime Retailers conduzir a um EBIT (Earnings Before Interest and Taxes) superior a 3%, a A... emitirá notas de débito em correcção do preço de venda anteriormente acordado, com vista à reposição da margem operacional target; e, em sentido inverso, sempre que o EBIT de uma das Prime Retailers seja inferior a 3%, a A... emitirá notas de crédito de correcção ao preço de venda que conduzirão à margem de 3%.
Uma vez que essa margem operacional só pode ser mensurada aquando do apuramento dos resultados, o débito ou o crédito daí resultante para o Prime Retailer só poderá traduzir-se em fluxos financeiros concretos no final do exercício, sendo esses fluxos que estão em causa neste processo.
No âmbito do processo inspectivo destinado a analisar as relações da Requerente com entidades relacionadas noutros Estados Membros da União Europeia, foi proposta uma correcção à matéria tributável no valor de € 4.742.715,00, baseada, em exclusivo, na desconsideração fiscal de gastos incorridos no âmbito do Retailing Agreement, que a Autoridade Tributária (AT) entendeu não serem dedutíveis nos termos do artigo 23.º do Código do IRC.
Em traços gerais, a AT defende que o valor creditado pela B&R ao abrigo do acordo implicou, por via de regra, imposto pago a mais nas jurisdições onde se encontram as outras entidades do Grupo e imposto pago a menos em Portugal, implicando uma alegada poupança de imposto global na ordem dos 806 mil euro.
Ora, o elemento nuclear da noção de gasto fiscalmente dedutível é o da relação causal com o interesse da empresa e a prossecução das respectivas actividades, outrora reconduzida ao conceito da indispensabilidade dos encargos para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora.
Pelo que será sempre inaceitável qualquer cláusula geral que permita à Administração Tributária julgar e sindicar a oportunidade e dedutibilidade das decisões empresariais que se traduzam num decaimento económico para a empresa, apenas sendo possível eliminar os gastos que não apresentam, de todo, uma afinidade com a actividade da sociedade, como, por exemplo, os encargos com despesas privadas dos sócios, gestores ou administradores, ou com terceiros, estranhos à empresa.
No caso, mostra-se verificada a conexão entre os encargos suportados e a realização de ganhos sujeitos a imposto, sendo inequívoca a relação causal estabelecida entre o interesse societário e a actividade prosseguida, não podendo sequer ser invocado o insuficiente suporte formal dos gastos.
Os efeitos económicos do Retailing Agreement apenas poderiam, quando muito, ter originado um escrutínio inspectivo em matéria de preços de transferência e a AT ao dizer que “através destes acordos o grupo implementou para si uma espécie de regime especial de tributação”, que implicou a “transferência de resultados de Portugal para outros países”, deixa implícito que os gastos suportados no contexto do Retailing Agreement poderiam ser desconsiderados para efeitos fiscais por o terem sido entre sociedades em relação de grupo.
No entanto, a Administração Tributária não efectua nenhuma demonstração de que não foram observados os princípios dos preços de transferência.
Requer, a final, a anulação do acto tributário em causa por erro nos pressupostos de direito na aplicação do artigo 23º do CIRC, e, caso se entenda que a correcção teve por base o disposto no artigo 63º do Código de IRC, por falta da fundamentação e por manifesta ausência de violação do princípio da plena concorrência.
Na sua resposta, a Administração Tributária sustenta que a remuneração atribuída às subsidiárias correspondendo a uma margem operacional de 3% do seu volume de vendas, nos termos do acordo designado como Retailing Agreement, de forma a garantir-lhes uma determinada rentabilidade operacional, corresponde a uma assunção de encargos pertencentes a essas empresas, o que acaba por resultar num financiamento a fundo perdido e que, no que respeita ao exercício de 2014, teve um impacto negativo nos resultados económicos da Requerente de €4.742.715,00.
Os gastos incorridos não implicaram, de forma directa, a obtenção de maiores rendimentos para o sujeito passivo nem se demonstra que, de forma indireta, tenha tido um impacto na situação comercial da Requerente, gerando, isso sim, uma redução do rendimento coletável da A... e a consequente dispersão por outros países da União Europeia.
Concluindo que o apuramento do resultado fiscal de cada empresa não poderá ser afectado por encargos que respeitem a outras entidades, pelo que ainda que se possa compreender que o negócio possa ter interesse no cômputo económico do grupo como um todo, os encargos assumidos não podem ser dedutíveis em termos fiscais pela empresa portuguesa, nos termos do artigo 23.º do CIRC.
2. No seguimento do processo foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT na qual foi produzida a prova testemunhal indicada pelas partes.
Em alegações pelo prazo sucessivo as partes pronunciaram-se sobre os resultados probatórios resultantes dos elementos do processo e da prova testemunhal produzida e, no mais, mantiveram as suas anteriores posições.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, e o árbitro presidente foi designado pelo Conselho Deontológico.
O tribunal arbitral coletivo ficou, nesses termos, constituídos pelos ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportunamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.ºs 4 e 5, do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 7 de maio de 2018.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, tendo sido invocada a exceção do caso julgado.
Cabe apreciar e decidir.
II -Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes:
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A Requerente foi objecto de um procedimento inspectivo, credenciado pela Ordem de serviço n.º OI 2016..., destinado a analisar as relações com outras entidades sediadas em Estados Membros da União Europeia;
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A Requerente é uma sociedade anónima que tem como principal actividade o comércio por grosso de vestuário e acessórios da marca B..., operando no mercado nacional e internacional através da exploração de uma rede e lojas próprias e em regime de contratos franchising efectuados com outros operadores;
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A Requerente integra o Grupo B..., encabeçado pela sociedade C..., S.A. que é detida pela sociedade D..., S.A., sediada e residente para efeitos fiscais no Luxemburgo, e que, em 31 de dezembro de 2014, dispunha um número total 528 lojas no mercado interno e internacional;
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Visando uma estratégia de expansão comercial, o Grupo optou por posicionar-se no mercado internacional através de subsidiárias da sociedade mãe em vista à abertura de lojas próprias em locais mais concorrenciais.
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O que veio a suceder através da E... SL, em Espanha, da F... SARL, em França, da G..., na Polónia, da H... GmbH, na Alemanha, e da I... SRL, na Itália;
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A implementação de lojas em mercados internacionais particularmente concorrenciais, como aquelas que são mencionadas na alínea anterior, implicam elevados custos de investimento e de exploração, especialmente com despesas de instalação, contratos de arrendamento e de trabalho subordinado;
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As empresas subsidiárias actuam como distribuidoras/revendedoras dos produtos B... sob o controlo e gestão estratégica da Requerente, designadamente no que se refere à localização das lojas, às campanhas de promoção e actividades de marketing;
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A Requerente estabeleceu com as subsidiárias que se instalaram nos países de proximidade um modelo de relacionamento comercial mediante o contrato Supply and Prime Retailing Agreement.
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A remuneração da comercialização dos produtos B... foi fixada na cláusula 5.ª do Supply and Prime Retailing Agreement nos termos seguintes:
1. A remuneração da subsidiária pelas funções executadas ao abrigo do presente acordo, como Prime Retailer, corresponderá à diferença entre os preços de venda acordados aos seus clientes e os preços de aquisição acordados com a A..., S.A.
2. O preço de aquisição será calculado de maneira a que cada grupo de produtos possa produzir margens idênticas e consistentes.
3. Uma lista de preços de aquisição assim calculados deverá ser fornecida periodicamente pela A..., S.A.
4. A margem em cada produto será revista periodicamente de acordo com a evolução do preço de revenda e a estrutura geral de custos da subsidiária para compensar adequadamente a subsidiária pelas funções desempenhadas, os bens próprios ou arrendados utilizados e os riscos suportados no âmbito deste contrato.
5. Considerando os fatores apontado no ponto 4., ambas as partes estimam que uma adequada remuneração será o equivalente a uma margem operacional de 3% do seu volume de vendas.
6. Esta percentagem será revista de acordo com os fatores enunciados no ponto 4.
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No fim do exercício económico, a Requerente emite notas de débito em correção do preço anteriormente acordado se o resultado operacional for superior a 3% ou notas de crédito em correção do preço anteriormente acordado se o resultado operacional for inferior a essa percentagem, com vista à reposição da margem operacional previamente estipulada;
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O pagamento dessa margem operacional originou no período de 2014 um prejuízo fiscal nos resultados da Requerente de € 4.742.71500;
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A Administração Tributária considerou que os encargos suportados pela Requerentes nesses termos não dão dedutíveis para efeitos fiscais, segundo o disposto o artigo 23.º do Código de IRC, na medida em que não se trata de gastos incorridos para obter ou garantir rendimentos sujeitos a imposto;
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Em 31 de dezembro de 2013 o número total de lojas B... era de 471;
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Entre 2013 e 2015 abriram 146 novas lojas em todo o mundo, verificando-se um crescimento global em número de lojas;
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Ocorreu também um aumento do volume de negócios que era de € 40.000.000 em 2010 e passou para € 120.000.000 em 2015;
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A Requerente foi notificada da nota de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., relativa ao período de tributação de 2014, que originou a demonstração de acerto de contas n.º 2017..., no valor de € 1.405.215,82.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta e a prova testemunhal produzida em audiência.
Matéria de direito
5. A questão que vem colocada é a de saber se a remuneração atribuída às irmãs da Requerente sediadas em países estrangeiros, correspondente a 3% do volume de vendas dos produtos fornecidos pela Requerente, é dedutível para efeitos fiscais nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código de IRC em função da sua conexão com a realização dos ganhos sujeitos a imposto.
O ponto fulcral tem a ver com a própria caracterização da parceria instituída entre a Requerente e as subsidiárias e que em traços gerais se traduz no seguinte.
A Requerente integra o Grupo B..., que, por estratégia de expansão comercial, decidiu posicionar-se no mercado internacional através de empresas subsidiárias da sociedade mãe mediante a abertura de lojas próprias em locais de países de proximidade que pudessem conferir maior visibilidade à marca. A Requerente estabeleceu um modelo de relacionamento comercial com essas entidades (Supply and Prime Retailing Agreement), pelo qual estas actuam em exclusividade como distribuidoras/revendedoras dos produtos B..., sob o controlo e gestão estratégica da Requerente, e mediante uma remuneração de comercialização que corresponde à diferença entre os preços de venda cobrados aos clientes e os preços de aquisição acordados com a Requerente, acrescidos de uma margem operacional de 3% sobre o volume de vendas.
Sendo que, dessa forma, a Requerente assume os ganhos e perdas decorrentes do negócio, descontada a margem operacional das subsidiárias, efectuando no termo do ano económico um acerto de contas que implica a emissão de notas de débito ou de crédito consoante o resultado operacional seja superior ou inferior a 3%, de modo a manter margem de rentabilidade fixada no acordo.
No âmbito do procedimento inspectivo destinado a averiguar a situação fiscal da Requerente na relação com as subsidiárias sediadas no estrangeiro, a Administração Tributária detectou um prejuízo fiscal de € 4.742.71500, no período de tributação de 2014, que é apenas imputado aos encargos suportados com as subsidiárias no âmbito do Retailing Agreement, vindo a entender que esses gastos não são dedutíveis para efeitos fiscais por não poderem ser considerados como incorridos ou suportados com o fim de obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto.
Numa diferente perspectiva, a Requerente alega que as instalação de lojas próprias em locais concorrenciais tem vantagem sobre as lojas franchising ou as lojas pertencentes a parceiros independentes, mas envolvem custos avultados de investimento e exploração, especialmente por virtude dos preços praticados nos contratos de arrendamento, e a remuneração prevista no Retailing Agreement tem em vista viabilizar o funcionamento das empresas distribuidoras, assegurando uma margem de rentabilidade mínima.
Ainda segundo a Requerente, os encargos suportados com a margem operacional podem gerar rendimentos tributáveis em IRC na esfera do sujeito passivo, seja através do aumento dos pontos de lojas próprias, seja pelo incremento do volume de vendas.
Nesse sentido, a Requerente sublinha que ocorreu o aumento gradual desde 2010 do número total de lojas afectas ao Grupo e do volume de negócios.
6. A resposta a dar a esta questão não pode deixar de partir do conceito de gasto fiscal para efeitos do artigo 23.º do Código de IRC.
À luz desse preceito, deve entender-se que a atividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a atividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restrito, mas sim em sentido amplo, significando atividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de atividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou atos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos.
Em síntese conclusiva, haverá de considerar-se que os gastos suportados pelo sujeito passivo são dedutíveis se à assunção do encargo presidiu uma genuína motivação empresarial e, em contraponto, não há lugar à comparticipação fiscal quando deva concluir-se que o encargo foi determinado por motivações extra-societárias, como seja o interesse pessoal dos sócios, administradores, credores, outras sociedades do mesmo grupo ou parceiros comerciais (cfr. neste sentido, Rui Morais, Apontamentos ao IRC, Coimbra, 2007, págs. 86-87 e, entre outros, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).
Nesse sentido, a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, passando a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforça a ideia de que basta a conexão com a atividade empresarial, independentemente da efetiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto e visa implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de junho de 2013).
7. Revertendo à situação do caso, importa começar por fazer notar que os pagamentos assumidos através dos contratos designados como Retailing Agreement não configuram meros descontos comerciais sobre as vendas, mas envolvem prestações de natureza remuneratória que vão além do lucro que as subsidiárias poderiam obter através da sua actividade comercial de revenda dos bens que lhe são fornecidos no âmbito da relação contratual que mantêm com a Requerente.
De facto, como resulta do teor do contrato de parceria comercial, e constitui a prática estabelecida entre as empresas - como ficou demonstrado pela prova testemunhal produzida -, a Requerente não procede a uma redução do preço de venda das mercadorias, mas estipula uma margem operacional a favor das subsidiárias, que será objecto de um acerto, no final do ano, mediante a emissão de uma nota de débito ou de crédito consoante o resultado operacional seja superior ou inferior a 3% sobre o volume de vendas. Ainda que esse acerto de contas seja entendido, no Retailing Agreement, como um mecanismo de correcção do preço de venda das mercadorias acordado entre as partes, na verdade, trata-se de repor a remuneração adicional fixada no contrato, de modo a que a subsidiária não venha a auferir um acréscimo patrimonial superior ou inferior à margem operacional que, segundo a própria terminologia do contrato, se encontra definida como a remuneração devida pela revenda de produtos B..., em lojas próprias e em mercados concorrenciais, segundo a orientação estratégica da Requerente.
A diferença de valor que possa resultar da emissão das notas de débito ou de crédito, no ajustamento a realizar no termo do ano económico, não deixa de se encontrar limitada pela margem operacional fixada contratualmente, pelo que o que pode suceder é que a Requerente venha a despender, em determinado ano e em relação a uma determinada subsidiária, uma importância inferior à que resultaria da aplicação da percentagem de 3% sobre o valor das vendas, o que não significa que o valor despendido não continue a corresponder à remuneração devida à subsidiária pela função de distribuidora internacional dos produtos da Requerente sob a marca B... .
Sendo essa a única interpretação possível dos termos do contrato, e que corresponde à prática que é adoptada pelas partes, os pagamentos contratualmente efectuados traduzem-se numa transferência de encargos entre entidades distintas, permitindo que os gastos incorridos pelas subsidiárias para a realização dos proveitos próprios sejam suportados pela Requerente até ao limite da margem de rentabilidade que o contrato assegura. Não se trata, em todo o caso, de despesas concretas e determinadas, mas antes da generalidade dos encargos operacionais, sendo, aliás, esse o próprio objectivo do Retailing Agreement, como a Requerente não deixa de sublinhar, repetidamente, nas suas peças processuais.
De facto, o que está em causa é uma estratégia de expansão do negócio da Requerente e do Grupo B..., que se traduz na implementação de lojas próprias, através de subsidiárias já constituídas, em locais concorrenciais de países de proximidade, em substituição do modelo de contrato franchising ou de contratos com parceiros independentes. Mas que implica – como vem afirmado - avultados investimentos de instalação e conquista de mercado, com um peso significativo, no cômputo global dos encargos, dos preços dos locais arrendados.
Assim se compreende que a finalidade do Retailing Agreement, na linha estratégica comercial definida, tenha sido a de compensar adequadamente as subsidiárias “pelas funções desempenhadas, bens próprios ou arrendados utilizados e riscos suportados”, mediante a “remuneração (…) equivalente a uma margem operacional de 3% do seu volume de vendas”.
Nada impede, por conseguinte, que a remuneração contratualizada pela Requerente se destine ao pagamento dos encargos operacionais gerais das subsidiárias, como sejam os gastos locais de administração, despesas de funcionamento, remunerações de trabalhadores ou de administradores, encargos com advogados, juros e outros encargos financeiros.
Ora, essas são despesas externas à Requerente que dificilmente são enquadráveis num interesse empresarial próprio da sociedade. O que se verifica é que a Requerente suporta gastos que entidades terceiras incorrem no âmbito do seu próprio processo produtivo empresarial.
O argumento que vem invocado no sentido da dedutibilidade dos gastos centra-se na existência de um nexo causal entre os encargos suportados com as subsidiárias e o interesse empresarial da Requerente, que se traduz no aumento do número de lojas e no incremento das vendas e na expectativa de geração no futuro de rendimentos efectivos. Essa possibilidade pode até dar-se como aceite, em face da matéria de facto dada como assente, que assinala um gradual aumento do volume de negócios a partir de 2010.
Não há, no entanto, nenhuma evidência de que o aumento dos resultados operacionais das subsidiárias que se encontrem associados ao aumento global das vendas ou do número de lojas próprias, por efeito da assunção de encargos pela Requerente, possa gerar proveitos que impliquem, em anos futuros, um incremento do lucro tributável sujeito a IRC no território nacional.
Em primeiro lugar, como se deixou esclarecido, os resultados positivos das subsidiárias apenas determinam, por compensação, uma redução da margem operacional contratualmente estabelecida que, no limite, apenas pode ser neutralizada quando o acréscimo de rendimento auferido atinja a margem de rentabilidade que se pretende garantir. E, em qualquer caso, esse ajustamento não representa uma componente positiva do lucro tributável, mas uma limitação dos gastos em que a Requerente incorre para com as sociedades irmãs. Certo é que, numa expectativa económica geral, esses resultados positivos podem originar um incremento do volume de negócios da Requerente que possa gerar, num determinado exercício económico, um acréscimo patrimonial sujeito a imposto. O ponto é que, como se deixou exposto, a dedutibilidade dos custos assenta numa relação de causalidade económica, no sentido de que o custo deva ser realizado no interesse da empresa, com exclusão daqueles outros gastos que sejam efectuados em benefício de outros parceiros comerciais ou mesmo de outras sociedades do mesmo grupo.
Isto é, o conceito de custo para efeitos fiscais não se compadece com a possibilidade de as sociedades irmãs, enquanto titulares de interesses empresariais próprios, fazerem repercutir sobre a fornecedora os encargos em que incorrem para a prossecução da sua finalidade societária. E, inversamente, o interesse empresarial da Requerente não se compatibiliza, em termos fiscais, com o pagamento de despesas das próprias clientes ainda que a assunção desses encargos possa assegurar no futuro um maior nível de rentabilidade da sua actividade social.
8. Note-se que não está aqui em causa uma qualquer avaliação sobre a oportunidade ou mérito das despesas realizadas, mas antes a possibilidade de esses encargos serem contabilizados como custos fiscais à luz dos critérios que dimanam do artigo 23.º, n.º 1, do Código de IRC.
Como tudo indica, nas circunstâncias do caso, a assunção pela Requerente de encargos de terceiros tem a natureza de um instrumento equivalente à entrada de capitais próprios – que incumbiria à sociedade mãe realizar – e através da qual a Requerente pretende influenciar o resultado líquido do exercício mediante a contabilização como gasto.
De facto, o lucro tributável é definido, em termos gerais, como a diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação (artigo 3.º, n.º 2, do Código do IRC) e a primeira componente a considerar é o lucro contabilístico, ou seja, a quantia residual apurada, com base na contabilidade, que permanece após os gastos terem sido deduzidos aos rendimentos. Para a determinação do lucro tributável relevam também as variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas no resultado líquido (artigo 17.º, n.º 1), com excepção das entradas de capital ou das saídas, em dinheiro ou espécie, a favor dos titulares de capital (artigos 21.º, n.º 1, alínea a), e 24.º, alínea c)).
Com a entrada de capital - para nos referimos à situação que mais releva para o caso - o sujeito passivo limita-se a afectar parte dos seus bens à sua actividade empresarial para, através desses recursos, desenvolver o seu negócio e aumentar o património através da obtenção de lucros. É esse acréscimo de riqueza – e não propriamente o investimento de capital – que constitui o rendimento sujeito a tributação. Assim se compreendendo que, nos termos da referida disposição do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), a lei exclua da formação do lucro tributável as entradas de capital (cfr. António Rocha Mendes, IRC e as reorganizações empresariais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2016, pág. 63).
O que sucede, no caso vertente, é que a Requerente, contornando o princípio da irrelevância fiscal dos instrumentos de capital próprio, pretende fazer valer as entradas de dinheiro para pagamento das despesas das sociedades irmãs como gastos da sua própria actividade empresarial para assim obter uma redução do seu resultado líquido, sem que esse gasto se configure como custo dedutível para efeitos fiscais.
Um outro aspecto que importa ainda ter presente – e que não despiciendo para a análise jurídica do caso – é que o esquema contratual baseado na transferência de encargos permite a importação de prejuízos fiscais para o ordenamento nacional, com a consequente erosão de lucro tributável verificável em Portugal, sem implicar consequências fiscais relevantes na jurisdição das empresas subsidiárias sediadas no estrangeiro. Isso porque no caso de as subsidiárias apresentarem resultados negativos, a transferência de encargos permite transpor para o ordenamento interno os prejuízos fiscais que, doutro modo, seriam absorvidos pelas jurisdições fiscais onde essas sociedades exercem a sua actividade, ao passo que o ganho alcançado com a transferência de encargos tem aí um diminuto impacto fiscal por poder ser neutralizado pelos resultados negativos incorridos pelas subsidiárias.
Resta, por fim, observar que não tem relevo para o caso o julgado no acórdão do TCA Sul de 24 de junho de 2003 (Processo n.º 06350/02), que vem mencionado no pedido arbitral. Tratava-se aí da renegociação pontual da dívida de uma empresa em situação eminente de insolvência, quando o gasto incorrido nessa circunstância funcionava como um suporte indirecto da relação comercial mantida com essa entidade e que era indispensável para garantir a manutenção da fonte produtora dos rendimentos, e que o tribunal, por isso mesmo, considerou dedutível para efeitos fiscais ao abrigo do artigo 23.º do Código do IRC. Não há, como é bem de ver, uma qualquer similitude com a situação dos autos, em se verifica, por via contratual, a assunção sistemática de encargos pertencentes a terceiras entidades por forma a garantir uma margem de rentabilidade mínima no âmbito da respectiva actividade empresarial.
9. Subsidiariamente, a Requerente invoca a ilegalidade do acto tributário por erro nos pressupostos, e, bem assim, por falta da fundamentação legalmente prescrita, nos termos do artigo 77º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, e por manifesta ausência de violação do princípio da plena concorrência, caso se entenda que a correcção adicional de IRC teve como fundamento o disposto no artigo 63.º do Código de IRC.
Na perspectiva da Requerente, a possibilidade de um eventual desrespeito pelos princípios dos preços de transferência a que se refere à falada norma do artigo 63.º terá resultado da circunstância de o procedimento inspectivo se ter destinado à “análise das relações com entidades relacionadas presentes noutros Estados Membros da União Europeia” e de se ter vindo a afirmar, no Relatório de Inspecção Tributária, que através dos acordos celebrados com as subsidiárias, “o grupo implementou para si uma espécie de regime especial de tributação”, que implicou a “transferência de resultados de Portugal para outros países”.
Entende a Requerente que esta argumentação pode deixar implícita a ideia de que os gastos suportados no contexto do Retailing Agreement teriam de ser desconsiderados para efeitos fiscais em virtude de tal contrato ter sido celebrado entre sociedades em relação de grupo, e daí que a Requerente considere, desde logo, que o acto tributário em questão se encontra inquinado de falta de fundamentação, à luz do disposto no artigo 77.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária.
O certo é que, como resulta inequivocamente das conclusões do Relatório de Inspecção Tributária (Ponto III.1.3), a não aceitação para efeitos fiscais dos encargos assumidos através do Retailing Agreement ficou a dever-se exclusivamente à sua não dedutibilidade nos termos do artigo 23.º do Código do IRC, pelo que, sendo esse o único fundamento do acto impugnado, é à luz desse enquadramento jurídico que há que analisar a legalidade de actuação da Administração Tributária.
A referência ao “regime especial de tributação” e à “transferência de resultados de Portugal para outros países” apenas pode ser entendida no contexto desse artigo 23.º, sendo que em nenhum momento é efectuada, no Relatório, qualquer alusão aos preços de transferência ou à disposição do artigo 63.º.
Não estando, por isso, em causa, qualquer questão atinente a essa matéria não há que tomar conhecimento desses invocados vícios e, por identidade de razão, não tem aplicação ao caso a doutrina da decisão arbitral proferida no Processo 109/2015-T, que se refere ao dever de fundamentação e ao ónus da prova da Administração Tributária quando haja lugar à aplicação do regime dos preços de transferência.
O pedido mostra-se, por conseguinte, totalmente improcedente, não havendo lugar, em consequência, ao reembolso das quantias que tenham sido pagas, e à indemnização por prestação de garantia indevida e ao pagamento de juros indemnizatórios, como também vem requerido.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido arbitral.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.411.497.80, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Lisboa, 20 de dezembro de 2018
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
António Martins (vencido nos termos da declaração de voto que junta)
O Árbitro vogal
Gustavo Courinha
Voto de vencido
Pese embora a elevada consideração pelos Exmos. Senhores Árbitros que a subscreveram, não acompanho a posição que fez vencimento neste Acórdão pelos motivos que passo a expressar.
1- A interpretação do artigo 23º do CIRC e sua aplicação ao caso concreto
O Acórdão desenvolve sobre o artigo 23º do CIRC, num sentido que acompanho, uma posição interpretativa na qual se afirma o seguinte:
“À luz desse preceito, deve entender-se que a atividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento…”. (…) “Em síntese conclusiva, haverá de considerar-se que os gastos suportados pelo sujeito passivo são dedutíveis se à assunção do encargo presidiu uma genuína motivação empresarial…” (...) “Nesse sentido, a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, passando a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforça a ideia de que basta a conexão com a atividade empresarial, independentemente da efetiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto”
Na redação do artigo 23º do CIRC, em vigor em 2014, tendo-se abandonado o requisito da “indispensabilidade”, sobressai a questão de os gastos apresentarem um propósito, ou um potencial, de geração de rendimentos sujeitos a imposto. Não se exige a efetiva obtenção de rendimentos, num obrigatório nexo de causalidade com os gastos, o que se compreende bem, pois tal equivaleria a recusar a dedução de qualquer gasto numa situação de insucesso da atividade empresarial. Nem a letra nem o espírito da lei determinam que os gastos têm, como condição de dedutibilidade, de originar lucros tributáveis. A lei conduz à interpretação segundo a qual tendo os gastos um propósito gerador de rendimentos (business purpose), e essa geração seja esperável ou estimada, está cumprida a condição geral de dedutibilidade estabelecida no artigo 23º do CIRC.
Caso o negócio corra mal, ou existam erros de gestão, ou num certo período ocorram prejuízos, ou o negócio se revele ruinoso, o ponto central no âmbito da dedutibilidade é a demonstração de que o ato praticado, originador do gasto, tivesse, na data em que foi concretizado, potencial de geração de rendimentos sujeitos a imposto. A eventual verificação, a posteriori, de que o volume de rendimentos gerados, ou os lucros obtidos, não atingiu tais expetativas não impede a dedutibilidade do gasto, desde que se mostre a racionalidade económica ou motivação empresarial da decisão que originou a respetiva assunção.
Se esta for a boa interpretação do artigo 23º do CIRC, na redação de 2014, não vejo como se possa recusar a dedução dos gastos neste Processo discutidos com base em argumentos que constam do Acórdão e que passo a citar:
“O argumento que vem invocado no sentido da dedutibilidade dos gastos centra-se na existência de um nexo causal entre os encargos suportados com as subsidiárias e o interesse empresarial da Requerente, que se traduz no aumento do número de lojas e no incremento das vendas e na expectativa de geração no futuro de rendimentos efectivos. Essa possibilidade pode até dar-se como aceite, em face da matéria de facto dada como assente, que assinala um gradual aumento do volume de negócios a partir de 2010.
Não há, no entanto, nenhuma evidência de que o aumento dos resultados operacionais das subsidiárias que se encontrem associados ao aumento global das vendas ou do número de lojas próprias, por efeito da assunção de encargos pela Requerente, possa gerar proveitos que impliquem, em anos futuros, um incremento do lucro tributável sujeito a IRC no território nacional.
Em primeiro lugar, como se deixou esclarecido, os resultados positivos das subsidiárias apenas determinam, por compensação, uma redução da margem operacional contratualmente estabelecida que, no limite, apenas pode ser neutralizada quando o acréscimo de rendimento auferido atinja a margem de rentabilidade que se pretende garantir. E, em qualquer caso, esse ajustamento não representa uma componente positiva do lucro tributável, mas uma limitação dos gastos em que a Requerente incorre para com as sociedades irmãs. Certo é que, numa expectativa económica geral, esses resultados positivos podem originar um incremento do volume de negócios da Requerente que possa gerar, num determinado exercício económico, um acréscimo patrimonial sujeito a imposto. O ponto é que, como se deixou exposto, a dedutibilidade dos custos assenta numa relação de causalidade económica, no sentido de que o custo deva ser realizado no interesse da empresa, com exclusão daqueles outros gastos que sejam efectuados em benefício de outros parceiros comerciais ou mesmo de outras sociedades do mesmo grupo.”
No primeiro trecho da citação aceita-se a possibilidade de o Retail Agreement (doravante, RA), ao determinar que a requerente suporte como gasto um montante que remunere as sociedades irmãs numa margem operacional de 3% das vendas, se enquadre no interesse empresarial da Requerente, em face do aumento do volume dos seus negócios desta.[1] Afirma-se, depois, que não há evidência (i.é., prova, demonstração) de que o aumento global das vendas ou do número de lojas próprias, possam gerar proveitos que impliquem, em anos futuros, um aumento de lucro tributável no território nacional.
Não vejo que o artigo 23º do CIRC imponha tais condições. O art. 23º apenas determina que o gasto tenha o propósito de contribuir para a obtenção de rendimentos (e.g., cf. art. 20º do CIRC, vendas, prestação de serviços, outros rendimentos operacionais, rendimentos financeiros, etc.) sujeitos a imposto.
Aceitando-se no Acórdão que do RA resulta um crescimento da atividade, por via do aumento do número de lojas nos países onde atuam as sociedades irmãs com as quais se celebrou o dito acordo, e um incremento de vendas, julgo mostrado o interesse da Requerente e a relação dos gastos resultantes do RA com a respetiva atividade. E a condição de existir “evidência” que tal acordo possa gerar, no futuro, “lucro tributável” não resulta da norma do CIRC aqui analisada.
Colocando tal ênfase na demonstração ou prova de que o RA “possa gerar proveitos que impliquem, em anos futuros, um incremento do lucro tributável sujeito a IRC no território nacional” e, simultaneamente, não levando aos factos provados evidência[2] constante dos autos, junta pela Requerente, que assenta em elementos ao dispor das partes[3], e não foi contraditada pela Requerida, não se atendeu, em meu juízo, a matéria que poderia ser relevante. O quadro seguinte é disso exemplo notório:
Perante os dados, em especial no caso da sociedade irmã espanhola (E...), responsável pela larguíssima parte (75%) do incremento de vendas provado no quadro, no âmbito das sociedades irmãs com as quais se celebraram RA, podem extrair-se, em meu entender, duas conclusões:
a) que, associado ao RA, existe um incremento do volume de negócios da Requerente e, por isso, da sua atividade e dos seus rendimentos (vendas) sujeitos a imposto, pois as vendas das irmãs resultam de compras, contratadas e exclusivas, à Requerente;
b) que o custo associado ao RA tem potencialidade para produzir, mesmo de per si, um rendimento líquido tributável.[4] E que, existindo essa comprovada possibilidade, não se ajuizaria que “em qualquer caso, esse ajustamento não representa uma componente positiva do lucro tributável, mas uma limitação dos gastos em que a Requerente incorre para com as sociedades irmãs”.
O Acórdão (depois de aceitar a possibilidade de um nexo causal entre os gastos aqui controvertidos e o interesse da Requerente, "em face da matéria de facto dada como assente") conclui que a garantia de uma margem de 3% é sempre desligada do interesse empresarial da Requerente e das consequências sobre as suas vendas e outros rendimentos. E parece-me assumir que mesmo quando, “em qualquer caso”, nas entidades irmãs a margem se situar acima de 3%, o efeito positivo do RA apenas reduz os gastos que a Requerente assume e que são, sempre e só, da esfera das ditas sociedades. Em suma, que a Requerente ao garantir uma margem de 3% a sociedades irmãs que distribuem os produtos da Requerente de forma exclusiva, sob a sua orientação comercial e de acordo com a sua estratégia de internacionalização, está apenas a agir em função de interesses alheios e a absorver gastos que em nada lhe respeitam. Não acompanho, de todo, tal posição, em face do que entendo provado.
A tradução numérica da posição do Acórdão, quando aos efeitos específicos da mecânica do RA[5], seria, se bem a interpreto, a seguinte. Admita-se que, num certo ano, a Requerente garante uma margem de 3% de uma sociedade irmã com a qual celebrou um RA nos moldes constantes dos autos, e que esta apresenta, no final do ano, uma margem de 5%. Em tal caso recebe a requerente 2% como compensação. Num segundo caso, suponha-se que a margem da sociedade irmã é 7% e a Requerente recebe 4%. Tais margens dependem, como à frente melhor mostrarei, do aumento das vendas da sociedade irmã, e consequentes compras à Requerente, e da estrutura de custos ou gastos da primeira. Determinados gastos operacionais tais como rendas, seguros, e até, em certa medida, o pessoal, têm uma certa componente fixa, e o incremento das vendas induz, consequentemente, o crescimento da margem operacional da sociedade irmã. Em tal circunstância, a garantia da remuneração operacional de 3% tem o potencial de incrementar as vendas desta, por reduzir os riscos em que incorre nessa expansão comercial, e inverte o resultado do RA.[6]
Voltando ao exemplo acima, no caso de a margem da sociedade irmã ser cifrar em 5%, há um rendimento de 2% na Requerente, associado a um gasto de 3%. O gasto de 3% não é, pois, independente do rendimento de 2%. Decidindo que, em qualquer caso, não existe uma componente positiva do lucro tributável, o Acórdão chama, em primeiro lugar, à colação algo que o artigo 23º não impõe. Em segundo lugar, vê um somente um gasto de -1%, derivado de (-3% +2%) onde existe um gasto de 3% incorrido com o propósito, ou para obter, um rendimento (+2%).
O cenário seguinte, acima aventado, no qual a margem se supõe em 7%, mostra que o RA tem inclusivamente potencial de gerar lucro tributável apenas pelo efeito contratual da margem (-3% de gastos, +4% de rendimento), mesmo ignorando o efeito potencialmente lucrativo do incremento das vendas da Requerente às empresas irmãs. E quando se conclui que o gasto de 3% funciona sempre e só como uma transferência de gastos das irmãs para a requerente, totalmente desligado do interesse empresarial desta, expressa-se uma conclusão que não partilho, pois vai contra a lógica de relacionamento entre sociedades que prosseguem fins economicamente racionais.
O quadro que acima se mostrou evidencia que a assunção de gastos das irmãs tem associado um potencial de geração de rendimentos (vendas), e até evidencia mais do um potencial, apresenta um efetivo crescimento de tais vendas. O Acórdão aceita esta ligação entre o RA e o crescimento do volume de negócios da Requerente. Nos factos provados (vide al. G), dá-se como demonstrado, o que resulta do texto contratual do RA, que:
“As empresas subsidiárias actuam como distribuidoras/revendedoras dos produtos B... sob o controlo e gestão estratégica da Requerente, designadamente no que se refere à localização das lojas, às campanhas de promoção e actividades de marketing”.
Mas depois exige que a tal facto esteja associada a evidência, ou a prova, de se originarem lucros tributáveis no território nacional.
O artigo 23º do CIRC não exige, muito menos na versão de 2014, como se sublinha na parte em que o Acórdão interpreta o sentido da norma, essa demonstração numérica ou factual. Contudo, no caso dos autos, mostra-se inclusivamente um aumento de vendas associado ao RA, aceite até na lógica do Acórdão. Tal aumento implica que a requerente beneficie da margem gerada por tais vendas, pois apresenta lucros, como se mostra nos Relatórios e Contas anexos aos autos. E, complementarmente, existindo no caso da sociedade espanhola, uma inversão do resultado do RA, tal comprova rendimentos derivados da garantia de margem. Assim, no futuro, é plausível, ou potencialmente possível, que tais rendimentos, quando a margem das sociedades irmãs supere 6%, gerem ainda lucros tributáveis. A margem de 2016, na E..., aproxima-se já 6% (c.f. nota 3, supra) e a lógica económica do RA tem o potencial de proporcionar margens superiores, como é enfatizado nos autos.[7]
O Acórdão afasta-se de estes todos aspetos para concluir da seguinte forma:
“Certo é que, numa expectativa económica geral, esses resultados positivos podem originar um incremento do volume de negócios da Requerente que possa gerar, num determinado exercício económico, um acréscimo patrimonial sujeito a imposto. O ponto é que, como se deixou exposto, a dedutibilidade dos custos assenta numa relação de causalidade económica, no sentido de que o custo deva ser realizado no interesse da empresa”.
Se se considera que os resultados positivos esperados, emergentes do RA, possam originar na Requerente incremento de rendimentos e, até, acréscimo patrimonial sujeito a imposto, cumpre-se, largamente, a condição constante do artigo 23º do CIRC. Esta consiste, somente, em relacionar o gasto com um propósito ou finalidade de obtenção de rendimento. Para concluir este ponto: aceitando-se a interpretação do artigo 23º que o Acórdão perfilha, aceitando-se que existe incremento de lojas e vendas (rendimentos) derivados do RA e, por isso, potencial de geração de lucro, havendo evidência nos autos de que o RA pode, de per si, originar rendimento (e não mera redução de gastos), e sendo plausível que possa, ainda apenas de per si, proporcionar expetativas de lucro tributável, não vejo que se possa concluir desta forma, negando que a assunção da margem e 3% é sempre alheia ao interesse da Requerente, tendo-se dado como provado que as sociedades irmãs se subordinam ao interesse estratégico e empresarial desta. E, para mostrar mais cabalmente, agora num sentido económico, o interesse da requerente no RA entremos no ponto em disso se trata.
2. A lógica económica do RA e seu interesse para a Requerente
2.1 Traços económicos do RA
O Acórdão, nos factos provados, cita, do RA, o artigo 5º, no qual se estipulam as condições de remuneração em 3% da margem operacional sobre as vendas. No documento 6 anexo aos autos, que contém o texto do RA, para o caso da E... (Espanha) assinado em 2011, são ainda visíveis outros elementos que, assim o creio, se afigurariam importantes para analisar a questão do interesse da requerente na celebração do dito RA. Assim:
- A Requerente assinou com a entidade irmã, em 2001, um contrato de franchising, que até 2009 se traduziu na abertura de 11 lojas.
- A Requerente e a sociedade irmã pretenderam implementar um novo tipo de relacionamento contratual, no qual a E... compra produtos exclusivamente à Requerente e os comercializa sob a orientação estratégica e comercial da Requerente.
- A sociedade irmã realiza investimentos em lojas “prime located”, em concordância com a estratégia definida pela Requerente.
Adicionalmente, mostra-se[8] que a evolução do número de lojas em Espanha foi a seguinte:
Entre 2001 e 2009, com um contrato de franchising, abriram-se 11 lojas. Com o RA, em 3 anos (2012 a 2014), abriram-se 102 lojas. As expansão das vendas da sociedade irmã (e portanto da requerente como fornecedora exclusiva) associada a tal expansão, e sua contribuição potencial e real para a geração de rendimento, já se mostrou no ponto anterior.[9] Adicionalmente, mostra-se também nos autos que a expansão de vendas nas lojas em Portugal versus as que existem em países onde se localizam entidades com as quais celebrou RA é a seguinte:
A estes elementos, não contestados, e que não constam do elenco dos factos provados, poder-se-ia no Acórdão ter dado outra relevância, pois reforçam a óbvia a ligação entre o RA, a atividade da Requerente e o seu propósito empresarial. E a margem garantida de 3%, como se liga a tal propósito?
A resposta à questão anterior é simples. A expansão de uma sociedade como a requerente em mercados internacionais pode efetuar-se segundo várias alternativas jurídico-económicas. Numa primeira alternativa, a requerente poderia negociar com entidades independentes condições estratégico-comerciais idênticas às do RA: fornecedora exclusiva, determinação estratégica, etc. Seria impensável que tais entidades independentes não exigissem uma remuneração, um preço, por subordinarem a respetiva atividade ao interesse da Requerente, ao seu business purpose. Ao alocarem os ativos e outros recursos à venda de produtos da requerente, para mais com perda de autonomia estratégica e comercial, exigiram tal compensação; pois a sua função empresarial passaria a estar subordinada ao interesse da Requente. O dossier de preços de transferência, anexo aos autos, mostra que a margem operacional de 3% é concordante com a que exigiram entidades independentes para levarem a cabo as operações económico-contratuais que emergem do RA.[10]
Numa segunda alternativa, a Requerente poderia, a partir do território nacional, efetuar os investimentos, suportar os custos operacionais e financeiros e obter os rendimentos que tal estratégia implicaria. Em tal caso, mesmo que, no limite, a requerente nunca obtivesse um lucro tributável, desde que a motivação da expansão internacional atividade fosse (como é) economicamente justificável e racional, os gastos seriam dedutíveis.
Como se decidiu no Acórdão do STA de 27.06.2018, proferido no âmbito do processo n.º 01402/17, que versava ainda sobre a versão pré-2014 do artigo 23º, na qual avultava o conceito de indispensabilidade, claramente mais exigente do que a redação em vigor em 2014 quanto à condição de dedutibilidade:
“Quanto à indispensabilidade dos custos, como vem afirmando a doutrina de referência (…) e também a mais significativa jurisprudência, o conceito a que se reporta o artº 23º do CIRC tem sido ligado aos custos incorridos no interesse da empresa ou suportado no âmbito das actividades decorrentes ao seu escopo societário. Só quando os custos resultarem de decisões que não preencham tais requisitos, nomeadamente quando não apresentem qualquer afinidade com a actividade da sociedade, é que deverão ser desconsiderados.
Em suma, não seria a ausência de lucros, nesta segunda via alternativa ao RA, que determinaria a indedutibilidade dos gastos suportados. Bastaria a prova de que a expansão internacional tinha potencial para gerar rendimentos e afinidade com a atividade da sociedade.
A empresa, na sua liberdade de autonomia contratual, escolheu o RA. A escolha envolve gastos assumidos para com as sociedades irmãs. O que se deve analisar é se tais gastos são puros gastos de terceiros assumidos sem qualquer propósito empresarial ou económico (geração de rendimentos) ou se se sendo originariamente das irmãs mas vindo a repercutir-se na esfera da Requerente, se inserem no interesse empresarial desta. O seu interesse empresarial já foi mostrado, mas atente-se melhor na racionalidade inerente à opção da requerente.
2.2 Objetivo económico da transação
A lógica do RA e seu impacto nas vendas é simples e economicamente racional e consta desenvolvidamente dos autos. Admita-se, por exemplo, que a empresa A contrata com a empresa B que esta última venderá sapatos de alta gama numa grande cidade, comprados exclusivamente a A.
No primeiro cenário, A contrata com B um desconto de quantidade em função das vendas. No segundo cenário, estipula-se um desconto sobre as vendas de A a B, para que esta última obtenha uma margem operacional de 3%. Em qual dos cenários terá B maior incentivo (e menor risco) para vender os sapatos comprados a A?
Estou convicto de que é no segundo. Ao ter a garantia de uma margem que lhe cobre os gastos operacionais, poderá B lançar-se na busca de localizações de lojas mais atrativas, em campanhas de marketing mais fortes, na contração de pessoal mas habilitado, etc., para incrementar vendas. No primeiro cenário, o desconto, apenas sobre as vendas, deixa ainda o risco de outros gastos (e.g., pessoal, rendas, energia) não serem cobertos e B poder ter um prejuízo. E, assim, B retrai-se na sua política comercial. É, pois, o segundo cenário, mais potenciador de vendas de A a B, e de benefícios esperados, o mecanismo lógico indutor do RA aqui em causa. As Guidelines da OCDE citadas no Processo são elucidativas sobre a racionalidade e interesse de tal estratégia.[11]
O exemplo que se segue permite quantificar o funcionamento da estratégia, economicamente racional, subjacente ao RA, cuja explicação consta dos autos e foi desenvolvida na prova testemunhal e à qual o Acordão poderia atribuir maior peso na análise factual e no fundamento decisório.
Assim, admita-se que uma entidade ALFA vende a uma sociedade irmã nas condições constantes do RA. Num cenário 1 as vendas da irmã ascendem a 100, no cenário 2 a 150 e no cenário 3 a 200. As compras à entidade vendedora – equivalente à Requerente – representam 60% das vendas, e a estrutura de gastos, onde se supõe alguma fixidez, engloba rendas, pessoal, etc. é a que consta do quadro seguinte.
|
Cenário 1
|
Cenário 2
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Cenário 3
|
Vendas da soc. irmã
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100
|
150
|
200
|
- Custo das mercadorias (vendas da requerente)
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60
|
90
|
120
|
- Rendas
|
15
|
20
|
25
|
- Gastos com pessoal
|
10
|
12
|
15
|
- Outros gastos operac.
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20
|
22
|
24
|
Total gastos operac. Da irmã
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105
|
144
|
184
|
= Margem operacional
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-5
|
6
|
16
|
Pagamento (-) /recebimento (+) por parte da requerente
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- 8
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+1,5
|
+10
|
Margem da soc. Irmã após efeito do RA (3% das vendas)
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3
|
4,5
|
6
|
O quadro mostra, em sentido idêntico ao que aconteceu realmente na E..., a geração de rendimento (+1,5) associada a um gasto (- 4,5) no cenário 2. No cenário 3, existe não só rendimento como também lucro (+4=10 - 6). Ora estando, em 2016, como antes se mostrou, a margem da E... já próxima de 6%, é plausível admitir que a simples mecânica do RA tenha o potencial de gerar lucros. (Porém, como já mencionei, a lei exige apenas um propósito de obtenção de rendimentos).
O Acórdão, se bem o leio, veria no “cenário 3” do quadro acima somente um gasto alheio ao interesse de ALFA (e por isso não dedutível) no valor de 6. O que se verifica, porém, é que ao gasto de 6 está associado um rendimento de 10, pois a entidade irmã tem no RA um incentivo a incrementar as vendas e as compras a ALFA. Neste cenário 3, mesmo pagando 10 a ALFA a entidade irmã obtém uma margem operacional maior (+6) (dupla em valor absoluto) do que no “cenário 1” (no qual era de +3). Isso só acontece por via do aumento do volume de negócios, que é não é desligável do efeito de incentivo económico do RA sobre a sociedade irmã. Esta é, pois, uma genuína motivação empresarial e envolveu um desenho legal do RA que tem vantagem para ambas as partes nele intervenientes, como a racionalidade económica determinaria.
O sentido da evolução das vendas da Requerente que o quadro encerra está provado nos autos. A evolução do efeito financeiro específico do RA, está provado na E..., que atingiu o “cenário 2”, e pode chegar plausivelmente ao “cenário 3”.[12] As restantes irmãs, caso atinjam a escala de vendas esperada, poderão, pela lógica do RA, apresentar potencial de geração rendimento.
Quando no Acórdão se refere que: “O que se verifica é que a Requerente suporta gastos que entidades terceiras incorrem no âmbito do seu próprio processo produtivo empresarial”,
julgo que, salvo o devido respeito, se esquece que a atividade desenvolvida pelas irmãs é exercida de forma subordinada à orientação e ao desígnio empresarial da Requerente. Ou seja, que “o processo produtivo empresarial” das sociedades irmãs é fortemente determinado pela sua relação com a Requerente por via do RA. A Requerente suporta, pois, gastos de uma atividade que não configura um processo produtivo ou empresarial autónomo das entidades irmãs, por estas independentemente determinado, mas antes largamente desenvolvido no contexto dos fins empresariais da Requerente.
Isto bastaria, em meu entender, para admitir a dedutibilidade dos gastos controvertidos no âmbito do artigo 23º do CIRC. Decorre do RA um interesse mútuo em incrementar as vendas de todas as partes envolvidas. Há, nos autos, reflexos de que tal racionalidade teve impacto nos rendimentos da Requerente.
Esse suporte de gastos das sociedades irmãs é assim, empresarialmente, um encargo da requerente com vista à obtenção de benefícios na sua esfera: lojas, vendas e atividade aumentadas, e consequente incremento de rendimentos; e potencial de lucratividade. No caso dos autos, a assunção de tais gastos de 3% constitui economicamente o preço ou a remuneração em face da adesão das irmãs ao RA e ao interesse da requerente (exclusividade de venda dos produtos, perda de autonomia estratégica, obediência às diretrizes comerciais da requerente, etc.).
3. A fundamentação sobre a aplicação do artigo 23º do CIRC
O Tribunal e, por conseguinte, o Acórdão de que divirjo, é livre de apreciar os elementos de que dispõe. Porém, creio que, no caso em concreto, não seria inteiramente descabido, na estruturação global do Acórdão, apreciar especificamente os argumentos usados no Relatório da Requerida para negar a dedutibilidade dos gastos ao abrigo do artigo 23º do CIRC.
A Requerida, no ponto do Relatório de inspeção intitulado "Análise da forma do negócio versus a substância do mesmo" aponta questões como a transferência de resultados, o financiamento a fundo perdido, a criação de um regime próprio de tributação do grupo, como motivações ou consequências do RA. Em suma, que o RA teria porventura objetivos de planificação fiscal evasiva. Tais asserções implicariam a invocação de normas fiscais bem diferentes do artigo 23º do CIRC como impeditivas da dedutibilidade dos gastos inerentes ao RA. E, por isso, a Requerida, para aplicar ao caso o artigo 23º do CIRC, sustenta a tese de que não existe relação entre os gastos do RA e a atividade e vendas da Requerente.
Os quatro fundamentos que se me afiguram mais relevantes para a tese sustentada, de negar relação entre o RA e quaisquer benefícios da Requerente, constam das conclusões do Relatório de Inspeção e seriam os seguintes:
a)não há ligação entre o RA e as vendas da Requerente, porque o desconto na margem das empresas irmãs só se faz no fim do ano, quando as vendas já estão feitas;
b)os stocks não beneficiam desse desconto;
c) o desconto sobre a margem não depende de quantidades nem de preços de venda;
d) não se poderá alegar que sem o RA o negócio entre a requerente e as sociedades irmãs não existiria.
São argumentos inquinados pela factualidade do caso. A margem operacional apura-se, como se sabe, no fim do ano, aquando do fecho de contas, daí que só então se calcule o gasto (desconto) a suportar pela Requerente para acertar em 3% a margem operacional das contrapartes. Isso não significa que, ao longo do ano, as vendas destas (e concomitantes compras à Requerente) não sejam positivamente afetadas pelas disposições do RA.
Quanto aos stocks, bastaria ler o RA, no seu artigo 3º, nº 3, sobre a possibilidade de devolução dos stocks não vendidos à Requerente, para tornar irrelevante este argumento da Inspeção.
Sobre o terceiro, a testemunha da Requerida reconheceu que o desconto, ou acerto de margem operacional, para 3% das vendas, depende das vendas. E nem seria preciso isso, pois a margem operacional, ao resultar da diferença entre vendas e custos operacionais depende, obviamente, de quantidades vendidas e preços de venda.
Sobre o último, a questão não é saber se o negócio não existiria, é a de saber se sem o RA a expansão do número de lojas e de vendas seria a mesma. Os factos que antes referi, e que constam dos autos, são claros quanto ao impacto positivo do RA no número de lojas e nos rendimentos gerados na esfera da Requerente.
4- Notas finais sobre “substância e forma”, jurisprudência e “transferência de resultados”
As asserções de que ao RA poderia, eventualmente, ter presidido uma certa motivação de gestão fiscal internacional, e não um interesse económico da Requerente são, como já referi, aventadas pela Requerida. O Acórdão, apontando possíveis intenções subjetivas da Requerente, enfatiza que o RA teria permitido a esta furtar-se ao regime fiscal dos instrumentos de capital próprio, pois os gastos do RA são equivalentes a financiamentos em capital próprio, que não seriam dedutíveis.
Não vejo nisto qualquer relevo no contexto do artigo 23º do CIRC e do que nele se determina como condição geral de dedutibilidade de gastos. E tal linha de raciocínio implicaria que se negue a dedutibilidade a certos gastos que o artigo 23º, nº 2, explicitamente aceita: os descontos. E tal é notado pela requerente, numa perspetiva a que Acórdão também não dá a atenção que mereceria.
Assim, caso uma empresa A transacione com uma empresa relacionada B (e.g., uma sociedade irmã estrangeira) de modo a que última possa beneficiar, sistematicamente, de um desconto de 10% sobre as vendas, previamente contratualizado, e admitindo que durante vários períodos económicos a empresa B apresenta um consumo de matérias de 700 (compras a A) e outros gastos operacionais de 350, e as suas vendas sejam de 1000, então a sua margem operacional será de -50 = (1000-700-350).
O desconto que A faculta a B será num total de 70 (10%*700). Tal implica, após os efeitos do desconto, uma margem positiva em B no valor de 20; reduz os encargos desta, e incrementa os de A, transferindo custos de B para A, numa implicação financeira semelhante ao RA, salvo na base de cálculo, mas de consequências financeiras iguais.
No exemplo acima, o desconto também permite pagar despesas operacionais, como pessoal, rendas, etc. E até extra operacionais, como encargos financeiros.[13] Ou seja, embora ele se calcule sobre as vendas e não a partir da margem operacional, a transferência de meios de A para B permite a esta (dada a fungibilidade dos meios monetários) suportar qualquer tipo de encargo com tais fundos que recebeu (ou que deixou de pagar e por isso ficam na sua esfera patrimonial).
Também aqui, seguindo da lógica do Acórdão, haveria porventura equivalência a entradas de capital, que suportariam o embate das perdas de B.
O artigo 23º admite expressamente a dedutibilidade de tais descontos, que nem sequer têm associada a possibilidade de reversão do resultado financeiro, como o RA; e também não condiciona tal dedutibilidade à localização geográfica de A e B. Porque permite o artigo 23º a dedução de tal desconto? Certamente porque tem o potencial de incrementar as vendas de A para B, a atividade e os rendimentos de A. A lógica do RA é a mesma.
Perpassa no Acórdão, se bem o leio, a perspetiva segundo a qual o RA funciona como uma espécie de mecanismo de gestão financeira e fiscal transferindo gastos e lucros de acordo com as conveniências de um grupo. Não vejo que o artigo 23º do CIRC possa servir de base a esta análise económico-fiscal. O artigo 23º do CIRC, como afirmava Saldanha Sanches, não pode ser considerado como uma cláusula geral anti abuso avant la lettre…”[14]. Rui Morais[15] afirma que na apreciação da subsunção dos gastos ao artigo 23º, deve levar-se em conta o intuito objetivo da transação – o interesse empresarial. Ou seja, considerações sobre temas como transferência de resultados, um suposto regime especial de tributação resultante do RA, o possível intuito da Requerente em evitar o regime fiscal dos instrumentos de capital próprio, não quadram com tal norma e sim com outras bem conhecidas do ordenamento tributário.
Divirjo ainda do Acórdão na relevância do "Caso Hummel"[16]. Onde o Acórdão vê irrelevância para o caso dos autos, vejo uma decisão que merecia ter noutra influência na decisão. Quando no Acórdão se refere que, nesse caso Hummel:
“…o gasto incorrido nessa circunstância funcionava como um suporte indirecto da relação comercial mantida com essa entidade e que era indispensável para garantir a manutenção da fonte produtora dos rendimentos, e que o tribunal, por isso mesmo, considerou dedutível para efeitos fiscais ao abrigo do artigo 23.º do Código do IRC. Não há, como é bem de ver, uma qualquer similitude com a situação dos autos, em se verifica, por via contratual, a assunção sistemática de encargos pertencentes a terceiras entidades por forma a garantir uma margem de rentabilidade mínima no âmbito da respectiva actividade empresarial ",
faltaria acrescentar que a essa assunção sistemática de encargos, determinada pela subordinação da atividade das sociedades irmãs ao interesse da Requerente (cf. clausulado
do RA e G) dos factos provados), se associou um sistemático crescimento de rendimentos da Requerente, aceite no Acórdão.
E que essa assunção continuada permitiu a expansão da atividade das irmãs com o consequente impacto na evolução dos rendimentos efetivos e esperados da requerente (vendas para as irmãs) e no seu potencial de lucratividade, por via de tais vendas e dos efeitos específicos da mecânica financeira do RA, que se mostrou na sociedade irmã economicamente mais representativa. Em síntese, a dita assunção continuada de encargos tem, para a Requerente, um propósito empresarial; como a assunção ocasional o tinha no caso Hummel.
5- Conclusão
Os encargos resultantes do Retail Agreement (RA) constituem um preço, ou uma contrapartida, que a Requerente paga às sociedades irmãs para que estas, em regime de exclusividade, sob sua orientação estratégica e diretrizes comerciais, alocando ativos à prossecução de interesses da Requerente, vendam os produtos desta. Entidades independentes, nas quais a Requerente assentasse idêntica expansão internacional de vendas, exigiram igual compensação média. As Guidelines da OCDE sobre operações entre partes relacionadas e seus preços contêm abundantes exemplos de estratégias semelhantes ao RA, que mostram a normalidade e interesse de tais atos de gestão para entidades – como a Requerente - que os praticam. (O que haverá a avaliar é se, numa perspetiva de gestão fiscal potencialmente evasiva, respeitam ou não as regras de plena concorrência).
Ao RA está potencialmente associado (e até provado) um aumento de vendas da Requerente e, por isso, de rendimentos sujeitos a imposto (cf,. art. 20º, nº 1, do CIRC). Associado ao RA, em face do respetivo clausulado e das condições financeiras em que opera, está ainda associado (e provado) um potencial de, por si próprio, acrescendo pois aos rendimentos resultantes das vendas às sociedades irmãs, gerar rendimentos (cf. também art 20º, nº1, do CIRC); e sendo até plausível que, per si, possa gerar lucro líquido (que o artigo 23º do CIRC não exige).
Os gastos derivados do RA estão, pois, relacionados com o interesse comercial da Requerente. O Acórdão, ao decidir que constituem, sempre e só, mera transferência de gastos, totalmente alheios ao interesse da Requerente, vai num sentido que não acompanho, em face do que se estabelece no artigo 23º do CIRC e sua interpretação acolhida no Acórdão, dos elementos de prova constantes dos autos sobre a motivação empresarial, a racionalidade económica do RA e o seu impacto nos rendimentos da Requerente, da doutrina, e da jurisprudência sobre assunção de gastos de terceiros, desde que feita no interesse ou propósito da sociedade que os acolhe, como é o caso dos autos.
António Martins
[1] Pese embora, no último trecho, já se excluir tal relação, ou nexo, com o interesse da Requerente. Não vislumbro como se articulam tais posições.
[2] Refiro-me ao quadro que consta da p. 13 da Petição Inicial da Requerente, a seguir reproduzido.
[3] Tal como Relatórios e Contas e os documentos 16 e 17 anexos aos autos.
[4] Vejam-se os valores de 2015 e 2016 na E..., que geram certamente rendimentos (de 1,45 e 1,95 milhões de euro, respetivamente) aumentando valores faturados pela Requerente (cf. docs. 16 e 17 anexos aos autos) e apurados na classe 7 (Rendimentos e ganhos) do plano de contas do SNC. Para gerarem lucro tributável é apenas necessário que a margem da sociedade irmã se situe acima de 6%.
Aplicando aos valores E... para 2016 a margem bruta que se verificou no Relatório da Inspeção em 2014, junto ao autos, as vendas projetadas seriam aprox. de 90 milhões de euro, e margem situar-se-ia em torno de 5,2% = (2,7+1,95)/90. Os valores de vendas das restantes sociedades ainda não atingiram um efeito de escala que altere o efeito do RA, mas o caso da E... prova que tal é possível e, por conseguinte, os gastos do RA têm potencial de geração de rendimento e até de lucros. E os valores negativos globais do efeito do RA diminuíram fortemente, o que permite considerar como expetável a inversão do seu efeito. E mesmo que assim não aconteça, se à celebração RA presidiu uma genuína motivação empresarial (expectativa de incremento de vendas e resultados) não tem de se verificar obrigatoriamente lucratividade futura. Apenas a demonstração que a sua expetativa não seria descabida, face ao ato de gestão praticado, no momento em que o foi.
[5] Ou seja, sem levar em conta o impacto nas vendas e resultados da Requerente em função do acréscimo de compras das sociedades irmãs com as quais celebrou o RA.
[6] É isso que a Petição, a prova testemunhal e as Alegações mostram.
[7] A referência a elementos futuros de proveitos e lucratividade é erigida pelo Acórdão em condição relevante. Assim, não se pode deixar de chamar à colação a evidência numérica, pós 2014, que os autos contêm e que as Partes tinham à disposição. Com efeito, o Acórdão refere: “Não há, no entanto, nenhuma evidência de que o aumento dos resultados operacionais das subsidiárias que se encontrem associados ao aumento global das vendas ou do número de lojas próprias, por efeito da assunção de encargos pela Requerente, possa gerar proveitos que impliquem, em anos futuros, um incremento do lucro tributável sujeito a IRC no território nacional.”
A “evidência”, entendida como prova ou certeza, sobre a associação RA a proveitos e lucros futuros, até consta dos elementos relativos a 2015 e 2016, quanto a rendimentos (proveitos). Embora a doutrina e a jurisprudência sejam consensuais sobre o facto de a apreciação dever ter em conta os elementos que se conhecem à data dos atos praticados. E, nessa data, a racionalidade ou a finalidade empresarial do gasto era clara, como adiante mostrarei.
[8] Vide o documento nº 15 anexo aos autos e a Petição Inicial.
[9] À data da Petição o número de lojas em Espanha era já de 290, conforme documento junto aos autos.
[10] Julgo que a questão fiscal que poderia emergir do RA seria a da adequação da remuneração entre entidades relacionadas, e não a do interesse empresarial do RA. A este atribuem-se de finalidades de mera transferência de encargos sem qualquer vantagem ou finalidade empresarial da Requerente, como a Requerida assim o entendeu. (Adiante voltarei aos fundamentos da Requerida para aplicar o art. 23º a este caso concreto).
[11] As ditas Guidelines, na versão ao tempo em vigor, mencionam (§ 9.27, subl. meu):
“As a third example, suppose now that a principal hires a contract manufacturer to manufacture products on its behalf, using technology that belongs to the principal. Assume that the arrangement between the parties is that the principal guarantees to the contract manufacturer that it will purchase 100% of the products that the latter will manufacture according to technical specifications and designs provided by the principal and following a production plan that sets the volumes and timing of product delivery, while the contract manufacturer is allocated a guaranteed remuneration irrespective of whether and if so at what price the principal is able to re-sell the products on the market.”
O que acontece na operação em causa nos autos é uma remuneração garantida a um contract distributor, seguindo este as diretivas e o interesse comercial da Requerente. Mas acontece até que essa remuneração, atingindo certo valor, inverte em favor da requerente o respetivo resultado. (Seria muito improvável que a OCDE, ao tratar de preços de transferência, dê exemplos a que a Requerida aplica o artigo 23º do CIRC, com o fundamento de que os gastos se são totalmente alheios do interesse de quem celebra tal contrato).
[12] O Acórdão exige prova ou evidência (que o Tribunal não encontra) de condições futuras de rendimento e lucratividade. O potencial para que tal aconteça – a condição imposta pela lei, e não mais - resulta, em meu entender, do simples desenho e lógica interna do RA. Nos autos está provado o efetivo aumento de rendimento. O potencial de lucratividade futura, também o está.
[13] O Acórdão dá relevo a esta questão na análise do RA, mencionando que poderia pagar juros e outros encargos financeiros. Numa ótica puramente contabilística, sendo a base de cálculo a margem operacional, assim não seria, porque os juros se deduzem após o cálculo de tal margem; mas, dada a fungibilidade do dinheiro, é plausível admitir-se que tal possa acontecer. Todavia, idêntica lógica vale para os descontos dos quais uma empresa com perdas operacionais beneficie. Daí a similitude que sustento no exemplo.
[14] J. L. Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, 215.
[15]R. Morais, Apontamentos ao IRC, Coimbra, Almedina, 2007, 87.
[16] No qual uma entidade A pagou encargos de uma entidade B (a quem vendia produtos) perante um terceiro C. Tal pagamento, ocasional e sem garantia (mas com expetativa potencial) de rendimentos futuros, foi considerado dedutível pelo Tribunal.