Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 171/2018-T
Data da decisão: 2018-11-19  IRC  
Valor do pedido: € 763.851,65
Tema: IRC – Dedutibilidade de custos – Tributação autónoma.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., Lda., pessoa colectiva n.º..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC e de liquidação de juros compensatórios, no montante global de € 763.851,65.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

As correções do lucro tributável resultaram da desconsideração para efeitos fiscais de gastos incorridos com a B... e a C... na intermediação da venda de fracções autónomas de um prédio urbano, que ficaram sujeitos a tributação autónoma, e pela não aceitação como gasto da diferença apurada entre o valor das frações autónomas a transmitir a título de dação em pagamento para liquidação de uma dívida à D... e a importância que esta efectivamente  auferiu por efeito da transmissão.

 

Os gastos com as empresas intermediárias correspondem à remuneração dos seus serviços relativamente à venda de frações, que incluem a angariação de clientes e a prestação de diversos serviços jurídicos e que apenas são processadas e pagas quando se concretize a transmissão dos bens, correspondendo a despesas que foram efectivamente realizadas.

 

Sendo que essa relação comercial propicia um alargamento do mercado imobiliário em que a Requerente intervém e tem a vantagem de permitir obter preços de transação líquidos dos normais encargos de angariação de clientes.

 

No que se refere à não aceitação como gasto da diferença apurada entre o valor da dívida à D... e a importância efectivamente percebida, ela corresponde à compensação do lucro que a D... deixou de auferir em virtude de a Requerente ter vendido uma das frações em causa a um terceiro por um valor superior ao constante do contrato de dação em pagamento e que teve de restituir na medida da diferença à contraparte.

 

Concluiu no sentido da ilegalidade da liquidação adicional de IRC por, em qualquer dos casos, ter incorrido em gastos que são fiscalmente dedutíveis.

 

       A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que em relação às importâncias pagas a pessoas coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, como é o caso da B... e a C..., que se encontram sediadas em Hong Kong, a dedutibilidade para efeitos fiscais está dependente da prova, que incumbe ao sujeito passivo, de que esses encargos correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um caracter anormal ou um montante exagerado, operando aí uma regra de inversão do ónus da prova.

 

       No caso concreto, embora as entidades em causa possam ter angariado clientes e estabelecido canais de ligação com cidadãos chineses, subsistem dúvidas razoáveis sobre a extensão e a justa remuneração dos serviços efectivamente prestados, e não está demonstrado que a intervenção na celebração dos contratos, no acompanhamento dos clientes nas deslocações a Portugal, e nas visitas aos imóveis, tenham sido asseguradas pela B... em território português.

 

       Além de que não foram juntos documentos que evidenciem uma relação comercial específica e directa entre a Requerente e essas entidades.

 

Quanto ao contrato de promessa de dação em pagamento, as cláusulas constantes do aditamento a esse contrato permitem constatar que a D..., com a transferência das três frações autónomas para a sua propriedade, valorizadas em € 1.239.500,00, a que acresce a quantia de € 318.000,00 paga pela Requerente, passou a auferir a verba de € 1.557.500,00, quando deveria receber € 1.500.000,00, para a quitação da dívida à Requerente, pelo que a diferença de € 57.500,00 não pode ser aceite como um gasto fiscal nos termos do artigo 23º do CIRC, por se tratar de uma restituição apenas justificada para o acerto das contas entre estas duas sociedades.

 

Concluiu pela improcedência do pedido.

 

  2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e não houve lugar a produção de prova testemunhal.

 

Em alegações pelo prazo sucessivo as partes pronunciaram-se sobre os resultados probatórios resultantes dos elementos do processo e, no mais, mantiveram as suas anteriores posições, sendo que a Requerente, ainda que tenha mantido o pedido formulado na petição inicial, não faz expressa referência, nas alegações, à dedutibilidade de gastos incorridos com compensação a terceiro. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 14 de junho de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não são invocadas excepções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. Requerente tem como objecto social a compra, venda e revenda de propriedades, construção civil e urbanização e sucedeu, por fusão, à E... S.A., pessoa colectiva n.º...;
  2. A E... foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2017..., relativa ao exercício de 2014, por efeito da tributação autónoma de encargos suportados com não residentes, no montante de € 707.772,78, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2017..., no montante de € 56.078,88, no total de € 763.851,65;
  3. A E... foi objecto de uma inspeção externa credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2016..., destinada a efectuar o controlo declarativo da situação tributária do sujeito relativamente ao exercício de 2014;
  4. A E..., no decurso de 2014, procedeu à venda a cidadãos chineses de 9 fracções autónomas do prédio denominado..., sito na ..., em Lisboa, identificadas com as letras AC, AD, AG, I, J, R, AE, W e B, pelos valores parcelares de € 500.000,00, €1.040.000,00, €1.050.000,00, € 520.000,00, € 545.000,00, € 1.000.000,00, € 547.000,00, € 510.000,00 e  € 750.000,00, respectivamente, no valor global de 6.462.000,00.
  5. A E... pagou à B..., relativamente às vendas das fracções identificadas com as letras AC, AD, AG, I, R e B, importâncias sobre o valor das vendas de € 100.000,00, € 208,000,00, € 210,000,00, € 104.000,00, € 200.000,00 e € 150.000,00, respectivamente, que correspondem a 20% do preço de venda;
  6. A E... pagou à C..., relativamente às vendas das fracções identificadas com as letras J, AE e W, importâncias sobre o valor das vendas de € 111.400,00, € 60.975,61 e € 24.390,24, respectivamente, que correspondem a percentagens de 20,44%, 11,15% e 4,78% do preço da venda;
  7.  Esses gastos foram tidos pela Administração Tributária como não dedutíveis para efeitos fiscais, e passaram a ficar sujeitos a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º, n.ºs 1 e 8, do Código de IRC, por se não ter provado que correspondem a operações reais e não têm carácter anormal e excessivo;
  8. Em 12 de maio de 2014, a E... celebrou um contrato de prestação de serviços com a B... em vista auxiliar a primeira outorgante na concretização de vendas imobiliárias a clientes chineses e pelo qual a B... se comprometia a fornecer a potenciais clientes os detalhes técnicos e informações disponíveis sobre os imóveis, a organizar e prestar assistência nas visitas aos imóveis, a recolher junto dos clientes a documentação necessária para a formalização do contrato promessa e da escritura de compra e venda e no seu agendamento.
  9. Em contrapartida dos serviços prestados, a E... remunerava a B... mediante o pagamento de 20% sobre o preço de venda que seria efectuado após a realização da escritura;
  10. À data da celebração do contrato, B... tinha como actividade principal auxiliar cidadãos chineses a obter autorização de residência em países da União Europeia;
  11. Em 5 de junho de 2014, a E... celebrou um contrato de prestação de serviços com a C... em vista a incrementar a venda de imóveis em mercados internacionais, e pelo qual a segunda outorgante se comprometia a desenvolver actividades de promoção, divulgação e recolha de informação sobre potenciais negócios e potenciais adquirentes, bem como a respeito das características dos imóveis pretendidos pelos mesmos;
  12. Como contrapartida dos serviços prestados, a E... obrigava-se a pagar honorários correspondentes a 20% do preço de venda, que apenas eram devidos após a realização da escritura;
  13. Para a celebração do contrato foi relevante a localização da C... no Este da Ásia e o seu conhecimento mercado imobiliário local;
  14. A B... e a C... exerceram em benefício da E... actividades de angariação de clientes, promoção dos imóveis, divulgação e marketing dos negócios, organização e recolha de documentação para a transação, organização e assistência nas visitas de potenciais clientes a Portugal e apoio na execução dos contratos;
  15. O gerente da E... manteve correspondência por correio electrónico com colaboradores das empresas B... e a C... com referência à mediação de venda de imóveis;
  16. A E... vendeu as fracções identificadas nas anteriores alíneas E) e F) por valores, em regra, superiores à de fracções equivalentes transacionadas no mercado interno;
  17. Na ação inspectiva concluiu-se ainda que, por efeito do aditamento a uma promessa de contrato de dação em pagamento destinada a solver uma dívida à D..., no montante de € 1.500.000,00, a Requerente transferiu para a propriedade dessa entidade três frações autónomas no valor de € 1.239.500,00, mais a quantia de € 318.000,00,00, no valor global de € 1.557.500,00;
  18. A Administração Tributária considerou que o montante de € 57.500,00, correspondente à diferença que excede o valor da dívida, que foi declarada como gasto, ainda que possa justificar-se a título de acerto de contas, não é dedutível para efeitos fiscais;
  19. Em 28 de fevereiro de 2018, a E... celebrou com a D... um contrato promessa de dação em pagamento, pelo qual reconhece a dívida de € 1.500.000,00 e promete dar em pagamento quatro fracções autónomas,  identificadas pelas letras P, Q, X e W, no valor de € 412.500,00 € 408.500,00 € 418.500,00 e € 412.500,00 respectivamente, comprometendo-se a D... a reembolsar a primeira outorgante da quantia de € 152.000 correspondente ao excesso recebido em bens imóveis.
  20. Em 18 de novembro de 2014, foi realizado um aditamento ao contrato de promessa de dação em pagamento, pelo qual a E... declara ter vendido, com a autorização da D..., a fração autónoma W pelo proveito líquido de € 470.000,00 e compromete-se a celebrar, em janeiro de 2015, a venda à D... das fracções P, Q e X, no valor global de € 1.239.500,00;
  21.  No aditamento ao contrato de promessa de dação em pagamento referido na alínea anterior, as partes acordaram no seguinte acerto de contas: (a) a transmissão da propriedade da fração W efectua-se pela entrega da quantia de € 470.000,00; (b) com a dação em pagamento das fracções P, Q e X e a entrega da quantia de € 470.000,00, a 2.ª outorgante recebe o montante global de € 1.704.500,00 pelo que fica a dever à primeira outorgante € 152.000,00;
  22. A E... concretizou a transmissão de três fracções autónomas para a D..., no valor global de € 1.239.500,00, e emitiu um cheque no valor de € 318.000,00 a favor dessa entidade, totalizando o montante de € 1.557.500,00, que excede em € 57.500,00 o valor que se encontrava em dívida;
  23. O montante de € 318.000,00 corresponde ao somatório da dívida remanescente, constituída pela diferença entre € 1.500.000,00 e € 1.239.500,00, e a compensação pela venda da fracção autónoma W, resultante da diferença entre o montante pelo qual essa fracção tinha sido dada em pagamento (€ 412.500,00) e o proveito líquido obtido com a venda (€ 470.000,00);
  24. Em aplicação do disposto no artigo 23.º do Código de IRC, a Administração Tributária não aceitou a importância de € 57.500,00 como gasto fiscal

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

Matéria de direito

 

Dedutibilidade de gastos incorridos com entidades não residentes no território português

 

5. A Autoridade Tributária não aceitou a dedutibilidade de gastos incorridos pela Requerente com empresas sediadas em Hong Kong por considerar que, tratando-se de entidades estabelecidas em jurisdição de fiscalidade privilegiada, competia ao sujeito passivo provar, nos termos previstos no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r), do Código do IRC, que os gastos correspondiam a operações reais e não tinham um carácter anormal ou um montante exagerado, vindo a concluir, nesse sentido, que não foram apresentadas provas concretas, no âmbito do procedimento inspectivo, de que essas despesas foram efectivamente realizadas e correspondem à justa remuneração dos serviços prestados.

 

A referida norma do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea r), do Código do IRC, na redacção vigente à época, dispunha nos seguintes termos:

 

1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: 

(…)  

r) As importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal identificado por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças como um regime de tributação claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo provar que tais encargos correspondem a operações efetivamente realizadas e não têm um caráter anormal ou um

montante exagerado;

(…).

 

Nos termos da Portaria n.º 292/2011, de 8 de novembro, o território de Hong Kong, onde se encontravam sediadas as empresas beneficiárias dos pagamentos, estava incluída na lista dos países e regiões com regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis, pelo que os gastos suportados com essas entidades se encontravam abrangidos pelo referido regime legal.

 

       Segundo o entendimento da doutrina, a norma estabelece a inversão do ónus da prova relativamente a pagamentos efectuados a sociedades instaladas em paraísos fiscais, pretendendo instituir uma medida anti-abuso. Com efeito, o que se tem em vista é liberar a Administração Fiscal da prova da falsidade da operação, para efeito de proceder à cobrança do imposto, relativamente a situações que se sabe serem normalmente simuladas e destinadas a propiciar a evasão fiscal. Nesse caso, deixa de funcionar a regra geral de direito probatório que resulta do artigo 74.º da LGT, que faz impender sobre a Administração a prova da existência dos factos tributários em que assenta a liquidação, em consonância com o estabelecido em geral no artigo 342.º do Código Civil, seguindo-se antes o princípio jurídico segundo o qual o encargo da prova deve pertencer à parte que mais facilmente está em condições de a realizar (cfr. Luís Menezes Leitão, “Aplicação de Medidas Anti-Abuso na Luta Contra a Evasão Fiscal”, Revista Fisco, n.ºs 107/8, Março 2003, pág. 38).

 

       Entende-se também que para a “prova da veracidade da operação não bastará a exibição de documentos escritos, nomeadamente contratos celebrados entre as partes (já que estes se presumem simulados) nem a demonstração do pagamento do preço (pois tal não é posto em causa). O que deve ser demonstrado é a efectiva prestação de serviços, o recebimento de empréstimos, a utilização de direitos de propriedade industrial, etc. Já quanto à prova da inexistência do carácter anormal ou exagerado nas despesas, esta deve estabelecer-se demonstrando que o contrato cuja veracidade se provou, se apresenta equilibrado. Para esse efeito, o contribuinte deve demonstrar qual a importância real das vantagens conferidas pelo contrato e provar que os encargos estabelecidos constituem a justa remuneração dessas vantagens, nomeadamente por comparação com os custos de serviços análogos no mercado” (Ibidem).

 

            No caso vertente, o que se demonstra é, não só que a E... celebrou contratos de prestação de serviços com as empresas em causa, como também esses contratos, através da intervenção mediadora dessas entidades, permitiram incrementar a venda de imóveis no mercado chinês, assim se compreendendo que as nove transações imobiliárias sobre que incidiram os gastos declarados pelo sujeito passivo tenham sido efectuadas com cidadãos chineses. É sintomático que os contratos de prestação de serviços de mediação tenham sido celebrados com entidades que intervinham já em actividades de apoio a cidadãos chineses que pretendiam obter autorização de residência em países europeus (B...) ou se encontravam já implantadas no mercado imobiliário asiático (C...). Não podendo deixar de reconhecer-se a normalidade da relação comercial quando, na lógica de mercado, a venda de imóveis nessas circunstâncias estaria sempre dependente de actividades de angariação, promoção e divulgação no plano externo. Além de que essa função mediadora se encontra suficientemente documentada através da correspondência comercial trocada entre a vendedora e os representantes das empresas intervenientes.

 

Por outro lado, não pode dizer-se que a remuneração é excessiva ou envolve valores simulados quando a E... logrou vender os imóveis por preços em regra superiores a de outras fracções que foram transacionadas no mercado interno e se demonstra que os pagamentos eram calculados com base numa percentagem sobre o preço da venda e eram  apenas efectuados após a realização da escritura.

 

Não há, por isso, motivo para considerar que os gastos declarados não correspondem a operações efectivamente realizadas ou não envolvem uma justa remuneração da actividade desenvolvida pelos beneficiários.

 

Dedutibilidade de gastos incorridos com compensação a terceiro

 

6.  A Autoridade Tributária não aceitou como gasto fiscal a importância de € 57.500,00 por entender que esse valor corresponde a uma restituição que era devida pela D... à E... para acerto de contas.

 

Como resulta da matéria de facto dada como assente, o dispêndio dessa importância relaciona-se com o aditamento ao contrato promessa de dação em pagamento efectuado na sequência de a E... ter vendido pelo valor líquido de € 470.000,00 uma das fracções (W) que seria entregue para liquidação da dívida de € 1.500.000,00 e que tinha sido avaliada em € 412.500,00.

 

De facto, nos termos do contrato promessa de dação em pagamento, realizado em 28 de fevereiro de 2018, a E... reconheceu a dívida de € 1.500.000,00 e prometeu dar em pagamento quatro fracções autónomas,  identificadas pelas letras P, Q, X e W no valor de € 412.500, € 408.500,00 € 418.500,00 e € 412.500,00 respectivamente, comprometendo-se a D... a reembolsar à primeira outorgante a quantia de € 152.000 correspondente ao excesso recebido em bens imóveis. Tendo vendido, com a autorização da D..., a fração autónoma W pelo proveito líquido de € 470.000,00, a E..., através do referido aditamento, comprometeu-se a transmitir a propriedade das três fracções sobrantes, no valor global de € 1.239.500,00, e a entrega da quantia de € 470.000,00, no total de € 1.709.500,00, contra o reembolso do valor excedente de € 152.000,00. Este reembolso, por sua vez, corresponde à diferença entre esse valor (€ 1.709.500,00) e o montante em dívida (€ 1.500.000,00) acrescido do ganho que a E... obteve com a venda da fracção W por referência ao valor pelo qual essa fração se encontrava avaliada para efeito da dação em pagamento (€ 57.500,00).   

 

Na prática, o acordo concretizou-se mediante a emissão de um cheque no valor de € 318.000,00 a favor da D..., correspondendo essa importância ao somatório da dívida remanescente, constituída pela diferença entre € 1.500.000,00 e € 1.239.500,00, com o ganho alcançado através da venda da fracção W e que resultou de se ter obtido, com a venda, um proveito líquido € 470.000,00, superior ao montante pelo qual essa mesma fracção era dada em pagamento (€ 412.500,00).

 

Deste modo, através da entrega da importância de € 318.000,00, a E... compensou a dívida restante, isto é, o montante que se mantinha em dívida após a dação em pagamento de bens imóveis, que corresponde a € 260.50,00, e restituiu o crédito que a D... detinha por efeito do ganho que fora obtido através da venda da fracção W, que corresponde a € 57.500,00.

 

É esta última importância que a Administração Tributária desconsiderou para efeitos fiscais por entender que se trata de um valor que excede o montante em dívida e não deve ser tido como dedutível nos termos do artigo 23.º do Código de IRC.

 

 

Na redação resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, com efeitos desde 1 de janeiro de 2014, o preceito, na parte que agora mais interessa considerar, dispunha o seguinte:

“Artigo 23º

Custos ou perdas

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

2 – Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

(…)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbios, gastos com operações de créditos, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado.

(…).

 

Com a referência a todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, o legislador abandonou o conceito de indispensabilidade, que provinha da redacção anterior, e que a jurisprudência e a doutrina já vinham interpretando num sentido amplo afastando a exigência de uma necessária ligação causal entre gastos e rendimentos.

 

Nesse sentido, o acórdão do STA de 29 de março de 2006 (Processo nº 1236/05), na linha de diversa outra jurisprudência, e chamando a atenção para o carácter casuístico do preenchimento do conceito de indispensabilidade, formulou o seguinte critério:

“A regra é que as despesas corretamente contabilizadas sejam custos fiscais; o critério da indispensabilidade foi criado pelo legislador, não para permitir à Administração intrometer-se na gestão da empresa, ditando como deve ela aplicar os seus meios, mas para impedir a consideração fiscal de gastos que, ainda que contabilizados como custos, não se inscrevem no âmbito da atividade da empresa, foram incorridos não para a sua prossecução mas para outros interesses alheios. Em rigor, não se trata de verdadeiros custos da empresa, mas de gastos que, tendo em vista o seu objeto, foram abusivamente contabilizados como tal. Sem que a Administração possa avaliar a indispensabilidade dos custos à luz de critérios incidentes sobre a sua oportunidade e mérito”.

Vindo o mesmo aresto a concluir que, “sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, a Administração só pode excluir gastos não diretamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objetivo social, ou, ao menos, com nítido excesso desviante, face às necessidades e capacidades objetivas da empresa”.

Nesse sentido se tem ainda posicionado a doutrina.

Rui Morais refere que “a invocação da regra da indispensabilidade dos custos nunca pode ser feita para fazer substituir o juízo de conveniência e oportunidade dos encargos assumidos, tal como resultaram da decisão dos órgãos sociais, por outro juízo, também de índole empresarial feito pela administração fiscal ou pelos tribunais”.  E prossegue dizendo que “a questão de saber se um custo deve ser ou não havido por indispensável se deve resolver a partir do intuito objetivo da transação, ou seja do business purpose test. Julgamos ser medianamente claro o escopo da norma: recusar a comparticipação fiscal em alguns dos encargos suportados pelo sujeito passivo (…). Se à assunção do encargo presidiu uma genuína motivação empresarial (…) o custo é indispensável. Quando se deva concluir que o encargo foi determinado por outras motivações (interesse pessoal dos sócios, administradores, credores, outras sociedades do mesmo grupo, parceiros comerciais, etc.) então tal custo não deve ser havido por indispensável” (Apontamentos ao IRC, Coimbra, 2007, págs. 86-87).

            Em idênticos termos, Saldanha Sanches faz notar que “saber se um certo custo corresponde, ou não, à mais eficaz defesa dos interesses da empresa é uma questão que não pode ser resolvida mediante a atribuição de um poder de intervenção do Estado (…) de modo a realizar um juízo de mérito sobre uma certa opção de gestão empresarial, tal como não pode validar a qualificação da despesa como um custo sujeitando-a à condição da verificação a posteriori da efetiva geração de proveitos” (Os limites do planeamento fiscal, Coimbra, 2006, pág. 215).

Em síntese conclusiva, deve entender-se que a atividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a atividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando atividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de atividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou atos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos (cfr. neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).

É nesse âmbito compreensivo que deve entender-se a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a atividade empresarial, independentemente da efetiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de junho de 2013).

 

No caso vertente, não pode deixar de reconhecer-se que os gastos em causa revestem a natureza de encargos financeiros resultantes de operações de crédito que, como tal, se encontram especificamente previstos como gastos dedutíveis para a determinação do lucro tributável (artigo 23.º, n.º 2, alínea c), do Código de IRC).

 

A dúvida que vem suscitada respeita a um encargo que ampliou a dívida existente e que resultou da decisão empresarial de imputar à D... o ganho líquido obtido com a transação da fracção autónoma W. Deve ter-se presente que a liquidação da dívida deveria ocorrer pela dação em pagamento de quatro frações autónomas e foi a circunstância de as partes terem acordado na alteração do clausulado, por virtude de ter surgido a oportunidade de o devedor negociar autonomamente uma dessas fracções, que determinou a obrigação de transferir para o credor o ganho líquido obtido com essa transação.

 

No entanto, a assunção desse encargo resulta, desde logo, do aditamento ao contrato promessa de dação em pagamento, que, nos termos da sua cláusula 2.ª, passou a estipular como montante em dívida a verba de € 1.557.500, 00, correspondente à dívida originária (€ 1.500.000,00) acrescida do proveito líquido obtido com a venda da fração (€ 57.500,00). Assim se compreendendo que o excesso que à segunda outorgante incumbia restituir se tivesse mantido no valor de € 152.000,00, correspondente à diferença entre o valor do crédito da E... (€ 1.709.500,00) e o montante actualizado da dívida (€ 1.557.500,00).  

 

Poderia discutir-se se a modificação do clausulado contratual impunha a transmissão para a D... do ganho líquido obtido com a venda da fracção que inicialmente se destinava a ser dada em pagamento para extinguir a dívida. Mas o certo é que esses foram os termos da alteração contratual pela qual a dação passou a ter como objecto a transmissão da propriedade de imóveis e uma prestação pecuniária relacionada com a venda de um outro imóvel. Passando assim a incidir sobre a E... o dever de jurídico de satisfazer essa obrigação.

 

E como se deixou exposto, a relevância fiscal de um gasto depende unicamente da sua conexão com a actividade da empresa, independentemente do mérito da opção de gestão empresarial que tenha sido seguida na assunção desse encargo, havendo apenas de afastar-se os gastos que tenham sido determinados por outras motivações.

 

Não há, por isso, motivo para desconsiderar fiscalmente o gasto em causa.

 

Pedidos cujo conhecimento fica prejudicado

 

7. Face à solução a que se chega no plano do direito infraconstitucional, fica prejudicado o conhecimento das questões de constitucionalidade que vêm também suscitadas.

 

Juros compensatórios

 

8.  A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação ao acto tributário de liquidação de IRC.

 

Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

 

Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.

 

A procedência do pedido arbitral torna necessariamente inexigível o pagamento de juros compensatórios, pelo que também nesse ponto o pedido é procedente.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar procedente o pedido arbitral e anular da liquidação adicional de IRC n.º 2017..., relativa ao exercício de 2014, por efeito da tributação autónoma de encargos suportados com não residentes, no montante de € 707.772,78, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2017..., no montante de € 56.078,88, no total de € 763.851,65.

 

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 763.851,65, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 11.016,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 19 de novembro de 2018

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

Paulo Mendonça

 

O Árbitro vogal

 

Jesuíno Alcântara Martins