Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 300/2018-T
Data da decisão: 2018-10-29  IRS  
Valor do pedido: € 54.528,61
Tema: IRS – Artigo 28.º CIRS – Opção pela determinação de rendimentos com base em contabilidade organizada – Competência do Tribunal Arbitral.
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Decisão Arbitral

I - Relatório

A -Identificação das Partes

Requerente: A..., com o NIF..., com domicílio na Rua ..., ..., ...-... Porto, doravante designado como Requerente ou Sujeito Passivo.

Requerida: Autoridade Tributaria e Aduaneira, doravante designada como Requerida ou AT.

O Requerente apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), adiante abreviadamente designado por RJAT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi aceite pelo Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), e em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, foi 2018-05-28 notificada a Autoridade Tributária.

O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou a Árbitra Rita Guerra Alves, aceite por esta nos termos legalmente previstos.

Em 2018-08-14, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de recusar a designação da árbitra, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos Artigos 6.º e 7º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Singular, foi regularmente constituído em 2018-09-04, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, e automaticamente nesse mesmo dia foi notificada a Autoridade Tributaria e Aduaneira, conforme consta da respetiva ata.

Não foi arrolada prova testemunhal pelo que no seguimento processual foi aceite por ambas as partes a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de vícios que o invalidem.

 

B–PEDIDO  

  1. O Requerente peticiona a declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) n. 2017..., correspondente ao ano fiscal de 2016, no montante € 54.528,61 (cinquenta e quatro mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e um cêntimos).

C–CAUSA DE PEDIR

  1. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alega com vista à declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS), já descrito no ponto 1 desta decisão, o seguinte:
  1. O Requerente iniciou a sua atividade em 01.10.75, e, em 26.12.96 entregou uma declaração de alterações, optando pelo regime de contabilidade organizada, que mantem até agora.
  2. Pretendendo manter-se neste regime não voltou a entregar qualquer declaração a reafirmar a opção pelo regime de contabilidade organizada.
  3. Todavia, quando pretendeu entregar a declaração Modelo 3 relativa ao ano de 2016, foi surpreendido pela impossibilidade de entrega do Anexo C, relativo à contabilidade organizada, em consequência de um alegado enquadramento feito pela AT, no regime simplificado, desde 01.01.2015, do qual nunca foi notificado.
  4. Neste contexto, não lhe foi possível entregar a Declaração Modelo 3 com o Anexo C, relativo a contabilidade organizada, tendo sido obrigado para cumprimento da obrigação declarativa, face às validações informáticas existentes, a entregar o Anexo B de tributação pelo regime simplificado.
  5. Defende o Requerente, não tendo submetido qualquer declaração de alteração do enquadramento até ao final de marco de 2016, o regime de contabilidade organizada, em vigor, deveria manter-se aplicável, em 2016 e nos anos subsequentes, sendo ilegal a liquidação feita com base no apuramento do rendimento da categoria B de acordo com as regras do regime simplificado.
  1. Termina o Requerente pugnando pela anulação da liquidação efetuada em IRC para o ano de 2016 o que deverá determinar a anulação da liquidação do imposto objeto da presente reclamação, com as legais consequências.

D-DA RESPOSTA DA REQUERIDA

  1. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta, na qual, em síntese abreviada, alegou o seguinte:
    1. Com a redação introduzida pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, redação teve efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2001, aos contribuintes que se encontrassem enquadrados no regime da contabilidade organizada, quer por opção, quer por imposição legal, o período de permanência seria apenas de um ano, não sendo aplicável a prorrogação por igual período.
    2. Assim, aos contribuintes que ficaram enquadrados no regime de contabilidade por obrigação legal não se aplica o período mínimo de permanência no regime da contabilidade, porquanto essa tributação não decorreu de uma manifesta de vontade expressa pela opção no regime da contabilidade organizada.
    3. De 2001 até 2015, o Requerente ficou integrado no regime da contabilidade organizada por imposição legal, uma vez que o montante anual ilíquido de rendimentos da categoria B ultrapassava o limite legal previsto no n.º 2 do art. 28.º do CIRS.
    4. Ou seja, nos termos do n.º 6 do art. 28.º do CIRS, o Requerente ao ultrapassar os montantes indicados no n.º 2 do mesmo artigo, ficou enquadrado no regime regra de contabilidade organizada, por imposição legal, mantendo-se no mesmo até 2015.
    5. Em 2014, o Requerente declarou como rendimento da categoria B, o valor de € 146.088,60 e, em 2015, declarou um rendimento de € 137.600,32, montantes estes inferiores ao limite do n.º 2 do art. 28.º CIRS, pelo que reuniu os pressupostos de enquadramento no regime simplificado.
    6. Só assim não seria se o Requerente tivesse exercido a opção pela tributação segundo o regime de contabilidade organizada, o que não fez, pelo que ficou enquadrado no regime simplificado.
    7. Em 2014, foi apurado ao Requerente  um rendimento anual ilíquido de € 146.088,60, inferior ao limite que consta do art. 28.º do CIRS de € 200.00,00 e não tendo o mesmo   exercido a opção de tributação pelo regime de contabilidade organizada para o ano de 2015, o Requerente foi enquadrado no regime simplificado, nos termos do n.º 5 do art. 28.º do CIRS, na redação da Lei n.º 82-E/2014.
    8. Só assim não seria se o Requerente tivesse exercido a opção de tributação pelo regime de contabilidade organizada até ao final do mês de março de 2015.
    9. Desta forma, o enquadramento do Requerente no regime simplificado, decorreu da verificação dos requisitos legais previstos no n.º 2 do art. 28.º do CIRS.
    10. Termina a Requerida pugnando pela improcedência do pedido, por não provado, e, consequentemente, absolvição da Requerida do Pedido.

 

E-  FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

  1. Para a apreciação das questões suscitadas, cumpre previamente apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão a proferir, tendo como base os factos alegados e a prova documental produzida nos autos.
  2. Em matéria de facto considerada relevante, dá o presente Tribunal por assente os seguintes factos:
    1. O Requerente iniciou a sua atividade em 01.10.75, e, em 26.12.96 entregou uma declaração de alterações, optando pelo regime de contabilidade organizada.
    2. O Requerente nunca entregou uma declaração junto da AT optando pelo regime simplificado.
    3. Em 2014, o Requerente declarou como rendimento da categoria B, o valor de € 146.088,60 e, em 2015, declarou um rendimento de € 137.600,32.
    4. A AT procedeu unilateralmente a alteração do regime de contabilidade organizada para o regime simplificado do Requerente para o ano de 2016.

F-        FACTOS NÃO PROVADOS

  1. Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes da impugnação, objeto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.

G-   QUESTÕES DECIDENDAS

  1. Atenta as posições das partes, adotadas nos argumentos por cada apresentado, cumpre apreciar e decidir:

(i)       Da declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) n. 2017..., correspondente ao ano fiscal de 2016, no montante € 54.528,61 (cinquenta e quatro mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e um cêntimos).

(ii)      Do pagamento de juros indemnizatórios;

(iii)     Da questão prévia de exceção de incompetência do tribunal arbitral.

 

H-        DA DEDUZIDA EXCEÇÃO DILATÓRIA: EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL

  1. A Requerida, veio suscitar a questão da incompetência absoluta do Tribunal Arbitral em razão da matéria, com fundamento no facto de o pedido apresentado pelo Requerente não se subsumir no âmbito de competência dos Tribunais Arbitrais Tributários, prevista no artigo 2.º do RJAT, extravasando, assim, o objeto do pedido de pronúncia arbitral o âmbito de competência do Tribunal Arbitral.
  2. Alega a Requerida, que o presente Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub Júdice, nos termos do artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º, alínea a) ambos da Portaria n.º 112-A/2011, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n. 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, o qual obsta ao conhecimento do pedido e a absolvição da instância da AT nos termos dos artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.
  3. Deste modo, e porque a questão de determinação da competência dos tribunais é de conhecimento prioritário e de conhecimento oficioso, nos termos dos arts.º 13º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e do art.º 578º do Código de Processo Civil (CPC) por aplicação subsidiária do art.º 29º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributaria (RJAT), importa assim, face ao exposto, apreciar a presente exceção dilatória.
  4. Iniciaremos pela leitura atenta da petição inicial e pela avaliação aos documentos juntos aos autos, dos quais resulta o seguinte:
  5. O pedido de decisão arbitral que determine que o Requerente se encontrava enquadrado no regime de contabilidade organizada, e consequente ser nesse regime que o tratamento fiscal deve ser efetuado. Mais alega que o ato objeto do litígio não pode ser qualificado como um ato de fixação da matéria tributável que dá origem à liquidação de tributo para efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
  6. Com efeito, o Requerente impugna expressamente o ato de liquidação em sede de IRS referente ao ano de 2016, requerendo, a final, a sua anulação com a consequente restituição do imposto pago.
  7. O ato sindicado pelo Requerente, e objeto mediato da presente ação arbitral é o ato de liquidação em sede de IRS n.º 2017... e, subsidiariamente, a declaração de ilegalidade da decisão que indeferiu a reclamação graciosa (RG) deduzida pelo Requerente.
  8. Importa, pois, face ao exposto, apreciar o pedido de exceção dilatória, e a ter-se por verificada, se ficará prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo Requerente na sua Petição Inicial.
  9. Em conformidade com o atual regime exposto no artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Orçamento do Estado para 2010), ficou autorizado o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.
  10. Dispõe o art.º 4º nº 1 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, o qual criou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributaria, pela redação trazida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, a vinculação da AT à jurisdição arbitral dependente  de regulamentação posteriormente proferida pela Portaria 112-A/2011 de 22 de Março, que dispõe no seu artº 1º, a vinculação da Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfandegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, à jurisdição dos Tribunais Arbitrais que funcionam, nos termos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributaria.
  11. A competência dos Tribunais Arbitrais a funcionarem no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no disposto pelo art. 2.º, n.º 1, do RJAT. Numa segunda linha, a competência dos Tribunais Arbitrais é também limitada pelos termos em que AT se vinculou àquela jurisdição, nos termos do disposto no artigo 4.º do RJAT que estabelece que “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Que está concretizado pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
  12. Em face desta segunda limitação sobre a competência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos dessa vinculação, já que, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação prevista na portaria referida, então estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.
  13. Atenda-se pois ao fato de não ter sido esgotado o âmbito da autorização legislativa atribuída pelo artigo 124º da Lei nº 3-B/2010,de 28 de Abril, que previa que o processo arbitrário constituísse não apenas um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, mas também aplicável à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária (nºs 2 e 4, alíneas a) e b) do citado artigo 124º), uma vez que não foi objeto de regulamentação nesta última parte.
  14. Desta forma podemos retirar uma outra restrição ao âmbito de competência dos Tribunais Arbitrais que decorre de o pedido de reconhecimento de direitos e interesses legítimos em matéria tributária apenas integrar o círculo de competência dos Tribunais Arbitrais nos casos em que está subjacente uma declaração de ilegalidade de um ato tributário de liquidação ou atos que fixam a matéria ou lucro tributável.
  15. Em matéria de vinculação e respetivo objeto, atento o disposto no artigo 2º da Portaria nº112-A/2011, de 23 de Março, a Direção Geral dos Impostos apenas veio aceitar a jurisdição do Tribunal Arbitral desde que tenha lugar a necessária reclamação graciosa prevista nos artigos 131º a 133º do CPPT como condição prévia da impugnação judicial nos casos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamentos por conta, o que se poderá considerar justificado face à aplicação subsidiária das normas de processo e procedimento tributário operada pelo artigo 29º do RJAT bem como a qualificação da arbitragem como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.
  16. Como é sabido, a competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, já que ela não depende nem da legitimidade das partes nem da procedência da ação, tal como é entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência (cfr., entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91; Miguel Teixeira de Sousa, Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, pág. 36; e Acs. do STJ de 12/1/94, 2/7/96 e de 3/2/97, no BMJ, respetivamente, n.ºs 433, pág. 554, 459/444 e 364/591, de 5/2/2002, na CJ – STJ -, ano X, tomo I, pág. 68, de 18/3/2004, no processo n.º 04B873, de 13/5/2004, no processo n.º 04A1213 e de 10/4/2008, no processo n.º 08B845, estes três últimos disponíveis em www.dgsi.pt; do Tribunal de Conflitos, de 20/10/2011, proferido no processo n.º 13/11, disponível no mesmo sítio, e desta Relação de 7/11/2000, CJ, ano XXV, tomo V, pág. 184).
  17. Sobre a competência dos Tribunais Arbitrais diz-nos o Conselheiro Lopes de Sousa: “Embora na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT apenas se faça a referên­cia explícita a competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilega­lidade de atos de liquidação, atos definidores da quantia a pagar pelo sujeito passivo, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações. Na verdade, essa conclusão retira-se inequivocamente da alínea a) do nº 1 do artigo 10º do RJAT, que faz referência expressa ao nº 2 do artigo 102º do CPPT (que trata do indeferimento de reclamação graciosa) e a «decisão do recurso hierárquico».” (Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 121).

 “Limitando-se a competência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD, no que concerne a atos de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, a declaração da sua ilegalidade e suas consequências, apenas se incluirão nessa competência os atos de indefe­rimento de reclamações graciosas ou de recursos hierárquicos ou pedidos de recurso de atos tributários nos casos em que estes atos de segundo grau ou de terceiro grau conheceram efetivamente da legalidade de atos de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte e pagamento e não também quando aqueles atos se abstiveram desse conhecimento, por se ter enten­dido haver algum obstáculo a isso (como, por exemplo, intempestividade ou ilegitimidade, ou incompetência.” (ibidem, p. 123).

  1. Como observa o Conselheiro Lopes de Sousa, a possibilidade de apreciação da legalidade de atos primários através da apreciação da legalidade de atos de segundo grau é confirmada na previsão do artigo 2º do RJAT de apreciação de pretensões relativas a atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (relativamente aos quais é exigida a reclamação graciosa necessária, nos artigos 131º a 133º do CPPT), sendo certo que nestes casos, o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, e que, se confirma este, tem de ser anulado, para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação.
  2. Esta limitação explica-se porque “no caso em que o ato de segundo grau ou de terceiro grau conhece da legalidade do ato de liquidação, o indeferimento da reclamação graciosa que confirma o ato faz suas as respetivas ilegalidades, o que significa que da apreciação da ilegalidade do ato de segundo ou terceiro grau decorre a ilegalidade do ato de liquidação. Já esse efeito não se verifica nos casos em que o ato de segundo ou terceiro grau apenas apreciou uma questão prévia cuja solução obstou à apreciação da legalidade do ato primário, pois, neste caso, a eventual ilegalidade do ato de segundo grau ou de terceiro grau apenas tem como corolário que deve ser apreciada a legalidade do ato primário, não implicando a respetiva ilegalidade” (idem, ibidem).
  3. A regra é de que a impugnação de atos administrativos em matéria tributária deve ser efetuada no processo judicial tributário, através de impugnação judicial ou ação administrativa especial (alíneas d) e p) do nº 1 e do nº 2 do artigo 97º do CPPT), conforme, esses atos, comportem ou não comportem a apreciação da legalidade de atos administrativos de liquidação. Existem exceções a essa repartição dos campos de aplicação do processo de impugnação judicial e da ação administrativa especial como por exemplo a impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas (norma especial nº 2 do artigo 102º do CPPT).
  4. Mas, quanto aos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD essa exceção será irrelevante, pois resulta da alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT que, em relação a atos de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, apenas se inclui nas suas competências a declaração da sua ilegalidade e não a apreciação da legalidade de atos que não comportem essa apreciação.
  5. Não poderão ser apreciadas as decisões de indeferimento de reclamações graciosas em si mesmas, designadamente as que não conheceram do mérito do ato de liquidação que é objeto da reclamação, porque o que se visa através da impugnação da decisão da reclamação graciosa é apreciar a legalidade do subjacente ato de liquidação, e não a decisão de reclamação graciosa que não conheceu do mérito da pretensão do sujeito passivo.
  6. Efetivamente, não resulta do art. 2.º qualquer referência expressa a estes atos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de atos tributários» e «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação».
  7. No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau, que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
  8. A formula utilizada na aliena a) do n.º1 do artigo 2.º do RJAT, não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir.
  9. Nos casos em que o ato de segundo grau ou de terceiro grau conhece da legalidade do ato de liquidação, o indeferimento da reclamação graciosa ou do recurso hierárquico que confirme aquele ato faz a sua respetiva ilegalidade, pelo que da apreciação da ilegalidade do ato de segundo ou terceiro grau decorre ilegalidade do ato de liquidação.
  10. O meio próprio para impugnar os atos, que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação e que também não são atos de fixação da matéria tributável ou da matéria coletável não é a impugnação judicial, mas sim a ação administrativa especial, em conformidade com a alínea p) do nº 1 do artigo 97º do CPPT e artigo 46º e seguintes do CPTA.
  11. Em face ao que se estabelece no artigo 24.º do RJAT, sobre os efeitos da decisão arbitral favorável ao sujeito passivo, constata-se que as decisões arbitrais têm na pratica um efeito constitutivo, pois à declaração de ilegalidade dos atos estão associados obrigações de execução idênticas aas previstas para as decisões judiciais anulatórias, inclusive de pratica de ato devido em substituição do que foi declarado ilegal e reconstituição da situação que existiria se esse ato não tivesse sido praticado (…), impõem à AT que elimine da ordem jurídica aquele ato, anulando-o.[1]
  12. Não são previstas decisões condenatórias ou outras que explicitamente imponham à administração tributaria à adoção de condutas, com a exceção na condenação do pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização tributaria.
  13. Conforme se escreveu no processo Arbitral 17/2012-T, a liquidação, em sentido estrito, é a última fase do procedimento administrativo de liquidação tributária, regulado nos artigos 59.º a 64.º do CPPT, constituído por uma série de atos destinados a obter um resultado jurídico final, o montante de imposto a entregar nos cofres do Estado[2]. Portanto, a liquidação hoc sensu é a fase que se traduz na aplicação da taxa de imposto à matéria coletável já determinada, não sendo os atos preparatórios autonomamente impugnáveis, podendo sim ser postos em causa quando da impugnação do ato definitivo, final, em obediência ao princípio da impugnação unitária expresso no artigo 54.º do CPPT[3]
  14. Atento o anteriormente exposto, se conclui de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1 alínea a) do RJAT, que os Tribunais Arbitrais têm competência para declarar a “(…) ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.”, motivo pelo qual o Tribunal Arbitral tem competência para apreciar a legalidade do ato de liquidação sindicado.
  15. Quanto ao ato interlocutório (enquadramento cadastral) que ocorreu em data prévia à liquidação, e de acordo com o princípio da impugnação unitária consagrado no artigo 54.º do CPPT, aplicável ex vi, artigo 29.º do RJAT, resulta que qualquer ilegalidade cometida em data anterior à liquidação pode, e deve ser invocada aquando da impugnação da liquidação.
  16. O ato interlocutório não é passível de impugnação autónoma, até porque ele, em si mesmo, não é lesivo, por não ser suscetível de provocar, por si, efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica da impugnante.
  17. No caso em apreço, o Requerente impugnou o ato de liquidação, o qual teve por base, entre outros pressupostos, o enquadramento do Requerente no regime simplificado do IRS. E fá-lo atacando precisamente a legalidade desse ato de enquadramento. A petição do Requerente está, portanto de acordo com o princípio da impugnação unitária do ato tributário, previsto no artigo 54º do CPPT e aplicável ao presente processo por força do disposto na al. a) do n. 1 do art.º 29º do RJAT.
  18. Este entendimento é acolhido, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 13-11-2013, proferido no âmbito do processo n.º 0897/13 “(…)O artigo 54.º do CPPT consagra o denominado princípio da impugnação unitária, segundo o qual só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento, e não já os actos interlocutórios ou procedimentais, porquanto só o acto final atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do sujeito passivo, fixando a posição da administração tributária perante este e definido os seus direitos e obrigações. E dele resulta, ainda, que no contencioso tributário, ao contrário do que acontece actualmente no contencioso administrativo, o critério da impugnabilidade dos actos é o da sua lesividade imediata e actual (e não meramente potencial), ou, por outras palavras, depende da produção de efeitos negativos imediatos na esfera jurídica do sujeito passivo, pela violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Deste modo, os actos interlocutórios do procedimento tributário, sendo meramente instrumentais ou preparatórios da decisão final, ainda que ilegais, não são, em princípio, imediatamente lesivos dos interesses do sujeito passivo, pois a sua situação tributária não fica com eles definida ou resolvida. Na verdade, sendo o procedimento de liquidação tributária constituído por uma série de actos interligados e dirigidos à concretização de um resultado jurídico final, ou seja, à liquidação do montante do imposto que o sujeito passivo tem de entregar nos cofres do Estado, compreende-se que só o acto final (liquidação em sentido estrito) seja susceptível de afectar, de forma objectiva e imediata, a esfera jurídica do sujeito passivo, sendo esse, por conseguinte, o acto lesivo e contenciosamente impugnável.
  19. Neste mesmo sentido, foi decidido em sede de jurisdição arbitral nos processos 266/2013-T, 253/2013-T, 114/2017-T e 295/2017-T.
  20. Nestes termos, resulta evidente que a ilegalidade do enquadramento pode ser sindicada judicialmente em sede de impugnação judicial ou ação arbitral, na qual foi requerida a apreciação da legalidade da liquidação em sede de IRS, razão pela qual o Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
  21. Pelo que improcede o pedido da Requerida de exceção da incompetência absoluta do Tribunal Arbitral, em razão da matéria.

H-        MATÉRIA DE DIREITO

  1. Atentas as posições das partes assumidas nos seus articulados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral, prende-se com a apreciação da legalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) n. 2017..., correspondente ao ano fiscal de 2016, no montante € 54.528,61 (cinquenta e quatro mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e um cêntimos).
  2. Para tanto, iniciaremos por determinar o direito aplicável, dando prioridade, em cumprimento do disposto nos artigos 13.º e 106.º do CIRC, à análise dos vícios do ato de liquidação.
  3. A pretensão do Requerente, em síntese, subsume-se à declaração de ilegalidade da alteração oficiosa efetuada pela AT ao seu regime de determinação dos rendimentos da Categoria B, o qual foi alterado passando de regime de contabilidade organizada para o regime simplificado, sem que tenha existido opção expressa pelo Requerente.
  4. A Requerida, sinteticamente, contra-argumenta, invocando que o Requerente se encontrava por imposição legal enquadrado no regime de contabilidade organizada e que apurado em 2015 o rendimento do Requerente em valor inferior a € 200.000,00, e não tendo o mesmo exercido a opção pelo regime da contabilidade organizada, foi o mesmo enquadrado pela AT no regime simplificado.
  5. Perante o exposto cabe ao presente Tribunal analisar, com base na matéria de direito e de fato, se à AT lhe era permitido alterar oficiosamente o regime de tributação, em sede de IRS, do sujeito passivo, que já se encontrava enquadrado por sua escolha, em ano anterior no regime de contabilidade organizada.
  6. À data em que os factos ocorreram, a redação da Lei n.º 83-C/2013, o n.º 2 do artigo 28.º do CIRS, na parte em que nos interessa, tinha a seguinte redação:

Artigo 28.º - Formas de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais

1 - A determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, salvo no caso da imputação prevista no artigo 20.º, faz-se:

a) Com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado;

b) Com base na contabilidade.

2 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua atividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de (euro) 200 000. (Redação dada pela  Lei n.º 83-C/2013 - 31/12)

3 - Os sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado podem optar pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade. (Redação do DL 211/2005-07/12) 

4 - A opção a que se refere o número anterior deve ser formulada pelos sujeitos passivos: (Redação da Lei 53-A/2006-29/12)

a) Na declaração de início de actividade;

b) Até ao fim do mês de Março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento, mediante a apresentação de declaração de alterações. (Redação da Lei 53-A/2006-29/12)

5 - O período mínimo de permanência em qualquer dos regimes a que se refere o n.º 1 é de três anos, prorrogável por iguais períodos, excepto se o sujeito passivo comunicar, nos termos da alínea b) do número anterior, a alteração do regime pelo qual se encontra abrangido. (Redacção da Lei 53-A/2006-29/12)

  1. Do disposto no artigo 28.º do CIRS, resulta não existir distinção se tal período de permanência tem aplicação apenas nas situações em que o sujeito passivo manifesta vontade de ser tributado segundo o regime de contabilidade organizada, nem tão pouco prevê qualquer regime de caducidade nas situações em que, não tendo tal enquadramento resultado da vontade do sujeito passivo, se deixa de verificar os pressupostos que levaram ao seu enquadramento no mesmo.
  2. Conforme se pode colher da fundamentação de fato, o Requerente optou expressamente no ano de 1996 pela aplicação do regime de contabilidade organizada, e ficou sujeito ao regime de contabilidade organizada por opção manifestada em 1996.
  3. O Requerente ficou igualmente sujeito ao regime de contabilidade organizada por imposição legal, de acordo com o artigo 28.º, n.º 2, do CIRS, nas redações anteriores à Lei n.º 83-C/2013, por os  seus rendimentos da categoria B serem sempre superiores aos valor mínimo ai previsto.
  4. Existem assim, dois fundamentos jurídicos que permitem a aplicação ao Requerente do regime de contabilidade organizada, e cada um deles para, por si só, determinar a aplicação desse regime.
  5. Deste modo, quando uma situação jurídica tem dois fundamentos autónomos, cada um deles suficiente para, por si só, lhe dar suporte jurídico, o facto de deixar de subsistir um deles não obsta à manutenção da situação com base no outro.
  6. Nestes termos, resulta claro, que tendo o sujeito passivo optado expressamente pelo regime de contabilidade organizada, é este o regime que lhe deve ser aplicado até indicação expressa em contrário pelo sujeito passivo, afastando-se assim a aplicação do disposto no artigo 28.º n.º 2.
  7. Aliás, não resulta da lei qualquer imposição sobre o Sujeito passivo - que aufira rendimentos de valor inferior ao estabelecido no artigo 28.º n.º 2 do CIRS - de manifestar a sua vontade no sentido de se manter no regime da contabilidade organizada, tal como pretende a AT.
  8. Há, sobre esta questão, abundante jurisprudência que se seguirá de perto. Temos presente, em particular, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de maio de 2016, proferido no processo n.º 01536/15, «tendo os contribuintes optado por serem tributados com base na sua contabilidade não pode a Administração Tributária vir a enquadrá-los no regime simplificado de tributação». Como se refere no mesmo acórdão,  «a Administração Tributária não podia ter-se substituído aos contribuintes nessa opção, porque não foi ultrapassado o período mínimo de permanência no regime escolhido, mas, sobretudo, porque apenas os sujeitos passivos podem optar por diverso regime, excepto quando estando enquadrados no regime simplificado excederem o montante de rendimentos antes indicado por dois períodos sucessivos – art.º 28.º, n.º 6 do CIRS».
  9. Retomando a legislação, diga-se que a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, não alterou o regime do art. 28º limitando-se, no que aqui interessa, a aumentar o valor de rendimentos a partir do qual é obrigatória a aplicação do regime de contabilidade organizada, não impondo a sua cessação.
  10. Como se refere naquele acórdão, «se a permanência no regime simplificado implica que os sujeitos passivos, no exercício da sua atividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior um montante anual ilíquido de rendimentos desta categoria de (euro) 200 000, não há qualquer requisito específico quanto ao valor dos rendimentos auferidos para que os mesmos possam optar pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade».
  11. Quanto a esta matéria seguimos de perto o já decidido em sede de jurisdição arbitral nos processos 266/2013-T, 253/2013-T, 760/2015-T, 97/2017-T, 114/2017-T, 295/2017-T e 530/2017.
  12. Quanto à interpretação a conferir ao artigo 28.º, remetemos para a decisão arbitral 295/2017-T:

Aliás, é a própria lei que, de modo explícito, no n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, dispõe que a opção do sujeito passivo pelo regime de contabilidade organizada deve ser efectuado em duas circunstâncias:

Na declaração de início de actividade;

Até ao fim do mês de março do ano em que pretendem alterar a forma de determinação do rendimento.

Não há, pois, qualquer correspondência na letra da lei para a interpretação defendida pela AT, segundo a qual, uma vez excedido o volume de vendas previsto no n.º 2 do artigo 28.º CIRS, caduca a sua tributação de acordo com o regime da contabilidade organizada.

Sendo certo que, na interpretação das normas se deve presumir que o legislador se soube exprimir o seu pensamento e consagrou a solução mais acertada, conforme decorre do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do CC, ex vi artigo n.º 1 do artigo 11 e artigo 2.º da LGT.

Ademais, não contendo o artigo 28.º n.º 2 qualquer distinção sobre a manutenção em determinado enquadramento, não pode a AT fazer tal distinção, tal como resulta do brocardo “bi lex non distinguir, nec... nos distinguere debemus”, ou seja, onde a lei não distingue, ao intérprete não é dado fazê-lo.

Não tendo o legislador previsto qualquer situação que faça cessar o regime da contabilidade organizada durante o ciclo de três anos, deve o intérprete concluir, de acordo com as regras da interpretação, que a sua inexistência é a mais acertada.

E ainda que se entendesse existir uma lacuna, o que não se concede, ela não seria susceptível de integração analógica, por tal estar expressamente vedado pelo artigo 11.º, n.º 4 da LGT.

Pelo que, não tendo o Requerente marido comunicado qualquer alteração ao seu regime de tributação, fez uma opção clara e inequívoca pela manutenção do regime de tributação em que estava enquadrado, não podendo a AT proceder à sua alteração, oficiosamente, quando o Sujeito passivo não atinja rendimentos em montante superior ao previsto no artigo 28.º do CIRS.”

  1. Igualmente neste sentido, seguimos o decidido no processo n.º 760/2015-T, transcrevemos os fundamentos de direito nele aduzidos, os quais integralmente se subscrevem:

«O regime de contabilidade organizada deve ser considerado como o regime regra de tributação, como decorre do princípio da tributação da real capacidade contributiva, apurada nos termos dos rendimentos realmente auferidos [...].

Razões práticas impuseram, porém, a possibilidade de, para valores menores, considerar[-se] apenas o volume de negócios (rendimentos brutos), deduzido de despesas presumidas em percentagem daquele. Isto para reduzir os custos de cumprimento dos sujeitos passivos e os custos de fiscalização da AT [...]. Mas o legislador entende que essa simplificação não pode ocorrer para valores de rendimentos elevados. Por isso a lei estabelece que, ainda que o sujeito passivo opte pelo regime simplificado, essa opção deixa de ser eficaz se, no ano precedente [...], em razão do valor do desvio, os rendimentos brutos do sujeito passivo forem superiores a determinado montante (pois, nesse caso, a consideração fortetária das despesas dedutíveis tornaria mais evidente o desvio ao princípio da tributação pelos rendimentos reais).

Estas considerações servem para explicar que se a mudança oficiosa do regime “simplificado” para o de “contabilidade organizada” é motivada por razões de coerência do sistema, já o inverso não é verdade (dir-se-ia até que é inversa a essa coerência, assente, bem ou mal, no paradigma dos “valores reais”) [...]. Isto sem prejuízo do exercício de livre opção pelos sujeitos passivos, mas livres também de reclassificações “oficiosas” com as quais legitimamente não contariam.

Essa constatação ajuda-nos a perceber melhor a disciplina do art. 28.º [...]. Tendo o sujeito passivo optado pela faculdade de usar o regime “simplificado”, essa opção deixa de ser válida se os rendimentos assumirem uma magnitude que para o legislador a desaconselhem. E, por essa razão, o novo enquadramento é obrigatório e pode ser oficiosamente processado pela AT.

Se a variação for a inversa, tenha sido ela precedida de opção voluntária do sujeito passivo ou de inserção automática, não há razão imperiosa que imponha o enquadramento (de novo) no regime simplificado. É até aconselhável que essa opção seja deixada ao critério do sujeito passivo. Vale isto por dizer que, nesse caso, o enquadramento pode permanecer imutável. E deve permanecer imutável pois é essa a forma de melhor garantir a tutela da segurança do sujeito passivo [...].

Mais, a interpretação que se propõe, sendo a mais consentânea com os princípios de tributação do rendimento e com o sistema de tributação deste, tem total acolhimento na letra da lei [...]. Por tudo quanto antecede, deve sustentar-se a interpretação do Requerente e não a da [Entidade] Requerida».

  1. Deste modo, atendendo ao já anteriormente exposto, resulta claro, que o sujeito passivo não comunicou a alteração do regime de contabilidade organizada, e que a AT não pode oficiosamente alterar o regime.
  2. Aliás, resulta do entendimento da AT divulgado através da Circular n.º 2/2016, de 6 de Maio, que os sujeitos passivos que exercem a opção pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade nas condições previstas no n.º 4 do artigo 28.º do Código do IRS, permanecem nesse regime até manifestação em contrário, não sendo relevantes as variações do montante anual ilíquido do rendimento da categoria B que vierem a ocorrer.” [sublinhado nosso]. Pelo que, até pelo entendimento exposto na dita circular, deveria a AT ter decidido de outra forma no ora caso em apreço.
  3. Ora, no caso sub judice, o Requerente foi oficiosamente enquadrado no regime simplificado com efeitos a partir de 2015, ao abrigo do n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRS, por ter sido apurado, no ano de 2014, um rendimento da categoria B de € 191.860,00, ou seja, inferior aos € 200.000,00.
  4. Por firmeza do referido n.º 5 do artigo 28.º do Código do IRS, o regime da contabilidade organizada relativo à tributação dos rendimentos da categoria B no qual o Requerente se manteve enquadrado desde 2001 (aquando do início de atividade) mantém-se em vigor até que o sujeito passivo proceda à entrega de declaração de alterações.
  5. Destarte, não tendo o Requerente submetido qualquer declaração de alteração do enquadramento até ao final do mês de março de 2016, o regime em vigor – regime de contabilidade organizada – manter-se-ia aplicável.
  6. Face a tudo quanto acima ficou expendido, carece de suporte legal a interpretação que a Requerida faz do n.º 1, do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 28.º do CIRS, a qual visa impor sobre o sujeito passivo um ónus, relativo a uma obrigação tributária acessória, que a lei não prevê, e que é mesmo contrária ao seu sentido literal, violadora do princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º n.ºs 2 e 3 da CRP e no artigo 8.º, n.ºs 1 e 2 da LGT.
  7. Não existe qualquer disposição legal que permita concluir que a opção pelo regime de contabilidade organizada deixe de ter relevância, pelo facto de passar a ser obrigatória a aplicação desse regime.
  8. Em consequência, o presente Tribunal dá provimento ao pedido do Requerente, e consequentemente legal o ato tributário de liquidação em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, referente ao exercício de 2016, no valor de € 54.528,61 (cinquenta e quatro mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e um cêntimos).
  9. O Tribunal Arbitral, os termos dos arts. 608º, n.º 2, 663º, n.º 2 e 679º do Código de Processo Civil, por aplicação do artigo 29.º do RJAMT, não se encontra obrigado a apreciar todos os argumentos alegados pelo Requerente ou pela Requerida, quando a decisão fique prejudicada pela solução já proferida, como é o caso dos autos, motivo pelo qual ficam prejudicadas para a apreciação as restantes questões submetidas a pedido de pronúncia.

            J-DECISÃO

Destarte, atento a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral, decide:

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação adicional em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, referente ao exercício de 2016, no valor de € 54.528,61 (cinquenta e quatro mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e um cêntimos).
  2. Condenar a Requerida, a restituir ao Requerente essa quantia indevidamente liquidada.

Fixa-se o valor do processo em € 54.528,61 (cinquenta e quatro mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e um cêntimos), correspondente ao valor da liquidação atendendo ao valor económico do processo, aferido pelo valor da liquidação de imposto impugnada, e em conformidade fixam-se as custas, no respetivo montante em 2.142,00€ (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerida de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último. – n.º 10 do art.º 35º, e n.º 1, 4 e 5 do art.º 43º da LGT, art.ºs 5.º, n.º1, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).

Notifique.

Lisboa, 29 de outubro de 2018

A Árbitra

Rita Guerra Alves

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.

 

 

 



[1]Jorge Lopes de Sousa, in Comentário ao regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013.

[2]Neste sentido o Acórdão do STA, n.º 0188/09, de 9 de Setembro de 2009

[3] Este princípio comporta algumas exceções, podendos atos de determinação da matéria tributável ser autonomamente impugnáveis. Cfr.Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, págs. 140 a 191.