Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 26/2013-T
Data da decisão: 2013-07-19  IUC  
Valor do pedido: € 2.238,54
Tema: Incidência subjetiva, leasing, presunções legais
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Decisão Arbitral

 

 

Processo n.º 26/2013-T

 

DECISÃO ARBITRAL

A presente decisão vai proferida de acordo com a ortografia antiga

 

Relatório.

 

1. A... - ALUGUER DE AUTOMÓVEIS UNIPESSOAL, LD.ª, NIPC …, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária, com vista à anulação dos actos de liquidação de IUC, e respectivos juros compensatórios, relativo ao ano de 2008 e a trinta e três veículos automóveis, identificados pelo respectivo número de matrícula em lista constante do pedido de pronúncia arbitral, que aqui se dá por inteiramente reproduzida. Como consequência da referida anulação, solicita o reembolso da importância que considera indevidamente paga, acrescida dos juros indemnizatórios que se mostrarem devidos nos termos do art. 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

2. Como fundamento do pedido, alega a requerente não ser a proprietária das viaturas em causa no ano a que respeita o tributo a que se reportam aquelas liquidações às quais imputa, ainda, diversos outros vícios que, segundo entende, impedem a sua subsistência na ordem jurídica.

3. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) respondeu, concluindo pela improcedência do requerido e, consequentemente, pela manutenção dos questionados actos de liquidação.

4. O tribunal arbitral foi regularmente constituído em 06-05-2013 e é materialmente competente à face do preceituado no art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT.

5. Em 05-07-2013, teve lugar a 1.ª (e única) reunião do tribunal arbitral. Não foram proferidas alegações orais, por desnecessárias. O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.

6. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

Matéria de facto.

 

7. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, destacam-se os seguintes elementos factuais:

7.1. A requerente é uma sociedade unipessoal, cuja actividade principal consiste, entre outras, no comércio de veículos automóveis.

7.2. No âmbito da sua actividade, a requerente oferece aos clientes diversas soluções de financiamento, como sejam a locação financeira ou o aluguer de longa duração de veículos automóveis;

7.3. Entre 30 de Novembro de 2012 e 3 de Dezembro de 2012, foi a requerente notificada de liquidações oficiosas de Imposto Único de Circulação (IUC) relativo às viaturas identificadas no pedido e ao ano de 2008.

7.4. No exercício do direito de audição, realizado em momento anterior àquelas liquidações, a requerente alegou que, no ano a que o tributo respeita não era proprietária das referidas viaturas visto tê-las vendido aos seus clientes.

7.5. Tais factos, não foram, porém, atendidos pela Administração Tributária e Aduaneira (AT) com o fundamento de que "Verificada a situação na base de dados do IUC e de acordo com o n.º 3 do artigo 6.º do CIUC, era, à data (do facto tributário) sujeito passivo do imposto (...) por isso o imposto é devido."

7.6. Os factos supra aludidos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo. Não foi assinalada a existência de factos não provados.

 

8. Cumulação de pedidos.

 

Considerando o elevado número de viaturas, bem como o volume de documentação necessário para comprovar os factos alegados, a requerente, invocando o princípio da economia processual, optou por pedir a apreciação conjunta dos actos tributários em causa.

Considerada a identidade do facto tributário, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 104.º do CPPT e 3-º do RJAT à pretendida cumulação de pedidos.

 

9. Matéria de direito.

 

9.1. No pedido de pronúncia arbitral a requerente, para além de outros vícios que imputa às liquidações de IUC, invoca a circunstância de, à data a que se reportam os factos tributários que as originaram, não ser a proprietária dos veículos e, consequentemente, não assumir a qualidade do sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

9.2. Os restantes vícios invocados no tocante às questionadas liquidações - caducidade do direito à liquidação e violação do dever de fundamentação - encontram-se numa relação de prejudicialidade em relação a questão da incidência subjectiva do referido tributo, que se considera de primordial relevância, já que da resposta que à mesma for dada derivará a utilidade, ou não, de se apreciar os restantes vícios invocados.

10. Sobre a definição da incidência subjectiva do IUC, evidenciam-se, desde logo, posições diametralmente opostas entre a AT e a requerente: para aquela, o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado; enquanto que para esta, a norma de incidência estabelece uma presunção, derivada do registo, ilidível por força do disposto no art. 73.º da LGT.

11. Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a requerente que, à data da ocorrência dos factos tributários, não era já proprietária dos veículos a que a que se reportam as questionadas liquidações, pois que, no quadro da sua actividade, os tinha já vendido aos respectivos locatários. Como prova do alegado, junta ao pedido de decisão arbitral, cópias dos contractos de locação, que acompanha de extractos dos saldos de contas e facturas de venda em que são identificados os veículos bem como os respectivos locatários/adquirentes.

12. Todavia, os respectivos adquirentes dos identificados veículos não tinham, oportunamente, efectuado os registos dos veículos na Conservatória do Registo Automóvel, pelo que, na base de dados desta continuava a requerente a figurar como proprietária dos mesmos.

13. Segundo parecer da AT, proferido em sede de audição prévia, basta que se verifique a inscrição registal do veículo em nome de uma determinada pessoa para que esta se qualifique como sujeito passivo da obrigação tributária do IUC.

14. Com efeito, decorre do art. 3.º, n.º 1, do CIUC, que são sujeitos passivos os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais aqueles se encontrem registados.

15. E o n.º2 do mesmo artigo equipara a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direito de opção de compra por força de contrato de locação.

16. Pode, pois, extrair-se da norma do n.º 2 do art. 3.º, do CIUC que não é a condição de locatário que, só por si, define a sujeição passiva ao IUC, independentemente do tempo por que esta deva durar. Aquela sujeição define-se nos casos em que o contrato de locação assume características de locação e financiamento, isto é, se para além da locação do mesmo resultar o direito de opção de compra da viatura pelo locatário. Esta condição está desde logo presente no contrato de locação financeira, por força do respectivo regime jurídico, constante do Decreto-Lei n.º 140/95, de 24 de Junho. Nas restantes locações, independentemente do prazo por que devam durar, aquela opção deve constar expressamente do contrato.

17. Da análise das cópias de contractos de aluguer que a requerente junta ao presente processo, constata-se que neles se não encontra clausulada tal opção, circunstância que, liminarmente, afasta a necessidade - e utilidade para a questão a decidir - de se aprofundar a apreciação deste segmento da norma de incidência.

18. Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, exclusivamente, na interpretação da norma do n.º 1 daquele art. 3.º do CIUC, no sentido de determinar-se se a norma de incidência subjectiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em direito, que não obstante tal facto, não é proprietário do veículo no período a que o imposto respeita e afastar assim a obrigação de imposto que sobre ela recai.

19. Em suma, trata-se de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de ilisão, nos termos gerais, como pretende a requerente ou se, diversamente, como entende a AT "o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2 as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal."

Sendo esta a questão central a decidir no presente pedido de pronúncia, importa analisar mais detalhadamente as posições em confronto.

 

 

Posição da requerente.

 

20. Sobre esta matéria e como fundamento do pedido de pronúncia arbitral, alega a requerente, em síntese, que:

a) O registo da aquisição junto da Conservatória do Registo Automóvel não é condição para a transmissão da propriedade, nem afecta a sua validade;

b) O DL n.º 54/75, de 12/02, não prevê - tal qual todo o ordenamento jurídico português - qualquer norma acerca do carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel;

c) De facto, nos termos do art. 1.º do DL n.º 54/75, de 12/02, o registo automóvel visa apenas "dar publicidade" à situação jurídica dos bens.

d) Nos termos do art. 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ex-vi do art. 29.º do DL n.º 54/75, de 12/02, importa ter presente que o registo apenas "(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."

e) No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ, proferido no âmbito do processo n.º 3B4369, de 19-02-2004, no qual se conclui que "(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juris tantum") da existência do direito (arts- 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º2, do C-Civil) bem como da respectiva titularidade, nos termos dele constantes (...)".

f) Em sede de Direito Fiscal, importa ter presente a proibição de existência de presunções inilidíveis prevista no art. 73.º da LGT.

g) Neste sentido, veja-se o acórdão n.º 211/2003, de 28-04-2003, do Tribunal Constitucional (TC), que concluiu que "(...) por se considerar que uma presunção inilidível neste domínio, violaria o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva (...).

Nestes termos, conclui a requerente que:

- Tendo em consideração tudo o que acima se referiu, bem como perante toda a documentação carreada, verifica-se, por um lado, a possibilidade da requerente ilidir a presunção;

e

- Por outro lado, ter-se-á de considerar que a presunção constante dos arts. 3.º e 6.º do CIUC, conjugada com as supra referidas regras do registo, foi efectivamente ilidida.

 

Posição da requerida.

 

21. Ao alegado pela requerente, respondeu a AT no sentido de que tais alegações "não podem de todo proceder, porquanto faz uma interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada".

22. Segundo a requerida, "o equívoco em que a requerente incorre" resulta:

a) não só de uma enviesada leitura da letra da lei,

b) como de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático violando a unidade do regime consagrado em todo o IUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, e

c) decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC."

23. Desenvolvendo a sua posição, diz a requerida, em síntese, que "ao estabelecer no artigo 3,º, nº1, do CIUC, quem são os sujeitos passivos deste tributo, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (...) considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

24. Em defesa do seu ponto de vista, acentua a requerida que "o legislador não usou a expressão "presumem-se" como poderia ter feito". Assinala, ainda, a circunstância de o normativo fiscal estar repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 daquele art. 3.º, em que o legislador expressa e intencionalmente consagra o que deve considerar-se legalmente para efeitos de incidência, de rendimento, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros. Como exemplo, entre outros, refere a norma da alínea a) do n.º 2 do art. 2.º do CIMT, em que o legislador tributário não presume que "há lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 do mesmo artigo, na outorga de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro. Neste caso, o legislador expressa e intencionalmente assimila este contrato a uma transmissão onerosa para efeitos de IMT". Do mesmo modo, no caso do art. 17.º do CIRC, o legislador também não estabelece que os excedentes líquidos das cooperativas se presumem como resultado líquido do período mas que estes se consideram como tal. Depois de referir que grande parte das normas de incidência do IRC têm como ratio subjacente determinar o que deve ser considerado rendimento para efeitos deste imposto ter-se-ia de concluir que ao usar a expressão "considera-se" o legislador fiscal teria consagrado uma presunção em praticamente todas as normas de incidência do IRC que seria afastada precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exactamente o fim do legislador afastar as regras contabilísticas.

25. Na sequência deste raciocínio, conclui a AT que "é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários...) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Pelo que, "entender que o legislador consagrou aqui uma presunção seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem.”

Por outro lado, apelando ao elemento sistemático, entende a recorrida que "a solução propugnada pela Requerente é intolerável não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei." Isto porque, no mesmo sentido do que dispõe o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, estabelece o seu artigo 6.º que o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Ou seja, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação directa com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo. No mesmo sentido, milita a solução legislativa adoptada pelo legislador fiscal no n.º 2 do artigo 3.° do CIUC, ao fazer coincidir as equiparações ai consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respectivo registo. Apenas a título de exemplo, note-se que legislador não consagrou a mesma solução jurídica para o caso do usufruto.

Tal posição está ainda patente na circunstância de o Registo Automóvel a que a AT tem ou pode ter acesso, e o certificado no qual devem constar os actos sujeitos a registo, cuja exibição poderá ser exigida pela mesma Administração ao interessado, conterem todos os elementos destinados à determinação do Sujeito Passivo, sem necessidade de acesso aos contratos de natureza particular que conferem tais Direitos, enunciados pelo CIUC como constitutivos da Situação Jurídica de Sujeito Passivo deste imposto. Na falta de tal registo, naturalmente, será o Proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois, a Administração Tributária, tendo em conta a actual configuração do Sistema Jurídico, não terá que proceder à liquidação do Imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos. Nestes termos, a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do Sujeito Passivo do IUC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste Imposto."

26. Expostas, em síntese e com parcial transcrição, as posições da requerente e da requerida, estarão claramente definidas:

- para a requerente, que a incidência subjectiva do IUC assenta numa presunção de propriedade, derivada do registo automóvel, e

- para a requerida, que não se estabelece aí qualquer presunção, concluindo que o legislador do CIUC definiu como sujeito passivo deste tributo, expressa e intencionalmente, o proprietário do veículo identificado no respectivo registo.

 

Incidência subjectiva do IUC.

 

27. Com ressalva do disposto no n.º 2, relativamente a situações de venda com reserva de propriedade e locações que assumam natureza de financiamento, estabelece o n.º 1 do art. 3.º do CIUC que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos, sendo como tal consideradas as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

28. O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema deste imposto evidencia-se ao longo de todo o respectivo Código. Refira-se, designadamente, o seu art. 6.º relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional. Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam sujeitas a este tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo.

É, pois, uma norma que, recorrendo ao elemento registal, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal. É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.

29. Todavia, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjectiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua um presunção de incidência. Haverá, pois, que recorrer a outros elementos interpretativos, em especial para a respectiva noção legal.

 

Noção de presunção.

 

30. Segundo noção vertida no art. 349.º do C. Civil, presunções são as ilações que a lei, ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. As presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º do C. Civil). Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art. 350.º, n.º1, do C. Civil). Todavia, as presunções, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do C. Civil). Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o art. 73.º da LGT.

 

Presunção e ficção.

 

31. A par de presunções, utilizadas no direito tributário principalmente como meio de afastar a possibilidade de fraude e evasão ou por razões de simplificação de praticabilidade das leis fiscais, o legislador recorre, também com alguma frequência, a ficções. Diversamente da presunção, que parte de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, a ficção, por seu lado, "traduz-se num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas" 1 Há, pois, uma assinalável diferença entre um e outra desta figuras, utilizadas, com alguma frequência, nas normas dos códigos e leis tributárias. Essa diferença, que não se encontra assinalada na fundamentação da posição da AT, será particularmente relevante na apreciação do presente caso.

32. Tomando como referência a exemplificação apresentada pela requerida em abono da sua tese, poderemos considerar o caso do n.º 2 art. 17.º do CIRC, que para efeitos deste imposto, determina que "os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do exercício.". Não ignorando o legislador do CIRC que as cooperativas, por força dos respectivos princípios e regime legal que lhes é aplicável, não podem ter como escopo a realização do lucro, imputa àqueles excedentes uma natureza distinta da realidade, para lhes atribuir uma consequência jurídica, qual seja a de resultado líquido do exercício para efeitos de aplicação das regras de determinação do lucro tributável das empresas.

33. Por outro lado, a existência, em paralelo, de presunções e ficções nas normas legais de incidência tributária é, ainda, mais notória, por exemplo, no art. 2.º do CIMT, referido na resposta da AT. Segundo o corpo do n.º 3 deste artigo "Considera-se que há também lugar a transmissão onerosa para efeitos do n.º 1 (que define a regra geral de incidência deste tributo: transmissão onerosa do direito de propriedade sobre imóveis) na outorga dos seguintes actos ou contractos:

a) Celebração de contrato-promessa de aquisição e alienação de bens imóveis em que seja clausulado no contrato ou posteriormente que o promitente-adquirente pode ceder a sua posição contratual a terceiro."

e

e) Cedência de posição contratual ou ajuste de revenda, por parte do promitente adquirente num contrato-promessa de aquisição e alienação, vindo o contrato definitivo a ser celebrado entre o primitivo promitente alienante e o terceiro." No primeiro caso está-se perante uma ficção, pois que o legislador não ignora que a possibilidade de cedência de posição contratual num contrato de promessa não implica a transmissão do direito de propriedade, objecto da incidência geral do referido imposto municipal. Mas, para efeitos tributários, atribui-lhe as correspondentes consequências. Já no caso do ajuste de revenda, a que se refere a alínea c) do mesmo número, tem-se uma situação algo mais complexa, mas que, segundo a jurisprudência constante dos tribunais superiores, traduz uma presunção. Como se chega a esta conclusão, se ambas as normas têm por finalidade e efeitos tributar como transmissões de propriedade de imóveis realidades que o não são? A resposta está, precisamente, no recurso ao conceito legal de presunção. A norma da al. e) do n.º 3 do art. 2.º do CIMT, no que respeita ao "ajuste de revenda" encontrava-se já prevista, em idênticos termos, no parágrafo 2.º do art. 2.º do anterior Código da Sisa: o promitente comprador que ajustasse, com um terceiro, a venda do imóvel que havia prometido adquirir ficaria sujeito ao imposto, com base na presunção de que lhe havia sido entregue o bem objecto do contrato de promessa e que sobre ele havia agido como um proprietário, por via da cedência da sua posição contratual naquele contrato, mas apenas se o contrato translativo se viesse a realizar entre o primitivo promitente vendedor e aquele terceiro. Neste caso, o legislador criou a presunção de transmissão económica (tradição), abrangida pela incidência do imposto, sempre que o promitente adquirente agisse, perante terceiro e com anuência do primitivo promitente vendedor, como um verdadeiro proprietário, ajustando a revenda do bem em causa. É a existência da "tradição jurídica" - entrega do bem objecto do contrato de promessa - que a norma presume, para a tributar. E aqui também, o legislador parte de factos conhecidos - a posição contratual e a transmissão jurídica do bem para um terceiro - para firmar um facto desconhecido, o ajuste de revenda. Presunção esta ilidível, por força do disposto no artigo 73.º da LGT.2

 

 

Presunções explícitas e implícitas.

 

34. Sustenta a requerida que o legislador fiscal, "adentro da sua liberdade de conformação legislativa" expressa e intencionalmente determina que se considerem como proprietários as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, não utilizando a expressão "presumem-se" como tal, como poderia ter feito.

Com efeito, na definição da incidência subjectiva do ICI, do ICA e do IMV, impostos que o actual IUC veio substituir, foi essa a expressão utilizada pelo legislador. No âmbito dos impostos abolidos, estabelece-se que "o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados" 3

No mesmo sentido, estabelece o art. 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 3/05, que são sujeitos passivos destes tributos "os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."

35. No que ao IUC diz respeito, o legislador optou por utilizar uma formulação diversa da norma de incidência. Tal como nos impostos abolidos, continua a atribuir aos proprietários dos veículos a qualidade de sujeitos passivos. Porém, abandona a expressão "presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome quem os mesmos se encontrem registados" em favor de "considerando-se como tais as pessoas (...) em nome das quais os mesmos se encontrem registados".

36. Diversamente da posição expressa pela AT, entendemos que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão e por duas ordens de razões: Para que se esteja perante uma presunção legal, é necessário que a norma que a estabelece se amolde ao respectivo conceito legal, vertido no art. 349.º do C. Civil, sendo para tal irrelevante que a mesma seja explícita, revelada pela utilização da expressão "presumem-se" ou apenas implícita.4; por outro lado, a liberdade de conformação do legislador está limitada por princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, de que, com relevância para o presente caso, avulta o princípio da igualdade. No plano tributário, este princípio traduz-se na generalidade e abstracção da norma que cria os elementos essenciais do tributo, de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Segundo se extrai do acórdão do TC n.º 343/97, de 29-04-97 " A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo".

37. É no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjectiva deste tributo estabelecida no n.º 1 do art. 3.º do CIUC.

38. Assim, não poderá deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no art. 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

Ilisão de presunções.

 

39. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no art. 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.

40. No presente caso, a requerente não utilizou aquele procedimento próprio, pelo que o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui objecto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência matéria deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL 10/2011).

41. Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a requerente oferece os seguintes elementos:

a) Cópia dos contractos de aluguer de longa duração (ALD);

b) Cópia dos extractos contabilísticos, relativos à conta de clientes;

c) Cópia da factura de venda.

42. Da análise dos documentos apresentados extrai-se que, relativamente à totalidade dos veículos identificados em relação elaborada pela Requerente, e que aqui se dá por inteiramente reproduzida, foram os mesmos cedidos aos locatários, ao abrigo de contractos de ALD e que, muito embora nestes se não encontre clausulada a opção de venda, esta se veio a efectuar com base em valor residual, considerada a diferença entre o valor atribuído ao veículo e o montante das rendas entretanto pagas.

43. Dos referidos elementos extrai-se, ainda, que a venda das viaturas em causa se efectuou em anos anteriores àquele a que o imposto respeita, se bem que em dois casos, a venda se tenha efectuado nesse mesmo ano, mas em mês anterior àquele em que ocorreu o facto gerador e consequente exigibilidade do imposto.

44. Com efeito, o IUC é um imposto de periodicidade anual, sendo que, para o efeito e com referência a viaturas automóveis, o período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários (art. 4.º, n.º 1 e 2, do CIUC). O imposto é exigível no primeiro dia do período de tributação (art. 6.º, n.º 3, do CIUC). Destas disposições decorre que, salvo nas situações previstas no n.º 2 do art. 3.º do CIUC, está vinculado ao pagamento do imposto a pessoa que, nessa data, detenha a respectiva propriedade.

45. Dos elementos fornecidos pela requerente extrai-se que à data da exigibilidade do imposto a que respeitam as liquidações questionadas não era esta o proprietário dos veículos naquelas identificados, por se ter já anteriormente operado as respectivas transferências, nos termos da lei civil.

46. Os meios de prova apresentados pela requerente, constituídos por cópias dos respectivos registos contabilísticos e documentos de suporte têm a seu favor a presunção de veracidade que lhes é conferida nos termos do n.º 1 do art. 75.º da LGT que, assim, se afiguram idóneos e com força bastante para ilidir a presunção em que se suportam aquelas liquidações que, por isso, devem ser objecto de anulação com a consequente restituição do imposto indevidamente cobrado à Requerente.

47. Desta decisão decorre que fica prejudicada, por inútil, a apreciação dos restantes vícios imputados àquelas liquidações.

 

Pedido de juros indemnizatórios.

 

48. A par da anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito as juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43.º da LGT.

49. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.

50. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

51. No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.

52. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

53. Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar o factos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do art. 350.º do C. Civil.

 

Decisão.

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à ilisão da presunção de incidência subjectiva do IUC, com a consequente anulação das liquidações questionadas e restituição do imposto indevidamente pago;

b) Julgar improcedente o pedido no que respeita ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

Valor do processo: € 2.238,54.

 

Custas: Ao abrigo do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 612,00, a cargo da requerida (AT).

Lisboa, 19 -07-2013,

O árbitro,

Álvaro Caneira.

1 Vd. Francisco Rodrigues Pardal, "O Uso de Presunções no Direito Tributário", in Ciência e Técnica Fiscal n.º 325-327. pags.20

2 Neste sentido, vd., entre outros, STA, Acórdãos de 21.4.2010, de 3.11.2010, de 2.5.2012 e de 6.6.2012, Procs. 924/09, 499/10, 895/11 e 903/11, respectivamente.

 

3 Vd. artigo 3.º, n.º1 do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho.

4 Neste sentido, vd. Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586 e STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12.