Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 324/2017-T
Data da decisão: 2018-08-05  IRS  
Valor do pedido: € 2.283.667,95
Tema: Cláusula Geral Antiabuso - Distribuição de dividendos vs. pagamento do preço de aquisição de participações sociais.
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Decisão Arbitral

 

 

 

I - RELATÓRIO[1]

 

A...- SGPS, S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º ... -..., ...-Lisboa (doravante Requerente), ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1, alíneas a), 3.º, n.º 1, 6.º, n.º 2 e 10.º, n.º 1, al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20.01, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31.12 (abreviadamente designado aqui por RJAT), e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22.03, veio, em 02.05.2017, apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral. Este pedido tem por objeto a declaração de ilegalidade de duas liquidações adicionais (abreviadamente, LA), relativas a 2012 e 2013, emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (abreviadamente AT) na sequência de um procedimento de inspeção tributária e do relatório a que esta deu origem (Relatório Final da Inspeção Tributária - doravante RIT - cf. Doc. n.º 3). [2]

O fundamento das LA foi a desconsideração da qualificação jurídica, para efeitos fiscais, de diversos atos levados a cabo no seio do grupo em que a Requerente se integra, em virtude da aplicação da cláusula geral antiabuso (abreviadamente, “CGAA”), prevista no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (“LGT”), à situação sub judice.

 

A Requerente designou como árbitro o Prof. Doutor Rui Duarte Morais.

O pedido foi aceite em 15.05.2017. Em 19/05/2017, a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante AT ou Requerida), escolheu para integrar o tribunal arbitral o Prof. Doutor Manuel Pires.

Por acordo dos árbitros designados pelas partes, foi nomeado como árbitro presidente, o Prof. Doutor António Carlos dos Santos que, em 01.08.2017, aceitou essa incumbência.

 

O tribunal arbitral ficou constituído em 18.08.2017, competindo-lhe decidir este processo a que foi atribuído o n.º 324/2017-T.

Notificada a Requerida para responder, a sua resposta foi apresentada em 12.10.2017, juntando mais tarde (em 12.12.2017) o processo administrativo que integra um documento principal e sete anexos.

A Requerente produziu alegações em 16.01.2018 e a Requerida em 06.02.2018.

A especial complexidade do processo e duas prolongadas ausências do país do árbitro presidente (por razões profissionais) determinaram, ao abrigo do disposto no artigo 21º nº 2 do RJAT, despachos sucessivos de adiamento da decisão do processo (em 17.02.2018, 17.04.2018 e 19.06.2018), cada um deles por dois meses.

 

O objeto do pedido de pronúncia arbitral reconduz-se, em larga medida, à discussão sobre a legalidade ou não da aplicação, pela Requerida, da CGAA prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT a uma série de atos jurídicos praticados no seio do grupo económico de empresas (o Grupo E...) de que faz parte a Requerente.

 

 Segundo o RIT, a sucessão de atos praticados no seio desse grupo configuraria a existência de um planeamento fiscal abusivo (PFA) que justificaria a aplicação, à situação concreta, da CGAA. Esta aplicação conduziu à desconsideração da qualificação jurídica de alguns atos identificados nesse mesmo relatório, sendo os valores recebidos pelos acionistas da Requerente, a título de reembolso de dívida, requalificados como adiantamentos por conta de lucros/dividendos, com a consequente tributação por meio de retenções na fonte (RF) exigidas à Requerente, a qual estaria obrigada a este procedimento "quando coloca estes rendimentos à disposição dos acionistas, de acordo com o preceituado na al. a) do n.º 2 do artigo 101.º do CIRS"[3].  

 

Não o tendo feito, o Serviço de Finanças de Lisboa- ... emitiu, na esfera da Requerente, as seguintes LA:

Liquidação n.º

Ano

Valor Total

Prazo de Pagamento

Doc. n.º

2016 ...

2012

€ 794,506.04

13/02/2017

1

2016 ...

2013

€ 1,789,864.24

20/02/2017

2

Total:

€ 2,584,370.28

 

 

 

 

Contrária é a posição da Requerente, para quem a aplicação da CGAA, e a consequente requalificação dos atos jurídicos praticados, foi ilegal, por não estarem preenchidos os pressupostos da sua aplicação.

Apesar disso, a Requerente procedeu, sob protesto, ao pagamento do imposto adicionalmente liquidado, de modo a obviar a instauração de processos de execução fiscal que, segundo ela, poderiam ter impacto negativo no normal desenvolvimento da sua atividade económica.

 

Consequentemente, defende a Requerente a validade dos atos jurídicos por si praticados e a inexistência de qualquer imposto a pagar, nomeadamente com base nas LA por não efetivação de retenções na fonte. A título subsidiário, entende ainda a Requerente que, enquanto mera substituta tributária, não usufruiu de qualquer vantagem fiscal, e, por isso, as LA (a serem devidas, o que só por mera hipótese académica concede) nunca deveriam ser dirigidas a si, mas sim aos seus acionistas, os verdadeiros sujeitos passivos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS). Igualmente a título subsidiário, postula a anulação da liquidação de juros compensatórios. Finalmente, entende que à condenação da AT ao reembolso do imposto pago deverão acrescer juros indemnizatórios, calculados entre o momento em que efetuou o pagamento e a data em que haja lugar à efetiva e integral restituição do montante de imposto pago.

 

Os referidos pagamentos feitos pela Requerente a título de RF de IRS foram os seguintes:

  1. Em 13.02.2017, foi pago o montante de € 794.506,04, respeitante às RF adicionalmente liquidadas pela AT relativas a 2012 (documento de pagamento - Doc. n.º 4);
  2. Em 20.02.2017, foi pago o montante de € 1.789.864,24, respeitante às RF de IRS adicionalmente liquidadas pela AT relativas a 2013 (documento de pagamento - Doc. n.º 5).

 

O valor da causa foi fixado em € 2.283.667,95.

 

II – SANEAMENTO

 

O pedido é tempestivo e o tribunal arbitral é competente para a decisão do presente litígio, achando-se regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades que o invalidem. Foram cumpridas pela Requerida as formalidades exigidas pelo artigo 63.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).

Não foram deduzidas exceções que impeçam a apreciação de mérito. A Requerente apresentou dois "pedidos subsidiários", o primeiro dos quais relativo à inexistência de vantagem fiscal na esfera da Requerente de onde resultaria a consequente ilegalidade das LA em causa. [4]

 

III - MATÉRIA DE FACTO

No que toca  à matéria de facto, recorde-se que  o Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os factos alegados pelas partes, antes lhe cabendo o dever de selecionar aqueles que relevam para o julgamento da causa e distinguir a matéria provada da não provada.[5] Assim, os factos pertinentes para a decisão são escolhidos e recortados em função da sua importância jurídica, tendo em conta as diversas soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito que se suscitam.[6]

 

Matéria de facto provada

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

 

  1. A Requerente foi constituída em 07.06.1994, por B... (abreviadamente B...) e por sua esposa C..., sob a forma de sociedade por quotas, com vista a gerir participações sociais. O seu capital social era de 400.000$00, capital este que foi objeto de alguns acréscimos em anos seguintes.
  2. Após diversas alterações, em março de 2007, a Requerente, para além de ter visto concretizado um pequeno aumento de capital, foi transformada em sociedade anónima, com inscrição no CAE 64202 – Atividades de Sociedades Gestoras de Participações Sociais (SGPS) não financeiras, sendo, como tal, regulada pelo regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30.12.
  3. O capital social desta holding passou de € 750.000,00 para € 800.000,00, divididos por 160.000 ações, nominativas ou ao portador, com valor nominal de 5 euros cada uma. A partir de 24.05.2007, todo o capital da SGPS passou a ser detido, em partes iguais, por dois sócios, o já referido B... e D...(abreviadamente D...).
  4. A Requerente integra o Grupo económico nacional E... . Este grupo atua em ... através da F... . Esta sociedade, em 27.08.2008, adquiriu o direito de propriedade plena sobre um imóvel sito no nº ... da ... (também conhecida por ...), na cidade de ... (cópia da escritura - Doc. n.º 6)
  5. É nesta morada que ficou sediada uma subsidiária maltesa do grupo, a G... com o n.º de registo ...(aqui designada por G...).[7]
  6. Em 01.01.2012, entre a G... e a F..., foi formalizado um contrato de arrendamento de uma das salas do edifício acima referido, pagando a primeira à segunda uma renda no valor de  € 500 (Docs 22 e 23-1 a 23-12).
  7. Em 29.12.2009, foi constituída pelos dois sócios da Requerente (B... e D...) uma outra sociedade maltesa, tendo como número de pessoa coletiva o ..., a H... (doravante H...), com um capital social de € 1.200,00, sendo o mesmo dividido por 1.200 ações com o valor nominal de € 1,00 cada, detido, em partes iguais, pelos seus dois sócios individuais.
  8. Foi indicado como sede da H... o nº ... da ...(onde estava sediada a G...) e designados como administradores os seus dois acionistas (B... e D...). Em 23.02.2010, foi nomeado como diretor da H... um advogado maltês, I..., sócio de uma empresa de advogados com sede em Malta. Segundo informação da Autoridade Tributária Maltesa, a H... tem os seus escritórios na ..., ..., ..., ..., Malta, morada correspondente à sede da sociedade de advogados acima referida.
  9. O objeto social da H... é o seguinte:

 - Comprar sob qualquer título para manter, administrar e dispor de, por qualquer forma permitida por lei, de propriedade mobiliária e imobiliária de qualquer natureza, incluindo direitos sobre esses bens;

- Receber dividendos, ganhos de capital e outros rendimentos derivados da posse dos bens mencionados no parágrafo anterior;

- Participar na gestão de qualquer sociedade;

- Proceder a todos os atos que se mostrem necessários para a prossecução dos objetivos anteriores” (Cf. Anexo 14 do RIT).

  1. Em 30.12.2009, a H... adquiriu, mediante um contrato de compra e venda (CCV), aos sócios comuns dela e da Requerente (B... e D...), pela quantia de € 20.000.000,00, todas as ações que integravam o capital social da Requerente, com o valor nominal global de € 800.000,00 (Cf. Anexo 5 do RIT).
  2. Em virtude deste CCV, e como contrapartida da alienação de participações sociais com o valor nominal de € 400.000,00, a H... comprometeu-se a pagar a cada um dos referidos sócios a quantia de € 10.000.000,00.
  3. Não consta dos autos ter existido, à data da transmissão das ações, qualquer avaliação do valor destas efetuada por entidade externa aos intervenientes no negócio.
  4. O pagamento do preço convencionado entre a H... e os seus dois sócios (€ 10.000.000,00 a pagar a cada sócio) não foi, porém, efetuado no momento da celebração do CCV (30/12/2009), mas foi escalonado no tempo, de acordo com um plano de pagamento em prestações (relativo a cada um dos sócios), sem juros, constante do CCV, a ocorrer ao longo de seis anos, nos termos seguintes:

- Até 31.12.2010, seria pago o montante de € 1.500.000,00;

- Até 31.12.2011, seria pago o montante de € 1.500.000,00;

- Até 31.12.2012, seria pago o montante de € 1.500.000,00;

- Até 31.12.2013, seria pago o montante de € 1.500.000,00;

- Até 31.12.2014, seria pago o montante de € 1.750.000,00;

- Até 31.12.2015, seria pago a cada um dos sócios o remanescente do valor em dívida, tudo totalizando o montante de € 2.250.000,00.

  • As mais-valias decorrentes da alienação das participações sociais da Requerente à H... levada a cabo pelos dois sócios comuns (B... e D...) foram declaradas nas declarações modelo 3 de IRS de cada um dos dois referidos sócios.
  • Estas mais-valias beneficiaram da exclusão de tributação então prevista no artigo 10.º, n.º 2, do CIRS, na redação e numeração em vigor na data a que se reportam os factos.
  • Em resultado da aquisição pela H... aos seus dois sócios do capital social da Requerente por estes detido, foi constituída, na esfera da H..., uma dívida total de € 20.000.000,00.
  • Assim, em 30.12.2009 (data da alienação pelos sócios individuais da Requerente das participações sociais desta empresa à H...), a Requerente passou a ser detida pela H... sediada em Malta que, por sua vez era detida pelos sócios e administradores da Requerente, os referidos B... e D... .
  • Nessa mesma altura, a Requerente possuía participações em quatro empresas que indiretamente transitaram para a H...:

- uma participação de controlo, representando 53,44% do capital social da J... SGPS, SA, sociedade dominante do Grupo económico nacional E..., líder em gestão de transporte internacional e logística, com intervenção em diversos mercados como, por exemplo, os mercados angolano e asiático; [8]

- uma participação de 40% no capital social da K..., Lda, uma empresa da indústria da restauração;

- uma participação de 75 % na sociedade L..., Lda, empresa que se dedica             à exploração direta e ao franchising de serviços de lavagem automóvel e outros;

- uma participação na M...-SGPS, S.A, sociedade com o número único de matrícula e pessoa coletiva 507.979.265 (abreviadamente,  M...)[9].

  1. Em 26.04.2010, a Requerente (detida pela H... há quase quatro meses) alienou o capital da sua participada M... à sociedade N... SA (abreviadamente, N...), uma sociedade independente do grupo, pelo valor total de € 29.572.400,00.[10]
  2. Desta alienação resultou, para a Requerente um excedente no valor de € 16.793.645,70, que, nos termos do artigo 32.º do EBF então em vigor, não foi sujeita a imposto. [11]
  3. No final do exercício de 2010, a N... devia ainda à Requerente, relativamente à aquisição do capital social da M..., o montante de € 12.000.000,00.
  4. Ainda no ano de 2010, a H... efetuou pagamentos parciais da dívida contraída junto dos seus acionistas para aquisição da Requerente (ocorrida, relembre-se, em 30.12.2009), pagamentos que foram realizados com fundos provenientes de um adiantamento por conta de lucros da Requerente.
  5. Em 31.05.2011, a assembleia geral da Requerente deliberou em ata atribuir dividendos à sociedade-mãe H... no valor de € 15.000.000,00 (Anexo 9 do RIT e IES, Anexo 10 do RIT), constando as transferências realizadas da Requerente para a H... do quadro do SIT referido no artigo 25.º da Resposta da AT.
  6. Estes dividendos não sofreram tributação, pois encontravam-se abrangidos pela isenção prevista no artigo 14.º, n.º 3, do Código do IRC, na redação e numeração em vigor na data a que se reportam os factos.
  7. Foi elaborado pelos SIT o quadro seguinte, resumindo as transferências efetuadas da sociedade portuguesa para a sociedade maltesa e em que se pode visualizar os valores pagos e a redução da dívida à:

 

Saldo de Contas

26.5 Lucros Disponíveis

27.8.1.217 Outros Devedores – H...

Data

Movimentos

Débito

Crédito

Débito

Crédito

 

Saldo Inicial 2011

 

 

   3.000.000,00 €

 

31-03-2011

Aplicação Resultados

 

  15.000.000,00 €

 

 

23-12-2011

Transferência

 

 

      750.000,00 €

 

31-12-2011

Reclassificação

  3.750.000,00 €

 

 

     3.750.000,00 €

 

Saldo Final 2011/Inicial 2012

 

  11.250.000,00 €

 

 

02-03-2012

Transferência

 

 

        98.122,25 €

 

03-04-2012

Transferência

 

 

      550.000,00 €

 

16-04-2012

Transferência

 

 

          6.500,00 €

 

12-12-2012

Transferência

 

 

   1.975.000,00 €

 

31-12-2012

Reclassificação

  2.629.622,25 €

 

 

     2.629.622,25 €

 

Saldo Final 2012/Inicial 2013

 

   8.620.377,75 €

 

 

16-01-2013

Transferência

 

 

 

          25.000,00 €

16-01-2013

Transferência

 

 

 

          25.000,00 €

26-06-2013

Transferência

     495.000,00 €

 

 

 

10-07-2013

Transferência

 

 

   3.150.000,00 €

 

31-12-2013

Transferência

 

 

   2.057.276,40 €

 

31-12-2013

Reclassificação

  5.157.276,40 €

 

 

     5.157.276,40 €

 

Saldo Final 2013

 

   2.968.101,35 €

 

 

 

 

  1. De 2011 a 2013, a N... entregou à Requerente o montante total de
    € 10.000.000,00 a título de pagamento do preço, por referência ao CCV do capital social da M... . Esta dívida foi paga ao longo dos exercícios com o produto do pagamento dos dividendos atribuídos em ata de 31/05/2011 (anexo 8).
  2. O quadro seguinte reflete a forma como foi efetuada a amortização da dívida aos sócios:

Período

A...-> H...

Período

H...-> Sócios

Março e abril de 2012

654.622,25 €

Abril de 2012

649.000,00 €

Dezembro de 2012

1.975.000,00 €

Dezembro de 2012

1.782.853,32 €

Junho de 2013

495.000,00 €

Junho de 2013

387.500,00 €

Julho de 2013

3.150.000,00 €

Julho de 2013

3.137.999,99 €

Dezembro de 2013

2.057.276,40 €

Janeiro de 2014

1.900.241,00 €

 

 

  1. Em 2012 e 2013, foram efetuados diversos pagamentos pela H... aos seus dois acionistas individuais no total de € 5,957,353.31, nos termos evidenciados no  quadro infra (vd. pp. 7/38 e 8/38 do RIT):

Data

Montante

Destinatário

05/04/2012

€ 237,000.00

D...

05/04/2012

€ 312,000.00

B...

10/04/2012

€ 100,000.00

B...

27/12/2012

€ 632,029.66

B...

27/12/2012

€1,000,000.00

D...

27/12/2012

€ 150,823.66

D...

26/06/2013

€ 387,500.00

D...

15/07/2013

€ 485,666.66

D...

15/07/2013

€1,500,000.00

D...

15/07/2013

€1,152,333.33

B...

 

€ 5,957,353.31

 

 

  1. A partir de 2011, foram transmitidas para a H... pela F...:

 - uma participação de 50% no capital da sociedade R... (Docs nº 11 a 14), sendo os restantes 50% pertencentes à sociedade libanesa S...;

- de forma indireta, através da subsidiária maltesa G... (constituída com o capital social de 1200, controlada em 98% pela H... e em 2% pelos sócios da A...), as participações da F... em duas empresas brasileiras, a T... e U... Lda e a V... Lda.

  1. A partir de 2012, a H... adquiriu:

- em 21.12.2012, uma participação social de 5% do capital social da sociedade vinícola portuguesa W..., SA e realizou suprimentos nesta  mesma sociedade, suscetíveis de serem capitalizados, totalizando o investimento efetuado 226.471,35;

em 22.01.2013, uma participação representativa de 10,7%, no valor de € 65.250, do capital social da X..., S.A., uma empresa de consultoria com sede em Portugal.

  1. A 30.12.2012, data a que se reportam as LA, o capital da Requerente era integralmente detido, de forma direta pela H... e indireta pelos mencionados acionistas desta.
  2. Parte destes pagamentos (para além de outros) e das operações que os sustentam foi requalificada pela AT como tendo sido efetuada em decorrência de uma operação geradora de dividendos, razão pela qual esta autoridade, ao contrário da Requerente, entendeu e entende que os mesmos deveriam ter sido sujeitos a RF a efetuar pela Requerente.
  3. Os montantes em causa derivados da aplicação da CGAA são, segundo o RIT, os seguintes:

 

Data

Valor

Taxa

Imposto

Março 2012

€ 98,122.25

25%

€ 24,530.56

Abril 2012

€ 556,500.00

25%

€ 139,125.00

Dezembro 2012

€ 1,975,000.00

26.50%

€ 523,375.00

Junho 2013

€ 495,000.00

28%

€ 138,600.00

Julho 2013

€ 3,150,000.00

28%

€ 882,000.00

Dezembro 2013

€ 2,057,276.40

28%

€ 576,037.39

 

€ 8,331,898.65

 

€ 2,283,667.95

 

A prova dos factos acima resulta do constante do RTI e da documentação junta aos autos, não se tendo suscitado qualquer divergência entre as partes relativamente a questões factuais.

 

Factos não provados

 

Não existem factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

 

 

IV - O   DIREITO APLICÁVEL: A CGAA

 

1. O contexto

 

a) No ordenamento jurídico-fiscal português foram introduzidos, ao longo dos anos 90 do século XX, com o objetivo de eliminar ou atenuar fenómenos de crescente evasão e elisão fiscais, em especial em sede de IRC, diversos dispositivos legais contendo cláusulas especiais antiabuso.[12] A criação casuística deste tipo de cláusulas cedo mostrou a sua inadequação ou insuficiência para atingir o referido objetivo. Essa a razão do aparecimento e difusão de cláusulas de natureza geral, as chamadas CGAA, incentivadas já na altura pela OCDE, de forma a procurar contrariar a imaginação criativa de formas jurídicas propiciadoras de um incremento da elisão fiscal. Assim sucedeu igualmente entre nós, com a introdução da CGAA, nos idos de 1999, acompanhando, na altura, por questões de oportunidade legislativa, a reforma do CPPT. Ao contrário das cláusulas especiais, a CGAA tem vocação para se aplicar a todas as transações e a todos os impostos, podendo mesmo servir de rede de proteção complementar ou subsidiária à aplicação de cláusulas especiais antiabuso.

A CGAA não foi, porém, aplicada de imediato, sendo necessário esperar mais de uma década para que visse a luz do dia, em 15.02.2011, a primeira decisão judicial sobre o tema proferida, por unanimidade, pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul, processo n.º 04255/10). As causas dessa tardia aplicação são várias, podendo, desde já, sublinhar-se a polémica sobre a pretensa inconstitucionalidade da CGAA e o facto de a AT ter optado por dar prioridade, sempre que possível, à aplicação das cláusulas específicas.[13]

 

b) Sob a epígrafe "Ineficácia de atos e negócios jurídicos", é no atual artigo 38.º, n.º 2 da LGT (na versão da Lei do OE para 2001) que se encontra prevista a CGAA nos seguintes termos:

           

"2 - São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim  económico,  ou à obtenção de vantagens fiscais  que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas." [14]

 

Da letra da lei decorre, prima facie, que estamos uma previsão normativa que estatui a aplicação da sanção de ineficácia exclusivamente em sede tributária a certos atos ou negócios jurídicos considerados por lei como abusivos, permitindo, porém, que tais atos continuem a ser válidos e eficazes em relação a outros ramos de direito, nomeadamente em sede de direito privado. A sanção para os atos considerados abusivos traduz-se pois na desconsideração da finalidade fiscal daquele ato ou negócio, ou seja, na sua não relevância para a obtenção de vantagens fiscais que, de outra forma, seriam, de modo ilícito, total ou parcialmente alcançadas.

Uma vez desfeito esse ato ou negócio considerado abusivo, torna-se patente que ele ocultava um outro ato ou negócio jurídico que seria tributável de acordo com as normas aplicáveis a essa mesma situação. Aparentemente tudo se passaria como se houvesse o exercício de um direito ao planeamento fiscal, legitimado em nome da autonomia privada e da liberdade de gestão. Na realidade, o que existiria era um uso abusivo de formas jurídicas ou de artifícios destinados a contornar a ratio legis (fraus legis) com o objetivo, essencial ou principal, de conseguir uma vantagem fiscal, consistente na eliminação, redução ou diferimento da punção fiscal, que, sem essas práticas desviantes, não seria alcançado.

 

c) A criação da CGAA concentra, em si mesma, um conjunto de critérios ou princípios de decisão de origem essencialmente jurisprudencial invocados para justificar a desconsideração de atos jurídicos, em nome do combate à erosão das bases tributárias, do combate à elisão fiscal e do princípio da igualdade tributária, sob a forma de princípio da capacidade contributiva. É o caso do critério da prevalência da substância sobre a forma[15], da doutrina da step transaction (segundo a qual os atos em questão devem ser vistos como um todo e não individualmente, pois só assim ganham pleno sentido), da inexistência de lacunas conscientes de tributação, do teste da centralidade do propósito negocial (business purpose test), do critério da transação-farsa (sham transaction), ou, eventualmente de outros igualmente válidos para este efeito, como o teste do investidor (privado) independente, usado no direito da concorrência (nomeadamente em sede de auxílios de Estado) e subjacente ao instituto dos preços de transferência.

As CGAA, como bem refere a Decisão arbitral proferida no processo 162/2017, "são deliberadamente redigidas com recurso a conceitos vagos abertos e carecidos de uma interpretação e aplicação ativa por parte das administrações tributárias e dos tribunais. As mesmas apostam na criação de alguma indeterminação, suscetível de desincentivar o planeamento fiscal agressivo e a evasão fiscal. Elas representam um desvio considerável ao raciocínio jurídico formal, baseado na análise linguística e da sucessão das leis no tempo e na garantia estrita de tipicidade, certeza e previsibilidade, que tem caracterizado o direito fiscal. A certeza e a segurança jurídicas são fundamentais para incentivar o investimento e estruturar transações comerciais. Embora estes princípios continuem a caracterizar a prática quotidiana da formulação, interpretação e aplicação das normas fiscais, como resulta das exigências do Estado de direito, os mesmos não se apresentam como imperativos categóricos absolutamente subtraídos a um processo de ponderação".[16]

Assim - continua o mesmo acórdão - estas cláusulas " repousam no reconhecimento de que uma adesão estrita ao formalismo jurídico-fiscal é absolutamente irrealista e quixotesca diante das possibilidades quase infinitas de manipulação das formas jurídicas e de planeamento fiscal agressivo a nível nacional e internacional. A recente intensificação e globalização das condutas de evasão e fraude fiscal impõe, nalgumas situações, a assunção de uma atitude mais realista, pragmática e orientada para os resultados, por parte do legislador, da administração e dos tribunais tributários. Esta abordagem exige que, nos casos em que se vise prevenir o planeamento fiscal abusivo, a administração e os tribunais ultrapassem os limites da análise linguística de textos legais e da investigação da história legislativa e avancem para um inquérito normativo quanto aos fins prosseguidos pela legislação tributária e os melhores meios para alcançar esses fins. A postura da administração e dos tribunais deve ser prática e enraizada em resultados empíricos."[17]

 

d) A introdução de uma CGAA adiciona-se assim ao instrumental jurídico atribuído à AT para lutar mais eficazmente contra a evasão, elisão e fraude fiscal, nomeadamente às cláusulas especiais e ao instituto dos preços de transferência. Ela integra-se numa nova visão da fiscalidade que se afasta quer do princípio da tipicidade fechada, quer da predominância da interpretação literal (antes privilegiando uma interpretação teleológica)  ou de uma exclusiva análise jurídico-privatística.[18]  Como sublinha A. GUERREIRO, "Se se entendesse que o imposto recai, não sobre a real substância jurídica dos atos ou contratos, mas sobre a qualificação jurídica dada pelas partes aos atos e contratos, deixar-se-ia na disponibilidade das partes a constituição da obrigação tributária que poderia ser afastada mediante uma qualificação alheia à verdadeira substância jurídica caraterizada nos tipos de incidência tributária".[19]  O mesmo é dizer que se deixaria na total disponibilidade das partes, mediante o livre desenho dos atos e contratos, a construção de formas de contornar as normas de incidência fiscal ou o acesso indevido a benefícios ou incentivos fiscais. O princípio da tipicidade, que tem por base o princípio da segurança jurídica, não é, porém, absoluto, sofrendo limitações, como as que decorrem da CGAA,  quando põe em causa os princípios constitucionais da igualdade e da justa distribuição dos encargos tributários, fins primordiais do ordenamento jurídico tributário (cf. os artigos 13.º, 81.º, b) e 103.º e 104.º CRP), bem como a equilibrada concorrência entre as empresas (artigo 81.º, al. b) CRP). Poder-se-á mesmo dizer que a criação da CGAA representa uma manifestação do "realismo do Direito Fiscal", pois a este ramo de direito não é indiferente a análise dos efeitos económicos pretendidos pelas partes que, na realidade, se tenham vindo a produzir nem a consideração económica dos factos ou atos com relevância tributária.[20]

 

e) Importa ainda destacar que o combate à evasão e elisão fiscais está hoje fortemente ancorado no direito internacional e no direito europeu, de tal modo que o contexto do combate contra a elisão e as formas de PFA mudou substancialmente. [21]

De facto, a partir sobretudo da Grande Crise de 2007/8 e da difusão pública de denúncias contra práticas evasivas ou elisivas de empresas plurilocalizadas, a comunidade internacional, em especial no quadro da OCDE e do G20, chamou a si a magna tarefa do reforço da luta contra a erosão das bases fiscais e a deslocalização de lucros. Como resultado desta renovada agenda política e de uma preparação técnica de vários anos foi aprovado, em 2013, o chamado Plano Anti BEPS (do acrónimo Base Erosion e Profit Shifting ) que deu origem a quinze relatórios e, na sequência destes, a várias ações ou iniciativas (ainda em curso) no sentido do combate ao PFA e de evitar a dupla não tributação. Entre essas iniciativas, salientam-se, no que aqui diz mais diretamente respeito, as relativas à exigência da revelação pelos contribuintes dos seus mecanismos de planeamento tributário agressivo, as que visam assegurar que os resultados dos preços de transferência estejam alinhados com a criação de valor e as que pretendem garantir o reforço da efetividade do combate às práticas de concorrência fiscal prejudicial, tendo em conta a transparência e a substância das operações.  

A principal consequência deste movimento foi, para já, a emergência de um novo princípio de direito internacional fiscal, comummente aceite pelos mais de 130 Estados participantes no Fórum da OCDE, segundo o qual os lucros deverão ser tributados no lugar de produção de valor, princípio este que deve orientar a aplicação do direito interno.

 Este movimento tem vindo a ser acolhido e aprofundado pela União Europeia, desde logo, através do reforço da cooperação administrativa, operado por várias diretivas, e da aprovação da Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho de 12.07.2016, conhecida por Diretiva Antielisão (DAE), aprovada com o objetivo de "restabelecer a confiança na equidade dos sistemas fiscais e permitir que os governos possam exercer eficazmente a sua soberania fiscal". Deste modo, como se diz no seu Preâmbulo - os Estados-Membros "poderão, simultaneamente, cumprir os objetivos do Pacto de Estabilidade e Crescimento e sustentar o seu modelo de Estado social, em consonância com o modelo europeu de uma "economia social de mercado". [22]

Uma das medidas consagradas nesta diretiva é precisamente a da criação de uma regra geral antiabuso harmonizada, cuja configuração foi consagrada nos seguintes termos:

                       

                        " 1. Para efeitos do cálculo da matéria coletável das sociedades, os Estados-Membros devem ignorar uma montagem ou série de montagens que, tendo sido posta em prática com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, não seja genuína tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes. Uma montagem pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.

                        2. Para efeitos do n.º 1, considera-se que uma montagem ou série de montagens não é genuína na medida em que não seja posta em prática por razões comerciais válidas que reflitam a realidade económica.

                        3. Caso as montagens ou série de montagens não sejam tomadas em consideração nos termos do n.º 1, a coleta é calculada nos termos do direito nacional."

           

           

f) Há um forte consenso na comunidade jurídica quanto à caraterização da CGAA como um dispositivo que tem por objetivo lutar contra a elisão fiscal ou planeamento fiscal abusivo ou extra legem (PFA), e não contra o planeamento fiscal (PF) em si mesmo ou intra legem (gestão fiscal). Enquanto o primeiro é considerado ilícito, um ilícito de natureza não penal ou contraordenacional, o segundo, quando efetuado em consonância com a lei, é considerado, quer no plano nacional, quer no plano europeu, não só um ato lícito, mas a expressão de uma liberdade ou mesmo de um  direito protegido pela CRP (artigos 61.º, n.º 1 e 17.º) e, bem assim, um dever de boa gestão. 

            Dado o caráter excecional da CGAA, a sua aplicação é precedida, entre nós, de importantes precauções de natureza instrumental que visam assegurar as garantias dos contribuintes. Assim a liquidação de tributos com base na CGAA implica que a AT recorra ao procedimento gracioso específico previsto no art.  63.º do CPPT.[23]

            A aplicação da CGAA depende pois da audição prévia do contribuinte, nos termos da lei, devendo este direito ser exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projeto de aplicação da CGAA e podendo o contribuinte, no mesmo prazo, apresentar as provas que entender pertinentes. Após a audição prévia, a aplicação da CGAA deve ser autorizada pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência (n.ºs 4 a 6 do art. 63.º CPPT).

            Além disso, de acordo com o nº 3 do referido art. 63.º, o projeto e a decisão de aplicação da CGAA pressupõem um dever especial de fundamentação, contendo necessariamente:

            "a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;

            b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. "

 

Por fim, a CGAA não será aplicável se o contribuinte tiver solicitado à AT informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a AT não responder no prazo de 150 dias (artigo 63º, n.º 8 CPPT). por identidade de razão, o mesmo deverá ocorrer, se tiver sido comunicado à AT, ao abrigo do Decreto-Lei n. º 29/2008, de 25.02, em vigor desde 15.05.2008, o esquema utilizado.

 

g) Em termos gerais, a noção de PF é definida e desenvolvida pelo artigo 3.º do referido DL n.º 29/2008, de 25.02, nos seguintes termos:[24]

                        "a) «Planeamento fiscal», qualquer esquema ou atuação que determine, ou se espere que determine, de modo exclusivo ou predominante, a obtenção de uma vantagem fiscal por sujeito passivo de imposto;

                        b) «Esquema», qualquer plano, projeto, proposta, conselho, instrução ou recomendação, exteriorizada   expressa ou tacitamente, objeto ou não de concretização em acordo ou     transação;

                        c) «Atuação», qualquer contrato, negócio ou conjunto de negócios, promessa, compromisso, estrutura coletiva ou societária, com natureza vinculativa ou não, unilateral ou plurilateral bem como qualquer operação ou ato jurídico ou material, simples ou complexo, realizado, a realizar ou em curso de realização;

                        d) «Vantagem fiscal», a redução, eliminação ou diferimento temporal de imposto ou a obtenção de benefício fiscal, que não se alcançaria, no todo ou em parte, sem a utilização do esquema ou a atuação. "

 

Na base deste diploma está a ideia de que o PF, quando abusivo, gera efeitos negativos muito significativos, pois corrói a integridade e a justiça dos sistemas fiscais, desencoraja o cumprimento por parte da generalidade dos contribuintes e aumenta injustificadamente os custos administrativos de fiscalização. São, no fundo, as mesmas razões que haviam justificado a criação da CGAA. Daí que estas noções, embora definidas no quadro de um diploma que visa combater o fenómeno do PFA promovido por intermediários fiscais, sejam, com eventuais adaptações, transponíveis para o quadro de aplicação da CGAA.

 

            h) O direito ao PF não é, como se disse, absoluto. Pode ser, nos termos do artigo 18.º, nºs 2 e 3 da CRP, objeto de restrições legitimadas por outros princípios constitucionais, desde logo, os previstos nos artigos 13.º, 81.º, als. b) e f), 103.º, n.º 1 e 104.º da CRP.

Uma das principais restrições é a que decorre da aplicação da CGAA, a qual pode ser acionada não só contra os esquemas de PFA previamente divulgados (ou cuja divulgação seja obrigatória), mas também contra outros de que a AT tenha ou deva ter tomado conhecimento. Estes esquemas ou montagens implicam a existência cumulativa de vários elementos que, a partir da análise do referido artigo 38.º, n.º 2 da LGT, a jurisprudência e a doutrina têm extraído como constitutivos da figura do PFA. Caso eles se verifiquem, o PF será considerado ilícito e sujeito às cominações previstas no citado artigo: a prova da existência cumulativa dos elementos constitutivos da noção de PFA conduz à desconsideração das formas jurídicas utilizadas. Assim, o negócio efetuado será válido para efeitos de Direito Privado, mas não de Direito Fiscal.

São habitualmente considerados como elementos integradores da noção de PFA, para efeitos de aplicação da sanção da desconsideração fiscal das formas usadas, os seguintes:[25]

- Elemento meio: o recurso a formas ou negócios jurídicos inabituais, atípicos ou artificiais (esquemas ou montagens), tendo em vista a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal. Estes atos assumem, em regra, um caráter unitário e pré-planificado, exigindo a sua análise o recurso à doutrina da step transaction que considera a sequência (em particular, temporal) dos atos ou negócios coordenados entre si e olhados na sua globalidade e não de forma independente;[26]

- Elemento resultado: a obtenção de uma vantagem fiscal efetiva que se traduz na redução, eliminação ou diferimento temporal do imposto. Essa vantagem, decorrente dos esquemas ou montagens utilizados, conduz à obtenção de uma carga tributária mais favorável do que aquela que o contribuinte obteria se não tivesse recorrido àqueles meios;

- Elemento intelectual: com este elemento procura-se analisar se a motivação do contribuinte (relativamente à obtenção da vantagem fiscal efetiva através dos meios utilizados), apurada objetivamente, com base num juízo de razoabilidade e normalidade, foi ou não preponderantemente de natureza fiscal. Ou seja, mesmo que exista também alguma finalidade económica no conjunto dos atos e contratos realizados, esta seria de natureza meramente acessória e não de natureza principal, não podendo ser considerada razão comercial legítima para efeitos tributários;

- Elemento normativo: visa detetar se existe ou não um juízo de censura ético-jurídico da parte do legislador relativamente aos comportamentos dos sujeitos passivos, se o espírito e a razão de ser da ordem jurídica tributária  (nomeadamente a aplicação do princípio da capacidade contributiva) ou concorrencial (em especial, a defesa do princípio da neutralidade fiscal) era o de impedir a obtenção de vantagens fiscais por meio de esquemas ou montagens que contornem a lei (abuso de formas jurídicas, fraude à lei) ou se tais vantagens são um resultado assumido pelo próprio legislador fiscal.  A existência deste elemento não se verifica, pois, se este criou deliberadamente uma lacuna (lacuna consciente de tributação) ou promoveu uma opção fiscal de que o contribuinte se legitimamente se limitou a aproveitar. [27]

 

i) Três precauções devem, porém, ser tomadas relativamente à aplicação dos elementos integradores da noção de PFA, subjacente à aplicação da CGAA.

A primeira vai no sentido de, embora a análise de cada um destes elementos deva ser feita de modo individualizado,  esse facto não pode fazer esquecer que, na realidade, eles se encontrem fortemente articulados ou concatenados entre si, sendo, as mais das vezes, difícil isolá-los, como, aliás, se verifica, nos presentes autos, relativamente à argumentação das partes. É sempre necessário observar tais elementos no seu conjunto e de modo dinâmico (visão holística).

A segunda é a de que - como sustenta no supracitado acórdão do CAAD [28]-  que não se pode obnubilar que o vetor decisivo na verificação da legitimidade da aplicação da CGAA "é sempre a apreciação casuística, em função dos valores e objetivos do ordenamento jurídico-tributário, das circunstâncias que estão presentes na situação fiscalmente relevante em julgamento". E, a propósito, aquele aresto chama à colação o já referido  acórdão do TCA Sul proferido no proc. n.º 04255/10, segundo o qual “a questão de determinar se algum expediente em particular é “puramente artificial” deve ser resolvida nos tribunais domésticos caso a caso”, para, em seguida concluir que o  funcionamento da CGAA "pressupõe sempre uma tarefa de realização concreta do Direito em função das circunstâncias fácticas e dos contornos materiais da situação sub judice, não sendo viável, a seu propósito, sob pena de se desprotegerem as necessidades reais que presidiram à sua consagração, reduzir a sua aplicação à subsunção estrita e automática das realidades a categorias jurídicas abstratas".[29]

A terceira implica que, perante um esquema complexo, formado por atos e contratos que se sucedem no tempo, em que se exige uma visão holística da montagem, apenas é possível proceder à análise da situação, para efeitos de aplicação da CGAA, a partir do momento em que é concretizada a vantagem fiscal que os sujeitos passivos / contribuintes pretendem obter.

 

2. A aplicação da CGAA ao caso sub judice na perspetiva das partes

 

Implicando distinguir o PF legítimo (intra legem) do PFA (extra legem), a aplicação da CGAA aos factos nunca será fácil, como, aliás, o atestam diversas decisões judiciais em sentido divergente.[30] Na ausência de confissão dos contribuintes / sujeitos passivos, a possibilidade de efetuar tal distinção apenas pode radicar em juízos de razoabilidade e racionalidade. A subsunção do caso concreto à norma que prevê a CGAA apenas possa ser, na prática, realizada, tendo em conta juízos de experiência comum e de normalidade social relativos aos factos e aos elementos recolhidos que, com razoável segurança, permitam concluir (ou não) pela natureza abusiva do planeamento fiscal do contribuinte.

Recorde-se ainda que devendo o tribunal prosseguir a descoberta da verdade material, não se encontra vinculado às qualificações das partes nem à forma como estas estruturam os seus argumentos ou procedem à interpretação dos factos.

 

Procura-se, de seguida, sintetizar as posições da Requerente e da Requerida quanto à aplicação da CGAA, tal como resultam da petição inicial, do RIT, da resposta e das alegações, peças processuais para as quais se remete.

 

A) Quanto ao elemento meio

 

1 Posição da Requerida

 

A AT sublinha que os administradores e proprietários da Requerente decidiram criar, em 29/12/ 2009, uma empresa holding (a H...) na República de Malta com um capital social de € 1.200,00, para no dia seguinte à sua criação, utilizarem essa mesma empresa para adquirir integralmente o capital social da Requerente por um valor de vinte milhões de euros, ou seja por um valor 16.666,67 superior ao valor do seu capital social, mantendo-se, por intermédio da H..., como donos da sociedade alienada (a Requerente). Permaneceram igualmente como administradores da Requerente, tendo inclusive decidido a atribuição de dividendos para a nova sociedade após a obtenção da mais-valia com a alienação da sociedade M... .

Desta compra resultou que a H... ficou com um ativo nas suas contas desse montante e um passivo de igual montante, passivo este correspondente à dívida para com os seus sócios, dívida esta paga ao longo dos exercícios com o produto do pagamento dos dividendos atribuídos em ata de 31/05/2011 (anexo 8). Posteriormente a essa distribuição, foi efetuada a amortização da dívida aos sócios nos termos revelados pelo seguinte quadro:

 

Período

A...-> H...

Período

H...-> Sócios

Março e abril de 2012

654.622,25 €

Abril de 2012

649.000,00 €

Dezembro de 2012

1.975.000,00 €

Dezembro de 2012

1.782.853,32 €

Junho de 2013

495.000,00 €

Junho de 2013

387.500,00 €

Julho de 2013

3.150.000,00 €

Julho de 2013

3.137.999,99 €

Dezembro de 2013

2.057.276,40 €

Janeiro de 2014

€ 1.900.241,00

 

 

Deste modo, os acionistas da H... levaram a cabo uma sucessão preordenada de atos que, em conjunto, transformaram a atribuição de dividendos da Requerente a si próprios num pagamento de uma dívida criada numa empresa maltesa controlada pelos alienantes (cf. a  alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS). [31]

 

Posição da Requerente

 

O impacte da crise de 2008 foi especialmente devastador para o comércio mundial e, em particular, para a indústria de shipping. Portugal não apresentava segurança económica bastante para que os potenciais parceiros ou clientes entrassem em negociações com empresas do Grupo E... (E...), líder na atividade do shipping em Portugal Para reagir e adaptar a estrutura de investimentos dos sócios a um contexto de crise mundial tão adverso, o Grupo apostou na diversificação e na internacionalização de projetos de investimentos comuns, sendo essa a principal razão da criação da H... em Malta (um dos maiores centros europeus da indústria de shipping, uma porta de entrada na Europa para investimentos de países terceiros, como o Líbano e país dotado de um sistema fiscal estável e consensual entre as diversas forças políticas) que, perante os dados existentes, se afigurava como a melhor opção. O investimento do Grupo em Malta foi substantivo, material e efetivo, com relevo para a aquisição, por motivos estratégicos, de um imóvel sito em ... .

Assim, a H... foi constituída para dar seguimento a negociações que se encontravam em curso, mas também e sobretudo como veículo apropriado para vir a acolher essa e outras iniciativas e oportunidades que se viessem a proporcionar, sem que os seus sócios antecipassem já quer o número, quer a dimensão das mesmas, não podendo naturalmente ser obrigados a tal. Ou seja: a H... foi criada para proporcionar aos sócios individuais um veículo societário legítimo e racional, adequado ao desenvolvimento dos negócios internacionais que pretendia realizar, como forma de diversificação dos seus investimentos.

Não existe assim na sua criação qualquer tipo planeamento fiscal.

 

Segundo a Requerente, na prática, a H... cumpriu com esta estratégia, ao dedicar-se efetiva e inequivocamente à pesquisa, identificação e prossecução de oportunidades de investimentos que, em muito, ultrapassaram a mera detenção da participação na Requerente. Assim se compreende a realização de diversos investimentos que, embora tenham sido, por razões de mera conveniência prática, inicialmente assumidos por sociedades do Grupo E..., não se relacionavam com a indústria de shipping. Os sócios individuais pretenderam assumir e desenvolver em conjunto esses investimentos, como ocorreu com o projeto "..." (transmitido pela F... à H... em 2011) e com o projeto de abertura de duas lojas no Brasil e na constituição de duas sociedades brasileiras, inicialmente levados a cabo pela referida F... e depois transmitidos à G..., ou seja, indiretamente à H... que controla 98% da G... . Mais tarde, em 2012, essa diversificação prosseguiu com a aquisição de participações sociais na W... do Grupo Y... e, em 2013, na X..., uma boutique de consultoria fiscal.

Segundo a Requerente, tudo isto mostra que existe substância económica na H..., substância esta que deve, aliás, ser analisada no plano do grupo, pois o que releva é a "substância de grupo".  Esta conclusão é ainda apoiada pelo facto de a H... ter, desde o início, a sua sede (juntamente com a G...) no edifício de ..., propriedade da F..., do escritório da sociedade de advogados acima referida servir apenas para fins administrativos e operacionais e de as reuniões do Conselho de Administração e as Assembleias Gerais de sócios sempre terem tido lugar na sede da empresa, havendo prova de deslocações a Malta dos sócios e/ou administradores portugueses para nelas participarem. 

O facto de a H... não ter uma estrutura empresarial significativa não é de relevar pois é normal que assim suceda com as sociedades holding. Tão pouco é de estranhar o facto de o valor da venda das ações da Requerente à H... ser muito superior ao valor nominal ou ao valor contabilístico, pois tal valor resultaria, como exige o regime dos preços de transferência, do valor de mercado que é o seu valor real à data da transmissão.

 

B) Quanto ao elemento resultado

1. Posição da Requerida

Com o conjunto de atos e contratos acima descritos, os acionistas comuns da Requerente e da H..., conseguiram de uma forma indireta obter o produto equivalente aos dividendos atribuídos a uma entidade por eles criada, dividendos fruto de uma mais-valia obtida pela Requerente sem que pagassem por esses dividendos qualquer imposto, através da criação de uma SGPS, a H..., uma entidade “insuflada” de dívida pela aquisição da Requerente.

A criação desta holding não se justifica em termos económicos. Aliás, desde o início, nunca ela teve meios para desenvolver qualquer atividade substancial: o seu capital é reduzidíssimo e o produto dos dividendos é praticamente entregue aos seus acionistas como pagamento do empréstimo. Na sociedade apenas fica o suficiente para as (poucas) despesas correntes em Malta, não tendo relevância substancial a aquisição de uma pequena participação, em 2012, numa sociedade vinícola de direito português (a W... SA) e a aquisição de 10% da X..., uma outra sociedade de capital de risco de direito português. Da consulta dos organigramas constantes do anexo 1 (que mostram a evolução do grupo), pode concluir-se que pouco ou nada foi desenvolvido pela H... que não pudesse ter sido perfeitamente desenvolvido pela Requerente ou por outras empresas do Grupo. Os negócios têm, aliás, sido desenvolvidos em Portugal, sendo seus intervenientes os acionistas comuns da H... . Por via destes negócios, a Requerente não efetuou RF de IRS no montante de € 2.283.667,95 que, nos termos da alínea c) do n.º 1 artigo 71.º do CIRS[32], deveria fazer caso a estrutura artificialmente criada não tivesse existido. O quadro seguinte mostra o que teria acontecido caso tivesse havido distribuição direta dos dividendos da sociedade aos acionistas:

 

Data

Enquadramento Fiscal se se tivesse verificado a distribuição direta

dos dividendos da sociedade aos acionistas

Vantagem Fiscal

 
 

Distribuição de

dividendos da

A... à H...

Tributação por RF

Acionistas

 

tx al. c) do n.º 1 do

artigo 71.º do CIRS

Valor Retenção

dividendos

líquidos

de retenção

 
 

02-03-2012

98.122,25

25,00%

24.530,56

73.591,69

24.530,56

 

03-04-2012

550.000,00

25,00%

137.500,00

412.500,00

137.500,00

 

16-04-2012

6.500,00

25,00%

1.625,00

4.875,00

1.625,00

 

12-12-2012

1.975.000,00

26,50%

523.375,00

1.451.625,00

523.375,00

 

26-06-2013

495.000,00

28,00%

138.600,00

356.400,00

138.600,00

 

10-07-2013

3.150.000,00

28,00%

882.000,00

2.268.000,00

882.000,00

 

31-12-2013

2.057.276,40

28,00%

576.037,39

1.481.239,01

576.037,39

 

Total

8.331.898,65

 

 

 

2.283.667,95

 
 

 

Extrai destes factos a AT a seguinte conclusão: por um lado, "os acionistas, pelos seus atos, alcançaram uma vantagem fiscal no montante acima identificado, e por outro, a equivalência dos efeitos económicos com os daqueles atos ou negócios jurídicos “normais”, tributados”.

 

2. Posição da Requerente

Não existe qualquer vantagem fiscal obtida pela Requerente. O pagamento faseado feito por ela aos sócios individuais não é tributado, como o não seria se fosse efetuado imediatamente. Tão pouco existe uma vantagem fiscal por parte destes sócios que seja derivada de qualquer montagem ou esquema artificial. Existe, sim, uma exclusão de tributação de mais-valias (no caso auferidas em razão da venda da M...) que a lei consagrava, nos termos da legislação em vigor à data, "de modo límpido e inequívoco".

Em síntese: Os sócios individuais conceberam e implementaram uma operação de reorganização societária plenamente legítima e estrategicamente justificada, à luz do contexto de crise existente em 2009, realizando nesse processo, com toda a legitimidade, uma mais-valia "que a AT não podia, mas quer a todo o custo tributar".

 

C) Quanto ao elemento intelectual

 

1. Posição da Requerida

Segundo a AT, pode concluir-se que as motivações para a criação da H... foram essencialmente fiscais, pois ninguém consegue criar uma sociedade com um reduzidíssimo capital de € 1.200,00 para adquirir uma holding com a dimensão da Requerente. Além disso, em todo o processo, incluindo os elementos constantes dos anexos, não existe um plano ou modelo económico subjacente a esta aquisição.

Temos, sim, um PFA em que os acionistas da Requerente constituem uma sociedade em Malta que será gerida por eles próprios com a finalidade de adquirir a sua holding (a Requerente) por um montante bastante acima do seu valor contabilístico, insuflando dessa forma a sociedade criada com uma dívida que só será paga com os dividendos futuros (pagos pela Requerente) a que a mesma venha a ter direito. Tais dividendos revertem para a esfera pessoal dos acionistas através de um esquema que visa o ressarcimento da dívida por estes criada na H... .Tudo isto revela e corrobora a intenção, ab initio, de os contribuintes visados neste procedimento transformarem um dividendo em pagamento de divida, visando a eliminação da carga fiscal, pois esta seria exigida se houvesse distribuição direta de dividendos, com resultados equivalentes. Resulta assim claro que o ato de criação da H... é completamente dispensável, porque economicamente inútil, tendo sido essencialmente ou principalmente dirigido à vantagem fiscal que proporcionou.

Não se vislumbra, de facto, outra motivação relevante que não a fiscal na opção de criação da H... e da alienação da Requerente, feita pelos seus acionistas e administradores, sendo essa a única suscetível de explicar o enredo de negócios jurídicos que culminou na transformação de um dividendo numa amortização de um empréstimo.

Nesta perspetiva, facilmente se vislumbra que se tivessem optado pela via considerada normal, teriam recebido os dividendos, estando estes sujeitos a imposto, conforme disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS. Se tivessem optado pelo negócio normal obteriam o mesmo resultado económico que obtiveram com a criação da H... . Por isso tal negócio só é explicável pelo afastamento da tributação que tal esquema artificial permitiu.

 

2. Posição da Requerente

Não existiu qualquer motivação fiscal na realização dos atos, contratos ou operações em que intervieram a Requerente, os acionistas ou outras empresas do Grupo E..., para além da legítima escolha de Malta como centro operacional do Grupo devido à atratividade fiscal, de há muito conhecida, deste território. Mas essa motivação é legítima pois, como é consensual, os contribuintes não são obrigados a escolheram as vias fiscais mais onerosas.

 

D) Elemento normativo

 

1- Posição da Requerida

A este elemento subjaz a desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito da lei (desde logo, os princípios dos Códigos tributários ou do Sistema Fiscal no seu conjunto). Por outras palavras: O efeito fiscal pelos meios artificiais usados (montagens, esquemas, etc.) merece um juízo de reprovação por parte da ordem jurídica.

Ora, em resultado da montagem de todos os atos e negócios, em si mesmo lícitos perante o direito privado, levados a cabo pelos sujeitos passivos, os dividendos foram, na prática, “substituídos” por reembolso de dívida, os quais não se encontram sujeitos a tributação.

O normativo circundado diz respeito às regras de tributação dos adiantamentos por conta de lucros e dos dividendos em sede de IRS, cuja razão de ser e eficácia ficaram comprometidas por uma utilização abusiva dos mecanismos em causa.

Em boa verdade, sempre se poderá afirmar que a elisão fiscal traduz-se num aproveitamento de negócios lícitos, cuja única motivação se prende com a subtração do sujeito passivo ao pagamento do tributo, a reverter a favor do erário público. Ademais, a substância da realidade económica, consequência da celebração dos ditos negócios, não é a que reside na verdade dos seus efeitos, sendo antes, aquela cujo animus mora na eliminação ou diminuição do imposto. Por outras palavras, e de modo sucinto, a elisão conhece o seu alicerce num conjunto de meios lícitos, mas reportando-se, em exclusivo, a propósitos ilícitos.

Na mesma linha de pensamento, o recurso a estratagemas típicos de PFA não é justificado por razões de gestão societária. Assistem antes razões do âmbito fiscal, com efeitos nocivos não apenas para os cofres do Estado, mas também para a vida em sociedade, tanto a dos cidadãos como a do próprio tecido empresarial, visto tais condutas desembocarem numa injusta repartição de encargos tributários que, no final de contas, resultará numa distorção concorrencial entre os vários agentes que laboram nos mercados.

 

2. Posição da Requerente

 

A Requerente e os seus acionistas limitaram-se a exercer a liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais protegida pelo Direito da União Europeia e a liberdade de gestão, consagrada na CRP. A AT não provou que houvesse qualquer esquema de PFA nem qualquer dos elementos necessários à aplicação da CGAA. Não existem factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico ao que se pretendeu alcançar com a criação da H... e, por isso, nenhum dos atos praticados pode ser objeto de censura normativa. Censura, sim, deve existir em relação à conduta da AT, pois esta, formulando "um juízo de prognose póstuma", procura utilizar a CGAA para tributar a posteriori uma mais-valia que se encontrava excluída da tributação no momento em que foi obtida.

 

V.  Decisão

 

A. Decisão quanto à Aplicação da CGAA e sua Fundamentação

 

a) O ponto de partida para a decisão do presente litígio é o facto comprovado nos autos que todas as decisões são efetuadas dentro das fronteiras do mesmo grupo económico (Grupo E..., E...), pelas mesmas pessoas singulares (B... e D...), ora na qualidade de sócios das empresa do grupo, ora na qualidade de administradores. Por definição, no seio de um grupo económico as relações entre as empresas e entidades do grupo não são baseadas na concorrência, mas em relações de natureza hierárquica ou de cooperação. As empresas com forma jurídica autónoma usufruem dos benefícios decorrentes da ficção jurídica que a atribuição de personalidade jurídica lhes concede. Mas, num sistema económico baseado no mercado  e na concorrência como forma de coordenação económica, elas estão sujeitas, nas relações estabelecidas no seio do grupo, a importantes limitações, como é o caso das que resultam do instituto dos preços de transferência (que permite às autoridades fiscais  corrigir os preços de cessão internos ao grupo, transformando-os em preços de plena concorrência) ou a aplicação da CGAA que permite desconsiderar operações jurídicas efetuadas exclusiva ou predominantemente por razões fiscais (e não por razões genuinamente económicas ou comerciais) similares àquelas que seriam tomadas por operadores privados independentes que se situam fora das fronteiras do grupo económico. A liberdade de gestão exclui assim os casos de planeamento fiscal abusivo ou, noutra terminologia, agressivo que são considerados ilegítimos por violarem nomeadamente regras de proteção da concorrência interempresarial e princípios fundamentais de direito fiscal, como os princípios da capacidade contributiva e da proteção dos elementos estruturantes do sistema fiscal ou o princípio internacional segundo o qual a tributação deve ocorrer no local onde o rendimento foi produzido. A liberdade de gestão apenas contempla formas de planeamento fiscal legítimo, ou seja, a liberdade de efetuar opções fiscais menos onerosas que não sejam contra ou extra legem

 

b) Quanto ao elemento meio, estamos, no presente caso, perante a utilização de um esquema há muito identificado como PFA e que goza de considerável difusão.[33] A opção das empresas por estes esquemas (induzida ou não por terceiros), sem que haja previamente um pedido de informação vinculativa ou uma comunicação às autoridades tributárias, implica sempre o risco de aplicação da CGAA, em regra assumido com base num cálculo de probabilidades, risco esse que não pode deixar de correr contra quem os utiliza. 

Existe, na realidade, no seio do E...,  uma sucessão de atos, contratos ou negócios válidos em si mesmos (perante o direito privado, o direito penal tributário e o direito da União Europeia) praticados pelas empresas ou entidades do grupo que, vistos de forma global (e não de modo autónomo) se encontram coordenados entre si, constituindo esquemas ou montagens pré-planificadas para a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal.

Os atos, contratos ou negócios que assumem maior relevância na montagem deste esquema são, nomeadamente, os seguintes:

1) a constituição pelos administradores e sócios individuais da Requerente, em 29.12.2009, da holding H... (abreviadamente H...) na República de Malta, com o capital social de € 1.200,00, com sede em ...,  ...,  ..., empresa que passou a sobrepor-se na pirâmide hierárquica do grupo à holding portuguesa  (à Requerente).

2) a constituição, na mesma época, da sociedade G... (abreviadamente G...), na mesma sede da H... que é o  local da sede em Malta do Grupo E...;

3) o contrato de compra e venda entre a H... e a Requerente (representadas pelos mesmos administradores), efetuado no dia seguinte à constituição daquela holding maltesa, através do qual esta nova empresa adquiriu o capital integral da Requerente por 20 milhões de euros;

4) a deliberação de a Requerente pagar à H... em prestações (negócio economicamente equivalente a um empréstimo sem juros), ao longo de vários anos, os 20 milhões de euros em dívida decorrente do negócio referido na alínea anterior;

5) a alienação, em 26.04.2010, pela empresa Requerente (deliberada pelos mesmos administradores e sócios individuais) da participação que esta detinha na sociedade M..., SGPS, SA ao Grupo Z... (operação identificada na contabilidade da Requerente como Q...) pelo montante de 29.572.400,00, pago de forma escalonada no tempo, de modo que, no final de 2013, a A... ainda tinha um saldo devedor na conta "Outros Devedores"  de 2 milhões de euros.[34]

6) Em 31.05.2011, a assembleia geral da Requerente (ou seja, a deliberação pelos mesmos sócios individuais) atribuiu à H... dividendos no montante de 15 milhões de euros. [35]

 

A via "clássica" adotada implicou pois a interposição de uma holding (a H...), criada para o efeito, entre a pretendida distribuição de lucros  e os seus beneficiários, de modo a descaracterizar esta distribuição, fazendo-a  surgir como amortização de mútuo, com ausência de juros, sendo tudo sempre decidido pelos mesmos interessados. Este facto torna-se ainda mais patente, tendo em conta, nomeadamente, o ritmo da cronologia (um dia mediou entre a constituição da sociedade interposta e a compra das participações, ficando o esquema completo não muito tempo depois), o aproveitamento de não tributações (dos rendimentos resultantes das  vendas das participações e da colocação à disposição dos lucros à sociedade interposta), o irrisório capital da sociedade interposta (1.200,00€) face ao preço na compra que se seguiu imediatamente (20.000.000,00€), a localização  da sede em local gratuitamente cedido por entidades do grupo e dos escritórios no mesmo espaço do advogado maltês, a própria nomeação deste para a direção da sociedade interposta, bem como  os aspetos qualitativo e quantitativo da atividade dessa sociedade, para além da aquisição das participações que constituiu o cerne da atividade desenvolvida pela holding

Acresce que, da análise dos factos supracitados, conclui-se que o contrato de compra e venda em que a H... adquire as participações da Requerente por 20 milhões de euros não seria efetuado por um operador privado independente, sem uma avaliação externa da empresa, pois não seria um ato dotado de racionalidade económica. Tal aquisição só é possível por ter sido  decidida e efetuada por entidades que integram o mesmo grupo económico, nomeadamente por sócios e administradores comuns que tomam as deliberações estratégicas do grupo, e que, deste modo, poderiam ter conhecimento que estava em curso uma negociação relativa à operação da venda das participações que a Requerente possuía na M... por valores próximos daqueles em que o negócio, menos de 4 meses após a criação da H..., se viria a concretizar. No momento em que este negócio foi concretizado, é impossível considerá-lo como um real preço de mercado concorrencial, mas sim como um preço de cessão interna (administrativo) formado num "mercado fictício", definido no seio do grupo, entre entidades vinculadas, com relações especiais, sem sequer terem sido indicados os critérios e elementos válidos para a formação desse mesmo preço. A "racionalidade económica" desta operação não passa assim no teste do operador privado independente, pois, perante os dados negociais objetivamente conhecidos, um investimento deste tipo, a ser efetuado por tal operador autónomo, não seria uma normal operação económica, mas sim algo semelhante a uma aposta de jogo num casino.

 

Alega, porém, a Requerente que a AT não questionou que os termos e condições de aquisição acordados entre a Requerente e os acionistas vendedores corresponderiam aos que normalmente seriam aceites e praticados entre partes independentes em operações comparáveis. Como corolário desta tese, a AT deveria ter questionado o montante pago em sede do instituto de preços de transferência e não em sede de aplicação da CGAA.

 Esta argumentação não procede essencialmente por três razões. Primeira, a questão da necessidade de uma prévia aplicação do instituto dos preços de transferência em relação ao regime da CGAA poderia eventualmente ter sentido se aquele instituto fosse considerado como cláusula especial antiabuso, o que, de acordo com a melhor doutrina, não é o caso, pois sendo a aplicação do instituto dos preços de transferência "independente de qualquer motivação fiscal do contribuinte, da existência ou não de qualquer abuso culposo", o que aí temos são "normas de correção do resultado contabilístico em ordem à determinação do resultado fiscal (do lucro tributável) tributável em determinado país, visando uma justa repartição internacional do direito à tributação". [36] Deste modo, nada obriga à sua prévia utilização pela Requerida. Segunda, tal como ocorreu num caso similar [37], a AT, o que faz é questionar a substância económica da constituição da dívida de preço causa, situando o problema - e bem- a montante do regime dos preços de transferência. Terceira, e de algum modo como corolário desta última, a questão do preço é meramente instrumental relativamente à montagem de atos e contratos levada a cabo no seio do grupo, destinando-se a criar uma dívida (aparente) que, na prática, coincidisse fundamentalmente com o que, na realidade, seria o lucro a distribuir. A aplicação do instituto dos preços de transferência, em vez da CGAA, equivaleria a desconhecer a descaracterização da distribuição do lucro através de reembolso da dívida contraída. De facto, a venda das ações mais não é do que um mero passo para conseguir o resultado pretendido, perdendo, nessa dinâmica, relevância individual. O relevante é, sim, a criação de uma dívida de montante necessário à criação de um reembolso que ocultasse a distribuição de lucros.

 

c) Esclarecido o elemento meio, clarifica-se igualmente o elemento resultado. Torna-se patente que, com o esquema de PFA montado que "transformou" lucros em amortizações de mútuo, foi afastada a tributação sobre os lucros que ocorreria com a respetiva disponibilização, uma vantagem de natureza fiscal que não seria obtida sem tal esquema. É da sua artificialidade, da não genuidade dos atos praticados, que derivou a inegável vantagem de não haver tributação dos lucros que teriam sido colocados à disposição na ausência do abuso.

 

d) Quanto ao elemento intelectual, pode afirmar-se que a criação da H... teve essencialmente por motivação razões objetivas de natureza fiscal. De facto, e para além designadamente da cronologia dos eventos já indicados, se abstrairmos da aquisição da Requerente, a pouca relevância qualitativa e quantitativa da atividade empresarial prosseguida por esta empresa pode ser vista como um disfarce para a verdadeira ou preponderante motivação daquele negócio, obter uma poupança fiscal. Lembre-se que a atividade invocada pela Requerente (que vai para além da sua aquisição pela H... e que tenha caráter autónomo) é relativamente recente e reduz-se a bem pouco. Se descontarmos as transmissões operadas no seio do grupo,  tal atividade apenas ocorreu a partir de 2012 e traduziu-se na aquisição de uma participação social de 5% do capital social da sociedade vinícola portuguesa W..., SA e na realização de suprimentos nesta  mesma sociedade, totalizando o investimento nela efetuado  226.471,35; e numa participação representativa de 10,7%, no valor de  € 65.250, do capital social da X..., S.A., uma sociedade portuguesa de consultoria. Ou seja: nem investimentos significativos, nem verdadeira internacionalização da atividade económica que justificasse a sua criação.

Acresce que a presença física da H... em Malta reconduziu-se, numa primeira fase,  ao uso gracioso de instalações da F... e, numa segunda, ao uso gracioso de uma sala arrendada pela G... (e não pela Requerente) e à utilização como escritórios da sede da sociedade de advogados maltesa de um dos diretores da H... .

Ou seja: mesmo que alguma atividade comercial autónoma tenha sido por ela desenvolvida, tal facto não explica a necessidade da criação de uma holding mais no já complexo universo do grupo, nem a compra da Requerente. Na verdade, objetivamente tudo indica que este último negócio não foi praticado por razões económicas ou comerciais válidas, mas sim por razões eminentemente fiscais.

 

 

e) Também o elemento normativo se considera como verificado. Por um lado, o legislador não pretendeu pôr à disposição dos contribuintes uma opção fiscal legítima, nem tão pouco criou uma lacuna consciente de tributação. Pretendeu, sim, tributar, mediante RF, os lucros distribuídos aos sócios, vendo este desiderato contornado pelo esquema criado para o efeito, com lesão de princípios estruturantes do sistema fiscal, de um dever de solidariedade que envolve o dever de contribuir, de uma sã concorrência empresarial e de objetivos socioeconómicos plasmados na Constituição tornados mais difíceis por práticas de PFA.  O juízo de censura que atinge estas práticas é hoje, na era anti BEPS e tendo em conta a evolução do direito europeu, muito mais forte.

f) Uma última palavra quanto às consequências da aplicação da CGAA. Em primeiro lugar, deve frisar-se que elas não põem em causa a liberdade de estabelecimento das empresas, nem a liberdade de circulação de capitais, nem a soberania maltesa, nem eventuais efeitos produzidos fora do campo tributário. Como resulta muito claramente do artigo 38.º, nº 2 da LGT, este dispositivo limita-se a declarar a ineficácia do esquema e a afirmar a tributação da situação jurídica desocultada (a colocação à disposição dos lucros pela Requerente), mediante a técnica da desconsideração desse esquema para efeitos fiscais. Ou seja: limita-se a efetuar "a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência [do esquema de PFA] e não se produzindo as vantagens fiscais referidas".

 

 Se existem outras consequências nefastas, sibi imputat, tanto mais que os intervenientes em todo o processo de decisão negocial são as mesmas pessoas, não podendo qualquer das entidades que integram o grupo ser considerada real terceiro face ao esquema adotado. Sendo este considerado uma forma clássica de PFA, a sua utilização deveria ter sido prevenida, mediante instrumentos que a lei fiscal possibilita (comunicação do esquema ou pedido de informação vinculativa prévia). Não o tendo feito, a Requerente só se pode queixar de si própria.

 

Pelas razões expostas, considera-se conforme à lei a aplicação pela AT da CGAA e, consequentemente, indefere-se o pedido da Requerente de reembolso das liquidações adicionais.

 

2. Decisão quanto ao primeiro pedido subsidiário: A questão da substituição tributária

 

Reconhecida a legalidade da ação administrativa de aplicação da CGAA, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, importa analisar a questão da inoponibilidade à Requerente, como substituto tributário, da reconfiguração, para efeitos fiscais, dos rendimentos como recebidos a título de dividendos e não a título de créditos pelo preço de compra de ações.

De facto, as LA de IRS ora impugnadas (por falta de retenção na fonte por parte da Requerente) referem-se a um tratamento fiscal como rendimento com a natureza de dividendos (al. h) do n.º 2 do art. 5.º do CIRS) em vez de pagamentos de parcela do preço de aquisição das ações da Requerente por parte da H... . Como a Requerente não procedeu à RF[38]  de IRS sobre os lucros colocados à disposição, a AT decidiu responsabilizá-la como substituto tributário.

Eis, de forma sintética, as posições das partes:

Posição da Requerente

 

Entende a Requerente que as LA resultantes da aplicação da CGAA padecem de ilegalidade, pela circunstância de terem sido a ela dirigidas, enquanto substituta tributária, e não aos sujeitos passivos de IRS, isto é, aos acionistas da H... .

Os pagamentos de dividendos aos sócios (operação resultantes da requalificação operada pela Requerida) encontrar-se-iam, segundo a AT, sujeitos a RF às taxas liberatórias em vigor na data a que se reportam os factos, e que variavam entre 25% e 28% nos anos de 2012 e 2013.

Sustenta, porém, a Requerente que " se o propósito da CGAA é o de considerar ineficaz um determinado ato ou negócio jurídico, embora exclusivamente quanto aos seus efeitos jurídico-tributários", então "o juízo de desconformidade em que se traduzem as liquidações daí decorrentes deve ser dirigido aos sujeitos passivos que supostamente beneficiaram de tais atos ou negócios jurídicos declarados ineficazes, e não aos substitutos tributários". Ora a Requerente, que não é parte nos atos ou negócios jurídicos que ocorreram (mas sim seu objeto), não teve nenhuma vantagem decorrente deste enquadramento. Razão pela qual, de acordo com uma corrente jurisprudencial dominante no CAAD, não lhe poderão ser dirigidas as LA, devendo as mesmas ser anuladas, também com este fundamento.[39]

Acresce que não existe qualquer disposição legal que assegure à Requerente a possibilidade de reaver a quantia liquidada, exigindo o seu pagamento a quem beneficiou das vantagens fiscais, pois a responsabilidade dos acionistas, no caso de retenção na fonte que não tem a natureza de pagamento por conta, é meramente subsidiária.[40]

Em 2012 e 2013, não se impunha, pois, à Requerente qualquer obrigação de RF na fonte sobre os dividendos pagos à H..., a pretexto de uma suposta ineficácia para efeitos fiscais (declarada em 2016) da venda do seu próprio capital, que ocorreu em 2009.  

 

 Posição da Requerida

Segundo a AT, a aplicação da CGAA implicava que se deveria proceder à tributação dos rendimentos obtidos como dividendos enquadráveis na categoria E do IRS por força da norma de incidência prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, tributação esta que deve ser feita através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com natureza de pagamento liberatório (sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS), sendo o imposto devido pela Requerente, por aplicação dos artigos 71.º, 101.º, n.º 2, al. a) e 103.º, n.º 4 do CIRS, uma vez que foi esta entidade que colocou estes rendimentos à disposição dos acionistas.

A aplicação da CGAA decorre da desconsideração de uma sociedade sediada em Malta e da requalificação, para efeitos tributários, de uma deliberação de distribuição direta de dividendos da sociedade aos seus acionistas. O instituto da substituição tributária não implica a existência de capacidade contributiva na esfera do substituto. Ora   estipulando  o artigo 38.º, n.º 2 da LGT que a tributação se deve efetuar "de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas", a CGAA terá invariavelmente que ser dirigida ao sujeito passivo incumbido de reter na fonte os dividendos a distribuir.

 

Mais: Segundo a AT, será mesmo materialmente inconstitucional a interpretação do artigo 38.º, n.º 2 da LGT que exclua, na sequência de aplicação da CGAA por existência de PFA, a possibilidade de responsabilizar a sociedade que tem o papel de substituto na relação jurídica tributária pelo pagamento das quantias que se entendam devidas nos termos das normas legais aplicáveis já referidas, quando da mesma não resulta, por força da violação das normas artigos  contidas nos artigos 13.º e 103.º, n.º 1 e 2 da CRP, que a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência de tal PFA seja distinta da aplicável às demais situações de tributação previstas na legislação fiscal. [41]

 Decisão

 

Sobre a questão da obrigação de RF a efetuar pelo substituto tributário no presente contexto, existem diversos acórdãos contraditórios, com diversa fundamentação. Dada a similitude com o presente caso e a consistente fundamentação apresentada, temos como boa doutrina nesta matéria a constante da decisão arbitral n.º 377/2014-T, de 22.05.2015, pelo que se passa a transcrever a sua fundamentação, adaptando-a ao contexto dos autos. "[42]

Assim, transcrevendo os extratos mais relevantes da decisão supracitada, a cuja fundamentação se adere, dir-se-á o seguinte:

            "A resolução da questão em apreço passa pela determinação do resultado que,     para a situação dos autos, advém da estatuição da norma antiabuso do n.º 2 do             art. 38.º da LGT, a qual se manifesta nos segmentos normativos relativos        à ineficácia no âmbito tributário dos atos ou negócios jurídicos dirigidos, por       meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução,   eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em   resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem a utilização desses meios, e à efetivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência e à não produção das vantagens fiscais referidas."

            Pois bem, "o  “arco normativo” que in casu tem que ser aplicado para que se       efetive  a  tributação  de  acordo com as  normas aplicáveis na ausência dos         atos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com     abuso   das  formas  jurídicas,  à  redução  de impostos prende-se com a tributação de dividendos em conformidade com a norma de incidência prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS,  o que     envolve a aplicação de retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art.   71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com natureza de pagamento liberatório (sem prejuízo da opção pelo englobamento, nos termos do art. 71.º, n.º 6 e 22.º, n.º 3,            al. b) do CIRS),  a qual  deve  ser  efetuada  pela entidade devedora dos rendimentos (art. 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS) no momento da sua colocação à disposição (art. 7.º, n.º 3, al. a), n.º 2 do CIRS), sem o que o substituto é responsável pelo pagamento do imposto não retido nos termos do n.º 3 do art. 104.º do CIRS e do n.º 3 do art. 28.º da LGT."

             Ora, entende este Tribunal "que a efetivação da tributação de acordo com as     normas aplicáveis nos termos estatuídos pelo n.º 2 do art. 38.º da LGT implica     caber à Requerente a assunção do papel de substituto tributário nos termos das            indicadas disposições fiscais relativas à tributação em IRS dos dividendos,          constituindo, como tal, a destinatária da liquidação decorrente da desconsideração, para efeitos fiscais, dos atos e negócios jurídicos abusivos, porquanto foi ela que surgiu como entidade devedora e que colocou à disposição, ainda que sob a forma elisiva de pagamento de dívidas (...), os acréscimos patrimoniais que cabiam aos acionistas (da H...). Nestes termos, o pressuposto da obrigação de proceder à retenção na fonte, tal como determinado      pelos arts. 71.º, n.º 1, al. c) e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS, por força da aplicação da CGAA e da efetivação da tributação de acordo com as normas aplicáveis,          formou-se em relação à Requerente."

             "Dado que a tributação dos rendimentos de dividendos opera por retenção na      fonte a título definitivo à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS, com a natureza, pois, de pagamento liberatório (embora com        possibilidade de opção pelo englobamento, nos termos do art. 71.º, n.º 6 e 22.º,             n.º 3, al. b) do CIRS), resulta da própria estatuição da CGAA, ao prescrever a aplicação da tributação correspondente ao negócio ou ato elidido (“efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” como se refere in fine no n.º 2 do    art. 38.º da LGT) que o imposto devido tem que ser exigido do substituto        tributário, que é, no caso, dado o circunstancialismo que se verificou quanto aos        atos e negócios empreendidos (...), a Requerente."

             "Deve-se até acrescentar que se julga mesmo obrigatório para a Administração Tributária, por força do n.º 2 do art. 38.º da LGT, a aplicação, em tal       circunstancialismo, ao substituto tributário do regime tributário elidido,        porquanto, de outro modo, não se estaria a efetivar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos meios artificiosos e fraudulentos e com abuso das formas jurídicas. Nem outra solução se compreenderia no caso em apreço pois a atuação abusiva visou precisamente evitar a tributação, por             retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória relevante, que é aplicável à            colocação à disposição de lucros das entidades sujeitas a IRC (art. 5.º, n.º 2, al.h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS)."

             "Recorde-se, nesta sequência, que, segundo o art. 20.º da LGT, a substituição     tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for     exigida a pessoa diferente do contribuinte (n.º 1) e é efetivada através do            mecanismo da retenção na fonte do imposto devido (n.º 2).[43] Ora, de acordo             com o art. 18.º, n.º 3 da LGT, sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o   património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está      vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte     direto, substituto ou responsável."

            "O substituto é, assim, sujeito passivo por determinação da lei, como devedor      em nome próprio, ainda que em atenção ao pressuposto de facto do imposto   respeitante ao contribuinte, que é o titular da capacidade contributiva. É, assim,    característico da situação jurídico-tributária da substituição o carácter legal da           obrigação, pois, como escrevem DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM     SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA[44]: “o legislador obriga um sujeito a realizar determinadas prestações que constituem o objeto de uma obrigação tributária a cargo de outro sujeito passivo, o que preenche os     pressupostos do facto tributário. É o facto tributário realizado por uma pessoa,     substituído, que dá origem à obrigação. O preenchimento de outro pressuposto            de facto leva a que o substituto esteja obrigado ao cumprimento da obrigação”;    

            “A substituição tributária envolve o preenchimento do quadro legal que   determina o nascimento da obrigação tributária para um determinado sujeito    passivo que é o que preenche o pressuposto de facto. Este preenchimento do       quadro legal converte-se em pressuposto de facto para a obrigação do substituto”. Por isso, e como notam ainda estes Autores, “a substituição exige que o sujeito ativo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha” e “cumprida esta obrigação tributária, ele libera-se da sua obrigação, liberando também o   substituído” [45].

            "Também RUI DUARTE MORAIS[46] assinala sobre a retenção na fonte a taxas   liberatórias que: “Nestes casos, o cumprimento da obrigação de imposto      (incluindo o das inerentes obrigações acessórias) cabe, em exclusivo, ao substituto, que é o sujeito passivo da relação jurídico-fiscal, a título originário. O cumprimento esgota-se com a entrega do montante retido na fonte. Na falta de pagamento voluntário, a cobrança coerciva será dirigida contra o substituto. O substituído só será chamado à execução a título subsidiário (na falta de bens            do devedor originário, o substituto) e, apenas, se - e na medida em que - tiver recebido mais do que aquilo que seria o valor dessa prestação líquida da retenção na fonte que deveria ter tido lugar (cfr. art. 28.º da LGT)”.

             "Nestes termos, por força da estatuição do n.º 2 do art. 38.º da LGT, dado que    está em causa como regime elidido a tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (art. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c)            do CIRS), em que o cumprimento da obrigação de imposto cabe exclusivamente ao substituto, exige-se mesmo que as correções a que haja lugar nos termos da cláusula antiabuso e a correspondente liquidação de imposto tenham necessariamente como destinatário o substituto tributário - “a substituição exige       que o sujeito ativo se dirija contra o substituto para exigir o cumprimento da obrigação tributária, na medida em que a lei o imponha”.[47]

            "(...) Não resulta da emissão desta liquidação de IRS (retenção na fonte) (...)        qualquer afetação da posição patrimonial específica da Requerente, nem             violação do princípio da capacidade contributiva que, nas circunstâncias em presença, se reporta materialmente aos acionistas individuais" (...), pois "não se pode esquecer o funcionamento próprio da substituição tributária no que concerne às relações entre substituto e substituído que se centram no “direito de regresso” (hoc sensu) e que permitem assegurar a ligação do imposto aplicado ao substituto com o princípio da capacidade contributiva que vale em relação ao substituído. Esse direito de regresso é, como regra, prévio (caso em que a     expressão regresso é, claro está, imprópria), pois tem lugar por retenção na fonte         (art. 20.º, n.º 2 da LGT), operando por dedução às quantias que o substituto             deve, paga ou coloca à disposição do substituído. Pode, porém, suceder que         tenha lugar posteriormente, como regresso em sentido próprio, de que é exemplo       precisamente o caso de o substituto ter omitido a retenção na fonte definitiva que          era devida (art. 103.º, n.º 3 do CIRS e 28.º, n.º 3 da LGT)."

             "Como já se escreveu a este propósito: “é característico da substituição   tributária que o substituto tem o dever ou, pelo menos, a faculdade de descontar a importância entregue ou a entregar nos cofres do Estado nos rendimentos que deve ao contribuinte ou então pode – e muitas vezes, deve – exercer contra ele o direito de regresso para reaver o que foi despendido”; “[t]em sido este elemento da existência do direito de regresso, pelo qual quem suporta economicamente o encargos tributário é o substituído que levou à distinção entre o devedor em sentido formal (substituto) do devedor em sentido substancial (substituído), já que é este último quem deve legalmente sobre o           desfalque patrimonial correspondente”.[48]

Mais incisiva, a este respeito, é porventura a Decisão arbitral n.º 162/2017, de 14.11.2017, invocada pela AT nas suas alegações, cujo teor passamos igualmente a transcrever:

            "No direito comparado, a aplicação da CGAA a situações de substituição             tributária e retenção na fonte (witholding tax) constitui uma prática corrente e   geralmente aceite no contexto do combate ao planeamento fiscal agressivo e à       evasão e fraude fiscal. A mesma ocorre com grande frequência precisamente na          requalificação de vários tipos de transações como distribuições de dividendos.    Como foi referido anteriormente, a aplicação da CGAA supõe uma especial        atenção às transações subordinadas a uma lógica de grupo, considerando-se       irrelevante a questão de saber quem, dentro do grupo, é que acaba por colher as   vantagens fiscais produzidas. Para efeitos da aplicação da CGAA, o princípio da             primazia da substância sobre a forma pode legitimar o tratamento do grupo          envolvido na transação abusiva como se fosse um único contribuinte,     nomeadamente em sede de determinação da capacidade contributiva, de   consideração das vantagens fiscais produzidas e exigibilidade do imposto, não             estando excluída, nalguns quadrantes, a possibilidade de responsabilizar e            sancionar todos os participantes nessa transação.

  Nos termos do artigo 38º nº 2 da LGT, quando a AT considera ineficazes no âmbito tributário atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, a tributação deve ser efetuada de acordo com as normas aplicáveis na ausência desses atos ou negócios jurídicos. Pretende-se por esta via a reconstituição da situação fiscal atual hipotética, ou seja, da situação fiscal que existiria se a transação abusiva não se tivesse realizado e fossem adotados os meios jurídicos normais correspondentes à realidade económica da distribuição         de lucros."

 

E a referida decisão arbitral prossegue em termos perfeitamente aplicáveis ao caso dos presentes autos:

            "No caso concreto, o ato adequado ao fim económico visado seria a distribuição de dividendos aos sócios da [Requerente], com a correspondente retenção na fonte cabível em sede de substituição tributária. É isso que resulta da leitura sinóptica do nº 1 e da alínea h) nº 2 do artigo 5º do Código do IRS – que reconduz à categoria dos rendimentos de categoria E os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros – com o artigo 71.º n.º 1 alínea c) do mesmo Código, a retenção na fonte, a título definitivo, desses rendimentos à taxa liberatória de 28%.

            Nos termos dos artigos 20º e 28º n.º 3 e 34º da LGT e 21º do CIRS, a        responsabilidade principal pela retenção e pela respetiva entrega cabe ao         substituto tributário. De acordo com estas normas, aplicáveis na ausência da       transação abusiva em presença, a tributação ocorre na esfera [da Requerente], na sua qualidade de substituto tributário e devedor principal. A questão de saber      quem, dentro do grupo, colheu as vantagens fiscais produzidas é irrelevante.   

            A CGAA do artigo 38º, nº 2º da LGT nada mais faz do que fazer aplicar o           quadro normativo vigente no momento da ocorrência do facto tributário,        considerado na sua substância económica, e que ab initio lhe deveria aplicado.  A mesma parte da premissa de que o empréstimo contraído junto dos acionistas para a aquisição das respetivas ações corresponde a uma distribuição de dividendos disfarçada, devendo ficar sujeita à retenção na fonte que, segundo a lei, incide sobre os dividendos. Não pode, por isso, falar-se em qualquer violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal consagrado no            artigo 103º n.º 3 da CRP. 

            Em primeiro lugar, a transação abusiva foi efetuada num mercado fictício,           envolvendo sociedades controladas e acionistas titulares do controlo. Ou seja, a           transação obedeceu a uma lógica de grupo, assinalando-se a íntima relação          jurídico-económica entre todos os envolvidos. A esta realidade não pode ficar       indiferente o princípio da primazia da substância sobre a forma, sendo que este    não pode deixar de ter implicações no plano processual.

            Em segundo lugar, quaisquer dificuldades processuais que eventualmente            possam surgir para um eventual direito de regresso junto dos contribuintes que            obtiveram a vantagem fiscal, além de serem imputáveis a todos os participantes   na transação, podem por eles ser facilmente resolvidas em sede extrajudicial em qualquer momento ou, eventualmente, no momento da liquidação da sociedade.

            Conclui-se do exposto que a AT não fez errónea interpretação dos factos, ao        considerá-los subsumíveis à norma do artigo 38ª nº 2 da LGT, que interpretou e             aplicou corretamente; que é legal a notificação feita à Requerente, por ser sobre            si que impende a obrigação de retenção na fonte; que o contraditório foi observado relativamente a quem o devia ser, isto é, à Requerente, não havendo que o respeitar relativamente a outrem; e que o ato impugnado está devidamente fundamentado.

            Em súmula, não se verificando nenhuma das ilegalidades acusadas pela    Requerente, a sua pretensão não pode proceder."

 

Podemos assim concluir que, também neste ponto, assiste razão à AT. De facto, tendo a aplicação da CGAA à Requerente ocorrido  no âmbito de um procedimento em que se investigaram as diversas operações no seio do grupo e se indagaram as relações que existiam entre as entidades, singulares e coletivas, envolvidas, ficando claro que os intervenientes naquelas operações são exatamente os mesmos, não pode, sequer, a Requerente alegar desconhecimento quanto às motivações dos operadores envolvidos, nem ser qualificada como um verdadeiro terceiro.

Declara-se assim improcedente, também nesta matéria, o pedido da Requerente.

 

3. Decisão sobre o segundo pedido subsidiário: a questão dos juros compensatórios

 

Posição da Requerente

Entende a Requerente que as LA padecem ainda de ilegalidade, face à cobrança de juros compensatórios no valor de € 107.475,48, relativamente ao ano de 2012, e de € 193.226,85, relativamente ao ano de 2013, por violação do disposto no artigo 35.º, n.º 1, da LGT.

Constitui hoje doutrina e jurisprudência assente que só existe responsabilidade pelo pagamento de juros compensatórios quando a conduta do sujeito passivo seja censurável a título de dolo ou negligência[49]. O Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) tem vindo a pronunciar-se uniformemente no sentido da responsabilidade por juros compensatórios ter a natureza de uma reparação civil e que, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a atuação do sujeito passivo e da possibilidade de formular um juízo de censura à sua atuação.

Assim, para que o sujeito passivo possa ser responsabilizado pelos juros compensatórios, exige-se que esteja verificada a culpa, a qual consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstrato e que, por isso, tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência e aptidão de um bonus pater familiae.

Neste mesmo sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do STA de 16.12.2010, proferido no processo n.º 0587/10, no qual se declara que:

“Deste modo, e apesar de a doutrina e a jurisprudência também sufragarem a tese de que quando uma determinada conduta constitui um facto qualificado por lei como ilícito se deve fazer decorrer dessa conduta – por ilação lógica – a existência de culpa (não porque a culpa se presuma, mas por ser algo que, em regra, se liga ao carácter ilícito-típico do facto praticado) e que, por essa via, se deve partir do pressuposto de que existe culpa sempre que a atuação do contribuinte integra a hipótese de qualquer infração tributária, o certo é que essa culpa pode e deve ser excluída quando se mostre, à luz das regras de experiência e das provas obtidas, que o contribuinte atuou com a diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais. E, por essa razão, a jurisprudência firmou-se no entendimento de que não são devidos juros compensatórios quando o retardamento da liquidação se ficou a dever, por exemplo, a compreensível divergência de critérios entre a AF e o contribuinte quanto ao enquadramento e/ou qualificação de determinada situação tributária (como, por exemplo, a nível de custos fiscais) ou a erro desculpável do contribuinte.” (sublinhado da Requerente)

 

Ou ainda o acórdão de 11.03.2009 (processo n.º 0961/08), do mesmo tribunal, onde se conclui que:

“II - O retardamento da liquidação de imposto dá origem a juros compensatórios, se estiver demonstrada a culpa do contribuinte em tal situação de retardamento.

III - A culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstrato, pelo padrão de esmero do bonus pater familiae, hipoteticamente colocado na situação concreta.

  IV - A compreensível dúvida, dificuldade, ou divergência razoável de critério      quanto à qualificação e enquadramento de determinada situação tributária não       concorre para a integração do dito conceito de culpa – pelo que, por tal via, não    se dá azo à cominação de juros compensatórios.”

 

No entender da Requerente, ficou demonstrado que a sua atuação foi irrepreensível, nada havendo de culposo na sua conduta. A Requerente entende, por isso, que esta, caso seja considerada incorreta, será justificada por estarmos em presença de um exemplo de “compreensível divergência de entendimento” entre ela e a Requerida, que não poderá dar origem à liquidação e cobrança de juros compensatórios.


Posição da Requerida

 

A Requerida não se pronunciou especificamente sobre esta questão, nem na resposta, nem nas alegações. Na resposta não há qualquer menção ao problema. No articulado das alegações (ver art. 52.º), faz decorrer automaticamente o indeferimento do pedido de anulação de juros compensatórios do facto de a aplicação da CGAA pela AT ter sido conforme à lei. Por sua vez, do processo administrativo consta apenas, nos documentos de liquidação, a demonstração da liquidação de juros compensatórios e o seu montante, como se essa aplicação decorresse automaticamente da lei. A Nota Técnica de 22.11.2016 e o Relatório Final indicam como base legal das correções efetuadas o disposto nos artigos 5.º, 7.º, 71.º, 98.º, 101.º e 103,º do CIRS. 

 

Decisão

 

Os juros compensatórios integram a relação jurídica tributária e a dívida de imposto, sendo liquidados juntamente com a liquidação daquela dívida (artigos 30.º, n.º 1, al. d) e 35.º, n.º 8 da LGT). O dever do seu pagamento tem natureza indemnizatória, constituindo uma reparação pelos prejuízos causados ao Estado pelo atraso na liquidação. A liquidação e cobrança dos "juros compensatórios devidos" nos casos de substituição tributária está prevista no artigo 108.º, n.º 2 do CIRS.

Estes atos tributários não decorrem, porém, automaticamente da lei (menos ainda de uma aplicação do sistema informático), como, aliás, estatui o n.º 1 do artigo 35.º da LGT :

            "1 - São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito     passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária."

 

É assim necessária, nos termos do artigo 77.º da LGT e 268.º, n.º 3 da CRP, a existência de uma fundamentação jurídica específica relativamente à exigência de juros compensatórios. Como escrevem CAMPOS, RODRIGUES e SOUSA:[50]

            "De um modo geral, a fundamentação deverá permitir conhecer integralmente o itinerário seguido pela entidade liquidadora para calcular os juros.

            Por outro lado, sendo necessária a culpa dos contribuintes para ser imputada        responsabilidade por juros compensatórios, a fundamentação da liquidação dos juros deverá indicar o comportamento que lhe é imputado que justifica a         imposição do pagamento de juros.

            Assim, o conhecimento integral do itinerário valorativo e cognoscitivo seguido   pela entidade que liquidar os juros não dispensará:

               - (...)         

               - a indicação dos diplomas legais que preveem a responsabilidade por juros                   compensatórios e os que preveem as taxas aplicadas;

              - a situação fáctica violadora da lei que justifica a liquidação dos juros ou os     factos que levaram a Administração Tributária a concluir que o atraso na            liquidação se deveu a atuação culposa do contribuinte".

 

No mesmo sentido, opina GUERREIRO, para quem o direito da AT exigir juros compensatórios depende "da conjugação de um elemento objetivo, o atraso na liquidação ou entrega do imposto retido ou a reter ou a pagar por conta, e de outro subjetivo, a culpa do contribuinte". [51]

Ora, existindo significativa jurisprudência (parte dela invocada pela Requerente) que existem causas de exclusão de culpa ou de desculpabilidade do comportamento do contribuinte, como, por exemplo, o facto de este radicar numa divergência, mesmo que errónea, de critérios ou de interpretação jurídica relativamente à posição do Fisco, obrigatório é que a fundamentação da liquidação e cobrança de juros compensatórios se pronuncie sobre esta questão, tendo em conta o disposto no citado artigo 35.º, n.º 1, da LGT. 

No caso sub judice, é evocada pela AT a existência do elemento objetivo, mas não há qualquer pronúncia sobre a verificação (ou não) do elemento subjetivo, na sua globalidade. Mesmo que parta, por inferência, do pressuposto da existência de culpa do sujeito passivo que não efetuou a RF, deveria ainda a AT analisar se, no caso concreto, havia ou não motivos que conduzissem a um juízo de desculpabilização do comportamento do sujeito passivo. A fundamentação jurídica existente nos autos para justificar a aplicação de juros compensatórios é assim manifestamente insuficiente, pois a AT deveria pronunciar-se expressamente sobre a existência e validade (ou não) das razões invocadas pela Requerente que poderiam levar à desculpabilização do seu comportamento. O silêncio da Requerida sobre esta questão, suscitada pelo disposto do n.º 1 do artigo 35.º da LGT na interpretação que lhe tem sido dada por importante corrente jurisprudencial, não se afigura aceitável.

Há assim um défice de fundamentação, razão pela qual, procede, relativamente a este ponto, o pedido da Requerente, anulando-se os juros compensatórios liquidados no montante global de € 300.702,33.

 

4 .  A questão do direito a juros indemnizatórios

 

A controvérsia

 

A Requerente invoca o disposto no artigo 43º, n.º 1, da LGT, segundo o qual “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” para exigir à Requerida juros desta natureza, pois existiria, segundo ela, uma situação de ilegalidade da liquidação que não decorre de lapso do próprio sujeito passivo, mas da conduta da AT, traduzida numa errónea aplicação da CGAA.

Para a Requerida, não houve qualquer erro na aplicação da CGAA, pelo que o pedido de juros indemnizatórios não tem fundamento.

 

Decisão

Estando o pedido de juros indemnizatórios estreitamente dependente da questão da legalidade da aplicação da CGAA e tendo-se decidido inequivocamente pela legalidade desta, não existe um pagamento de dívida tributária em excesso, nem qualquer erro  imputável aos serviços da AT na aplicação da CGAA. Razão pela qual se indefere o pedido de juros indemnizatórios.

 

 

 

5. Síntese da Decisão Arbitral

 

  1. Mantêm-se, por conformes à lei, as liquidações impugnadas pela requerente decorrentes da aplicação da CGAA e da sua responsabilização, na qualidade de substituto tributário, pela inexistência de RF;
  2. Anula-se a liquidação e cobrança de juros compensatórios, no valor de 300.702,33 euros, tendo a Requerente direito ao reembolso desse montante;
  3. Indefere-se o pedido de juros indemnizatórios por não haver erro dos serviços na aplicação da CGAA.

 

Valor do Processo: € 2.283.667,95.

 

Custas pela Requerente, nos termos do art.º do n.º 2 do art.º 5º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. Valor: € 60.000.

 

Lisboa, 05 de agosto de 2018

 

Os árbitros

 

 

António Carlos dos Santos

 

 

Rui Duarte Morais (vencido, nos termos da declaração que anexa)

 

 

 

Manuel Pires (vencido, nos termos da declaração que anexa)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Não posso acompanhar a posição que fez vencimento (exceto no tocante à não exigibilidade de juros compensatórios) pelo seguinte:

 

A constituição da H... e a aquisição por esta das participações sociais na Requerente antes detidas por detidas por B... e D..., em nome pessoal, teve como intenção ou finalidade primeira sedear em Malta a sociedade-mãe deste grupo empresarial. Independentemente das motivações de tal “deslocalização” – mesmo assumindo, por mera hipótese, a preponderância de razões de natureza fiscal ao nível da tributação da sociedade-mãe do grupo[52]- o certo é que uma tal opção nunca poderá ser fiscalmente “entravada” (não pode ser objeto de reprovação jurídica), porque protegida pela liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais decorrente do Direito da União Europeia e, também, pela liberdade de gestão, consagrada na CRP, salvo tratando-se de uma transação-farsa (sham transaction).

            Por muito que se possa lamentar a deslocalização para o estrangeiro das empresas mãe (“holdings de topo”) de grupos empresariais portugueses, o certo é que, desde logo no contexto da União Europeia, não podem ser aceites argumentos como o explanado pela Requerida de que pode concluir-se que pouco ou nada foi desenvolvido pela H... que não pudesse ter sido perfeitamente desenvolvido [em Portugal] pela Requerente (sociedade holding não operacional).

 

            Importaria, aqui, começar por apurar se a H..., independentemente das razões que levaram à sua constituição, corresponde a uma efetiva realidade empresarial, distinta da Requerente, se é algo mais que uma “fachada” destinada, apenas, a titular as participações sociais na Requerente que antes pertenciam aos seus sócios.

            A nosso ver, a genuinidade da atividade empresarial da H..., em Malta, resulta de dois elementos: (i) primeiro, a presença física efetiva da sociedade nesse país. Tratando-se de uma sociedade holding, os traços físicos de uma tal presença serão necessariamente mínimos, consubstanciando-se, no caso, apenas na existência de um escritório-sede e na realização, nesse país, de Conselhos de Administração e Assembleias Gerais (cfr. o afirmado nos n.º 262 a 267 do requerimento inicial, factos que não resultam infirmados pelo constante do RIT nem foram impugnados pela Requerida na sua “resposta”) ; (ii) segundo, para nós muito mais significativo, é o prosseguimento, nesse país, de uma real atividade empresarial, ainda que, como é próprio de uma sociedade holding, limitada à aquisição, alienação e gestão de participações sociais. Ora nenhuma dúvida parece existir quanto ao facto de a atividade da H... não se ter limitado à aquisição, a sócios comuns, das participações sociais da Requerente.

Como ficou provado, a H... adquiriu, em 2011, relevantes participações sociais na R..., na T... e U... Lda e na V... Lda e, em 2012, uma participação social de 5% do capital social da sociedade vinícola W..., SA e, em 2013,/, uma participação representativa de 10,7%, do capital social da X..., S.A., uma empresa de consultoria.

            Ou seja, não ficou provado, antes pelo contrário, que a H... tenha sido constituída para funcionar exclusiva ou principalmente como “veículo” para a aquisição das participações que os seus sócios detinham na Requerente, que tal sociedade seja “inativa”, desprovida de verdadeira substância económica.

            Não se verifica, pois, o elemento meio, integrador da GCAA, pois não houve o recurso a formas ou negócios jurídicos inabituais, atípicos ou artificiais (esquemas ou montagens), tendo em vista a obtenção, exclusiva ou predominantemente, de uma vantagem fiscal. Se os sócios da Requerente pretendiam passar a centralizar a sua atividade empresarial (ou parte dela) em Malta, como na realidade fizeram, o meio adequado era, necessariamente, a constituição de uma sociedade holding nesse país (no caso, a H...), a posterior transmissão para esta de participações sociais de que já fossem detentores (caso das participações na Requerente) e/ou, depois, fazer titular por tal sociedade outros investimentos (como também foi feito).

 

            Atentando no argumentário que fundamenta as liquidações impugnadas, verificamos que, mais que a criação da H... e a transmissão para esta das participações que os sócios B... e D... detinham na Requerente, o que a AT põe em causa são condições contratuais de tal compra e venda.

            A AT entende, em suma, que as participações da Requerente foram alienadas por um valor muito superior ao seu valor contabilístico, que foi “inflacionado” artificialmente o valor da dívida da H... (correspondente ao preço contratualizado) para com os seus sócios, os quais, assim, passaram a ter direito a receber o montante correspondente a tal “excesso” a título de pagamento de preço (não tributado) em lugar de, como de outra forma aconteceria, dividendos.

            Temos, em primeiro lugar, que nada ficou provado quanto à correspondência ou não a valores de mercado do preço contratado entre a H... e os seus sócios para a aquisição das participações que estes detinham na Requerente.

            De todo modo - e isso será o que aqui mais relevaria -, a CGAA não é o instrumento legal adequado para proceder a correções, para efeitos fiscais, dos preços praticados entre pessoas ou entidades unidas por relações especiais (caso da H...– e da Requerente – e seus sócios). Para tal existe um regime legal especial, o regime dos preços de transferência.

            Na medida em que se vise “cobrar” um imposto não pago em virtude de uma manipulação de preços, a invocação da CGAA é inadmissível: não estará em causa um negócio anómalo, ditado por finalidades fiscais, mas sim a fixação anómala de um dos elementos de tal negócio, o preço contratado.

            Mais o será inadmissível, por força dos princípios da confiança e da segurança jurídica, se tivermos em conta que o direito da AT proceder a uma liquidação adicional de IRS - que, corretamente, incidiria sobre ganhos decorrentes da realização de mais-valias - pela invocação do regime dos preços de transferência, relativamente a vendas de ações ocorridas em 2009, já teria, há muito, caducado em 2017, data em que tiveram lugar as liquidações ora impugnadas.

            Não podemos, pois, deixar de partilhar, neste ponto, o entendimento da Requerente segundo o qual censura, sim, deve existir em relação à conduta da AT, pois esta, formulando "um juízo de prognose póstuma", procura utilizar a CGAA para tributar a posteriori uma mais-valia que se encontrava excluída da tributação no momento em que foi obtida [ou tributar uma mais-valia cujo direito à tributação havia caducado – acrescentamos nós].

            A AT poderá, eventualmente razão, quanto ao exagero do preço praticado, à “criação” de uma mais-valia artificial de que resultou a “transformação” de dividendos futuros em “prestações” de pagamento do preço de aquisição de participações socias.            Mas não só não fez prova de tal facto, como fundamentou incorretamente as liquidações a que procedeu, invocando a CGAA e não o regime dos preços de transferência[53].

 

 

            Finalmente, a AT argumenta que a artificialidade da operação de transmissão de ações em causa resulta evidente da desproporção entre os recursos próprios da H... (nomeadamente do seu capital, € 1.200,00) e a dívida de 20 milhões de euros, contraída no dia seguinte à sua constituição, para com os seus sócios em razão da aquisição das participações sociais que estes detinham na sociedade Requerente.

            Ora, se olharmos à substância do negócio, facilmente se concluirá que o que ocorreu foi os sócios B... e D... terem deixado de ser, diretamente - em nome pessoal - sócios da Requerente para o passarem a ser indiretamente, através da H... .

            Em tais circunstâncias não faria qualquer sentido económico que os sócios capitalizassem a H... com recursos suficientes para esta lhes pagar, de imediato, o preço contratado (os sócios estar-se-iam, então, a pagar com o seu próprio dinheiro) ou que decidissem que a H... obtivesse um financiamento bancário (por eles pessoalmente garantido?) para, de imediato, lhes pagar a totalidade do preço, suportando os encargos inerentes.

            A questão da eventual artificialidade da operação em causa não estará na forma de pagamento do preço acordada, mas, eventualmente, no montante do preço contratado, tema que já foi objeto de apreciação anterior.

            Mais ainda, caso o preço tivesse sido integralmente pago no ato de transmissão, o direito à invocação da GCAA já teria, inquestionavelmente caducado.

Pelo que concluiria pela procedência da impugnação.

 

 

Rui Duarte Morais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

 

Não posso acompanhar a decisão relativa aos juros compensatórios. Face às circunstâncias bem impressivas do caso, sustentando o abuso e sendo ele provado, de modo assaz patente na decisão, a consequência necessária á a aplicação do artigo 35.º da LGT em virtude de factos imputáveis à intenção do contribuinte, nomeadamente dado o elemento intelectual que tem, assim, como corolário a fundamentação da aplicação da disposição em causa. Daí o comportamento da Requerente ser censurável, não existindo, pois, diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais, atitude irrepreensível ou comportamento desculpável ou, em síntese, quaisquer causas de exclusão de culpa.

Ter de explicitar todo o referido é exigir repetição de algo claríssimo. Daí a Requerida, depois de pedir a improcedência do pedido da Requerente relativo ao abuso e a consequente absolvição, ter escrito “tudo com as devidas e legais consequências” e, nas alegações, “como tal (referido à substância) improcede igualmente o pedido de anulação de juros compensatórios e indemnizatórios”, o que tem pleno significado face a tudo (disposição legal e respectiva interpretação exigindo algo mais que o simples retardamento) incluído pela Requerente. Não é um problema de automatismo, mas de lógica: a Requerente citou a disposição legal e a correspondente interpretação, tudo baseando-se em não abuso e, portanto, falta de dolo ou culpa, e a Requerida, face a demonstração contrária por ela apresentada no sentido da existência de abuso, implicando intenção, remeteu para as consequências contrárias que eram evidentes, designadamente no caso. Aliás, a Requerida seguiu a mesma orientação quanto aos juros indemnizatórios, visto nada ter dito explicitamente por ser implícito ter a improcedência sustentada como consequência necessária a inexistência de tais juros. Atentando na decisão final relativa aos juros compensatórios, se a Requerida tivesse escrito mais, aplicar-se-ia o brocardo quod abundat non nocet.

 

Manuel Pires

 

 



[1] Permanecendo em vigor o novo Acordo Ortográfico tem sentido, num texto de índole jurídica, que ele seja aplicado uniformemente em toda a decisão arbitral.

[2] O procedimento inspetivo externo ocorreu entre 18.11.2015 e 23.03.2016, tendo sido desencadeado em cumprimento das Ordens de Serviço n.º OI2015.../..., emitidas pela Direção de Finanças de Lisboa - Serviços de Inspeção Tributária – Divisão ... .

[3] Era a seguinte, à época, a redação deste dispositivo: " 1 - As entidades que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada são obrigadas a reter o imposto, mediante a aplicação, aos rendimentos ilíquidos de que sejam devedoras e sem prejuízo do disposto nos números seguintes, das seguintes taxas: a) 15%, tratando-se de rendimentos da categoria B referidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º, de rendimentos das categorias E e F ou de incrementos patrimoniais previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 9.º " (Redação dada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30.12)".

[4] Quanto à ordem do conhecimento dos vícios invocados, tendo a Requerente estabelecido uma relação de subsidiariedade nos pedidos, será por essa ordem que aqui serão analisadas. Cf. o disposto no artigo 101.° do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), segundo o qual “O impugnante pode arguir os vícios do ato impugnado segundo uma relação de subsidiariedade”. Segue-se assim a posição defendida no acórdão do STA de 18.06.2014 (proc. n.º 01942/13), “sempre que o impugnante estabeleça uma ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de anulabilidade é essa ordem que deve ser seguida pelo juiz, não lhe sendo permitido alterá-la, assim como não lhe é permitido alterar a ordem do conhecimento dos vícios geradores de nulidade ou de inexistência, que se encontra legalmente estabelecida”.

[5] Cf. o artigo 123.º, n.º 2, do o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

[6]  Cf. o artigo 596.º do CPC.

[7] Decorre dos autos que a G..., a subsidiária referenciada no artigo 198.3 da petição inicial, é controlada em 98% pela H... e em 2% pelos dois referidos sócios comuns da Requerente e da H... .

[8] Recorde-se que o Grupo E... já atuava em Malta através da F... .

[9] Este grupo nasceu em janeiro de 2008 na sequência da aquisição da O... pela P..., dando início a um novo universo empresarial dedicado a atividades no setor da construção civil.

[10] Na contabilidade esta empresa é referida como sendo a Q... .

[11] A redação do artigo 32.º do EBF, relativa aos benefícios concedidos às sociedades gestoras de participações sociais (SGPS), sociedades de capital de risco (SCR) e investidores de capital de risco (ICR), era, à época, a seguinte: "1 - Às SGPS, às SCR e aos ICR é aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 46.º do Código do IRC, sem dependência dos requisitos aí exigidos quanto à percentagem ou ao valor da participação.2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS, pelas SCR e pelos ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades. 3 - O disposto no número anterior não é aplicável relativamente às mais-valias realizadas e aos encargos financeiros suportados quando as partes de capital tenham sido adquiridas a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 58.º do Código do IRC, ou a entidades com domicílio, sede ou direção efetiva em território sujeito a um regime fiscal mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças, ou residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação, e desde que tenham sido detidas, pela alienante, por período inferior a três anos e, bem assim, quando a alienante tenha resultado de transformação de sociedade à qual não fosse aplicável o regime previsto naquele número, relativamente às mais-valias das partes de capital objeto de transmissão, desde que, neste último caso, tenham decorrido menos de três anos entre a data da transformação e a data da transmissão. 4 - As SCR podem deduzir ao montante apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, uma importância correspondente ao limite da soma das coletas de IRC dos cinco exercícios anteriores àquele a que respeita o benefício, desde que seja utilizada na realização de investimentos em sociedades com potencial de crescimento e valorização. (Redação dada pela  Lei n.º 3-B/2010, de 28.04) 5 - A dedução a que se refere o número anterior é feita nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 83.º do Código do IRC, na liquidação do IRC respeitante ao exercício em que foram realizados os investimentos ou, quando o não possa ser integralmente, a importância ainda não deduzida poderá sê-lo, nas mesmas condições, na liquidação dos cinco exercícios seguintes.  6 - Os sócios das sociedades por quotas unipessoais ICR, os investidores informais das sociedades veículo de investimento em empresas com potencial de crescimento, certificadas no âmbito do Programa COMPETE, e os investidores informais em capital de risco a título individual certificados pelo IAPMEI, no âmbito do Programa FINICIA, podem deduzir à sua coleta em IRS do próprio ano, até ao limite de 15 % desta, um montante correspondente a 20 % do valor investido por si ou pela sociedade por quotas unipessoais ICR de que sejam sócios. (Redação dada pela  Lei n.º 3-B/2010-28/04) 7 - A dedução à coleta referida no número anterior não se aplica aos seguintes casos: (Redação dada pela referida Lei n.º 3-B/2010, de 28.04)
a) Investimentos em sociedades cotadas em bolsa de valores e em sociedades cujo capital seja controlado maioritariamente por outras sociedades, excetuados os investimentos efetuados em SCR e em fundos de capital de risco; b) Investimentos em sociedades sujeitas a regulação pelo Banco de Portugal ou pelo Instituto dos Seguros de Portugal. 8 - Por valor investido entende-se a entrada de capitais em dinheiro destinados à subscrição ou aquisição de quotas ou ações ou à realização de prestações acessórias ou suplementares de capital em sociedades que usem efetivamente essas entradas de capital na realização de investimentos com potencial de crescimento e valorização. (Redação dada pela Lei n.º 3-B/2010, de 28.04). 9 - O disposto nos n.ºs 1 a 3 é igualmente aplicável a sociedades cuja sede ou direção efetiva esteja situada em território português, constituídas segundo o direito de outro Estado membro da União Europeia, que tenham por único objeto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, desde que preencham os demais requisitos a que se encontram sujeitas as sociedades regidas pelo Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro (Anterior 6 - Redação dada pela  Lei n.º 3-B/2010, de 28.04).

 

[12] É, por exemplo, o caso dos dispositivos previstos nos artigos 49.º, n.º 10 e 73.º, n.º 10 do CIRC, relativos, respetivamente, à requalificação, pela administração tributária, de operações com instrumentos financeiros derivados quando haja desfasamento entre forma e substância das mesmas e à exclusão, em certos casos, da aplicação do regime especial aplicável às fusões, cisões entradas de ativos e permutas de partes sociais.

[13] Muitas das decisões posteriores sobre a CGAA foram sobretudo proferidas em sede de tribunais arbitrais, a maioria delas dando razão aos contribuintes. Neste ponto, a experiência espanhola diverge substancialmente da portuguesa, apesar da similitude de redação das normas dos dois ordenamentos relativamente à CGAA. Sobre o tema, vide PINHEIRO, Sandra (2015), A Cláusula Geral Antiabuso. Estudo Comparativo Portugal-Espanha, Dissertação de mestrado, CBS/ISCAC, Coimbra (disponível na net).

[14] Estabelece o n.º 1 do mesmo artigo o seguinte: " 1- A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes". Relativamente à versão inicial, a redação atual deste artigo clarifica expressamente que a ineficácia de atos e negócios jurídicos fica circunscrita ao âmbito tributário, pelo que os mesmos conservam a sua validade e eficácia noutros domínios.

[15] Princípio que nasceu na contabilidade e no direito contabilístico, tendo sido consagrado no Plano Oficial de Contabilidade "como critério de decisão contabilística possível para evitar que o formalismo jurídico se torne obstáculo a que o balanço reflita com exatidão a situação patrimonial da empresa. Trata-se de conferir equivalência económica a certos efeitos jurídicos" (assim, SANCHES, Saldanha (2000), "Abuso de Direito em Matéria Fiscal: Natureza, alcance e limites", CTF n.º 398, p. 12 e ss).  Um certo afloramento deste princípio está igualmente presente no artigo 12.º, n.º 3 da LGT.  

[16] Cf. o ponto IV.1 (Considerações introdutórias) da Decisão arbitral de 14.11.2017 (Processo CAAD n.º 162/2017).

[17] Ibidem.

[18] Sublinhe-se que, mesmo sem a existência da CGAA, a AT não se encontra obrigada a aceitar a qualificação jurídica dos factos operada pelos contribuintes. Na verdade, de acordo com o teor do artigo 36.º n.º 4 da LGT, "A qualificação do negócio jurídico efetuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária". 

[19] Cf. GUERREIRO, A., Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa: Rei dos Livros, p. 178.

[20] Cf. Acórdão da Secção de Contencioso Tributário do STA, de 4.4.2001, proferido no recurso n.º 25469.

[21] Ver, neste sentido, o já citado acórdão do CAAD de 14.11.2017 onde se afirma: "O problema da evasão fiscal constitui uma das mais sérias ameaças à economia mundial e à capacidade dos Estados de realizarem as finalidades que lhe são cometidas pelo direito internacional dos direitos humanos e pelo direito constitucional no domínio da realização dos direitos sociais. Ele resulta em perdas significativas de receitas para o Estado e, por consequência, de despesa a favor dos cidadãos. Se considerarmos o tempo, o trabalho e o dinheiro despendidos na tentativa de evitar impostos e os custos de oportunidade envolvidos na evasão fiscal, concluímos essas perdas aumentam de forma dramática. De há uns anos a esta parte, o problema da evasão fiscal tem estado no centro da agenda da comunidade internacional, nomeadamente através da iniciativa Base Erosion e Profit Shifting (BEPS) promovida pela OCDE. No âmbito da União Europeia, o problema não tem tido menor relevância, já que os Estados membros dependem em medida significativa do bom funcionamento do sistema fiscal para cumprirem os objetivos do Pacto de Estabilidade e Crescimento no quadro da União Económica e Monetária. Neste contexto, a “manufatura da indeterminação factual”, consistindo entre outras coisas na criação artificial e artificiosa de complexidade acrescida nas transações empresariais, apresenta-se como um instrumento típico de evasão fiscal suscetível de produzir um impacto multinível. Não está em causa a legitimidade de uma medida razoável de planeamento fiscal por parte dos agentes económicos, através da utilização das isenções, deduções, abatimentos e outros benefícios fiscais que o legislador põe à disposição dos contribuintes por entender que dessa forma prossegue da melhor maneira os seus objetivos financeiros, económicos e sociais. Quando age deste modo, o contribuinte nada faz de ilegal, do ponto de vista puramente formal e material. Diferentemente se passam as coisas no planeamento abusivo, quando se pretende reduzir os impostos de uma maneira que é "contrária ao espírito da lei". Nestes casos, pretende-se contornar os objetivos materiais do sistema fiscal através de uma utilização meramente formalista e ardilosa das normas fiscais, numa ótica de fraude à lei. É nestes casos que se manifesta a insuficiência de uma interpretação meramente literal sendo importante a interpretação teleológica. Este aspeto é especialmente importante na medida em que, nos termos do artigo 103º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 5º n.º 1 da LGT, os objetivos da tributação expandem-se muito para além do simples aumento das receitas fiscais. Assumindo uma natureza social de interesse público, eles incluem a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas de forma a permitir-lhes, entre outras coisas, a efetivação dos direitos sociais constitucionalmente consagrados, a promoção da justiça social e da igualdade de oportunidades e a necessária correção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento. Da prossecução destes objetivos depende, em última análise, a legitimidade dos sistemas político e fiscal". 

 

 

[22] A DAE entrou em vigor em agosto de 2016. Os Estados-Membros deverão adotar e publicar, até 31.12.2018, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à DAE, e aplicar as referidas disposições a partir de 01.01.2019.   

[23] A redação em vigor deste artigo (que tem por epígrafe Aplicação de disposição antiabuso) decorre das alterações introduzidas pela Lei do OE para 2011 que vieram flexibilizar a aplicação, por parte da AT, deste procedimento.

[24] Este diploma veio introduzir restrições ao PF, ao criar a obrigação, por parte dos seus promotores e utilizadores, de informar, comunicar e esclarecer os esquemas de PF, de modo a que a AT possa efetuar um controlo prévio e aferir quais são os que considera como abusivos. Ao abrigo dos artigos 4.º e 15.º deste último diploma, a então DGCI (hoje AT), divulgou 13 esquemas de PFA, suscetíveis de agrupamento em categorias: os que implicam a participação de entidade residente num território constante da lista de RFP; os que implicam a participação de uma entidade isenta; os que envolvem operações financeiras ou sobre seguros suscetíveis de determinar a requalificação do rendimento ou a alteração do beneficiário; os que implicam a utilização de prejuízos fiscais; e os propostos com a cláusula de exclusão ou limitação da responsabilidade em benefício do respetivo promotor. Estes treze casos não esgotam, como é óbvio, a panóplia de esquemas de PFA referenciados na literatura da especialidade, um dos quais é precisamente o do caso sub judice.

[25] Como exemplos da adoção na jurisprudência deste esquema analítico difundido por COURINHA, Gustavo - in (2009) A Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário - Contributos para a sua Compreensão, Coimbra: Almedina) -, pode ver-se o  acórdão seminal  do Tribunal Central Administrativo Sul de 15.02.2011 (Processo n.º 04255/10), bem como os acórdãos do CAAD n.º 377/2014-T, de 22.05.2015, n.º  143/2014-T, de 21.07.2014  e n.º 208/2014-T, de 22.07.2014. O chamado elemento sancionatório de que fala COURINHA é contudo mais uma consequência do que um pressuposto da aplicação da CGAA.

[26] Como se refere na mesma decisão arbitral de 22.05.2015 (Processo 377/2014-T), impõe-se  sublinhar que "o que é determinante para a aplicação da cláusula antiabuso e, como tal, de indispensável verificação na situação em julgamento, é a deteção de uma atuação abusiva ou em fraus legis, portanto, nos termos da emaranhada formulação normativa constante do art. 38.º, n.º 2 da LGT, a adoção de “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas”. O ponto nodal da aplicação do disposto no art 38.º, n.º 2 da LGT é, na verdade, a qualificação como abusiva ou fraudulenta da conduta ou operação (una ou plúrima) sob apreciação, o que envolve, naturalmente, a reprovação dos meios assim utilizados. Nestes termos, depara-se com uma prática de evasão fiscal, com uma atuação extra legem de poupança fiscal, que se pretende contrariar por via da cláusula geral antiabuso, quando “apesar de não haver uma violação direta da lei, verifica-se o exercício abusivo de um direito por parte do sujeito passivo ou a adoção por este de um comportamento em fraude à lei (fraus legis), isto é, um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal”. E o acórdão prossegue: "Daí que haja que reconhecer ao “elemento meio” da cláusula antiabuso, que “corresponde à via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, i. e. o(s) atos(s) ou negócio(s) jurídicos(s) cuja estrutura se encontra determinada em função de um dado resultado fiscal” e que se afere pelo “nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico-prático final do contribuinte, entre o fim para que é empregue concretamente essa forma adotada e a causa que lhe é própria” (assim, COURINHA, ob.cit., pp. 165 e 166) o vetor fundamental da sua aplicação."

[27] Ibidem: "a ponderação do dito “elemento normativo”, no qual se joga a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, tem de acompanhar necessariamente, não podendo ser disso separada, a verificação do “elemento meio”. É que é dogmaticamente inaceitável, em homenagem à unidade axiológica do ordenamento jurídico-tributário, pretender que, não obstante observados todos os elementos meio, resultado e intelectual próprios da cláusula geral antiabuso, seria possível não se corroborar o dito elemento normativo. Só um ultrapassado e inadmissível formalismo conceptualista poderia propiciar tal ideia, da qual derivaria que se poderia reconhecer, ao mesmo tempo e sem contradição, a adoção pelo contribuinte de atos ou negócios jurídicos artificiosos, com abuso de formas jurídicas ou em fraude à lei, e a não reprovação ou a aceitação dessa conduta pelo ordenamento jurídico. Daí que se deva concluir que a autonomização do elemento normativo pode ser conveniente à explicitação destas matérias, mas dogmaticamente, para efeitos de resolução dos casos concretos, tem que se ter em conta que ele não é senão a destilação do segmento normativo do art. 38.º, n.º 2 da LGT que respeita aos “meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas” e em que se consubstancia, afinal, o elemento meio." 

[28] Proferido - recorde-se - no processo n.º 377/2014-T, de 22.05.2014.

[29] Ibidem.

[30] A Requerente elenca, a seu favor, alguns acórdãos (ou partes deles) que consideraram improcedente a aplicação da CGAA a litígios por eles decididos. Quanto à questão principal, cf. os acórdãos  TCA Sul n.º 5104/11, de 14.02.2012; CAAD n.º 62/2014-T, de 01.09.2014; CAAD n.º 305/2013-T, de 18.09.2014; CAAD n.º 180/2014-T, de 3.7.2015 e CAAD n.º 32/2015-T, de 28.10.2015 e, quanto à questão subsidiária, os acórdãos CAAD n.º 379/2014-T, de 24.11.2014 e CAAD n.º 476/2015-T, de 30.06.2016. Por sua vez, a Requerida invoca, no RIT, na resposta e nas alegações, quanto à questão principal, os acórdãos CAAD n.º 258/2013, de 19.11.2013 e TCA Sul n.º 04255/10, de 15.02.2011 e, quanto ao pedido subsidiário, o voto de vencido do Prof. Manuel Pires, no âmbito do Processo n.º 200/2014-T, de 19.12.2014 e a recente decisão do CAAD, de 13.11.2017, no processo n.º 162/2017.

          

[31] Artigo 5.º - Rendimentos da categoria E: 1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:

h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º. (…)

 

[32] Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º do CIRS, com a redação dada pela Lei n.º 3-B/2010, de 28/04, as entidades devedoras dos rendimentos referidos no § anterior estão obrigados a reter imposto às taxas previstas no artigo 71.º do mesmo Código. O quadro seguinte reflete a evolução das taxas de RF desde 2006:

CIRS

Vigência

Taxa RF

Redação

al. c) do n.º 1 artigo 71.º

A partir de 01.01.2013

28%

Lei n.º 66-B/2012, de 31.12

al. c) do n.º 1 artigo 71.º

de 30.10.2012 a 31.12.2012

26,50%

Lei n.º 55/2012, de 29.10

al. c) do n.º 1 artigo 71.º

de 01.01.2012 a 29.10.2012

25%

Lei n.º 64-B/2011, de 30.12

 

 

[33] Pode ler-se na decisão arbitral n.º 162/2017-T, de 14.11.2017: "Um dos múltiplos exemplos de escola da doutrina da transação-farsa (sham transaction doctrine) é precisamente o de uma distribuição de dividendos através da constituição de um empréstimo junto dos acionistas, operação que é designada, nos meios dedicados ao estudo do planeamento fiscal agressivo, como transação de descolamento de dividendos (dividend-stripping transaction). A mesma é uma de muitas modalidades estudadas de dividendos construtivos ou disfarçados. Por este motivo, o presente coletivo entende que a AT fez um uso legítimo da margem de apreciação que lhe é reconhecida pela CGAA do artigo 38º nº 2 da LGT."

[34] Este rendimento proveniente de mais-valias não foi sujeito a imposto, nos termos do artigo 32.º do EBF, então em vigor.

[35] Dividendos isentos nos termos do artigo 14.º, n.º 3 do CIRC.

[36] Assim MORAIS, Rui D. (2006), "Sobre a Noção de Cláusulas Antiabuso", in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, vol. III, Direito Fiscal, Coimbra: Coimbra Editora, p. 888.

[37] Referimo-nos à citada decisão arbitral n.º 377/2014-T, de 22.05.2015 (cf. o ponto 20 desta decisão). Note-se, aliás, que num outro acórdão proferido no CAAD (decisão no processo nº 162/2017, de 14.11.2017), se defende que a CGAA pode "atuar subsidiariamente mesmo relativamente a uma cláusula especial."

 

[38] De acordo com o disposto no artigo 20.º da LGT, a substituição tributária “verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte” e é “efetivada através do mecanismo de retenção na fonte.” Pode, porém, existir substituição tributária sem RF. Esta é apenas a forma corrente de dar expressão à substituição tributária.

[39] Cf. as decisões arbitrais  de 24.11.2014 (processo n.º 379/2014-T); de 19.02.2016 (processo n.º 335/2015-T); de 30.06.2016 (processo n.º 476/2015-T); e de 14.12.2016 (processo n.º 363/2016-T), onde se pode ler: Estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efetuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efetuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efetuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroativo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar, nos casos de retenção a título definitivo em que o substituto é o devedor originário.”

[40] Cf. artigo 28.º da LGT.

[41]  A AT invoca ainda em favor da sua posição a tese sustentada no voto de vencido do  Prof. Manuel Pires proferido, em 19.12.2014, no âmbito do processo CAAD n.º 200-2014-T, cujo teor - que a seguir se transcreve - foi retomado no processo 32/2015-T, decidido em 28.10.2015: «O argumento das “ vantagens fiscais “ constante do acórdão é improcedente, visto não só não ter atendido, na sua inteireza, à evolução do citado artigo 38.º n.º 2 – a parte final invocada surge concomitantemente com o estabelecimento do segundo objetivo do negócio abusivo, não aqui aplicável, aditado pela modificação do preceito, o que, aliás, é reforçado com o qualificativo “referidas“ relativo às “ vantagens “ aditadas, conforme resulta da redação, e não a algo não mencionado – como não considerou a natureza disjuntiva e não copulativa da conjunção na primeira inclusão das “vantagens” (a segunda inclusão antecedida por “e” tem de ser interpretada com a subordinação à disjuntiva principal e ainda mais, repete-se, pela inclusão do vocábulo “referidas“, isto é, conexionado com o segundo objetivo incluído na modificação). E, aliás, antes da enunciação do segundo objetivo do abuso, não se utiliza, como teria sido no caso de se ter querido consagrar, como se escreveu no acórdão, a generalização das vantagens, o determinativo “outras“ vantagens ou ainda “quaisquer outras “ vantagens. Portanto, a distinção entre os objetivos incluídos na disposição sob exame não é aparente, mas efetiva, reportando-se as «referidas vantagens» ao segundo objetivo enunciado. Aliás, ao contrário da decisão, a diminuição patrimonial, resultante da retenção, não fica, em qualquer dos casos visando os objetivos mencionados, limitada ao substituto (caso da retenção definitiva, referido no acórdão), atento o substituto ter direito de regresso disponibilizado pelos princípios do nosso ordenamento jurídico aplicáveis conforme as circunstâncias concretas, sendo esse direito integrante do regime da substituição e a final quem sofre a diminuição é quem auferiu o rendimento. Entender que tal pode não suceder– em virtude de se poder deixar de ter a qualidade de sócio por parte substituído – é por em causa todo o instituto da substituição não só para o caso da aplicação do artigo 38.º n.º 2 LGT – argumento ad consequentiam ou ad terrorem que por si só não convence – como para qualquer outro, importando sublinhar que, se o substituto não recuperar o que pagou, a situação resultará de uma omissão a ele imputável, porque se a retenção tivesse sido feita conforme a lei, tal não aconteceria, não existindo sequer a necessidade do direito de regresso. Aliás, o instituto da substituição pode implicar legalmente, no caso de impossibilidade de exercício do direito de regresso, a não existência de capacidade contributiva por parte de quem vem a suportar definitivamente a tributação. Daí que a invocação dos artigos 104.º n.º 2 CRP (?) e 5.º n.º 2 LGT não seja procedente, dado a situação, sendo patológica, ter sido criada por quem sofre as consequências do seu procedimento. Também o disposto no artigo 21.º da CIRS, conjugado com a remissão para o artigo 103.º do mesmo Código, não prejudica o que tem vindo a ser referido –eles regulam unicamente as posições face ao sujeito ativo e não as relações do substituto perante o substituído. Entender-se de outro modo e considerando todo o escrito, repete-se, tornaria inaplicável o instituto da substituição não só aos casos de aplicação do artigo 38.º, n.º 2 mas também em geral. Por último, a invocada impossibilidade da retenção, antes de ser declarada a aplicação da cláusula geral antiabuso. Também aqui a decisão não merece concordância porque trata a situação como se fosse insuscetível de lhe ser aplicável o regime da cláusula antiabuso. Ao invés, se a situação for a ela subsumida, a conclusão terá de ser contrária. O regime legal do artigo 38.º n.º 2 é claro: a tributação efetua-se “ de acordo com as normas aplicáveis na sua [dos meios artificiosos ou fraudulentos] ausência “ e isto significa que, nesse caso, deveria existir retenção aquando da colocação do rendimento á disposição e se é só possível em momento posterior ao disposto legalmente, tal resulta de facto imputável ao substituto, aplicando-se o regime da falta ou atraso no cumprimento. Dizer-se que a retenção seria impossível antes de saber que a cláusula em causa seria aplicável é esquecer o que deveria ter ocorrido se não tivesse sido praticado o abuso. Não se trata de uma atuação conforme a lei, trata-se de algo que não deveria ter sido praticado, de um abuso. E o raciocínio e o tratamento não podem ser idênticos para casos de abuso e não abuso. Não há, pois, retroatividade, é como se a situação não tivesse ocorrido e ab initio tudo tivesse sido conforme com o que a lei dispõe. Aspeto fundamental neste tipo de casos é as pessoas envolvidas terem desde o início conhecimento pleno – não sendo apenas razoavelmente conhecedoras – do carácter oculto da distribuição de rendimentos, da verdadeira natureza dos rendimentos que foram disponibilizados, não sendo, a fortiori, invocável a ignorância. É claro – repete-se – que o escrito aplica-se se à atuação tiver sido aplicada a disposição antiabuso. Deste modo, com a posição sustentada no acórdão, não se atende nem ao disposto no citado artigo 38.º n.º 2 nem ao instituto da substituição, aos seus fundamentos e regime, impossibilitando-se a aplicação da cláusula geral antiabuso a um caso em que, sendo a minha opinião, atenta designadamente a visão holística da atuação verificada, e na terminologia legal, houve utilização, pelo menos, de meios artificiosos “ e com abuso das formas jurídicas “ na prática “ de atos e negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos (…) à eliminação (…) de imposto(s) que seria(m) devido(s) em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico“.

[42] Note-se que o Tribunal arbitral cuja fundamentação decisória, neste particular, seguimos de perto, "não desconhece que, em recentes acórdãos proferidos no CAAD sobre esta matéria, tem sido adotada orientação diferente", como ocorre, por exemplo, com o acórdão proferido no proc. n.º 379/2014-T., a partir da ideia de que a entidade retentora não usufrui qualquer vantagem antes procede à crítica dos seus fundamentos, para a qual, por economia de texto, remetemos. A crítica desse pressuposto é, no acórdão 377/2014, de 22.05.2015, formulada nos seguintes termos, a que aderimos: "Desde logo, em termos literais, importa ter em conta que a redação do art. 38.º, n.º 2 da LGT autonomiza duas fenomenologias, quer a nível de hipótese quer a nível de estatuição: i) por um lado, os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efetuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e ii) os atos ou negócios jurídicos dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização de meios, relativamente aos quais cabe não se produzirem as vantagens fiscais referidas. Como elucida, em termos que aqui inteiramente se acompanham, SALDANHA SANCHES [(2006), Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, pp. 172-173] sobre as duas manifestações principais da fraude à lei em matéria fiscal: “[n]uma primeira manifestação, a escolha de um negócio jurídico ou mesmo de factos ou atos jurídicos fiscalmente relevantes, como forma jurídica de atingir um certo objetivo com menor oneração jurídica [rectius, fiscal] implica a opção por determinado caminhos para a obtenção de certos objetivos finais numa lógica alternativa: seguiu-se o caminho B em lugar do caminho A, para atingir o mesmo objetivo, X”; “[n]a outra das suas principais manifestações, podemos ter um conjunto de operações em que não há alternatividade (a escolha alternativa seria a ausência de negócio jurídico), o que acontece quando, por exemplo, se faz operações com o único objetivo de obter um custo dedutível para a redução do lucro tributável”. Pois bem, explica então este Autor que: “Na previsão normativa do n.º 2 do art. 38.º da LGT essas duas vias estão claramente prefiguradas”, pois a “primeira encontra-se prevista na lei quando esta contrapõe o negócio jurídico artificioso, com a sua desoneração fiscal, e “os factos, atos ou negócios jurídico de idêntico fim económico” (a via normal foi preterida por mera razões fiscais)” e a segunda “encontra-se igualmente prevista na lei quando esta refere “a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, concluindo, então, que: “Se, no primeiro caso, a consequência é “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, no segundo temos uma consequência de mera anulação de efeitos, “não se produzindo as vantagens fiscais referidas”, aquelas que se procura alcançar por meio dos negócios jurídicos artificiosos, sendo que o carácter artificial da segunda parte, marcado pela construção deliberada do efeito, é geralmente constituído por uma perda dedutível do lucro tributável”. Nestes termos, uma leitura da referência a “vantagens fiscais” como a chave exclusiva de aplicação da CGAA entende-se, com a devida vénia, constituir uma sobre-interpretação de um vocábulo que possui um sentido bem preciso e delimitado no âmbito da estrutura do n.º 2 do art. 38.º da LGT. Nos termos de uma interpretação contextual do próprio n.º 2 do art. 38.º da LGT, a obtenção de “vantagens fiscais” é apenas um dos momentos constituintes da aplicabilidade da norma antiabuso, como definido pela sua hipótese legal, com a correspondente produção das consequências jurídicas pertinentes. Ora, precisamente, no caso dos autos, do que se trata é antes da dimensão normativa objeto do n.º 2 do art. 38.º da LGT atinente aos atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico relativamente aos quais cabe efetuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência – precisamente, como se viu (...), na situação sub judice, tais normas são constituídas pela disciplina de tributação de dividendos por retenção na fonte com natureza definitiva e liberatória (art. 5.º, n.º 2, al. h) e 71.º, n.º 1, al. c) do CIRS), em que o cumprimento da obrigação de imposto cabe exclusivamente ao substituto. Depois, também não se julga pertinente o argumento de que, por força desta repercussão sobre o substituto das consequências advenientes da CGAA, este vai suportar o ónus do encargo do imposto correspondente às vantagens patrimoniais obtidas que permanecem na titularidade intacta dos acionistas. É que, como acima se antecipou (n.º 37), a substituição tributaria envolve, por natureza, quando o substituto tenha omitido a retenção na fonte definitiva que era devida, o exercício de um direito de regresso, o qual se destina a assegurar precisamente que o encargo final atinente ao imposto vai incidir sobre os titulares da capacidade contributiva, no caso os acionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais que foram reconfigurados como dividendos. Por fim, não podemos ainda deixar de aditar, recorrendo a uma perspetiva sinépica, de “ponderação das consequências da decisão”, que o entendimento em referência, numa conjuntura como a que se encontra em causa, pode ter como consequência, sempre ressalvado o devido respeito, da pura e simples inviabilidade da aplicação da CGAA nos casos em que, como este, o esquema abusivo visa evitar a tributação dos rendimentos de dividendos que é efetuada por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória prevista no art. 71.º n.º 1, alínea c) do CIRS. É que, caso a AT dirigisse a liquidação contra os acionistas beneficiários dos acréscimos patrimoniais em causa, estes poderiam natural e fundadamente sustentar a ilegalidade dessa liquidação mediante a invocação de que não foi respeitada a determinação, constante do n.º 2 do art. 38.º da LGT, de que a tributação se deve efetuar de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, a qual exige a tributação por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória quando os contribuintes não optem pelo englobamento dos rendimentos em causa. Implicando, assim, uma consequência paradoxal, inviabilizadora da aplicação, em qualquer caso, da CGAA, entende-se aqui não se poder subscrever a indicada posição.

 

[43] Sem prejuízo de poder haver substituição tributária sem retenção na fonte.

[44] CAMPOS, RORIGUES & SOUSA (2012), Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4ª ed., Encontro da Escrita, p. 204-205.

[45] Ibidem, p. 209.

[46] MORAIS, R. D. (2014), Sobre o IRS, 3.ª ed. Coimbra: Almedina, p. 192.

[47] CAMPOS et al., ob.cit., p. 209.

[48] LEITÃO, J. M. (1997), "A substituição e a responsabilidade fiscal no direito português", CTF n.º 388, p. 136-137.

[49]Cf. CAMPOS, Diogo L, RODRIGUES, Benjamim S. e SOUSA, Jorge L. de (2012), Lei Geral Tributária Anotada, 4ª ed., Áreas Editora, p. 284.

[50] Ob. cit. , pp. 284-285.

[51]  Ob. cit., p. 170. O elemento objetivo pressupõe naturalmente que estejamos perante um imposto devido.

[52] O que é irrelevante para a presente decisão, na medida em que o que está em causa é a tributação em IRS dos sócios, pessoas físicas, muito embora as liquidações impugnadas tenham sido processadas em nome da requerente, enquanto substituto fiscal destes. Ora, a tributação dos rendimentos de capitais obtidos por sócios residentes (vg. dividendos) é a mesma, quer tais rendimentos sejam pagos por entidades sedeadas em Portugal ou por entidades sedeadas em outros países, nomeadamente os que integram a U.E..

[53] Sendo que, por aplicação do regime dos preços de transferência, a tributação dos sócios incidiria apenas sobre o “excesso de preço” e não sobre todo o valor recebido a título de preço, diferentemente do resulta do entendimento sufragado pela AT. Ou seja, o valor das liquidações impugnadas resulta, manifestamente, excessivo.