Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 312/2017-T
Data da decisão: 2018-01-16  IVA  
Valor do pedido: € 440.257,34
Tema: IVA - Sujeitos passivos mistos – Instituição Bancária. Determinação do pro rata de dedução do IVA de bens e serviços adquiridos e de utilização mista.
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros Maria Fernanda dos Santos Maçãs (árbitro presidente), Henrique Nogueira Nunes e Luís Miguel Rodrigues Miranda da Rocha, acordam o seguinte: 

 

I. Relatório

 

1. A..., S.A. (NIF/NIPC..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa (“Requerente” ou “A...”), veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar, em 02-05-2017, pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos tributários consubstanciados nas declarações periódicas de IVA respeitantes aos períodos de 10/2015, 11/2015 e 12/2015, e, bem assim, sobre a legalidade da decisão de indeferimento do recurso hierárquico («Procedimento de Recurso Hierárquico n.º ...2016...»), que veio concluir no sentido de manter o acto de indeferimento da reclamação graciosa («Procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2016...»).

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 16-05-2017.

 

2.1. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

2.2. Em 29-06-2017 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

2.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 20-07-2017.

 

2.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

3. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente, que juntou um parecer dos Professores Xavier de Basto e António Martins, alega, em síntese, o seguinte:

  1. As suas autoliquidações de IVA relativas ao quarto trimestre de 2015 (Períodos 2015/10, 2015/11 e 2015/12) tiveram por base o disposto no Ofício-Circulado n.º 30108 de 30.01.2009, que trata do direito à dedução do IVA de bens e serviços de utilização mista por parte dos sujeitos passivos que desenvolvem simultaneamente actividades sujeitas (locação financeira) e isentas (concessão de crédito) desse imposto. No referido Ofício-Circulado n.º 30108, a AT considera que, no cálculo da percentagem de dedução (pro rata) aplicável a bens e serviços adquiridos e de utilização mista, apenas pode ser incluída a componente dos juros e não a amortização financeira que integra o valor total das rendas nos contratos de locação financeira e de ALD celebrados pela Requerente.
  2. Os referidos actos tributários padecem de vícios consubstanciados numa errada aplicação do regime legal do direito à dedução do IVA dos sujeitos passivos mistos, estatuído no artigo 23.º do Código do IVA.
  3. Ao invés do que resulta das decisões de indeferimento da Reclamação Graciosa e do Recurso Hierárquico e conforme decorre do Acórdão do TJUE proferido no “Caso Banco Mais”, o artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA não constitui a transposição, para o ordenamento jurídico interno, do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, da Sexta Directiva.
  4. Nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA, é toda a renda recebida (ou seja, capital e juros) que constitui o valor tributável da locação financeira, pelo que não é admissível “distinguir onde a lei não distingue”, aquando da dedução de IVA relativamente a bens e serviços que são comprovadamente de utilização mista.
  5. Do Acórdão do TJUE proferido no “Caso Banco Mais” não resulta que a AT, em circunstâncias como o caso em apreço e em conformidade com o Ofício-Circulado n.º 30108, se encontra habilitada a aplicar ou a impor a aplicação à ora Requerente de um coeficiente de dedução diferente do que resulta da aplicação do método do pro rata, de acordo com o previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. No mencionado Acórdão do TJUE é somente referido que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva não se opõe a que um Estado-Membro possa obrigar um sujeito passivo a aplicar outro método de dedução que se repute mais ajustado, embora seja forçoso reconhecer-se que não foi correctamente apurado que esta norma não tem idêntica ou similar correspondência no Código do IVA.
  6. Não é verdade que a disposição constante do n.º 2 do art.º 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) reproduza, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, dessa Directiva.
  7. Não se descortina, no art.º 23.º do Código do IVA, a menção ou a consagração do poder de a AT, perante um sujeito passivo que opta pelo método do pro rata, lhe impor condições à percentagem de dedução. Isto é, para lá das instruções precisas fornecidas pelo n.º 4 do art.º 23.º – e que são objectivas na determinação daquela percentagem –, o legislador não habilitou a Autoridade Tributária a contrariar a percentagem de dedução tal como resulta do n.º 4, pelo que não estando nesta sede em causa que a Sexta Directiva preveja a possibilidade de os Estados-membros poderem impor a um sujeito passivo misto a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços (ou seja, que as Autoridades Tributárias possam inclusivamente moldar o cálculo do pro rata) a verdade é que não foi essa a opção seguida pelo legislador nacional no Código do IVA.
  8. É verdade que a Sexta Directiva no art.º 17.º (n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c)), quando se referia ao pro rata abriu a porta aos Estados-membros para que autorizassem ou obrigassem o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços. Sucede, todavia, que o legislador nacional preferiu não abrir essa porta, nada consagrando no sentido de conferir à sua Autoridade Tributária poderes com esse conteúdo.
  9. A mera verificação e confronto do que consta literalmente dos artigos em causa na Sexta Directiva do IVA e no Código do IVA permite constatar que a opção do legislador nacional não foi a de conceder à AT – como eventualmente poderia tê-lo feito – a possibilidade de alterar as componentes de cálculo do pro rata no caso concreto.
  10. Os actos tributários em escrutínio deverão ser revogados, e isto porquanto a AT não se encontraria habilitada a aplicar ou a impor a aplicação à Requerente de um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, sob pena de violação do disposto nos artigos 19.º, 20.º e 23.º do Código do IVA e dos princípios que caracterizam o IVA (o princípio da neutralidade fiscal, o princípio da igualdade de tratamento entre sujeitos passivos, o princípio da segurança jurídica e o princípio da protecção da confiança legítima dos sujeitos passivos), assim como dos princípios constitucionais da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º), da legalidade (artigo 112., n.º 5) e da reserva de lei (artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea i), todos da Constituição da República Portuguesa.

 

A Requerente termina pedindo a anulação dos actos tributários de liquidação em causa, com todas as consequências legais, nomeadamente o da restituição à requerente da quantia de € 440.257,34 referente ao IVA não deduzido, acrescida dos juros legais contados desde a data da apresentação das respectivas declarações periódicas relativas aos períodos de 10/2015, 11/2015 e 12/2015, ou seja, dos dias 30.11.2015, 10.12.2015 e 05.02.2016, respectivamente, até à data da efectiva restituição.

 

4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (“doravante abreviadamente designada por “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta e juntou, já no decorrer do prazo para alegações, o processo instrutor, invocando, em síntese, o seguinte:

  1. Relativamente às actividades de locação financeira os diversos operadores económicos concluíram não ser possível a adopção do método de afectação real de acordo com critérios objectivos atenta a natureza da referida actividade. Nessa circunstância, foi proferido o Ofício-Circulado n.º 30108/2009, amplamente citado nas informações constantes do processo instrutor e que suportam as decisões de indeferimento a que se reportam os presentes autos, no sentido de clarificar o apuramento de um método o mais preciso possível, na ausência dos critérios objectivos impostos pelo método de afectação real, para todos os operadores económicos da referida actividade.
  2. A redacção do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA não impede que o critério objectivo seja determinado de acordo com a percentagem de dedução afecta a todos os recursos da Requerente, mas este critério tem de reflectir tão só o montante dos proveitos provenientes da sua actividade tributada (os juros) sob pena de se subverter a neutralidade que preside a todo o sistema que consagra o direito à dedução. Assim, o procedimento adoptado pela Requerente aquando das autoliquidações de imposto foi o correcto. Esta metodologia não é contrária ao direito comunitário tendo, ainda, sustentação em diversa jurisprudência do TJUE.
  3. Tendo em conta as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 10 de Julho de 2014 (“Acórdão Banco Mais”) e do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 29 de Outubro de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 01075/13, 2.ª Secção), não tem a menor razão a Requerente relativamente às considerações que tece no articulado do seu pedido arbitral, no que concerne à determinação do pro rata de dedução, em causa nos presentes autos, bem como ao conceito de volume de negócios que, a este propósito, pretende aplicar e aos considerandos que faz ou não faz sobre a matéria em questão.
  4. À luz de uma sã concorrência entre os vários agentes económicos no espaço da União Europeia e na defesa do princípio da neutralidade do IVA quanto à sua carga fiscal, o indeferimento do pedido relativamente ao imposto supostamente autoliquidado a mais não está ferido de qualquer ilegalidade, como pretende fazer valer a Requerente.
  5. O Tribunal de Justiça da União Europeia é o garante da interpretação e aplicação uniforme do direito da União no território de todos os Estados-Membros, o que se concretiza através das decisões proferidas no âmbito dos processos de reenvio, ao abrigo do artigo 267.º do TJUE, como é o caso do Acórdão citado. Assim, também esta jurisdição arbitral está vinculada à interpretação efectuada pelo Tribunal relativamente ao artigo 17.º, n.º 5 da Sexta Directiva IVA (actual artigo 173.º, n.º 2 da Directiva n.º 2006/112 CE), em causa nos presentes autos, já que o artigo 23.º do Código do IVA procedeu à sua transposição para o nosso direito interno. Acresce que aquela interpretação não deixa qualquer margem para dúvidas pelo que o cálculo do pro rata que a ora Requerente aplicou nos períodos em questão estava correctamente efectuado, não padecendo as autoliquidações que pretende corrigir de qualquer tipo de erro.
  6. A interpretação propugnada pela Requerida ofende, sem qualquer margem para dúvidas, o princípio da neutralidade do imposto e, mais do que esse o princípio, o da sã concorrência no espaço da União Europeia, verdadeiro motor de toda a harmonização indirecta e da consequente obrigatoriedade de introdução do IVA por todos os Estados-Membros. Além do mais, o princípio da neutralidade através do qual se “concretiza a igualdade das empresas perante a tributação do consumo” seria, igualmente, postergado a valer a tese defendida pela ora Requerente. Por assim ser, a interpretação da Requerida é a que melhor materializa o princípio da neutralidade e o princípio da igualdade de tratamento a que o “Acórdão Banco Mais” dá corpo, numa situação similar à dos presentes autos, e de um concorrente da Requerente. Logo, o cálculo inicial do pro rata efectuado pela Requerente, de acordo com a interpretação veiculada pela Requerida, não merece qualquer censura.
  7. Os actos de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico subsequente não padecem de qualquer ilegalidade porquanto, no que à actividade de leasing e ALD diz respeito, a parte relativa à amortização de capital incluída nas rendas não pode fazer parte dos termos da fracção do pro rata de dedução.

 

A Autoridade Tributária conclui pedindo que seja julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos com as legais consequências.

 

5. Não tendo sido invocadas excepções e não havendo matéria de facto controvertida, por as questões a decidir serem de direito (nisso convergindo ambas as partes), o Tribunal, por despacho de 5 de Outubro de 2017, considerou que não se justificava a audição de testemunhas e prescindiu da reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Foi também fixado o dia 20 de Janeiro de 2018 para a prolação da decisão arbitral.

 

6. Apenas a Requerente produziu alegações.

 

II. Saneamento

 

7. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

7.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

 

7.2. Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer, em seguida, do mérito do pedido.

 

III.      Questão a decidir

 

Na sua petição arbitral a Requerente formula a seguinte questão essencial para a qual requer a apreciação do Tribunal:

 

O critério de determinação do pro rata (desconsiderando no numerador as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados) em razão da posição vertida no ofício circulado n.º 30108, de 30/01/2009, da Autoridade Tributária e Aduaneira, designadamente o seu ponto 9., padece de ilegalidade, por configurar critério não previsto na lei?

 

 

IV. Mérito

 

IV.1. Matéria de facto

 

8. Factos provados

Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão–se como assentes e provados os seguintes factos:

 

  1. No dia 30 de Novembro de 2015, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Outubro de 2015.
  2. No dia 10 de Dezembro de 2015, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Novembro de 2015 – a qual veio a ser substituída pela declaração apresentada a 18 de Dezembro de 2015.
  3. No dia 5 de Fevereiro de 2016, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Dezembro 2015.
  4. Nas três declarações periódicas anteriormente mencionadas, foi deduzido IVA com base num pro rata provisório de 18%, correspondente ao pro rata definitivo apurado no exercício económico de 2014. No cálculo deste pro rata, excluiu-se, do numerador e do denominador da fracção, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.
  5. Na hipótese de não terem sido excluídos, do numerador e do denominador da fracção, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados, o pro rata provisório fixar-se-ia em 59%.
  6. O montante total (para os três períodos mensais de Outubro, Novembro e Dezembro de 2015) de IVA a deduzir utilizando o pro rata de 18% era de € 180.439,62; o montante total de IVA a deduzir utilizando o pro rata de 59% era de € 591.440,96. A diferença entre estes dois valores, que se cifra em € 411.001,35, é a primeira parcela que compõe o valor reclamado pela Requerente (documento 5, anexo ao “Pedido de Pronúncia Arbitral”).
  7. Na declaração periódica de IVA relativa a Dezembro de 2015, por se tratar da última declaração desse ano, a Requerente corrigiu os valores deduzidos ao longo do ano por força da aplicação do pro rata definitivo para 2015, o qual passou de 18% para 14%. Esta correcção deu lugar a um acerto a favor do Estado de € 117.023,96 (documento 5, anexo ao “Pedido de Pronúncia Arbitral”).
  8. Na hipótese de não terem sido excluídos, do numerador e do denominador da fracção, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação ou de abate por destruição de bens locados, o pro rata definitivo de 2015 fixar-se-ia em 56%, o que faria com que a correcção a favor do Estado (uma das parcelas a inserir no campo 41 da declaração periódica) fosse de € 87.767,97 (documento 5, anexo ao “Pedido de Pronúncia Arbitral”).
  9. A diferença entre os valores de € 117.023,96 e € 87.767,97 mencionados nas duas alíneas anteriores, no montante de € 29.255,99, constitui a segunda parcela que compõe o valor reclamado pela Requerente que, assim, totaliza € 440.257,34 (documento 5, anexo ao “Pedido de Pronúncia Arbitral”).
  10. Em 24 de Fevereiro de 2016, a Requerente apresentou “Procedimento de Reclamação Graciosa” (ao qual foi atribuído o n.º ...2016...), com referência às autoliquidações de IVA relativas aos períodos de Outubro, Novembro e Dezembro do ano de 2015) – Processo Administrativo, folhas 260 a 500.
  11. Em 20 de Junho de 2016, a AT proferiu decisão de indeferimento sobre o mencionado “Procedimento de Reclamação Graciosa”, notificada por correio registado, através do Ofício n.º... de 21 de Junho de 2016. – Processo Administrativo, folhas 839 a 860.
  12. Em 12 de Julho de 2016, a Requerente interpôs “Procedimento de Recurso Hierárquico” (ao qual foi atribuído o n.º ...2016...) da decisão de indeferimento do procedimento de reclamação graciosa anteriormente identificado – Processo Administrativo, folhas 32 a 84.
  13. Em 31 de Janeiro de 2017, a AT proferiu despacho de indeferimento sobre o mencionado “Procedimento de Recurso Hierárquico”, exarado na Informação n.º ... e notificado à Requerente por correio registado – Processo Administrativo, folhas 8 a 27.

 

8.1. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

8.2. Fundamentação da matéria de facto

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes, bem como na análise do processo administrativo anexado pela Requerida.

No que concerne ao valor do processo, a Requerida não questiona nos autos o valor determinado pela Requerente tal como esta o formulou no pedido de pronúncia arbitral.

 

III.2. Matéria de Direito

 

III.2.1. Abreviadamente: A Posição das Partes

 

A Requerente, nas liquidações impugnadas, aplicou a regra que consta do ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, sob o título: “IVA - Direito à dedução Regras para a determinação do direito à dedução pelas instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD.” - tendo no cálculo do pro rata de dedução relativo a bens de utilização mista excluído do numerador e do denominador da fracção das rendas de contratos de locação financeira as amortizações financeiras e os valores de alienação/abate por destruição dos bens locados, em razão de ter entendido não lhe ser possível aplicar, nos termos do ponto 8 do Ofício Circulado, o método da afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

 

Fê-lo, alega, compelido pelas instruções constantes desse Ofício Circulado, e considerando a posição da AT nas inspecções efectuadas em exercícios anteriores (entretanto transposta para o referido Ofício Circulado) e, bem assim, no fundado receio de a AT vir contestar o critério adoptado para a determinação do pro rata nas declarações de IVA.

 

A Requerente impugnou as liquidações por via de reclamação graciosa e, depois, por via de apresentação de recurso hierárquico, ambos indeferidos, defendendo, em síntese, o seguinte:

  • estando as operações de locação financeiras sujeitas a IVA pelo valor global das rendas, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA, não há fundamento para que o montante das amortizações financeiras e das indemnizações não incluam o volume de negócios para efeitos de determinação do pro rata;
  • considerando as disposições nacionais que transpuseram a Directiva de IVA para o ordenamento jurídico nacional (designadamente o Código do IVA), não é atribuída à AT, por via administrativa, qualquer prerrogativa destinada à alteração do modo de cálculo da percentagem de dedução do IVA autorizada para os bens de utilização mista, pois o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e denominador da fracção e os n.º 2 e 3 do artigo 23.º do CIVA apenas habilitam a AT a impor condições especiais no âmbito da dedução segundo a afectação real;
  • o Acórdão do TJUE proferido no caso - Banco Mais - não apura se a lei portuguesa (artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista e que o Código do IVA não dispõe de qualquer norma (incluindo n.º 2 do artigo 23.º) que corresponda ao artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva;
  • assim, sendo verdade que a Sexta Directiva permite que o legislador nacional autorizasse ou obrigasse o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços, a verdade é que o legislador nacional preferiu, todavia, não lançar mão dessa possibilidade;
  • pois não está previsto no artigo 23.º do CIVA a possibilidade legal, face ao texto da norma, de a AT, perante um sujeito passivo que opta pelo método do pro rata, lhe impor condições à percentagem de dedução, pelo que a jurisprudência contida no Acórdão do TJUE do caso Banco Mais não tem aplicação concreta no que respeita aos actos tributários em crise nos presentes autos;

 

A AT, na sua resposta, veio sustentar, em síntese, o seguinte:

  • considera que, in casu, não há qualquer erro na autoliquidação do imposto, que a Requerente pretende imputar-lhe;
  • diz que relativamente às actividades de locação financeira se conclui não ser possível a adopção do método de afectação real de acordo com critérios objectivos atenta a natureza desta actividade, razão pela qual foi proferido o referido Ofício Circulado, no sentido de clarificar o apuramento de um método mais preciso possível (nas suas palavras), considerando a ausência de critérios objectivos impostos pelo método de afectação real.

E que embora o n.º 2 do artigo 23º do CIVA não impeça que o critério objectivo seja determinado de acordo com a percentagem de dedução afecta a todos os recursos da Requerente, não é menos certo, diz, que este critério tinha de reflectir tão só o montante dos proveitos provenientes da sua actividade tributada (os juros) sob pena de se subverter a neutralidade que preside a todo o sistema que consagra o direito à dedução;

  • pelo que o procedimento adoptado pela Requerente aquando das autoliquidações de imposto foi o correcto;
  • o que sucedeu é que num momento posterior à submissão das declarações fiscais, a Requerente pretendeu abandonar aquele critério que utilizou relativamente ao exercício do direito à dedução do imposto suportado nos recursos de utilização mista, vindo a recalcular uma percentagem de dedução de 59%, utilizando o mesmo método do pro rata de dedução, mas incluindo o valor total da renda, sem expurgar a parte referente à amortização de capital;
  • e que instado a decidir em última instância litígio que opunha o Banco Mais à Fazenda Pública, veio o STA submeter ao TJUE a seguinte questão prejudicial:

Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?

  • na sequência do que aquele Tribunal decidiu que “nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel.”.

E que sobre a mesma matéria igualmente já se pronunciou o STA, por Acórdão de 29/10/2014, proferido no âmbito do processo nº 01075/13, 2ª Secção, onde expressamente se decidiu: “Os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros”.

  • conclui, dizendo que a jurisdição arbitral está vinculada à interpretação efectuada pelo TJUE, que é o garante da interpretação e aplicação uniforme do direito da EU no território de todos os Estados membros, relativamente ao artigo 17º, nº5 da Sexta Directiva IVA (actual artigo 173.º, n.º 2 da Directiva nº 2006/112 CE), em causa nos presentes autos, já que o artigo 23.º do Código do IVA, diz, procedeu à sua transposição para o nosso direito interno.

 

Vejamos, então.

 

III.2.2. Análise da questão controversa

 

A Directiva n.º 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, veio, para a matéria que interessa para os autos, prever no seu capítulo 2 o seguinte:

 

“CAPÍTULO 2

Pro rata de dedução

 

Artigo 173.o

1.   No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.o, 169.o e 170.o, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.

O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.o e 175.o, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo.

2.   Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:

a)

Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

 

b)

Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

 

c)

Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

 

d)

Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.o 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;

 

e)

Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respectivo montante for insignificante.”.

 

Negrito e sublinhados nossos.

 

Sendo que nos termos do seu artigo 174.º:

 

“Artigo 174.o

1.   O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes:

a

No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.o e 169.o;

 

b

No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

Os Estados–Membros podem incluir no denominador o montante das subvenções que não sejam as directamente ligadas ao preço das entregas de bens ou das prestações de serviços referidas no artigo 73.o.

 

Negrito e sublinhados nossos.

 

Por seu turno, o Código do IVA, no seu artigo 23.º, sob a epígrafe “Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista”, vem prever:

 

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

 

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

 

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

 

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

 

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

 

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

 

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

 

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

 

Negrito e sublinhado nossos.

 

A Requerente é uma instituição de crédito, desenvolvendo igualmente actividade de locação financeira, sendo um sujeito misto para efeitos de IVA, desenvolvendo operações sujeitas – designadamente as relativas à locação financeira mobiliária (leasing e ALD financeiro) – e operações isentas – nomeadamente a concessão de crédito.

 

Neste contexto procedeu de acordo com o previsto no Ofício Circulado n.º 30108.

 

Nos pontos 8 e 9 dessa instrução administrativa pode ler-se:

 

“8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.”.

 

Ou seja, de acordo com esta instrução administrativa, o método eleito para a dedução do IVA neste tipo de actividade é o método da afectação real, e não o método do pro rata de dedução, como resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, com base em “todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica.”.

 

No caso em apreço está em causa a dedução de IVA relativamente a bens utilizados indiferentemente tanto na actividade tributada (como é a locação financeira), como na actividade económica isenta da Requerente (como sucede com a concessão de crédito).

 

Como acima vimos na Directiva IVA - Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006 – a mesma postula que relativamente aos meios de utilização mista, utilizados indiferentemente «para efectuar tanto operações com direito à dedução (...) como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações» (artigo 173.º n.º1 desta Directiva).

 

Tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA «o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução», nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do mesmo Código.

 

Esta percentagem de imposto dedutível, também conhecido como método de «pro rata de dedução», resulta, em regra, de uma fracção que inclui no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução e no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução (artigo 174.º da Directiva IVA e artigo 23.º, n.º 4, do Código do IVA).

 

Não obstante este ser o método preferencial adoptado pelo legislador português, o sujeito passivo pode optar por «efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação» (n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA).

 

Aqui chegados importa referir que o método da afectação real é distinto do método da percentagem de dedução. A alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva IVA não define em que consiste esse método, mas ao percorremos esta alínea resulta, claramente, a sua distinção do método do pro rata. A este último método se referem as alíneas a) e b) do artigo 173.º da Directiva IVA, apenas para consentir aos Estados que autorizem o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores.

 

Está-se, assim, perante um método diferente do pro rata de dedução, embora a Directiva IVA não diga detalhadamente em que consiste esse método de afectação real, é claro que o separa do método da percentagem de dedução ou pro rata.

 

No caso em apreço, está-se perante uma situação em que não há controvérsia entre as Partes quanto à inviabilidade de utilização do método da afectação real, com base em critérios objectivos, tendo a Requerente utilizado nas liquidações impugnadas este «coeficiente de imputação específico» determinado da forma prevista no ponto 9 do referido Ofício Circulado, considerando no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD, excluindo do numerador e do denominador da fracção as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados, mas convencida de que o mesmo padece do vício de ilegalidade, por emanar de uma instrução administrativa que lhe impõe condições não previstas na lei, porquanto elegeu o método do pro rata de dedução, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, e não o método da afectação real, e no fundo é essa a questão que importa dirimir nos presentes autos arbitrais.

 

A AT, na sua resposta, alicerça a sua posição e a legalidade da referida instrução administrativa na jurisprudência do TJUE  - processo n.º C-183/13 (Banco Mais), proferido no âmbito de reenvio prejudicial - que, no seu entender, já se pronunciou sobre uma situação deste tipo, atinente a uma instituição bancária que desenvolvia actividades de locação financeira, que conferem direito à dedução, e outras actividades financeiras, que não conferem tal direito, alegando que com base neste aresto o TJUE considerou que os Estados Membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e serviços e que para o cálculo dessa dedução apenas devem ser tidos em conta os juros, quando a utilização dos bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão de contratos, aspecto, este, diga-se, que a AT em momento algum concretiza ou prova como correspondendo à situação da Requerente.

 

Prosseguindo.

 

A Requerente optou por eleger o método do pro rata da dedução como sendo, no seu entendimento, o que mais grau de fiabilidade apresentava, não encontrando razões legais válidas para justificar a exclusão das componentes acima referidas do seu cálculo, e mais alegando, igualmente que a jurisprudência do Acórdão (Banco Mais) não coloca em causa essa mesma conclusão, pois no seu entender, suportado com um Parecer junto aos autos, do texto do artigo 23.º do Código do IVA, se pode (e deve) constatar que (ao contrário do que o TJUE veio a dar como certo, apenas e só com base no que o Representante do Estado Português alegou no processo) não corresponder o mesmo à mera transposição da Directiva do IVA, não estando prevista na legislação nacional a possibilidade – conferida pela Directiva, como veio o TJUE a esclarecer, e que, naturalmente, já não se questiona – de os Estados Membros poderem mitigar o pro rata, porquanto essa opção não foi seguida pelo Estado Português, e, por outro lado, a imposição de condições à dedução apenas se encontra prevista na legislação nacional no contexto do método da afectação real, quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas e quando a aplicação do método do pro rata conduza a distorções significativas na tributação.

 

Efectivamente, entende o Tribunal que a Requerente tem razão, porquanto o artigo 23.º do Código do IVA não confere poder à AT de impor a um sujeito passivo que opte pelo método do pro rata, condições acrescidas à verificação da percentagem de dedução, para além do comando normativo imposto pelo n.º 4 do art.º 23.º do Código do IVA, disposição, essa, que contem requisitos objectivos a observar na determinação daquela percentagem, nem se pode concluir pela atenta leitura do aresto do TJUE proferido no caso - Banco Mais - de que Portugal terá transposto para a legislação nacional a possibilidade de obrigar um sujeito passivo, de tipo instituição financeira, quando exerça também actividades de locação financeira, a estabelecer um único pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, considerando no numerador e no denominador da fracção apenas a parte da renda que corresponde aos juros, pois essa não foi a opção do legislador português.

 

Pelo que tem razão a Requerente quando refere que, in casu, ocorre erro de interpretação do direito interno português que afecta a decisão do TJUE, verificando-se, como diz, “uma premissa factual manifestamente errada”.

 

Diga-se que o aresto proferido pelo douto Acórdão do STA no processo n.º 01075/13, 2.ª Secção, invocado pela Requerida na sua Resposta, o qual analisou a referida decisão do TJUE, não permite concluir pela sua oposição à presente decisão arbitral, porquanto no mesmo pode-se ler citando:

 

“Efectivamente, não desconhecendo o TJUE o disposto no artigo 23º do CIVA, porque o cita expressamente, e que foi com base na interpretação que o Tribunal Nacional fez daquele artigo 23º, n.º 4, para julgar procedente a impugnação, identificou a questão a decidir como a de saber se um Estado-Membro pode obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros.”. 

 

Negrito e sublinhados nossos.

 

Dúvida não há de que um Estado-Membro pode obrigar um sujeito passivo misto, do tipo de um Banco ou instituição financeira, a proceder como o acima afirmado pelo TJUE, mas um Estado-Membro (in casu o Português) só o pode fazer por via legislativa, porquanto a isso obriga o primado do Estado de Direito, e não por via de um entendimento administrativo unilateralmente imposto pela Administração Tributaria, e essa análise o referido aresto do STA não cuidou, pelo que não se pode sequer falar da existência de contradição entre este douto aresto e a presente decisão arbitral sobre a mesma questão fundamental de direito em apreciação nos presentes autos arbitrais. 

 

Sem prejuízo de as decisões proferidas pelo TJUE em reenvio prejudicial serem vinculativas para os Tribunais nacionais, importa realçar que, nos termos do artigo 267.º do TFUE, a competência do TJUE em sede de reenvio prejudicial, se limita à “interpretação dos Tratados”, e à “validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”. O que significa que aquela competência não se estende à interpretação do artigo 23.º do CIVA, na parte em que consubstancia opções do legislador nacional em matérias explicitamente deixadas ao seu critério discricionário pela Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006.

 

Também não pode deixar de ser sublinhado que a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º daquela Directiva não é uma disposição normativa de aplicação directa, uma vez que é dirigida aos “Estados-membros”, com vista a “autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a adequação com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços.” 

 

Ora, sendo tal opção dirigida ao legislador, em homenagem aos princípios da legalidade e da reserva de lei a concretização daquela norma facultativa da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, só pode ser legitimamente efectivada por via legislativa.    

 

Em suma e concluindo:

 

Os dois únicos métodos de dedução previstos para os bens de utilização mista afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica previstos no artigo 23.º do Código do IVA são a:

  • a aplicação de uma «percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução» (n.º 1 alínea b) do artigo 23.º do Código do IVA com remissão para o n.º 4;
  • «a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito» (n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA).

 

Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 23.º, quando a aplicação do método previsto no n.º 1 (que para os afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica é a percentagem de dedução, como refere a alínea b) do n. º 1) «conduza a distorções significativas na tributação», a AT pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no n.º 2.

 

 E compulsado este n.º 2, o mesmo apenas prevê a «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito».

 

            É manifesto que a aplicação de uma percentagem, qualquer que ela seja, como faz a Requerida, no caso em apreço, não permite «determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução» e, por isso, não pode constituir um critério objectivo para efeitos de aplicação do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA.

 

Pelo que a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no n.º 4 do artigo 23 do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é um Ofício-circulado, que não é mais que uma instrução interna que apenas obriga os serviços, mas que não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.

 

Donde, conclui-se de que o método da percentagem de dedução só pode ser utilizado nas situações em que está previsto directamente, in casu, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, do Código do IVA, e este método é o que consta do n.º 4 do mesmo artigo e mais nenhum.

 

Não se desconhece a possibilidade conferida pelo artigo 173.º, n.º 2, c) da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, aos seus Estados Membros de «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», mas tal possibilidade não foi transposta para o Código do IVA nacional, i.e., a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do mesmo código.

 

E, não tendo essa possibilidade sido acolhida por via legislativa, não a pode aplicar a AT, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT).

 

Decorre de tudo o supra exposto que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, procedendo, assim, o pedido de pronúncia arbitral.

 

Consequentemente, as liquidações impugnadas enfermam de vício de violação de lei, por errada aplicação do método de cálculo do pro rata de dedução, o que justifica a sua anulação, e, bem assim, da decisão de indeferimento que foi proferida no recurso hierárquico que as manteve.

 

 

III.2.3. Do pedido de juros indemnizatórios

 

A Requerente vem pedir o reembolso da quantia paga ao abrigo do acto de liquidação em crise nos autos, acrescido de juros indemnizatórios pelo pagamento indevido deste montante.

 

No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, pelas razões que melhor se expenderam nesta decisão, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro nos autos que a ilegalidade dos actos de liquidação de imposto impugnados é directamente imputável à Requerida.

 

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado pelo artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

Negrito e sublinhado nosso

 

O erro das liquidações é imputável à AT, nos termos previstos no n.º 2 deste artigo, pois foram seguidas pela Requerente as orientações administrativas emitidas pela Requerida, constante do Ofício Circulado n.º 30108.

 

Consequentemente a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

 

Os juros indemnizatórios deverão ser pagos à Requerente desde data em que efectuou o respectivo pagamento do imposto em causa nos autos até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.

 

 

IV. Decisão

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, e, consequentemente, anular as liquidações de IVA efectuadas nas declarações periódicas respeitantes aos períodos de 10/2015, 11/2015 e 12/2015, respectivamente submetidas nos dias 30.11.2015, 10.12.2015 e 05.02.2016, bem como a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, a qual tramitou sob o n.º ...2016... .
  2. Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente da quantia de € 440.257,34, acrescida de juros indemnizatórios calculados sobre cada pagamento indevido desde a data em que foi efectuado até ao respectivo reembolso.

 

 

V. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 440.257,34.

 

 

VI. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7.038,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 16 de Janeiro de 2018

 

Os árbitros,

 

 

Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Presidente)

 

 

 

Henrique Nogueira Nunes

 

 

 

Luís Miguel Rodrigues Miranda da Rocha

 

 

***

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.