Decisão Arbitral
I. - RELATÓRIO
A - PARTES
A sociedade A…, designada por “Requerente”, com sede no …, com o número de pessoa colectiva …., impugnante no procedimento tributário acima e à margem referenciado, veio, invocando o disposto no art.º 10.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), nos artigos 132.º e 99.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e nos nºs 1 e 2 alínea d) do art.º 95.º da Lei Geral Tributária (LGT), requerer a constituição de tribunal arbitral singular, tendo em vista a apreciação da seguinte demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, a seguir designada por “Requerida” ou “AT”.
B - PEDIDO
1 - O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 30/01/2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) na mesma data.
2 - Nos termos do disposto no nº 1 do art.º 6.º e na alínea a) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, o Conselho Deontológico designou, em 30/01/2014, como árbitro singular António Manuel Correia Valente, que comunicou a aceitação do encargo.
3 - Em 30-01-2014 foram as Partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no art.º 11.º, nº 1, alínea b) do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.
4 - Nestas circunstâncias, em conformidade com o disposto na alínea c) do nº 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 18/02/2014.
5 - No dia 09 de Maio de 2014 realizou-se, com as Partes, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, da qual foi lavrada acta que se encontra junto aos autos, tendo, por um lado, no quadro das correcções/aperfeiçoamentos das peças processuais, ficado estabelecida a necessidade da Requerente apresentar uma certidão descritiva dos documentos relativos ao processo de cancelamento da matrícula respeitante ao veículo ..., agendando-se, por outro lado, uma reunião, para o dia 27 de Maio de 2014, destinada à audição das testemunhas indicadas pela Requerente e à produção de alegações orais.
6 - Na reunião realizada no dia 27 de Maio de 2014, da qual foi lavrada acta, que se encontra junto aos autos, foram ouvidas as testemunhas indicadas pela Requerente e foi decidida a junção aos autos da certidão atrás mencionada, emitida 13-05-2014, pela da Direcção Regional de Mobilidade e Transportes do Norte - Delegação Distrital de Viação de Vila Real, do IMTT, destinada a concretizar as correcções suscitadas na reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, correcções essas que, pela natureza das coisas, não poderiam, naturalmente, ser processadas na altura da dita reunião, tendo, também, sido, concedido à Requerente, um prazo de 5 dias para esclarecer a não coincidência entre o número do processo de cancelamento da matrícula do veículo em causa, constante na PI e o número indicado na mencionada certidão.
7 - A ora Requerente pretende que o presente Tribunal Arbitral:
a) - Declare a ilegalidade e consequente anulação, quer dos actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por IUC), referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitante ao veículo pesado de mercadorias, marca volvo, com a matrícula …, quer dos actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados, respeitante à quantia de €2.117,26, cuja desagregação é a seguinte:
- IUC: €1887,00 (mil oitocentos e oitenta e sete euros);
- JC: € 230,26 (duzentos e trinta euros e vinte e seis cêntimos);
b) - Condene a Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento das custas do presente processo.
C - CAUSA DE PEDIR
8 - A Requerente, na fundamentação do seu pedido de pronúncia arbitral, afirma, em resumo, o seguinte:
9 - Que adquiriu, em 25-06-1992, o veículo pesado de mercadorias, marca volvo, com a matrícula ... à sociedade importadora B…, tendo procedido ao registo do referido veículo.
10 - Que o preço do veículo em questão foi integralmente pago.
11 - Que, em 31/12/2003, vendeu o mencionado veículo, de matrícula ..., à sociedade C..., tal como consta da correspondente factura.
12 - Que, desde então, ou seja, desde finais do ano 2003, deixou de estar na posse do veículo em causa, não sendo, consequentemente, responsável pela sua circulação na via pública, desconhecendo mesmo, em absoluto, o actual paradeiro de tal veículo.
13 - Que, desde o ano de 2006, não foi realizada a inspecção periódica obrigatória do veículo, pelo que, face ao disposto no nº 2 do art.º 3.º do Decreto - Lei nº 78/2008, de 6 de Maio, para efeitos de cancelamento de matrícula, se deverá presumir a sua destruição ou desmantelamento.
14 - Que, em 16/01/2013, solicitou, junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP (de ora em diante designado por IMTT), o cancelamento da matrícula com fundamento nos factos mencionados nas alíneas anteriores, factos que, em sede de audição prévia, foram, em 23/09/2013, dados a conhecer à AT, sem que, todavia, a mesma, face à sua resposta de 30-09-2013, junto aos autos, como Doc. n.º 6, os tivesse considerado.
15 - Que o contrato de compra e venda do veículo em causa, efectuado em data anterior àquela a que o imposto respeita, corresponde a um contrato com eficácia real, pelo que o respectivo adquirente se tornou seu proprietário, por via da celebração do aludido contrato, independentemente do registo.
16 - Que o registo tem apenas por finalidade dar publicidade à situação jurídica do veículo, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.
17 - Que o Código do Imposto Único de Circulação (de ora em diante designado por CIUC), obedece ao princípio da equivalência, visando onerar os contribuintes, na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, apontando no sentido de que se tributem os utilizadores dos veículos e não quem figura no registo.
18 - Que não estão satisfeitos os requisitos de incidência subjectiva do imposto em causa previstos no art.º 3.º do CIUC, consagrando o nº 1, deste mesmo artigo, uma presunção legal ilidível, sendo certo que a AT não preenche os requisitos da noção de terceiros para efeitos de registo, não podendo prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda.
19 - Que os actos tributários de liquidação do Imposto Único de Circulação em causa, enfermam de erro sobre os pressupostos de facto, o que consubstancia um vício de violação de lei, por força do art.º 99.º, alínea a) do CPPT, susceptível de fundamentar a anulação de tais actos tributários.
20 - Que no sentido do mencionado entendimento tem decidido o Tribunal Arbitral Tributário, como decorre das decisões proferidas, designadamente, nos Processos nºs 14/2013 - T, 26/2013 - T e 27/2013 - T.
E - RESPOSTA DA REQUERIDA
21 - A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, (doravante designada por AT), apresentou, em 24/03/2014, Resposta e procedeu à junção de cópia do Processo Administrativo Tributário para efeitos do previsto, respectivamente, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).
22 - Na referida Resposta, a AT entende que os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, pronunciando-se pela improcedência do requerido e pela manutenção dos actos de liquidação questionados, defendendo, em suma, o seguinte:
23 - A interpretação que a Requerente faz do disposto no nº 1 do art.º 3º do CIUC é notoriamente errada, na medida em que incorre não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, seguindo ainda uma “interpretação que ignora o elemento teleológico de interpretação do regime consagrado em todo o CIUC”.
24 - O entendimento que aponta no sentido de que o legislador consagrou uma presunção no mencionado art.º 3.º do CIUC corresponderia, inequivocamente (a) efectuar uma interpretação contra legem, fazendo notar que,
25 - O legislador não usou a expressão “presume-se” como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”. (Cfr. nº 28. da Resposta)
26 - O CIUC alterou de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários, como tal, constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública.
27 - Bastará, pois, que se verifique o registo do veículo em nome de uma determinada pessoa para que a mesma corporize a posição de sujeito passivo da obrigação fiscal de IUC, posto que o referido imposto visa tributar o proprietário do automóvel, sendo que a propriedade é revelada através do seu registo, acrescentado ser neste sentido que,
28 - Aponta o “entendimento já adoptado pela Jurisprudência dos nossos tribunais”, transcrevendo, para tanto, parte da sentença do tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, proferida no Processo nº 210/13.OBEPNF.
29 - A interpretação veiculada pela Requerente é, ainda, para além do que já foi referido, desconforme com a Constituição, designadamente porque, entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário, que tem dignidade constitucional.
30 - Acrescenta, ainda, a Requerida, que o Doc. 4, junto aos autos pela Requerente, que integra o documento emitido pelo IMTT, revela que diversos documentos da viatura em causa, de matrícula ..., nomeadamente, o certificado de matrícula, o livrete e o título de registo de propriedade estavam, em 16-01-2013, na posse da Requerente, daí considerando,
31 - Não ser, de todo, possível ao suposto adquirente da mencionada viatura proceder ao registo da sua aquisição, nem tão-pouco apresentar-se em qualquer centro de inspecção automóvel, face à não disponibilidade de documentos necessários para o efeito.
32 - A Requerida, face a toda a argumentação que aduziu, considera ser evidente a conformidade legal dos actos objecto do presente pedido arbitral, falecendo, consequentemente, as pretensões formuladas pela Requerente.
F - QUESTÕES DECIDENDAS
33 - Cumpre, pois, apreciar e decidir.
34 - Face ao exposto, relativamente às posições das Partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as seguintes:
a) Se, a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção.
b) Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, particularmente para efeitos da incidência subjectiva deste imposto.
c) Se, na data da exigibilidade do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado, embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, o sujeito passivo do IUC, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nº. 1, do CIUC, é o anterior proprietário ou o novo proprietário.
G - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
35 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
36 - As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
37 - O processo não enferma de vícios que o invalidem.
38 - Tendo em conta o processo administrativo tributário, a prova documental junta aos autos, os depoimentos das testemunhas e as alegações produzidas, cumpre agora apresentar a matéria factual relevante para a compreensão da decisão, que se fixa nos seguintes termos.
II - FUNDAMENTAÇÃO
H - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
39 - Em matéria de facto relevante, dá o presente tribunal por assente os seguintes factos:
40 - A Requerente é uma sociedade por quotas, que tem como actividade a montagem de instalações eléctricas e actividade comercial ou industrial de equipamentos eléctricos e electro-mecânicos.
41 - A fim de satisfazer as suas actividades adquiriu, em 25-06-1992, um veículo pesado de mercadorias, marca volvo, com a matrícula ... à sociedade importadora B..., tendo procedido ao registo do referido veículo.
42 - A Requerente, em 31/12/2003, vendeu o mencionado veículo, de matrícula ..., à sociedade C..., tal como decorre da competente factura e resulta provado por via dos depoimentos das testemunhas inquiridas, embora o veículo tenha continuado registado em nome da Requerente.
43 - A Requerente, em 16/01/2013, solicitou, junto do IMTT, o cancelamento da matrícula do veículo em questão, com fundamento no facto de, desde o ano de 2006, não ter sido realizada a inspecção periódica obrigatória do veículo.
44 - Com data de 21-08-2013, a Requerente foi notificada, face à não liquidação e pagamento do IUC, referente ao veículo da Categoria C, com matrícula ... e respeitante aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, para o exercício de audição prévia.
45 - A Requerente, em 23-09-2013, exerceu o direito de audição prévia, dando a conhecer à AT que, em 31/12/2003, vendeu o veículo, de matrícula ..., à sociedade C...; que, desde finais do ano 2003, deixou de estar na posse do veículo; que, desde o ano de 2006, não foi realizada a inspecção periódica obrigatória, o que, nos termos do nº 2 do art.º 3.º do Decreto-lei nº 78/2008, de 6 de Maio, consubstancia uma presunção de destruição ou desmantelamento do veículo, para efeitos de cancelamento de matrícula.
46 - A Requerente, em 30-09-2013, foi notificada pela AT, não só da não-aceitação dos argumentos por ela aduzidos em sede de audição prévia, mas também de que iria ser emitida liquidação oficiosa.
47 - Em 26-10-2013, a AT praticou os actos de liquidação relativos ao veículo a que se refere a notificação para audição prévia atrás mencionada, relativamente aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, tendo notificado a ora Requerente para pagamento do IUC e dos correspondentes juros compensatórios. (Cfr. Doc. nº 4 do PA)
FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
48 - Os factos dados como provados estão baseados:
- Nos documentos existentes nos autos, indicados relativamente a cada um deles, na medida em que a sua falsidade não foi suscitada, e, ainda, nos depoimentos das testemunhas.
- As testemunhas mostraram ter conhecimento dos factos sobre que depuseram e não se verificou qualquer facto que justifique suspeitas sobre a sua isenção.
FACTOS NÃO PROVADOS
49 - Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do pedido foram provados.
I - FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO
50 - A matéria de facto está fixada, importando agora proceder à subsunção jurídica e determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas enunciadas no nº 34.
51 - A questão central que está em causa nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, consiste em saber se a norma de incidência subjectiva constante do nº 1 do art.º 3.º do CIUC estabelece ou não uma presunção ilidível.
52 - As posições das partes são conhecidas. Com efeito, para a Requerente, aquela norma consagra uma presunção legal ilidível, enquanto para a Requerida a interpretação que a Requerente faz do disposto no nº 1 do art.º 3.º do CIUC é notoriamente errada, na medida em que incorre, não só “numa enviesada leitura da letra da lei”, como na adopção “de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime” consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, seguindo ainda uma “interpretação que ignora o elemento teleológico de interpretação do regime consagrado em todo o CIUC”, traduzindo também uma desconformidade com a Constituição, designadamente porque entre outros, viola o princípio da eficiência do sistema tributário. (Cfr. nº 22 da Resposta).
J - INTERPRETAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJECTIVA CONSTANTE DO Nº 1 DO ARTIGO 3.º DO CIUC
53 - Importará notar, antes de mais, ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem, aliás, acolhimento no artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
54 - É comummente aceite que, tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação deve socorrer-se de diversos meios, importando, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar, desde logo, o seu sentido literal. O referido sentido, como também é pacífico, corresponde ao grau mais baixo da actividade interpretativa, importando, por isso, valorá-lo e aferi-lo à luz de outros critérios, intervindo, a esse propósito, os designados elementos de natureza lógica, sejam de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica.
55 - A propósito da interpretação da lei fiscal, cabe lembrar, como, aliás, a jurisprudência vem assinalando, nomeadamente nos Acórdãos do STA de 05/09/2012 e de 06/02/2013, processos nºs 0314/12 e 01000/12, respectivamente, disponíveis em: www.dgsi.pt, a importância do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), enquanto preceito fundamental da hermenêutica jurídica, que, neste quadro, não pode deixar de considerar-se.
56 - A actividade interpretativa é, pois, incontornável na resolução das dúvidas suscitadas pela aplicação das normas jurídicas causa.
57 - No entender de FRANCESCO FERRARA, in Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 131, a referida actividade interpretativa “[…] é única (e) complexa, de natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas circunstâncias a vontade legislativa”, acrescentando, ibidem, p.130, que “Mirando à aplicação prática do direito, a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
58 - Para MANUEL DE ANDRADE in Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 16 (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Sucessor - Coimbra, 1963, p. 129, “A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris […], e procura a vontade actual da lei, não a sua vontade no momento da aplicação: não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador, ganhando consistência autónoma; e, mais do que isso, torna-se entidade viva, que não apenas corpo inanimado […]”.
DO ELEMENTO LITERAL
59 - É neste enquadramento que importará encontrar resposta para as questões decidendas, particularmente, e antes de mais, a que procura saber se o artigo 3.º, nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção, começando, desde logo, pelo elemento literal.
60 - Sendo o elemento literal o primeiro que importa considerar, em busca do pensamento legislativo, é, necessariamente, por aí que se deverá começar, procurando alcançar o sentido da expressão considerando-se como tais as pessoas inscritas no referido artigo 3.º, nº 1 do CIUC.
61 - Dispõe o nº 1 do referido artigo 3.º do CIUC que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” (sublinhado nosso)
62 - A formulação usada no referido artigo, importará notá-lo, antes de mais, socorre-se da expressão “considerando-se”, o que suscita a questão de saber se pode ser atribuído, a tal expressão, um sentido presuntivo, equiparando-se, assim, à expressão “presumindo-se”. Trata-se de expressões frequentemente utilizadas com sentidos equivalentes, como é patente em diversas situações do ordenamento jurídico português.
63 - Na verdade, são imensas as normas que consagram presunções, conjugando, para o efeito, aliás, o verbo considerar de diversas formas. Não é, pois, difícil identificar situações, em diversas áreas do direito, em que se utiliza a expressão “considerando-se” ou “considera-se” com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”, expressões a que, seja ao nível das presunções inilidíveis, seja no quadro das presunções ilidíveis, é conferido, imensas vezes, um significado equivalente.
64 - Não se afigurando pertinente voltar a referenciar exemplos reveladores dessas situações, dado que tais exemplos estão abundantemente enunciados nalgumas das decisões dos tribunais arbitrais tributários, de que são exemplo as proferidas no quadro dos Processos nºs 14/2013 - T, 27/2013 - T e 73 - 2013 - T, damos aqui os mesmos por inteiramente reproduzidos.
65 - Nestas circunstâncias, sendo as mencionadas expressões recorrentemente usadas com um propósito e significado equivalentes, pode concluir-se não ser apenas o uso do verbo “presumir” que nos coloca perante uma presunção, mas também o uso de outros termos podem servir de base a presunções, como, designadamente, ocorre com a expressão “considerando-se”, o que, em nosso entender, será justamente o que verifica no nº 1 do art.º 3.º do CIUC.
Trata-se, assim, de um entendimento que, não se afigurando corresponder a uma leitura enviesada da lei como considera a AT, se revela em sintonia com o disposto no nº 2 do art.º 9.º do CC, na medida em que assegura ao pensamento legislativo o mínimo de correspondência verbal aí exigido.
66 - Na perspectiva literal, face ao que se deixa exposto, dúvidas não há de que a interpretação que considera estabelecida uma presunção ilidível no nº 1 do art.º 3.º tem total respaldo na formulação aí consagrada, face à mencionada equivalência entre a expressão “considerando-se como tais” e a expressão “presumindo-se como tais”.
O elemento linguístico, como atrás se referiu, sendo o primeiro que deve ser utilizado em busca do pensamento legislativo, deve, porém, a fim de se encontrar o verdadeiro sentido da norma, ser submetido ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica. (sejam tais elementos de sentido racional (ou teleológico), de carácter sistemático ou de ordem histórica).
67 - Com efeito, como se retira da obra de MANUEL DE ANDRADE, atrás citada, p. 28, “[…] a análise puramente linguística dum texto legal é apenas o começo […], o primeiro grau […] ou o primeiro acto da interpretação. Por outras palavras, só nos fornece o provável pensamento e vontade legislativa […] ou, melhor, a delimitação gramatical da possível consistência da lei […], o quadro dentro do qual reside o seu verdadeiro conteúdo”.
68 - Assim sendo, vejamos, então, para além do elemento histórico, o elemento racional (ou teleológico).
DO ELEMENTO HISTÓRICO E DO ELEMENTO RACIONAL (OU TELEOLÓGICO)
69 - Atendendo aos elementos de interpretação de pendor histórico, cabe, desde logo, lembrar o que, expressamente, vem exarado na exposição de motivos da Proposta de Lei N.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29/06, quando aí se refere que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na “medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que “como elemento estruturante e unificador […] consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”,
70 - Neste quadro, parece claro que a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel só poderá conviver com um sujeito passivo do imposto, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efectivo (sujeito) causador dos danos viários e ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência inscrito do art.º 1.º do CIUC.
71 - O referido princípio da equivalência, que informa o actual imposto único de circulação, tem, ao menos na parte em que especificamente respeita ao ambiente, subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. O referido princípio que, de algum modo, tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do nº 2 do art.º 66.º da nossa Constituição, tem também consagração no plano do direito comunitário, seja ao nível do direito originário, o que se verifica desde 07 de Fevereiro de 1992, altura em que foi assinado, em Maastrich, o Tratado da União Europeia, em cujo art.º 130.º-R, nº 2, o aludido princípio passou a constar como suporte da política Comunitária no domínio ambiental, seja ao nível do direito derivado.
72 - O que se visa alcançar por via do referido princípio é internalizar as externalidades ambientais negativas, o que, afinal, no caso dos autos, mais não significa do que fazer com que os prejuízos, que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus “proprietários - económico - utilizadores”, como custos que só eles deverão suportar.
73 - Regressando ao mencionado princípio da equivalência, dir-se-á que o mesmo tem, na economia do CIUC, um papel absolutamente estruturante, nele se alicerçando o edifício normativo do Código em questão. O referido princípio não pode, pois, deixar de constituir um fim que se quer legalmente prosseguir, corporizando, nessa medida, uma luz de intensidade assinalável que tem de iluminar o caminho do intérprete.
74 - Relativamente ao referido princípio, cabe notar o que nos diz Sérgio Vasques, quando, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, a propósito da concretização técnica desse princípio considera que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve corresponder ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública; ou ao custo que o contribuinte imputa à colectividade pela sua própria actividade”.
75 - Abordando especificamente o IUC, acrescenta o mencionado autor, op. cit., que ”Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “[…] dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto […]”.
76 - Face ao que vem de referir-se, resulta claro que a tributação dos reais e efectivos poluidores corresponde a um importante fim visado pela lei, no caso pelo CIUC, fim que, no dizer de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, 2ª Edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, p. 130, deve estar sempre diante dos olhos do jurista, dado que, como o mencionado autor aí refere, “[…] a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica”.
77 - Assim, deve notar-se que, seja face aos referidos elementos históricos, seja à luz dos elementos de carácter racional ou teleológico de interpretação que se deixam referenciados, impõe-se, igualmente, concluir que o nº 1 do art.º 3.º do CIUC só poderá consagrar uma presunção ilidível.
78 - Caberá ainda considerar o elemento sistemático de interpretação.
DO ELEMENTO SISTEMÁTICO
79 - Sobre o elemento sistemático diz-nos BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 183, que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”.
80 - É sabido que um princípio jurídico, no caso o princípio da equivalência, não existe isoladamente, antes está ligado por um nexo íntimo com outros princípios que integram, ao nível mais global, o respectivo ordenamento jurídico, no caso, com os demais princípios corporizados no sistema do IUC. Nesse sentido, cada artigo de um dado diploma legal, no caso do CIUC, só será compreensível se o situarmos perante os demais artigos que o seguem ou antecedem.
81 - No que à sistematização do CIUC diz respeito, as preocupações de ordem ambiental foram determinantes para que o mencionado princípio da equivalência fosse, desde logo, inscrito no primeiro artigo do Código, o que, necessariamente conduz a que os artigos subsequentes, na medida em assentam em tal princípio, sejam por ele influenciados. Foi o que ocorreu, designadamente, com a base tributável, que passou a ser constituída por diversos elementos, particularmente pelos respeitantes aos níveis de poluição, e com as taxas do imposto, estabelecidas nos artigos 9.º a 15.º, que foram influenciadas pela componente ambiental, e, naturalmente, também com a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º do CIUC, que não poderá furtar-se à influência referida.
82 - Os veículos da categoria C, na qual se inscreve, aliás, o veículo em causa no presente processo, foram também influenciados pelo referido princípio da equivalência. A este propósito, cabe lembrar o entendimento de BRIGAS AFONSO e MANUEL FERNANDES, in Imposto sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Ed., 2009, p. 214, quando, em anotações ao artigo 12.º do CIUC, relativo às taxas aplicáveis aos veículos da categoria D, escrevem que “Também nesta tabela, a exemplo do que acontece na tabela do artigo anterior, se regista uma discriminação fiscal positiva para os veículos menos poluentes, entendidos estes como os que foram matriculados em data mais recente […]”.
83 - O elemento sistemático de interpretação e a interação entre os diversos artigos e princípios que integram o sistema inscrito do CIUC, apela também ao entendimento de que o estabelecido no nº 1 do art.º 3.º do CIUC não pode deixar de consubstanciar uma presunção.
84 - Dispõe o nº 1 do art.º 9º do CC que a procura do pensamento legislativo deverá ter “[…] sobretudo em conta […] a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, circunstâncias e condições essas, que, hoje mais do que nunca, são de sensibilidade ambiental e de respeito pelas questões que com o ambiente se relacionam.
Neste contexto, as considerações formuladas sobre os mencionados elementos de interpretação, sejam de carácter literal ou de pendor histórico, sejam de natureza racional ou sistemática, apontam no sentido de que o artigo 3.º do CIUC, estabelece uma presunção, ou seja, a ratio legis dessa norma, enquanto razão ou fim que razoavelmente lhe deve ser atribuído, não pode deixar de perspectivar a expressão “considerando-se como tais”, utilizada no referido artigo, como reveladora do estabelecimento de uma presunção ilidível, o que significa que os sujeitos passivos do IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se, como tais, as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontrem registados, poderão, a final, ser outros.
85 - Aqui chegados, cabe lembrar o disposto no art.º 73.º da LGT, quando estabelece que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, (sublinhado nosso), o que significa que a presunção legal, que se afigura estar estabelecida no nº 1 do art.º 3.º do CIUC, será necessariamente ilidível.
86 - Neste quadro, os sujeitos passivos do imposto são, presumivelmente, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, ou seja, os referidos sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições, a quem, desde logo e em princípio, a AT, antes da liquidação ser concretizada, se tem, necessariamente, de dirigir, comunicando-lhes o projecto de decisão correspondente.
87 - Todavia, assim será apenas em princípio, dado que no quadro da audição prévia, de carácter obrigatório, face ao disposto na alínea a) do nº 1, do art.º 60.º da LGT, a relação tributária poderá ser reconfigurada, validando-se o sujeito passivo inicialmente identificado, ou redirecionando-se o procedimento no sentido daquele que vier a ser indicado pelo titular do direito de audição, como proprietário do veículo em causa, ou seja, daquele que, no momento da obrigação do imposto, é, afinal, o verdadeiro e efectivo, sujeito passivo do IUC.
88 - O direito que o contribuinte tem de ser ouvido, o qual se opera mediante a audição prévia, deve corresponder e traduzir-se na possibilidade concedida aos particulares de terem uma participação útil no procedimento, não devendo transformar-se numa prática inconsequente e rotineira, como bem assinalam José Manuel Santos Botelho, Américo Pires Esteves e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, anotação nº 8 ao art.º 100.º.
89 - A audição prévia, que, naturalmente, há - de concretizar-se em momento imediatamente anterior ao procedimento de liquidação, corresponde à sede e ocasião próprias para, com certeza e segurança, se poder identificar o sujeito passivo do IUC.
O referido procedimento de liquidação, como vem assinalado por Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, anotação nº 5 ao art.º 36º, serve unicamente para tornar certa a obrigação tributária e, consequentemente, exigível. Neste sentido, acrescentam os referidos autores, na anotação nº 6 ao mesmo artigo, que “A liquidação, como qualquer acto tributário, sendo um acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, não constitui a obrigação. Torna-a certa e exigível […]”.
90 - A audição prévia é, de resto, a sede própria, para se procurar a verdade material dos elementos essenciais à liquidação do imposto, entre os quais estará o conhecimento dos verdadeiros sujeitos passivos do imposto, enquanto elementos primeiros da relação jurídico- fiscal. A este propósito, cabe referir o que nos dizem os atrás mencionados autores, op. cit., na anotação nº 5 ao art.º 55.º, quando aí referem que, no domínio do procedimento tributário, a administração tributária, particularmente à luz dos princípios da justiça e da imparcialidade, deve nortear-se por “[…] critérios de isenção na averiguação das situações fácticas, realizando todas as diligências que se afigurem necessárias para averiguar a verdade material, independentemente de os factos a averiguar serem contrários aos interesses patrimoniais que à administração tributária cabe defender”. (sublinhado nosso)
91 - Relativamente à verdade material que se visa conhecer - a qual, tivesse tido, no presente caso, o devido atendimento, teria conduzido a que o sujeito passivo do IUC fosse o adquirente do veículo, enquanto seu real e efectivo proprietário, e não o vendedor, enquanto proprietário virtual dos veículos em questão - cabe ainda lembrar o princípio do inquisitório, que fixado no art.º 58.º da LGT, estatui no sentido de que “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. (sublinhado nosso)
92 - A propósito deste princípio, cabe, de novo, aludir aos ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488/489, quando, em anotações ao citado art.º 58.º, referem que cabe à administração um papel dinâmico na recolha dos elementos com relevância para a decisão, acrescentando que a “[…] falta de diligências reputadas necessárias para a construção da base fáctica da decisão afectará esta não só na hipótese de serem obrigatórias (violação do princípio da igualdade), mas também se a materialidade dos factos considerados não estiver comprovada ou se faltarem, nessa base, factos relevantes, alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a Administração deveria ter colhido […]”.
O princípio do inquisitório, acrescentam os referidos autores, op. cit., p. 489, “[…] tem a ver com os poderes (-deveres) de a Administração proceder às investigações necessárias ao conhecimento dos factos essenciais ou determinantes para a decisão […]”.
93 - Não se diga, como faz a AT, que o estabelecimento de uma presunção ilidível no art.º 3.º do CIUC e as consequências daí resultantes ofenderiam o princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que conduziriam, nomeadamente, quer ao entorpecimento do funcionamento dos serviços, quer à existência de custos administrativos adicionais.
A eficiência da Administração em geral, ou da AT em particular, em sentido corrente, corresponderá à capacidade/metodologia de trabalho orientada para a optimização do trabalho executado ou dos serviços prestados, o que significará produzir o máximo, em quantidade e qualidade, com o mínimo de custos, nada tendo a ver com a observância de princípios legalmente consagrados e com o respeito pelos direitos dos cidadãos, seja na qualidade de contribuintes ou não.
Em sentido técnico, dir-se-á que o princípio da eficiência do sistema tributário, é, comummente tido, no domínio do procedimento tributário, como corolário do princípio da proporcionalidade, o qual como é sabido, impõe uma adequada proporção entre as finalidades legais e os meios escolhidos para alcançar esses fins, ou, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª Edição 2012, Encontro de Escrita, Lda, Lisboa, p. 488, nas anotações ao artigo 55.º da LGT, trata-se de um princípio que obriga “[…] a administração tributária a abster-se da imposição aos contribuintes de obrigações que sejam desnecessárias à satisfação dos fins que aquela visa prosseguir”.
Neste quadro, o referido princípio da eficiência do sistema tributário significará a capacidade de alcançar os objectivos legalmente fixados em razão dos meios disponíveis, ou melhor, com o mínimo de meios, o que nada terá também a ver com o respeito pelos direitos dos cidadãos, nem com a necessidade de observância dos princípios a que a administração tributária deve subordinar a sua actividade, designadamente o do inquisitório e o da descoberta da verdade material, não podendo, obviamente, a aplicação do mencionado princípio da eficiência ser feita com prejuízo dos direitos dos cidadãos.
DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO E DO VALOR DO REGISTO
94 - Antes de mais, deve acrescentar-se, face ao que adiante, explicitamente, se dirá sobre o valor do registo, que os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.
95 - São três os artigos do Código Civil que importa ter em conta, a propósito da aquisição da propriedade de um veículo automóvel. São eles, desde logo, o art.º 874.º, que estabelece a noção de contrato de compra e venda, como sendo “[…] o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”; o art.º 879.º, em cuja alínea a) se estatui, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, “a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito” e o art.º 408.º, que tem por epígrafe os contratos com eficácia real, e estabelece no seu nº 1, que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. (sublinhado nosso)
Estamos, com efeito, no domínio dos contratos com eficácia real, o que significa que a sua celebração provoca a transmissão de direitos reais, no caso, veículos automóveis, determinada por mero efeito do contrato, como decorre expressamente da norma anteriormente mencionada.
96 - A propósito dos referidos contratos com eficácia real, cabe notar os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, quando, em anotações ao art.º 408.º do CC, nos dizem que “Destes contratos ditos reais (quoad effectum), por terem como efeito imediato a constituição, modificação ou extinção dum direito real (e não apenas as obrigações tendentes a esse resultado) distinguem-se os chamados contratos reais (quoad constitutionem), que exigem a entrega da coisa como elemento da sua formação (cfr. arts. 1129.º, 1142.º e 1185.º) ”.
Estamos, assim, perante contratos em que a propriedade da coisa vendida se transfere, sem mais, do vendedor para o comprador, tendo, como causa, o próprio contrato.
97 - Também da jurisprudência, designadamente do Acórdão do STJ nºs 03B4369 de 19/02/2004, disponível em: www.dgsi.pt, se retira que, face ao disposto no art.º 408.º, nº 1, do C. Civil, "a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei". É o caso do contrato de compra e venda de veículo automóvel (artigos 874° e 879º, al. a) do C. Civil), o qual não depende de qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal - conf. Ac. do STJ de 3-3-98, in CJSTJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág. 117”. (sublinhado nosso)
98 - Tendo o contrato de compra e venda, face ao que se deixa referido, natureza real, com as mencionadas consequências, há que considerar, também, o valor jurídico do registo automóvel objecto desse contrato, na medida em que a transação do referido bem está sujeita a registo público.
99 - Estabelece, com efeito, o nº 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, relativo ao registo de veículos automóveis, (diversas vezes alterado, a última das quais por via da Lei n.º 39/2008, de 11/08), que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. (sublinhado nosso)
100 - Ficando claro, face à referida norma, qual a finalidade do registo, não há, porém, clareza, no âmbito do referido Decreto-lei, sobre o valor jurídico desse registo, importando considerar o artigo 29.º do mencionado diploma legal, relativo ao registo de propriedade automóvel, quando aí se dispõe que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, […]”. (sublinhado nosso)
101 - Neste quadro, para que possamos alcançar o procurado conhecimento sobre o valor jurídico do registo de propriedade automóvel, importa ter em conta o que se estabelece no Código do Registo Predial, o qual, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 06 de Julho, e alterado pela última vez, por via do Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, dispõe no seu artigo 7.º que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. (sublinhado nosso)
102 - A conjugação do disposto nos artigos retro mencionados, particularmente o estabelecido no nº 1 do art.º 1.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro e no art.º 7.º do Código do Registo Predial, permite considerar, por um lado, que a função fundamental do registo é a de dar publicidade à situação jurídica dos veículos, permitindo, por outro, presumir que o direito existe e que tal direito pertence ao titular, em prol de quem o mesmo está registado, nos precisos termos em que está definido no registo.
103 - Assim, o registo definitivo mais não constitui do que a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos exactos termos do registo, mas presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo, a este propósito, ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ nºs 03B4369 e 07B4528, respectivamente, de 19/02/2004 e 29/01/2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.
104 - A função legalmente reservada ao registo é, assim, por um lado, a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso, dos veículos e, por outro lado, permitir-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, o que significa que o registo não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.
105 - Assim, se os compradores dos veículos, enquanto seus “novos” proprietários, não promoverem, desde logo, o adequado registo do seu direito, presume-se, para efeitos do nº 1 do art.º 3.º do CIUC e nos termos do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, que o veículo continua a ser propriedade da pessoa que o vendeu e que no registo se mantém seu proprietário, sendo, porém, certo que tal presunção é ilidível, seja por força do estabelecido no nº 2 do art.º 350.º do CC, seja à luz do disposto no art.º 73.º da LGT. Daí que, a partir do momento em que se afaste a referida presunção, mediante prova da respectiva venda, a AT não poderá persistir em considerar como sujeito passivo do IUC o vendedor do veículo, que, no registo, continua a constar como seu proprietário.
DOS MEIOS DE PROVA APRESENTADOS
106 - Não sendo legalmente exigível a forma escrita para o contrato de compra e venda dos veículos automóveis, a prova da venda correspondente poderá fazer-se por diversos meios, nomeadamente por confissão, verbal ou escrita, por testemunhas ou por via documental, nesta se incluindo as facturas/recibo relativas às vendas dos veículos.
107 - Como meio de prova, a Requerente juntou cópia da factura de venda da viatura Volvo de matrícula ..., datada de 31-12-2003 (onde consta o valor do IVA liquidado), documento esse, que foi complementado por prova testemunhal. Os depoimentos das testemunhas não deixam dúvidas de que a transação em causa ocorreu em finais do ano de 2003, ou seja, de que a Requerente vendeu o mencionado veículo, em 31-12-2003, à sociedade C....
108 - Face ao que vem de referir-se, e tendo em conta, quer a presunção estabelecida no art.º 3.º do CIUC, quer a transferência de propriedade do veículo em questão, por mero efeito do contrato, em 31/12/2003, antes da data da exigibilidade do imposto, que se reporta aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, quer o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, os actos tributários em crise não podem merecer o nosso acordo, seja porque não se teve em conta uma adequada interpretação e aplicação das normas legais de incidência subjectiva, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de direito, seja porque os referidos actos assentaram numa matéria de facto, claramente divergente da efectiva realidade, o que consubstancia um erro sobre os pressupostos de facto.
109 - A AT quando entende que os sujeitos passivos do IUC são, em definitivo, as pessoas em nome de quem os veículos automóveis se encontrem registados, sem considerar os elementos probatórios que, quer no quadro da audição prévia, quer em momento posterior, lhe foram apresentados, destinados a identificar os efectivos e verdadeiros proprietários dos veículos, está a proceder à liquidação ilegal do IUC, assente na errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do Imposto Único de Circulação, constantes do art.º 3.º do CIUC, seja ao nível da previsão, seja da estatuição, o que configura a prática de um acto tributário falho de legalidade, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos tributários.
110 - Nestas circunstâncias, tendo em conta, por um lado, que a presunção consagrada no art.º 3.º do CIUC foi ilidida e que, por outro, a matrícula do veículo em questão foi atribuída em 06 de Março de 1986, não pode deixar de considerar-se que, aquando da exigibilidade do imposto, o que, no caso dos autos, face ao disposto no nº 2 do artigo 4º, conjugado com o disposto no nº 3 do artigo 6º, ambos do CIUC, se verificou no dia 06 de Março dos anos 2009, 2010, 2011 e 2012, a Requerente não era sujeito passivo do imposto em questão.
CONCLUSÃO
111 - No quadro circunstancial que se tem vindo a referir, a AT, ao praticar os actos de liquidação em causa no presente processo, fundados na ideia de que o artigo 3.º, nº.1, do CIUC não consagra uma presunção ilidível, faz errada interpretação e aplicação desta norma, cometendo um erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui violação de lei.
112 - Por outro lado, porque a AT, à data da ocorrência dos factos tributários, considerou a Requerente proprietária do veículo referenciado no presente processo, considerando-a, como tal, sujeito passivo do imposto, quando tal propriedade já não estava inscrita na sua esfera jurídica, baseando-se, assim, em matéria de facto divergente da efectiva realidade, comete um erro sobre os pressupostos de facto, e portanto de violação de lei.
III - DECISÃO
113 - Destarte, atento a todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar procedente por provado, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios a que se refere o pedido da Requerente;
- Anular, quer os actos de liquidação de IUC, referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, respeitantes ao veículo pesado de mercadorias, marca volvo, com a matrícula ..., quer os actos de liquidação dos juros compensatórios que lhe estão associados;
- Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, nº 2 do CPC (ex-315.º, nº 2) e 97.º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3.º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 2.117,26.
CUSTAS
De harmonia com o n.º 4 do art.º 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I, que a este está anexa.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de Junho de 2014
O Árbitro
António Correia Valente
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131º, n.º 5 do Código de Processo Civil (ex-138.º, n.º 5), aplicável por remissão do artigo 29.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)