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DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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A…, S.A., pessoa coletiva nº…, com sede na …, freguesia …, … (adiante designada “Requerente”), na sequência de ter sido notificada da demonstração da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) nº 2017…, de 6 de Setembro de 2017, relativa ao exercício de 2013, da correspondente demonstração do acerto de contas e da demonstração de liquidação de juros compensatórios nº 2017 … (doc. 1 apresentado com o pedido arbitral e pp. 57 e ss do p. adm. 10), veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à declaração de ilegalidade e anulação parcial dos actos acima identificados.
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à Requerida nos termos regulamentares.
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Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo o Juiz José Poças Falcão, o Professor Doutor Paulo Jorge Nogueira da Costa e a Doutora Maria Cristina Aragão Seia que comunicaram a aceitação do encargo no prazo legal.
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Em 20-02-2018, as Partes foram devidamente notificadas, não tendo manifestado, nos termos e prazo legais, vontade de recusar a designação dos árbitros (artigo 11.º, nº 1, alíneas a) e b) do Regime Jurídico de Arbitragem Tributária (RJAT), conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico).
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Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 12-03-2018.
II – SANEADOR
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Este Tribunal arbitral é materialmente competente.
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Não foram invocadas exceções.
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As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
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Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.
III. MÉRITO
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MATÉRIA DE FACTO
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Factos provados
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O Tribunal considera provados os seguintes factos:
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A Requerente, anteriormente designada B…, S.A. e, antes disso, C…, S.A., é uma sociedade cuja principal atividade consiste na comercialização por grosso de pastas celulósicas e de papel e seus derivados e afins, bem como dos produtos e materiais direta e indiretamente utilizados na sua produção.
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No exercício de 2013, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo de sociedades – o Grupo D…– para efeitos de aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”) em IRC.
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A Requerente, nos períodos de 2009 a 2012, considerou investimento relevante para RFAI a aquisição de ativos fixos tangíveis instalados nos seus polos industriais de … e de … .
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Em 27 de dezembro de 2013, foi realizado um aumento de € 74.950.000,00 no capital social da E…, S.A. (“E…”), actualmente designada F…, S.A.(NIF…), através da emissão de 74.950.000 novas ações nominativas, com o valor nominal de € 1,00 cada, integralmente subscrito pela Requerente – cf. doc. n.º 2 junto com o pedido arbitral.
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Deste montante, a quantia de € 58.656.876,00 foi realizada em espécie, tendo, para esse efeito, sido transmitidos pela Requerente bens do seu ativo fixo tangível e existências avaliados em € 44.502.254,00 e € 14.154.622,00, ou seja, o conjunto de ativos fixos tangíveis adquiridos nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 e que integraram o investimento relevante para efeitos de benefício do RFAI.
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A Requerente passou a deter, diretamente, 99,94% das ações da E…, tendo os restantes 0,06% permanecido na titularidade da anterior acionista única, a G…, SGPS, S.A. – atualmente designada H…, SGPS, S.A. (NIF…).
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A E… integra o perímetro do Grupo D… sujeito ao RETGS no exercício de 2013.
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O Grupo apresentou, conforme declaração entregue em 14.11.2016, identificada com o n.º …, matéria colectável no valor de € 95.263.336,99.
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A Requerente invocava na referida declaração o direito a deduzir ao imposto um crédito fiscal de € 28.931.380,90, correspondente a parte de um total de benefícios fiscais no montante de € 29.616.937,80 que resulta de reporte de créditos fiscais constituídos e não utilizados pelo Grupo em períodos anteriores e de créditos fiscais constituídos em 2013 pelas sociedades que integram o mesmo.
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Ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2015…, de 4 de dezembro de 2015, a Divisão de Inspeção de Empresas Não Financeiras II da Unidade dos Grandes Contribuintes (“UGC”) realizou ao grupo D…, S.A. um procedimento de inspeção interno e parcial (cf. p. 5 do RIT - p. 10 e ss. do p. adm. 10).
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Através do ofício n.º…, de 11 de maio de 2017, a UGC notificou a Requerente do projeto de relatório de inspeção tributária (“PRIT”), no qual a AT propôs um acréscimo de € 19.135.808,51 ao imposto devido pelo Grupo D… relativamente ao exercício de 2013 (p. 20 e ss. do p. adm. 2).
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A AT pôs em causa o crédito de imposto por benefício fiscal de RFAI, ou seja, o reporte de períodos anteriores e a consequente utilização em 2013, por entender que a Requerente não observou o previsto no art. 2º, nº 3, al. c) do RFAI: a obrigação de manter “na empresa e na região durante um período mínimo de cinco anos os bens objecto de investimento”.
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A Requerente exerceu, por escrito, o direito de audição, em 5 de junho de 2017 sobre as correções propostas no PRIT (p. 25 e ss. do p. adm. 2).
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A 1 de Setembro de 2017, foi elaborado o relatório final de inspeção tributária (“RIT”), tendo sido determinado pela AT o acréscimo do montante global de € 19.135.808,51 ao IRC devido pelo grupo D… para o exercício de 2013, correspondente a (cf. p. 4 do RIT - p. 10 e ss. do p. adm. 10):
(i) € 17.727.402,35 pelo reporte alegadamente indevido e dedução em 2013 de um crédito de imposto relativo ao Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”) constituído entre os exercícios de 2009 e 2012;
(ii) € 1.408.406,16 a título de penalização pela transmissão dos bens objeto de investimento elegível para efeitos de RFAI, correspondendo € 1.293.658,70 a título de benefício fiscal indevidamente deduzido em 2013 (linha 22 – reposição de benefícios fiscais – da demonstração de liquidação de IRC de 2013, doc. nº 1 junto com o pedido arbitral) e € 114.747,46 enquanto juros compensatórios à taxa agravada de 9%, prevista à data dos factos no artigo 5.º do RFAI.
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A Requerente foi notificada da demonstração da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) nº 2017…, de 6 de Setembro de 2017, relativa ao exercício de 2013, com data limite de pagamento a 08.11.2017, da correspondente demonstração do acerto de contas e da demonstração de liquidação de juros compensatórios nº 2017… (doc. 1 apresentado com o pedido arbitral e pp. 57 e ss. do p. adm. 10).
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A 26 de setembro de 2017, a ora Requerente requereu à Diretora-Geral da AT, ao abrigo do artigo 64.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (“RCPIT”), o sancionamento das conclusões vertidas no RIT (cf. doc. n.º 3 junto com o pedido arbitral).
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Até à data da apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, a Diretora-Geral da AT ainda não se pronunciara sobre o mesmo.
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A Requerente foi citada, a 28.11.2017, da instauração de processo de execução fiscal para cobrança coerciva da liquidação ora impugnada (doc. 7 junto com o pedido arbitral).
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A Requerente prestou, em 07.12.2017, garantia bancária (nº…, emitida pelo Banco I…, SA) para lograr a suspensão de execução fiscal instaurada (docs. 8-10 juntos com o pedido arbitral).
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Factos não provados
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Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
1.3. Motivação quanto à matéria de facto
13.Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelas partes e constantes do processo administrativo, bem como das posições das partes, sendo de referir não emergir das posições assumidas por Requerente e Requerida efetiva discordância relativa à matéria de facto, confinando-se o dissídio à matéria de direito.
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MATÉRIA DE DIREITO
§1. Questões decidendas
A - Da legalidade da liquidação adicional no que se refere à correcção efectuada no montante de € 1.408.406,16
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No pedido arbitral a Requerente contesta parcialmente a legalidade da liquidação nº 2017… de 06.07.2017 referente a IRC relativo ao exercício de 2013. A referida liquidação adicional baseou-se no RIT elaborado pelos Serviços de Inspecção Tributária (SIT) ao abrigo da Ordem de Serviço nº OI 2015…, discutindo-se, nos presentes autos, a parte respeitante à correcção efectuada a título de penalização pela transmissão de bens que foram objecto do benefício de RFAI, no montante global de € 1.408.406,16 (sendo € 1.293.658,70 relativos a imposto em falta e € 114.747,46 relativos a juros compensatórios à taxa agravada de 9%).
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Na Declaração do Grupo de 2013, apresentada em 14.11.2016, a Requerente deduziu ao imposto apurado um crédito fiscal resultante de reporte de créditos fiscais constituídos e não utilizados em períodos anteriores e créditos fiscais constituídos em 2013 pelas sociedades do Grupo.
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A AT entende que tal não é admissível, uma vez que a Requerente, durante o ano de 2013, transmitiu para a sua participada E… SA um conjunto de ativos fixos tangíveis adquiridos nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 que integraram o investimento relevante para determinação do benefício fiscal de RFAI, em violação do art. 2º, nº 3, al. c) da Lei 10/2009.
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De acordo com esta disposição legal, o investimento realizado em 2009 e considerado elegível à data como investimento relevante para o RFAI, não pode deixar de ser propriedade da empresa e/ou continuando a integrar o património da empresa ser afeto a estabelecimento em região diferente daquela em que foi inicialmente instalado durante os anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013 (considerando aqui que os períodos de tributação em IRC, coincidem com o ano civil como ocorre com o grupo D… nestes anos). Cumpre decidir.
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O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), foi aprovado pela Lei n.º 10/2009, de 10 de Março, cujo artigo 2.º, n.º 1, prevê que “[o] RFAI 2009 é aplicável aos sujeitos passivos de IRC” que exerçam, a título principal, alguma das atividades descritas nas respetivas alíneas a) e b).
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O artigo 2.º, n.º 3, do mesmo diploma legal estabelece que “[p]odem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente regime os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições: a) Disponham de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade; b) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indirectos; c) Mantenham na empresa e na região durante um período mínimo de cinco anos os bens objecto do investimento; d) […]; f) Efectuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período de dedução constante dos n.os 2 e 3 do artigo 3.º”.
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Entende a AT que é na esfera jurídica e fiscal de cada um dos sujeitos passivos que são verificados os pressupostos exigidos à constituição do crédito fiscal por RFAI, e que é também nessa esfera jurídica e fiscal que são verificados os pressupostos exigidos à manutenção do benefício fiscal por RFAI.
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O conceito de sujeito passivo de IRC, invocado nos preceitos transcritos supra, encontra-se densificado no artigo 2.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) nos seguintes termos:
“a) As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais pessoas colectivas de direito público ou privado, com sede ou direcção efectiva em território português;
b) As entidades desprovidas de personalidade jurídica, com sede ou direcção efectiva em território português, cujos rendimentos não sejam tributáveis em imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) ou em IRC directamente na titularidade de pessoas singulares ou colectivas;
c) As entidades, com ou sem personalidade jurídica, que não tenham sede nem direcção efectiva em território português e cujos rendimentos nele obtidos não estejam sujeitos a IRS”.
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Assim, resulta dos números 1 e 3 do artigo 2.º do RFAI que quem beneficia dos incentivos fiscais é o sujeito passivo de IRC.
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Por outro lado, decorre da alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º do RFAI a exigência de que os bens objeto do investimento se mantenham na empresa (e na região), por um período mínimo de cinco anos.
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O legislador não emprega, pois, indistintamente, os conceitos de sujeito passivo de IRC e de empresa, devendo presumir-se que o legislador fiscal consagrou a solução mais acertada e soube exprimir-se de forma correta, em conformidade com o disposto no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.
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Relativamente à exigência legal contida alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º do RFAI, o conceito que releva é o de empresa, pelo que é quanto a este que se justifica um esforço interpretativo que permita saber se, no caso sub judice, o prazo mínimo de cinco anos de manutenção “na empresa” dos bens objeto do investimento foi, ou não, respeitado.
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Para esse efeito deve o intérprete aplicar o disposto no artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT), que prevê o seguinte:
“1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.
3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.
4 - […]”.
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Ao referir as “regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”, o n.º 1 do artigo 11.º da LGT remete-nos para o artigo 9.º do Código Civil, que dispõe o seguinte:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
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O n.º 1 do artigo 9.º reconhece a importância da unidade do sistema jurídico, assinalando, assim, o relevo da coerência sistémica na interpretação da lei.
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O RFAI, na sua versão originária, não continha qualquer definição de empresa, para efeito da sua aplicação, embora remetendo para o direito da União Europeia as definições de “empresas em dificuldade” e de “micro, pequenas e médias empresas” [Artigo 2.º, n.º 3, alínea e), e n.º 4)].
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No que diz respeito às “micro, pequenas e médias empresas”, o RFAI determinava a aplicação do Anexo I do Regulamento (CE) n.º 800/2008, da Comissão, de 6 de agosto de 2008, cujo artigo 1.º continha a seguinte definição de empresa:
“Entende-se por empresa qualquer entidade que, independentemente da sua forma jurídica, exerce uma atividade económica. São, nomeadamente, consideradas como tal as entidades que exercem uma atividade artesanal ou outras atividades a título individual ou familiar, as sociedades de pessoas ou as associações que exercem regularmente uma atividade económica”.
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Ou seja, de acordo com o legislador da UE, o que é decisivo, no conceito de empresa, não é a forma que esta possa revestir, mas sim a sua finalidade – o exercício de uma atividade económica.
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Conforme afirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4056/03.6TBGDM.S1, de 11 de março de 2010, “[o] conceito de empresa, célula base da economia moderna, poderá ser dado assim: é uma organização de pessoas e bens que tem por objeto o exercício de uma atividade económica em economia de mercado. Decompondo-se este conceito nos seguintes elementos: (i) elemento organizacional; (ii) elemento pessoal; (iii) elemento patrimonial; (iiii) elemento teleológico (…). Empresas coletivas – por contraposição a empresas individuais – são aquelas que estão ligadas a uma estrutura jurídica dotada de personalidade coletiva. Podendo tal estrutura jurídica revestir diversas formas: (i) sociedades comerciais, (ii) cooperativas e (iii) empresas públicas, etc.”.
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No mesmo sentido, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão n.º 8/2016, de 15 de abril de 2016, afirma que “[b]asicamente, a empresa constitui uma organização estável de meios com vista à prossecução de uma atividade económica (…) Ou seja, um "complexo organizacional estável", de "pessoas e bens", para "o exercício de atividades económicas"”.
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A doutrina tem vindo a salientar a distinção existente entre o conceito de sociedade e o conceito de empresa.
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Segundo Coutinho de Abreu, “(…) a ideia da não identidade [entre sociedade e empresa] é confirmada em diversos momentos da vida societária. Assim, por exemplo, o exercício da atividade empresarial para que se constitui a sociedade é normalmente posterior a essa constituição (a sociedade precede a empresa); o património social, mesmo depois de formada a empresa, não tem de esgotar-se nesta (o património da sociedade pode compreender bens e valores não afetados à empresa); a sociedade pode efetuar negócios tendo por objeto a respetiva empresa (vendendo-a, locando-a, etc.); a sociedade pode sobreviver à sua empresa (v.g., em caso de dissolução, a sociedade mantém-se até ao final da liquidação, podendo verificar-se antes desse termo a extinção da empresa), tal como pode extinguir-se antes dela (continuando a empresa na titularidade de outro sujeito)”[1].
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Como refere José Engrácia Antunes, “[o] grupo de sociedades – também designada empresa de grupo ou plurissocietária – constitui a forma organizativa típica da grande empresa do nosso tempo”[2].
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Ainda de acordo com José Engrácia Antunes, “[r]amo onde tradicionalmente o legislador assumiu uma posição pautada pelo realismo, neutralidade e transparência no tratamento das formas jurídicas de exercício da actividade empresarial, pode-se afirmar que também o Direito Fiscal desde cedo concedeu uma atenção particular ao fenómeno dos grupos societários, caminhando gradual mas consistentemente para uma "visão económica" unitária da empresa plurissocietária ("wirtschaftliche Betrachtung") e elevando esta a objecto autónomo de imputação das normas jurídicas-tributárias, para lá da mera consideração individual dos entes societários integrados no seu perímetro”[3].
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Conforme decidiu o Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão n.º 00010/00, de 18 de junho de 2009, com referência ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de fevereiro de 2005, “na falta de um(a) definição legal do conceito de atividade comercial ou industrial, para efeitos tributários, tem vindo a doutrina e a jurisprudência a entender como aplicável o conceito económico de comércio e indústria (…) [parece] residir na ideia, no conceito, de empresa, enquanto, lato sensu, organização de pessoas e capital que persegue determinado fim de matriz económica, tendencialmente, lucrativo, o elemento decisivo e preponderante no estabelecimento de uma noção válida, atuante, sob o ponto de vista tributário, de atividade comercial e industrial”.
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Compreendendo-se o conceito de empresa nos termos expostos, não se descortina razão para identificar o termo “empresa”, utilizado pelo legislador na alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º do RFAI, com “empresa unissocietária”, “sociedade” ou “pessoa coletiva”, e excluir a “empresa plurissocietária” ou “empresa de grupo”.
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A interpretação do termo “empresa”, utilizado no referido preceito legal, de modo abranger, também a empresa plurissocietária apresenta-se como o mais coerente à luz da unidade do sistema jurídico-fiscal, considerando, desde logo, o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS).
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Apesar de a AT sustentar que “[o]s grupos fiscais são uma ficção tributária para efeitos de aplicação do RETGS que o legislador introduziu para permitir uma maximização de um conjunto de realidades tributárias em IRC”, mas que “não são os grupos que fazem o investimento em termos formais mas sim as empresas” (n.º 112 da Resposta), tal não impede que o intérprete considere a existência desse regime jurídico e lhe atribua relevo quando procura uma solução interpretativa sistemicamente coerente, pelo contrário.
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Na verdade, não se compreenderia que o legislador, por um lado, reconhecesse a relevância jurídico-fiscal dos grupos de sociedades, com um intuito de garantia da neutralidade fiscal e, por outro lado, utilizasse no RFAI um conceito de “empresa” num sentido que rejeitasse tal relevância jurídico-fiscal.
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Refira-se que a coleta de IRC a que se deduz o crédito de RFAI é a apurada pela entidade que efetua o investimento relevante (artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do RFAI), embora, em caso de aplicação do RETGS, tenha de ser observado o disposto no n.º 6, do artigo 90.º, do CIRC.
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Trata-se de um aspeto relevante na medida em que no caso de uma (única) empresa de grupo ou empresa plurissocietária, independentemente da sua titularidade formal, a coleta a que o crédito pode ser deduzido é uma só – a coleta do grupo fiscal no qual a entidade que efetuou o investimento elegível para efeitos de RFAI se integra.
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Tal como afirma o Tribunal Central Administrativo Sul no acórdão n.º 05376/12, de 30 de abril de 2014, “[o] RETGS é dominado por uma lógica de tributação conjunta, isto é, o grupo de sociedades é tributado em sede de IRC tendencialmente pelo seu resultado agregado, como se de uma só sociedade se tratasse (…) cada sociedade não perde a sua personalidade jurídica nem deixa de ser sujeito de relações tributárias próprias pelo facto de passar a integrar um grupo de sociedades, porque, se “dum lado [há] a independência jurídica das sociedades agrupadas, que permanecem formalmente como entidades dotadas de individualidade jurídico-organizativa e patrimonial própria; doutro lado, [há] a unidade económica do conjunto, que se comporta efetivamente no mercado como [se] de uma única empresa se tratasse”.
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Tal como afirma José Engrácia Antunes, [p]ara o legislador fiscal, a substância económico-material desta forma moderna de organização da empresa (empresa plurissocietária) suplanta assim a sua pura organização jurídico-formal: não obstante a individualidade jurídica dos respectivos elementos integrantes, é o próprio grupo como um todo, e não as sociedades individuais que o integram, que passa a constituir o ponto de referencia fundamental no cômputo da matéria tributável e na determinação de certos direitos e obrigações tributárias”[4].
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A coleta individual de IRC deixa de existir, sem mais, aquando da integração das sociedades no perímetro do REGTS.
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Outra manifestação relevante da lógica unitária do grupo é o regime de pagamento do IRC no RETGS previsto no artigo 115.º do CIRC, segundo o qual a responsabilidade não é exclusiva da sociedade dominante (no caso, a Requerente), mas antes se estende, solidariamente, a todas as demais sociedades do grupo (por exemplo, a E…).
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Quer isto dizer que o pagamento do IRC apurado pelo grupo não é da exclusiva responsabilidade do sujeito passivo que faz o investimento elegível e detém originariamente os ativos (no caso, a Requerente), mas sim de todas as sociedades que integram o respetivo perímetro (incluindo a E…).
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Nesses termos, se em sede de IRC o grupo é tratado como uma unidade fiscal – prevalecendo o raciocínio de empresa de grupo ou plurissocietária – não existe razão válida para que tal deixe de valer em sede de RFAI.
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Importa também compreender a finalidade da obrigação de manutenção dos ativos elegíveis na empresa pelo prazo mínimo de cinco anos.
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Resulta da própria natureza e finalidades do RFAI que a relevância do investimento elegível depende de uma certa estabilidade do mesmo, desde logo porque o benefício em causa se aplica ao “investimento produtivo” e não ao que seja meramente especulativo.
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Esta estabilidade, conjugada com o objetivo de desenvolvimento regional subjacente ao sistema de incentivos, justifica que o legislador tenha estipulado que os ativos devessem estar afetos à exploração da empresa por um determinado período.
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Para efeitos de elegibilidade ao RFAI, exigia-se uma ligação direta e imprescindível (artigo 2.º, n.º 2, alínea a), vi), do RFAI) do investimento em ativos a uma atividade produtiva realmente exercida numa região do País.
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Um “investimento produtivo” na “exploração da empresa” pressupõe – porque é inerente à noção de empresa – uma atividade produtiva, o que, pela própria natureza das coisas, não é uma realidade que se esgota num momento.
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A prossecução da finalidade visada pelo Estado com os auxílios concedidos ao abrigo do RFAI ficaria, em larga medida, comprometida se o investimento pudesse ser livremente deslocalizado para uma região diversa ou transferido para outro complexo organizacional destinado a uma outra atividade económica (empresa).
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Estar-se-ia a incentivar, do ponto de vista fiscal, um investimento destituído de caráter produtivo e inapto a gerar qualquer benefício para a região.
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É esta a razão pela qual o legislador fixou um prazo para a manutenção na empresa e na região dos ativos objeto de investimento (cf. alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º, do RFAI).
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É, assim, à luz da unidade do sistema jurídico, e atendendo à natureza, à finalidade e ao modo de funcionamento do benefício, que deve ser compreendida a obrigação de manutenção dos ativos elegíveis na empresa e na região por cinco anos que, à data dos factos, estava prevista na alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º, do RFAI.
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No caso sub judice, ocorreu uma alteração formal da titularidade dos ativos, a qual não se traduz, todavia, na saída dos mesmos da esfera da empresa plurissocietária, que permanecem afetos a uma determinada atividade económica, abrangida pelo RFAI, verificando-se que ambas as sociedades estavam integradas num grupo – encabeçado pela Requerente – para efeitos do RETGS.
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Ou seja, os bens objeto do investimento – listados no Anexo II do RIT – permaneceram dentro do mesmo complexo produtivo e destinados à mesma finalidade económica.
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Dito de outro modo, os bens objeto do investimento permaneceram na empresa (plurissocietária ou de grupo).
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No caso sub judice, a transferência dos ativos da Requerente para a E…, no âmbito do aumento de capital desta última, não prejudicou a finalidade de conservação dos bens de investimento na mesma unidade económica – independentemente da sua organização sob a forma unissocietária ou plurissocietária (como é o caso) – que o legislador do RFAI visou salvaguardar com a obrigação de manutenção na empresa (e na região) prevista na citada alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º.
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Na verdade, os ativos continuaram integrados no complexo de meios afeto à atividade económica do grupo D… em geral e, em particular, no estabelecimento fabril de produção de pasta celulósica de … .
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Não houve, portanto, violação do disposto na alínea c), do n.º 3, do artigo 2.º do RFAI, não havendo lugar à aplicação do artigo 5.º do RFAI.
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Conclui-se, assim, que a correção promovida pela AT ao IRC do grupo por referência a 2013 carece de fundamento legal, devendo, consequentemente, a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios supra identificada ser anulada na parte correspondente, i.e., € 1.408.406,16 (incluindo os juros compensatórios agravados de € 114.747,46) e juros compensatórios de € 104.570,26, no total de € 1.512.976,42.
B -Indemnização por prestação de garantia indevida.
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A Requerente formula ainda um pedido de indemnização pela prestação indevida de garantia bancária no processo executivo.
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Conforme o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
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A norma contida na alínea b) do artigo 24.º do RJAT é, aliás, coerente com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
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Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
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Assim, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (artigos 99.º e 124.º do CPPT) pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização pela prestação de garantia indevida.
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No que diz respeito ao pedido de condenação da Requerida no pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia, o artigo 171.º do CPPT estabelece que “a indemnização em caso de garantia indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda” e que “a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.
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É, assim, inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação em indemnização pela prestação indevida de garantia bancária.
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No caso sub judice, a Requerente apresentou garantia bancária, emitida pelo Banco I…, S.A. com o n.º … e no valor de € 26.022.893,31.
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Nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 53.º da LGT, “[o] devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida”, não se aplicando o prazo de três anos “quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo”.
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No caso vertente, a liquidação adicional enferma de um erro – ilegalidade lato sensu – que é exclusivamente imputável aos serviços da AT.
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Assim, procedendo o pedido de pronúncia arbitral, reconhece-se o direito da Requerente a ser indemnizada pela AT pela prestação indevida da garantia bancária no processo executivo.
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Concluindo-se que assiste razão à Requerente no presente processo, esta deverá ser ressarcida pela Requerida dos prejuízos resultantes da prestação indevida de garantia no processo de execução fiscal n.º …2017…, nos termos previstos nos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT, conforme vier a ser apurado em sede de execução do presente acórdão.
§ 2. Demais questões suscitadas nos autos
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Fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas nos autos.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal e anular parcialmente o ato de liquidação de IRC n.º 2017…, de 6 de setembro de 2017, respeitante ao exercício de 2013, no montante de € 1.408.406,16 (incluindo IRC de € 1.293.658,70 e juros compensatórios agravados de € 114.747,46), bem como o ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2017…, na correspondente quota-parte no valor de € 104.570,26, num total de € 1.512.976,42;
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Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de uma indemnização pela prestação indevida de garantia bancária no processo de execução fiscal n.º …2017…, nos termos previstos nos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT, conforme vier a ser apurado em sede de execução do julgado.
V. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.512.976,42 (um milhão quinhentos e doze mil novecentos e setenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos).
VI.CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €20.196,00 (vinte mil cento e noventa e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de maio de 2018
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
(Árbitro Presidente)
Paulo Jorge Nogueira da Costa
(Árbitro Adjunto)
Maria Cristina Aragão Seia
(Árbitra Adjunta)
[1] Da Empresarialidade (As Empresas no Direito), Coleção Teses, Almedina, 1999, pp. 216-217.
[2] Os Grupos de Sociedades - Estrutura e Organização Jurídica da Empresa Plurissocietária, 2: edição, Almedina, Coimbra, 2002
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