DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. No dia 28 de dezembro de 2017, a sociedade comercial A..., S. A., NIPC..., com sede na Rua ..., ..., Lisboa (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade parcial da liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante, AIMI) com o n.º 2017..., emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira com referência ao ano de 2017, no montante total de € 11.196,54.
A Requerente juntou 4 (quatro) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
1.1. No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte:
É proprietária de um imóvel inscrito na matriz predial urbana como um terreno para construção.
Em janeiro de 1984, celebrou com uma outra sociedade comercial um contrato de comodato que teve por objeto esta entidade «“edificar e implantar” sobre aquele terreno “uma unidade industria[l] de fundição” para efeitos de desenvolvimento do respectivo “projecto industrial” projectado pela mesma».
Nessa sequência, a dita sociedade comercial promoveu um projeto de empreitada naquele terreno que culminou com a edificação da referida instalação fabril necessária à prossecução da sua atividade industrial.
Em face da edificação daquela instalação fabril, a mencionada sociedade comercial promoveu a inscrição matricial do imóvel por si construído, em seu nome, ao qual a Autoridade Tributária e Aduaneira conferiu um artigo matricial autónomo, tendo classificado o referido prédio como um «“prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente”, atribuindo-lhe uma afectação de “armazéns e actividade industrial” em face das características e finalidade ao qual o mesmo se destinava no âmbito da actividade desenvolvida pela» dita empresa.
Consequentemente, a referida empresa passou a ser anualmente notificada pela AT para efetuar o pagamento do IMI devido por aquele prédio em propriedade total, enquanto que, paralelamente, a Requerente continuou a pagar anualmente esse mesmo imposto, liquidado de acordo com as regras de avaliação estabelecidas para um prédio do tipo “terreno para construção”.
A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento da liquidação de AIMI controvertida, no valor global de € 11.196,54, apurado com referência ao património predial por si detido no ano de 2017, sendo que uma parcela daquele valor, concretamente o montante de € 10.786,27, corresponde ao AIMI alegadamente devido pela Requerente pela detenção do aludido terreno para construção.
Apesar de ter procedido tempestivamente ao pagamento integral daquela liquidação de AIMI, a Requerente não concorda (parcialmente) com o apuramento de imposto realizado pela AT, designadamente na parte em que é contabilizado para o cálculo deste adicional o valor patrimonial tributário de € 2.696.567,68 do referido terreno para construção.
Não obstante a Requerente se encontrar (por lapso) ainda inscrita no cadastro predial como entidade proprietária de um imóvel do tipo “terreno para construção”, importa ter em consideração que, à data da liquidação de AIMI controvertida, a situação fáctica ali existente compreendia já um prédio urbano autónomo e edificado, destinado a fins industriais e que, por essa razão, não se constituía, por si só, como um facto relevante para efeitos de tributação em AIMI.
Desta forma, não reunindo aquela realidade fáctica os pressupostos necessários para continuar a ser subsumida ao conceito fiscal de “terreno para construção”, previsto no artigo 6.º do Código do IMI, entende a Requerente que o ato tributário de liquidação de AIMI controvertido padece de manifesto erro nos pressupostos de facto e de direito, devendo ser declarado ilegal.
A Requerente propugna que a ratio legis que esteve na génese da regra de exclusão de incidência objetiva, consagrada no n.º 2 do artigo 135.º-B do Código do IMI, assentou, essencialmente, na intenção de não sobrecarregar fiscalmente os sujeitos passivos que, por força das suas atividades económicas, detêm imóveis para a prossecução do respetivo objeto social. Com efeito, afirma a Requerente, o legislador pretendeu garantir que os prédios urbanos afetos às atividades económicas não estariam sujeitos a tributação em AIMI, reconhecendo que a mera detenção desses imóveis não constitui (e não pode constituir) um fator demonstrador de riqueza, nem um indicador suficiente de capacidade contributiva dos titulares desses imóveis.
Por isso, a Requerente não aceita que a AT, através do ato de liquidação controvertido, tenha feito incidir o AIMI sobre o prédio em apreço, destinado à atividade económica da sobredita sociedade comercial, não podendo, igualmente, aceitar que a AT tenha considerado, no apuramento do valor patrimonial tributário sujeito a AIMI, um “terreno para construção” cuja potencial utilização coincida com fins “comercias, industriais ou serviços”.
Por outro lado, diz a Requerente que estando aqui em causa uma clara situação de duplicação de registos para a mesma realidade fáctica, cumprirá aferir qual dos registos matriciais deverá prevalecer in casu por forma a fazer o juízo de (i)legalidade do ato tributação de liquidação de AIMI controvertido.
Sem prejuízo da necessária regularização do registo cadastral do aludido imóvel, está aqui em causa uma clara situação de coexistência de duas realidades matriciais distintas para a mesma realidade de facto, ambas subsumíveis às regras de tributação do Código do IMI, o que se afigura inadmissível na ordem jurídica.
Uma vez que naquele terreno para construção foi realizada uma edificação, não prevista, mas efetivamente concluída, a Requerente entende que deixou de estar reunido o elemento que constitui a pedra de toque para a classificação do dito imóvel por ela detido como um “terreno para construção”, ou seja, a mera expetativa jurídica consubstanciada num direito de naquela parcela de terreno se vir a construir um prédio com determinadas características e com determinado valor, encontrando-se já ali em causa uma efetiva realidade materializada.
Pelo que, conclui a Requerente, não sendo ela proprietária, a 1 de Janeiro de 2017, de um prédio da espécie “terreno para construção” ou afeto a fins habitacionais localizado em território português, inexiste facto tributário que constitua condição sine qua non para efeitos de fixação da matéria tributável e de liquidação de AIMI, resultando assim evidente que o ato tributário de liquidação de AIMI controvertido enferma de manifesto erro de facto e de direito, devendo ser declarado parcialmente ilegal e anulado para todos os efeitos.
A Requerente remata o seu articulado inicial peticionando o seguinte:
«Termos em que se requer a V. Exa. que o presente pedido de pronúncia arbitral seja considerado inteiramente procedente e, em consequência:
-
Seja declarada a ilegalidade do acto tributário de liquidação de AIMI sub judice, emitido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ao abrigo do n.º 1 do artigo 135.º-F do Código do IMI, procedendo-se, consequentemente, à anulação do mesmo, por padecer de erro nos pressupostos de facto e de direito;
-
Seja a Autoridade Tributária e Aduaneira condenada a reembolsar parcialmente a Requerente do valor do AIMI pago relativamente à liquidação sub judice, no valor de € 10.786,27;
-
Seja a Autoridade Tributária e Aduaneira condenada ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral da quantia devida e calculados sobre o imposto.»
2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 29 de dezembro de 2017.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 14 de fevereiro de 2018, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 6 de março de 2018.
6. No dia 17 de abril de 2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e concluiu pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
A Requerida não juntou documentos, não requereu a produção de quaisquer outras provas, nem procedeu à junção aos autos do processo administrativo, por o mesmo não existir.
6.1. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta:
A AT está sujeita ao princípio da legalidade, conforme estatuído nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, 3.º, n.º 1, do CPA e 55.º da LGT, pelo que a sua atuação não podia ser diferente.
No respeitante às pessoas coletivas e estruturas equiparadas, o AIMI assume a natureza de imposto real, uma vez que a modelação do quantitativo a pagar abstrai da dimensão económica das entidades, designadamente a qualificação como pequena, média ou grande empresa, bem como não atinge a totalidade do património líquido das entidades; desta forma, reflete a ideia de que os elementos integrantes do património imobiliário detido por estas entidades desempenham, em regra, uma função económica, não representando, por isso, uma mera acumulação de riqueza.
O AIMI visa, primeiramente, atingir uma parcela do património dos sujeitos passivos do imposto, incidindo sobre os bens imóveis constitutivos de um património, reconhecível juridicamente como capital de uma determinada entidade (singular ou coletiva), independentemente do mesmo estar afeto a qualquer processo produtivo ou gerador de rendimentos; a Requerida entende ser este o propósito do n.º 1 do artigo 135.º-B do Código do IMI.
No entanto, segundo a Requerida, o legislador optou no n.º 2 daquele mesmo preceito por uma delimitação negativa da incidência, excluindo do AIMI imóveis que, pela sua potencial afetação, podem ser economicamente reconhecidos como fatores de produção, a título de capital, ou seja, como bens intermédios que, conjugados com os demais fatores de produção, produzem novas utilidades.
Para tal, sustenta a Requerida, o legislador recorreu a um critério que convoca a estrutura de tipologias de prédio urbano previstas no artigo 6.º do Código do IMI e que opera através da subtração ao AIMI dos prédios urbanos que, fruto do licenciamento de utilização declarado pelos municípios ou, na sua falta, do respetivo destino normal, são reconduzidos às tipologias das alíneas b) e d) do n.º 1 daquele mesmo preceito legal.
Assim, o universo de prédios urbanos sujeitos ao AIMI é apurado por recurso às restantes duas tipologias constantes do n.º 1 do citado artigo 6.º: prédios urbanos habitacionais e terrenos para construção.
Por outro lado, afirma a Requerida que os terrenos para construção não são meramente instrumentais ao exercício da atividade, ao contrário, integram o próprio núcleo da atividade económica, são o objeto do comércio ou indústria, pois destinam-se a revenda ou a transformação em caso de neles serem erigidas construções para posterior venda.
Os terrenos para construção não se reconduzem a meros direitos de construção, sendo bens autónomos que, até pela sua natural escassez, têm sempre valor económico intrínseco e cotação no mercado imobiliário; diferentemente, os imóveis excluídos da sujeição ao AIMI, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º-B do Código do IMI, é que desempenham uma função instrumental às atividades económicas industriais, comerciais ou de serviços, na medida em que constituem edificações que servem de suporte ao funcionamento das referidas atividades e não são por si mesmos geradores de rendimentos. E mesmo que os terrenos para construção possam revelar-se instrumentais da atividade da sociedade, os mesmos são idóneos a indicar que aquela pessoa coletiva é titular de bens que, em si mesmos, evidenciam uma específica abastança face aos demais proprietários imobiliários.
Segundo a Requerida, apenas seria possível adotar um diferente entendimento se a específica qualidade do sujeito passivo e/ou a sua natureza estivesse projetada no critério normativo em sindicância, o que não acontece.
Noutra ordem de considerações, a Requerida sustenta que na data da tributação em AIMI dos terrenos para construção só cabe atender à própria realidade do terreno, tal como o mesmo é legalmente caracterizado e tendo em conta o VPT constante da matriz, não a uma edificação futura, com a consequente espécie de prédio urbano que venha a surgir subsequentemente, incluindo as frações autónomas ou andares suscetíveis de utilização independente que possam existir. Sendo certo que após essa edificação, teremos um novo facto tributário, um novo VPT e uma nova realidade jurídico-tributária que terá, no momento da verificação do novo facto tributário, o seu tratamento em sede de tributação efetuado em consonância com essa nova realidade.
No referente ao pagamento de juros indemnizatórios, a Requerida entende que por o ato de liquidação controvertido não enfermar de vício que deva ditar a sua anulação/declaração de nulidade, os mesmos não são devidos.
Ademais, a AT, enquanto órgão da Administração Pública, não tem competência para decidir da não aplicação de normas relativamente às quais sejam suscitadas dúvidas de constitucionalidade, pelo que aos serviços da AT não pode ser imputado, neste caso concreto, qualquer erro de facto ou de direito, dada a obediência à lei que enforma toda a sua atividade e, portanto, não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu; o que determina que não há suporte legal para o pedido de juros indemnizatórios.
A Requerida remata assim o seu articulado:
«Nestes termos, e nos mais de direito, e com o mui douto suprimento de V. Exa.:
(i) Deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, nos termos acima peticionados, tudo com as devidas e legais consequências.»
7. Em 18 de abril de 2018, foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, a conceder prazo para a apresentação de alegações escritas e a fixar o dia 31 de julho de 2018 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
7.1. Nenhuma das partes apresentou alegações escritas.
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II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
O processo não enferma de nulidades.
As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.
Não há exceções ou quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. DE FACTO
§1. FACTOS PROVADOS
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é proprietária de um imóvel que, em 1 de janeiro de 2017, estava inscrito na respetiva matriz predial urbana na sua titularidade, com os seguintes dados identificativos, descritivos e de avaliação [cf. documento n.º 2 com a PI]:
b) Em janeiro de 1984, a Requerente celebrou com a sociedade comercial B..., S. A., NIPC..., um denominado “Contrato de Comodato e Pacto de Preferência” – junto como documento n.º 3 ao pedido de pronúncia arbitral e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido –, que teve por objeto o terreno para construção mencionado no facto provado anterior e que teve em vista a comodatária “nele edificar e implantar uma unidade industrial de fundição em execução do seu projecto industrial”, tendo sido estabelecido entre as partes o demais que nele foi clausulado e que aqui se dá como reproduzido.
c) Nessa sequência, a B..., S. A. promoveu um projeto de empreitada naquele mesmo terreno, o qual culminou com a edificação de uma instalação fabril necessária à prossecução da atividade industrial desta empresa.
d) Em virtude da edificação daquela instalação fabril, a B..., S. A. promoveu a inscrição matricial do imóvel construído a suas expensas, em seu nome, ao qual a Autoridade Tributária e Aduaneira atribuiu um artigo matricial autónomo, concretamente o n.º ... da freguesia de ..., concelho e distrito de Aveiro, correspondente a um prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, com o valor patrimonial tributário de € 4.409.190,00, com a «Afectação: Armazéns e actividade industrial» e com o «Tipo de coeficiente de localização: Indústria». [cf. documento n.º 4 com a PI]
e) A B..., S. A. passou a ser anualmente notificada pela AT para proceder ao pagamento do IMI atinente ao prédio mencionado no facto provado anterior e, paralelamente, a Requerente continuou a ser anualmente notificada pela AT para proceder ao pagamento do IMI referente ao imóvel mencionado no facto provado a).
f) A Requerente foi notificada da liquidação de AIMI n.º 2017..., emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira com referência ao ano de 2017, no montante total de € 11.196,54, com prazo de pagamento no mês de setembro de 2018. [cf. documento n.º 1 com a PI]
g) Na mencionada liquidação foi considerado o valor tributável total de € 2.799.134,66, correspondente ao somatório dos valores patrimoniais tributários dos seguintes prédios urbanos [cf. documento n.º 1 com a PI]:
Identificação do prédio
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VPT (€)
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...– ...
|
2.696.567,88
|
...–...
|
45.511,48
|
...-...
|
57.055,50
|
h) A Requerente efetuou tempestivamente o pagamento integral do referido montante de AIMI liquidado.
i) Em 28 de dezembro de 2017, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]
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§2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.
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§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO
No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, e nos documentos juntos aos autos.
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III.2. DE DIREITO
§1. DO ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DO AIMI
O Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI) foi criado pelo artigo 219.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2017, mediante o aditamento ao Código do IMI dos artigos 135.º-A a 135.º-K, que estabelecem o respetivo regime jurídico, passando a constituir o capítulo XV daquele compêndio legal.
No artigo 135.º-A do Código do IMI é definida a incidência subjetiva do AIMI, nos seguintes termos:
Artigo 135.º-A
Incidência subjetiva
1 – São sujeitos passivos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis as pessoas singulares ou coletivas que sejam proprietários, usufrutuários ou superficiários de prédios urbanos situados no território português.
2 – Para efeitos do n.º 1, são equiparados a pessoas coletivas quaisquer estruturas ou centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica que figurem nas matrizes como sujeitos passivos do imposto municipal sobre imóveis.
3 – A qualidade de sujeito passivo é determinada em conformidade com os critérios estabelecidos no artigo 8.º do presente Código, com as necessárias adaptações, tendo por referência a data de 1 de janeiro do ano a que o adicional ao imposto municipal sobre imóveis respeita.
4 – Não são sujeitos passivos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis as empresas municipais.
O artigo 135.º-B define a incidência objetiva do AIMI estatuindo o seguinte:
Artigo 135.º-B
Incidência objetiva
1 - O adicional ao imposto municipal sobre imóveis incide sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos situados em território português de que o sujeito passivo seja titular.
2 - São excluídos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º deste Código.
Este regime exclui da incidência do AIMI «os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º» do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), pelo que apenas são abrangidos os prédios urbanos afetos a fins habitacionais e os terrenos para construção, tal como definidos naquele artigo 6.º.
O artigo 6.º do Código do IMI estabelece o seguinte:
Artigo 6.º
Espécies de prédios urbanos
1 – Os prédios urbanos dividem-se em:
a) Habitacionais;
b) Comerciais, industriais ou para serviços;
c) Terrenos para construção;
d) Outros.
2 – Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.
3 – Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos.
4 – Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da excepção do n.º 3.
A partir desta delimitação negativa de incidência, a Requerente extrai a conclusão de que se pretendeu criar um imposto sobre a fortuna imobiliária, em que os prédios urbanos afetos às atividades económicas não estarão sujeitos a tributação em AIMI.
A preocupação legislativa de «evitar o impacto deste imposto na atividade económica» foi anunciada na Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2017 e era concretizada através da exclusão do âmbito de incidência dos «prédios urbanos classificados na espécie “industriais”, bem como os prédios urbanos licenciados para a atividade turística, estes últimos desde que devidamente declarado e comprovado o seu destino» e da dedução ao valor tributável do montante de «€ 600 000,00, quando o sujeito passivo é uma pessoa coletiva com atividade agrícola, industrial ou comercial, para os imóveis diretamente afetos ao seu funcionamento».
No entanto, não foi com base na atividade a que estão afetos os imóveis que veio a ser definida a exclusão de incidência, pois na redação que veio a ser aprovada definiu-se a não incidência apenas com base nos tipos de prédios indicados no artigo 6.º do Código do IMI, sem qualquer alusão à afetação ou não ao funcionamento das pessoas coletivas.
Se tivesse sido mantida, na redação final do Orçamento, a intenção legislativa de afastar a incidência sobre os imóveis diretamente afetos ao funcionamento das pessoas coletivas, decerto teria sido mantida a referência a esta afetação que constava da proposta e que expressava claramente essa opção legislativa.
Assim, tendo sido suprimida essa alusão à afetação dos imóveis, não há suporte legal para concluir que os prédios habitacionais e os terrenos para construção afetos ao funcionamento das pessoas coletivas não relevem para a incidência do AIMI.
Com efeito, em face do afastamento da redação proposta em que se dava relevância à afetação dos imóveis, não há razão para concluir que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, como tem de se presumir, por força do disposto no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.
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§2. DO CASO CONCRETO
A Requerente começa por alegar que não é aceitável, nem sequer compreensível, que a AT, através do ato de liquidação controvertido, «tenha considerado, no apuramento do valor patrimonial tributário sujeito a AIMI, um “terreno para construção” cuja potencial utilização coincida com fins “comerciais, industriais ou serviços”».
A Requerente começa pois por propugnar que não deve relevar para a determinação do valor tributável do AIMI o valor do terreno para construção com o artigo matricial n.º 4158, que está indicado na caderneta predial que foi determinado com base no «Tipo de coeficiente de localização: Indústria».
Se bem compreendemos esta posição da Requerente, cremos que lhe subjaz o entendimento de que o artigo 135.º-B do Código do IMI deverá ser interpretado com o sentido de que não releva para efeitos do AIMI o valor tributável dos terrenos para construção que não se destinam a habitação, em coerência com a opção legislativa de excluir da incidência os prédios classificados como «comerciais, industriais ou para serviços».
Não é questionado que o aludido terreno se destina a construção de prédio para «indústria», como leva, desde logo, a concluir o tipo de coeficiente de localização utilizado.
Sendo o facto tributário escolhido como índice de capacidade contributiva a titularidade de património imobiliário de valor considerado elevado, não terá coerência não aplicar o tributo a edifícios destinados a indústria e aplicá-lo aos terrenos que se destinam à sua construção, cujo valor é incorporado no valor dos edifícios.
Assim, numa perspetiva que tenha em mente a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), que tem valor interpretativo decisivo, imposto pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica[1], deverá interpretar-se extensivamente a exclusão prevista no n.º 2 do artigo 135.º-B do Código do IMI, relativa aos prédios urbanos classificados como para «indústria», como expressando uma intenção legislativa de excluir também da tributação os terrenos destinados à construção desses prédios.
Acresce que, a adotar-se uma interpretação literal desta norma, com o sentido de todos os terrenos para construção estarem abrangidos pela incidência do AIMI, ela será então materialmente inconstitucional, por incompaginável com o princípio da igualdade (cf. artigo 13.º da CRP), ao considerar facto tributário a titularidade de terrenos para construção de prédios destinados a indústria e não a titularidade dos prédios neles construídos, por consubstanciar um tratamento desprivilegiado dos contribuintes que se encontram na primeira situação, sem justificação material, pois é necessariamente menor a capacidade contributiva indiciada pelo património imobiliário nessa situação, que terá de estar presente, e com aumento, na segunda.
Em situações de injustificado tratamento discriminatório, traduzido na imposição de um dever ou encargo com violação do princípio da igualdade, o que é ilegítimo é, em princípio, o ato de imposição do dever apenas a alguns dos contribuintes, devendo a desigualdade ser resolvida com eliminação dos deveres ou encargos para quem com eles foi discriminatoriamente onerado[2].
Pelo exposto, a liquidação de AIMI impugnada enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 135.º-B, n.º 2, do Código do IMI, na parte em que inclui no valor tributável o valor patrimonial tributário do terreno para construção com o artigo matricial n.º 4158, pelo que se justifica a sua anulação, na parte respetiva, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Nestes termos, o pedido de pronúncia arbitral procede com fundamento no indicado vício de violação de lei, pelo que fica prejudicada, por inútil, a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente.
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§3. DO REEMBOLSO DA QUANTIA PAGA E DO PAGAMENTO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente peticiona, ainda, a condenação da AT ao reembolso do imposto pago indevidamente, no montante de €10.786,27, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.
O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do estatuído no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e no artigo 61.º, n.º 4, do CPPT.
Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Por outro lado, dependendo o direito a juros indemnizatórios de direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.
Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso do montante indevidamente pago e de pagamento de juros indemnizatórios.
§3.1. DO DIREITO AO REEMBOLSO DA QUANTIA PAGA
Na sequência da ilegalidade parcial do ato de liquidação controvertido, há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal afigura-se essencial para restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.
Destarte, procede o pedido de reembolso da quantia de € 10.786,27.
§3.2. DO PAGAMENTO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT que os “juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos”.
No caso concreto, a Requerente pagou o montante de AIMI liquidado e tem direito ao reembolso da quantia de € 10.786,27.
Ademais, verifica-se que a ilegalidade parcial da liquidação de AIMI controvertida é imputável à AT por, naquela liquidação, ter procedido à incorreta interpretação e aplicação do disposto no artigo 135.º-B, n.º 2, do Código do IMI, pelo que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, relativamente ao montante a reembolsar, calculados desde a data em que efetuou o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos, à taxa legal supletiva, nos termos estatuídos nos artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
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IV. DECISÃO
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
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A liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis com o n.º 2017...:
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é declarada ilegal na parte em que aplica o AIMI ao valor patrimonial tributário do terreno para construção com o artigo matricial n.º ... da freguesia de ... do concelho e distrito de Aveiro;
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é parcialmente anulada, quanto ao valor de € 10.786,27;
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A Autoridade Tributária e Aduaneira é condenada:
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a reembolsar à Requerente o AIMI indevidamente pago, no montante de € 10.786,27;
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a pagar juros indemnizatórios à Requerente, calculados sobre o montante de € 10.786,27, desde a data do pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos;
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a pagar as custas do processo.
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VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 10.786,27 (dez mil setecentos e oitenta e seis euros e vinte e sete cêntimos).
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CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, o montante das custas é fixado em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
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Lisboa, 1 de junho de 2018.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)
[1] BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 2016, p. 191.
[2] Neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 344.