Decisão Arbitral
I – Relatório
A Requerente, A…, S.A., com o número único de matrícula e de identificação fiscal…, com sede na …, n.º …, …, em Lisboa, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do art. 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à anulação da autoliquidação de IRC do exercício de 2008, com o n.º 2009… e da autoliquidação de IRC do exercício de 2009, com o n.º 2010… .
A Requerente peticiona ainda reembolso do montante de € 3.528.711,61 que alega ter pago em excesso, referente ao ano de 2008, acrescido de juros indemnizatórios vencidos e vincendos, calculados à taxa máxima legal, até efetivo e integral pagamento.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados para integrar o Tribunal Coletivo, os signatários, que comunicaram ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regulamentar aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 28 de setembro de 2017.
Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, sinteticamente, os seguintes:
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No âmbito da sua atividade, a Requerente vende aos seus concessionários veículos automóveis para que estes os coloquem no mercado e procedam à sua venda ao público e, conforme contratualmente estabelecido, está vinculada ao pagamento de comissões e de outras formas de incentivos promocionais aos concessionários, após a data em que estes procedam à venda do veículo automóvel ao cliente final, sendo estes montantes designados pelo jargão inglês “Variable Marketing” e contabilizados ao abrigo do normativo contabilístico como publicidade e promoção de vendas.
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Na vigência do Plano Oficial de Contabilidade (POC), a Requerente registou nas suas contas, até ao ano de 2009, relativamente a veículos vendidos pela A… aos concessionários e ainda não vendidos por estes ao cliente final, o ganho proveniente da venda dos veículos aos seus concessionários e, simultaneamente, numa conta de “Provisões” os montantes referentes à comissão e outros incentivos a pagar aos mesmos (conta POC #298 – Outras provisões) e no momento em que a Requerente pagava a comissão aos seus concessionários pela venda dos veículos ao cliente final, o respetivo montante era reduzido à mesma conta de “Provisões”.
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Com a implementação do Sistema Normalização Contabilística (SNC), em 2010, e na sequência de uma análise aprofundada ao método de reconhecimento dos elementos das suas demonstrações de resultados, a Requerente concluiu que, dada a natureza dos referidos encargos respeitantes comissões a pagar aos seus concessionários no momento em que estes vendiam os veículos ao cliente final, estes montantes deveriam ser reconhecidos como estimativas de encargos certos do exercício em que os veículos são vendidos aos concessionários, e não como provisões.
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Deste modo, no exercício de 2010, na vigência do SNC, os montantes referentes às comissões a pagar aos concessionários foram registados pela Requerente, enquanto estimativa de custos, numa conta SNC #281 – Gastos a reconhecer.
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Adicionalmente, na sequência da análise e reflexão efetuadas, a Requerente concluiu que a reclassificação dos referidos gastos deveria, por uma questão de coerência e, uma vez que em substância tudo se passava de forma semelhante em exercícios anteriores, aplicar-se tal reclassificação aos exercícios anteriores, nomeadamente 2008 e 2009.
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Por isso, em linha com aquela conclusão a Requerente apresentou tempestivamente, em 30 de maio de 2011, uma Reclamação Graciosa, nos termos do artigo 131.º do CPPT, referente às autoliquidações dos exercícios de 2008 e 2009, ora objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, alegando erro nas mesmas.
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A Requerente foi notificada do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada, com base nos seguintes argumentos:
-A interpretação dada pela Requerente para os encargos com as comissões a pagar aos concessionários nos exercícios de 2010 e seguintes, não se traduzem em provisões, porque se encontra perfeitamente definido o momento e quantia a mensurar, tratando-se, pois, de passivos, por respeitarem a obrigações presentes da entidade provenientes de acontecimentos passados, cuja liquidação se espera que resulte num exfluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos;
-Nos anos de 2008 e 2009, na vigência do POC, a Requerente tratou os encargos com a estimativa das comissões a pagar aos concessionários, como provisões, as quais, não sendo aceites para efeitos fiscais, seriam acrescidas no exercício da sua constituição e deduzidas aquando da sua utilização. Seriam, portanto, tratadas como diferenças temporárias;
-Atendendo ao tratamento contabilístico adotado pela Requerente, está-se perante diferenças temporárias dedutíveis, uma vez que são dedutíveis na determinação do resultado fiscal de períodos futuros, quando os correspondentes ativos ou passivos se extinguirem;
-Considera-se que o procedimento escolhido pela Requerente não fere a lei fiscal em vigor naqueles exercícios (2008 e 2009), nem se observa que a Requerente esteja a ser lesada, na medida em que os gastos que considerou como provisões, e não relevados para efeitos fiscais (por não respeitarem os preceitos legais), foram revertidos no exercício seguinte ou nos exercícios seguintes, através da desconsideração fiscal dos proveitos registados contabilisticamente, com respeito à utilização das provisões e com o consequente registo em gastos dos pagamentos efetuados;
-Não existe, numa ótica temporal mais alargada, qualquer imposto entregue pela Requerente indevidamente, porque tal como a mesma refere na sua exposição (artigo 34.º) “em virtude do pagamento efectivo dos montantes em questão, a Reclamante deduziu à sua matéria colectável o montante correspondente à redução de provisões previamente tributadas”.
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A Requerente apresentou, em 5 de agosto de 2015, um requerimento abrigo do seu direito de audição, onde, em suma, invocou que:
-A Requerente apenas reverteu parcialmente, nos exercícios de 2008 e 2009, os encargos com comissões e campanhas promocionais reconhecidos na contabilidade até 2009, e desconsiderados para efeitos fiscais, sendo que o montante de € 21.046.959,19 não foi revertido;
-Em 2010 a Requerente não procedeu à dedução dos pagamentos efetuados correspondentes a comissões e campanhas cujo gasto havia sido contabilizado e não deduzido em exercícios anteriores;
-Em 2010 a Requerente analisou a substância dos encargos referidos, e concluiu que estes de facto não deveriam estar a ser reconhecidos na contabilidade como provisões, mas sim como estimativas de encargos certos previstos contratualmente no exercício em que os veículos foram vendidos aos concessionários;
-Nos anos anteriores a 2010, foram indevidamente acrescidos à matéria coletável da Requerente, originando IRC e derrama pagos em excesso no exercício de 2008, e um apuramento erróneo de prejuízos fiscais relativamente ao exercício de 2009;
-A Requerente foi lesada, uma vez que em 2008 pagou IRC em excesso no montante de € 3.328.973,22 e derrama em excesso no montante de € 199.738,39, sendo que adicionalmente, nos exercícios de 2010 e seguintes a Requerente não procedeu à dedução dos montantes pagos correspondentes aos encargos estimados acrescidos em anos anteriores e, por este motivo, não foi possível deduzir os € 21.046.959,19 que haviam sido tributados.
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A Requerente foi notificada, em 28 de abril de 2017, do indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada, com base na mesma argumentação vertida no projeto de indeferimento, tendo a Administração Tributária invocado, ainda, que a existir algum ajustamento, este apenas deveria ocorrer a partir de 31 de dezembro de 2009, atenta a reclassificação e, nessa medida, com efeitos a partir do ano de 2010
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Em sede do projeto de decisão, a Administração Tributária veio invocar, por um lado, que o “procedimento registral inicialmente acolhido pela [Requerente] não colide com a lei fiscal vigente à data dos factos em apreço” e, por outro lado, que “não existe, numa ótica temporal mais ampla, qualquer tributo em excesso, porque tal como a [Requerente] afirma na sua petição inicial, no seu artigo 34.º:“em virtude do pagamento efectivo dos montantes em questão, a Reclamante deduziu à sua matéria colectável o montante correspondente à redução de provisões previamente tributadas”
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Em sede de audição prévia e, em resposta à alegação da Administração Tributária, a Requerente invocou que:
- A Requerente não procedeu à dedução integral dos pagamentos efetuados correspondentes a comissões e campanhas cujo gasto havia sido contabilizado e não deduzidos em exercícios anteriores, estando por deduzir o montante de € 21.046.959,19, valor que foi tributado até 2009, pago após 2009 e não foi deduzido no exercício de 2010 e seguintes;
- Atendendo a esta situação, a Requerente é, de facto, lesada, na medida em que pagou imposto em excesso em 2008, no valor global de € 3.528.711,61;
- O tratamento contabilístico da situação em apreço está relacionado com a substância dos encargos, os quais não deveriam ser reconhecidos como provisões, mas sim como estimativas de encargos certos previstos contratualmente no exercício em que os veículos foram vendidos aos concessionários.
- Contudo e, não obstante a alegação aduzida pela Requerente em sede de audição prévia, a Administração Tributária não esgrimiu qualquer comentário a esta situação, limitando-se a invocar que “[e]m conformidade com anteriormente exposto e compulsados todos os elementos dos autos, designadamente o nosso anterior “Projeto de Decisão” e as peças processuais carreadas pela Reclamante, nomeadamente a petição inicial e o seu requerimento de audição prévia, parece-nos de indeferir o pedido inserto nos autos, quer quanto ao ano de 2008, quer quanto ao ano de 2009”.
- Verifica-se, pois, que a decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa não se pronunciou sobre a argumentação vertida no requerimento de audição prévia apresentado tempestivamente pela Requerente.
- Ora, nos termos do n.º 7 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) “[o]s elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão”, sob pena de fundamentação deficiente, susceptível de levar à anulação da decisão do procedimento.
- Assim sendo, ao não se pronunciar sobre os novos elementos factuais invocados pela Requerente em sede de audição prévia - de que o tratamento contabilístico e fiscal inicialmente acolhido pela Requerente lesa a mesma, em virtude de implicar o pagamento de tributo em excesso em 2008 e, ainda, em virtude de a Requerente não ter deduzido à sua matéria coletável todos os montantes de encargos em que incorreu, a Administração Tributária violou, de forma lapidar, o disposto no n.º 7 do artigo 60.º da LGT.
- Pelo que, deverá a decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente ser anulada e, em consequência, ser anuladas as autoliquidações de IRC referentes aos exercícios de 2008 e 2009.
Da reclassificação das contas do balanço
Sobre esta matéria, alegou ainda a reclamante:
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É manifesto que os montantes a pagar pela Requerente a título de comissões aos concessionários tratam-se de passivos de quantia certa, razão pela qual não poderão ser tratados como provisões.
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E, não se tratando de provisões, estes gastos deverão ser reconhecidos como gastos no mesmo período em que são reconhecidos os rendimentos provenientes da venda de veículos pela Requerente àqueles concessionários.
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Em suma, tendo a Requerente reconhecido, em 2010, que a contabilização que vinha a adotar desde os anos anteriores para as comissões a pagar aos concessionários não estava correta – o pagamento a efetuar aos concessionários era (e é) um gasto determinável com fiabilidade quer quanto ao seu valor quer quanto à sua efetiva ocorrência, pelo que não cumpre os requisitos de constituição de uma provisão – procedeu à reclassificação contabilística dessa realidade.
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Em consequência, em conformidade com o princípio da justiça material - com ou sem norma expressa que o determine -, deverá prevalecer a substância do tratamento dos montantes a pagar pela Requerente a título de comissões aos concessionários.
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Ou seja, não obstante a contabilização dos valores em causa numa rubrica de “Provisões”, na medida em que a sua verdadeira natureza é de acréscimo de custos, deverá ser adotado o correspondente enquadramento fiscal - i.e. reconhecimento como gasto dos valores, a ocorrer no momento em que são reconhecidos como tal, sem que ocorra qualquer ajustamento para efeitos fiscais quando, no momento em que são estimados, são contabilizados na rubrica de balanço “POC #273 – Acréscimo de custos” em conformidade com o n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC, “os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.”
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Deste modo, tal como contabilisticamente, tais encargos deverão ser considerados como gastos no período de tributação em que os rendimentos que lhe estão associados são obtidos, independentemente do momento de seu efetivo pagamento.
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Na medida em que esta provisão não se encontra no leque de situações previstas no artigo 34.º do Código do IRC em vigor à data dos factos, a mesma não era aceite para efeitos fiscais, tendo sido, por esse motivo, objeto de acréscimo ao Q07 da declaração de rendimentos M22 de IRC da Requerente.
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Paralelamente, nos mesmos exercícios, e em virtude do pagamento efetivo de parte dos montantes em questão, a Requerente deduziu à sua matéria coletável parte do montante correspondente à redução de provisões previamente tributadas.
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Por entender que o tratamento contabilístico e fiscal dado aos encargos com comissões e campanhas promocionais não se afigurava correto, a Requerente não procedeu, em 2010 e nos exercícios seguintes, ao reconhecimento para efeitos fiscais dos pagamentos efetuados aos concessionários (via anulação e respetiva dedução da utilização da provisão constituída nos exercícios de 2008 e 2009), e cujo gasto havia sido contabilizado (como provisão em custos) e não deduzido nos exercícios anteriores a 2010.
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Assim, a Requerente entende que, em virtude da reclassificação das referidas contas do balanço, isto é, da consideração dos encargos com comissões e campanhas promocionais aos concessionários como devendo constar da conta POC #273 – Acréscimo de custos e, considerando que os gastos registados pela Requerente são fiscalmente aceites, entende a Requerente que deverão ser efetuados ajustamentos à sua matéria coletável, e, em consequência, relativamente ao exercício de 2008, deverão ser considerados prejuízos fiscais no montante de € 8.675.841,01 e, consequentemente, deverá ser reembolsado o montante de € 3.528.711,61 (correspondente a IRC em excesso no montante de € 3.328.973,22 e derrama em excesso no montante de € 199.738,39) e por seu turno e, no que respeita ao exercício de 2009, os prejuízos fiscais declarados deverão ser reduzidos para o montante de € 1.296.224,56.
Do direito a juros indemnizatórios
A fundamentar o seu pedido de juros indemnizatórios alega a Requerente:
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caso a interpretação efetuada pela Administração Tributária seja considerada ilegal e venham a ser anuladas as autoliquidações de IRC e, bem assim, a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada, deverá a Requerente ser ressarcida pelo período de tempo em que se viu privada da quantia indevidamente paga, por referência ao ano de 2008.
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Com efeito, a Requerente entende que, sem prejuízo da documentação adicional que foi solicitada e, bem assim, de todos os esclarecimentos prestados ao longo do procedimento administrativo, é manifesto que, desde 30 de maio de 2011, a Administração Tributária tinha em seu poder todos os elementos necessários para aceitar o tratamento contabilístico efetuado pela Requerente e, em consequência, dar-lhe a devida consequência ao nível fiscal (in casu, o reembolso de imposto no exercício de 2008 e a redução de prejuízo fiscal em 2009).
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Dispõe, nesse sentido, o artigo 43.º da LGT - ex vi n.º 5 do artigo 24.º do RJAT - que são devidos juros indemnizatórios ao sujeito passivo quando se determine que houve erro imputável aos serviços do qual tenha resulto o pagamento de dívida tributária superior ao devido.
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Assim, a dar-se provimento à pretensão da Requerente, não restam dúvidas de que, nos termos do referido preceito legal, são devidos juros indemnizatórios vencidos e vincendos, a calcular desde a data da apresentação da Reclamação Graciosa (i.e., 30 de maio de 2011) até ao efetivo e integral reembolso por parte da Administração Tributária, à taxa de 4% ao ano, nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, n.º 10 do artigo 35.º, e n.º 4 do artigo 43.º da LGT, 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril.
Resposta da AT
A AT – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por exceção e impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
POR EXCEÇÃO
Da incompetência parcial do tribunal arbitral em razão da matéria
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Suscita a incompetência parcial do Tribunal Arbitral Coletivo para apreciar a pretensa falta de fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação Graciosa porquanto, segundo alega, a apreciação de tal matéria extravasa as competências do Tribunal Arbitral;
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Com efeito, a competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias elencadas no Art.º 2.º n.º 1 do RJAT, a saber: «(…) a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.»
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Ora, a pretensa falta de fundamentação invocada pela Requerente redunda num vício próprio da Reclamação Graciosa, e não um vício de primeiro grau, ou seja, in casu, as autoliquidações de 2008 e 2009.
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À luz supra transcrito artigo resulta claramente que se encontra fora da jurisdição da arbitragem tributária a apreciação de quaisquer questões referentes a vícios próprios de actos de segundo grau (como é o caso da Reclamação Graciosa sub judice) ou de terceiro grau (v.g., Recurso Hierárquico) sob pena de violação da lei.
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A incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação da questão do pretenso vício de falta de fundamentação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto no Art.º 576.º n.º 1 e 2 e no Art.º 577.º alínea a) ambos do CPC ex vi do Art.º 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT.
POR IMPUGNAÇÃO
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À luz do Plano Oficial de Contabilidade (POC), em vigor aquando dos exercícios em análise, registou nas suas contas, relativamente aos veículos vendidos aos concessionários e ainda não vendidos por aqueles aos cliente finais, o ganho proveniente da venda desses veículos, registando simultaneamente numa conta de provisões - “conta POC 298: outras provisões”- os montantes referentes a comissões e outros incentivos a pagar aos concessionários.
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Logo, aquando do momento em que a Requerente, pagasse estes valores aos seus
concessionários, pela venda dos veículos aos clientes finais, o respetivo montante era deduzido na conta de provisões “conta POC 298: outras provisões”.
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Nos anos de 2008 e 2009, vigorava o POC, sendo ainda aplicável e CIRC, na redação à data, pelo que ao abrigo daqueles diplomas a Requerente constituiu uma provisão para efeitos de estimativa do pagamento da comissão e outros incentivos aos seus concessionários.
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Tal provisão não tinha enquadramento no CIRC, para ser deduzida fiscalmente, impondo-se que a Requerente acrescesse o montante da constituição e deduzindo, posteriormente, a sua utilização.
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E isto, pese embora a Requerente alegue que os valores registados contabilisticamente como provisões foram indevidamente acrescidos à matéria coletável, não corresponde à correta aplicação da lei, na medida em que foram devidamente acrescidos, tal como a dedução, que também se mostra correta, na exata medida em que a constituição não seria aceite fiscalmente.
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Relativamente aos valores em causa, os gastos relativos ao pagamento de comissões não só podem ser quantificados com elevada fiabilidade, uma vez que se encontram contratualmente estabelecidos entre a Requerente e os seus concessionários, como estes montantes estão direta e estreitamente relacionados com os rendimentos obtidos com a venda dos veículos, concluindo-se assim que dificilmente haverá variações entre os vários anos.
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Ou seja, quer em termos contabilísticos quer em termos fiscais, a única diferença poderia apenas resultar de um ínfimo desfasamento temporal ao longo dos vários anos de atividade da Requerente e não tem a ver com os valores provisionados mas sim com os pagamentos efetuados.
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Refira-se ainda que da análise aos elementos facultados, afere-se que os compromissos com o pagamento das comissões aos concessionários foram assumidos em cada um dos exercícios, 2008 e 2009, anteriores e posteriores, tendo o respetivo gasto sido reconhecido naqueles períodos.
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Para efeitos fiscais, a génese da questão relaciona-se com a caracterização dessas
responsabilidades, dado que contabilisticamente foram, naqueles anos, reconhecidas como provisões, numa primeira fase e como gasto no momento do pagamento.
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Com a aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), pelo Decreto-Lei n.° 158/2009, de 13 de Julho, cuja estrutura é muito próxima das Normas Internacionais de Contabilidade (NIC), foram criadas as condições para alterar o CIRC e respetiva legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável às NIC.
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De acordo com a estrutura conceptual do SNC "os gastos são reconhecidos na demonstração dos resultados quando tenha surgido uma diminuição dos beneficios económicos futuros relacionados com uma diminuição num activo ou com um aumento de um passivo que possam ser mensurados com fiabilidade.“.
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De igual modo dispõem a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 21 - Provisóes, passivos contingentes e activos contingentes, refere, no seu parágrafo 8 (definições) que provisão “é um passivo de tempestividade ou quantia incerta''.
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Daqui se depreende que a interpretação da Requerente para os encargos com as comissões a pagar aos concessionários, nos exercícios de 2010 e seguintes, não se traduzem em provisões, precisamente por se encontrar definido o momento e a quantia a mensurar.
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Tratam-se, de passivos, porquanto respeitam a obrigações presentes da entidade provenientes de acontecimentos passados, cuja liquidação se espera que resulte num exfluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos.
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Tais definições ocorreram a partir de 2010, com os ajustamentos que a Requerente teve obrigatoriamente de efetuar.
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Anteriormente, o POC aprovado pelo Decreto-Lei n.° 410/89 de 21 de Novembro, estabelecia nas suas considerações técnicas que “as provisões têm por objecto reconhecer as responsabilidades cuja natureza esteja claramente definida e que à data do balanço sejam de ocorrência provável ou certa, mas incertas quanto ao seu valor ou data de ocorrência”.
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Logo, nos anos de 2008 e 2009, com a vigência do POC, a Requerente tratou os encargos, com a estimativa das comissões a pagar aos concessionários, como provisões, as quais, não sendo aceites para efeitos fiscais, seriam acrescidas no exercício da sua constituição e deduzidas aquando da sua utilizado, ou seja, seriam, tratadas como diferenças temporárias.
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De acordo com a Diretriz Contabilística n.° 28 - Impostos sobre o Rendimento: Diferenças temporárias são “diferenças susceptíveis de compensação e períodos futuros entre os valores contabilísticos dos activos e passivos e a sua base tributável, incluindo as diferenças entre os resultados fiscais e os resultados contabilísticos que têm origem num periodo e sejam revertidas num ou mais períodos subsequentes “.
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Atendendo ao tratamento contabilístico adotado pela Requerente, estamos perante
diferencias temporárias dedutíveis, dado que “resultam de importâncias que sejam dedutíveis na determinação do resultado fiscal de periodos futuros, quando os correspondentes activos ou passivos se extinguirem".
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Logo, o procedimento efetuado pela Requerente não colide com a lei fiscal em vigor nos exercícios em causa (2008 e 2009).
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Ora, importa antes de mais por lembrar que foi em 2010, no âmbito da transição do POC para o SNC, que a Requerente alterou a política contabilística que vinha adotando, de modo coerente e consistentemente até ao final de 2009, em matéria de contabilização das comissões e incentivos promocionais atribuídos aos concessionários, passando a reconhecê-los na conta #281 – Gastos a reconhecer, segundo alega
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Ou seja, a Requerente fez tábua rasa da consistência da atuação do passado – até ao final de 2009 – e pretende projetar retrospetivamente as alterações introduzidas, em 2010, em termos da contabilização dos referidos encargos, nos dois anos anteriores, por alegadas razões de coerência, ainda que num quadro normativo contabilístico diferente, mas com o propósito de extrair apenas consequências fiscais.
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Neste contexto, vem a Requerente defender a tese de que a alteração introduzida, em 2010, por força do SNC, na forma de contabilização dos encargos com comissões e incentivos promocionais devidos aos concessionários se traduziu numa mera reclassificação das contas, ou seja, que não foi mais do que uma mudança de designação de contas e, consequentemente, não haveria lugar a qualquer ajustamento de transição.
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Todavia, à revelia do alegado a alteração não se limitou à designação das contas, foi mais funda, porquanto, implicou uma inflexão na própria interpretação das realidades subjacentes, já que na vigência do POC, a relevação contabilística das responsabilidades assumidas quanto ao pagamento das comissões aos concessionários como Provisões para outros riscos e encargos (conta 298- Outras provisões) baseava-se na provável existência de algum grau de incerteza, fosse quanto ao seu exato montante fosse quanto ao data da ocorrência do pagamento, ao passo que a relevação contabilística desses gastos em conta de acréscimos pressupõe a consideração de “um grau de incerteza muito menor do que nas provisões” (cf., parte final do §10 da NCRF21).
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Contudo, ao ser estabelecido, com a alteração contabilística em 2010, um alinhamento temporal, para efeitos contabilísticos e fiscais, entre o momento relevante para a imputação aos resultados dos gastos com as comissões a pagar aos concessionários, ficou em aberto a dedução fiscal dos gastos, a pagar em 2010, relacionados com as vendas efetuadas em 2009, que, naturalmente deveriam ter dado lugar a um ajustamento de transição.
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Com efeito, não se dispõe de elementos suficientes que permitam saber qual foi o tratamento dado, em 2010, aos gastos associados às provisões para riscos e encargos constituídas em 2009.
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Pois o que resulta é que em 2010, a Requerente procurou antecipar a solução para essa questão, nos exercícios de 2008 e de 2009 com os consequentes ajustamentos à autoliquidação, tendo, para o efeito, deduzido Reclamação Graciosa da autoliquidação, cujo indeferimento originou o presente pedido de pronúncia arbitral.
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Tal solução teria reflexos apenas no plano fiscal, na medida em que se reconduziria a uma alteração ao tratamento que, em conformidade com os preceitos fiscais e o normativo contabilístico, ao tempo, em vigor, foi dado aos valores inscritos nas declarações periódicas de rendimentos modelo 22, relativas aos exercícios de 2008 e de 2009, relacionados com as provisões donde resulta que a pretensão da Requerente, não contem qualquer apoio ou guarida na lei.
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Acresce que, apenas por razões de alegada coerência com tratamento contabilístico que, a partir de 2010, sob o quadro normativo do SNC, passou a conferir tal tratamento aos encargos sob análise, mais não tem em vista senão antecipar, para 2008, os efeitos da transição do POC para o SNC, concentrando o impacto fiscal da transição, na sua totalidade, no lucro tributável deste exercício.
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Com efeito, o lucro tributável de 2008, conforme os cálculos apresentados no quadro inserido no art.º 67.º PI, seria influenciado por uma dupla dedução:
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uma, de € 21.991.733,87, respeitante aos gastos estimados com o pagamento de comissões e de incentivos promocionais relacionados com as vendas de veículos aos concessionários registadas neste mesmo exercício, a pagar em exercícios posteriores; e; outra, de €17.870.442,28, relativos aos encargos da mesma natureza pagos em 2008 e relacionadas com as vendas realizadas no ano anterior.
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Ora, sendo o apuramento do lucro tributável efetuado com base na contabilidade e devendo estar organizada de acordo com a normalização contabilística em vigor, por força do disposto no n.º 1 é alínea a) do n.º 3 do art.º 17.º do C IRC, os sujeitos passivos não podem a posteriori, i.e, após o encerramento das contas, pretender extrair consequências fiscais, com reflexos no lucro tributável, de alterações contabilísticas meramente virtuais, como é o caso da Requerente.
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Pelo exposto, e na linha do que foi proferido na decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, os efeitos do ajustamento de transição do POC para o SNC, apenas assumem relevância fiscal a partir do exercício de 2010, inclusive, inexistindo qualquer suporte legal para refletir tal ajustamento no exercício de 2008, o qual, como atrás referido, provocaria que, no lucro tributável relativo a este exercício, fossem refletidos os encargos efetivamente pagos no ano e os encargos estimados.
Quanto ao alegado vício de falta de fundamentação
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Alega ainda a Requerente falta de fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, alegando que a decisão final não se pronunciou sobre a argumentação expendida no requerimento de audição prévia.
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Para além da exceção de incompetência desse Centro Arbitral para apreciar os vícios decorrente de um ato de 2º grau arguida, refira-se ainda que os argumentos da Requerente improcedem liminarmente.
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Ainda que a decisão de indeferimento ora colocada em crise padecesse de falta de fundamentação, tal vício nunca se projetaria no ato tributário (ato de primeiro grau).
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Na realidade, tal vício apenas teria a virtualidade de anular a decisão administrativa de Reclamação Graciosa, devendo, por conseguinte, aquele procedimento gracioso retroceder à etapa imediatamente anterior à falta cometida.
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Por outro lado, a secção de contencioso administrativo do STA tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do ato a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se degradam em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las, pelo que improcedem os argumentos aventados pela Requerente.
Quanto aos juros indemnizatórios
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Nos termos do Art.º 43.º da LGT apenas são devidos juros indemnizatórios quando o erro em causa é imputável à Requerida.
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No caso vertente, não estamos perante um erro praticado pela Requerida, sendo que tão-pouco existe qualquer orientação genérica sobre esta matéria, nos termos e para os efeitos do Art.º 43.º n.º 2 da LGT.
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Aquilo que está aqui em causa é um pedido de reenquadramento fiscal, devido a um erro praticado pela própria Requerente.
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Como tal, é destituído de sentido e carece de base legal pretender-se que a Requerida indemnize com juros a Requerente, por erros praticados precisamente por esta última.
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Mas ainda que – por hipótese e sem conceder minimamente ao acabado de expor – se admita como legalmente possível o pagamento de juros indemnizatórios a um sujeito passivo responsável pela prática do próprio erro, certo é que a data-evento a partir da qual se contariam juros nunca poderia ser o dia 2011.05.30, como propõe a Requerente.
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À data de 2011.05.30 o erro não só havia sido anteriormente produzido pela própria Requerente (na autoliquidação), como ainda se mantinha na sua esfera.
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Sendo que tal erro se manteve até à data da prolação da decisão de indeferimento proferida pela Requerida.
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Portanto, apenas na data da prolação da decisão sub judice, com a formação de caso julgado administrativo, é que, em termos lógicos, o erro passa a ser assumido pela Requerida, porque só nesta ocasião é que ela assume uma posição acerca da pretensão do contribuinte.
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E nunca a 2011.05.30, porquanto nessa data apenas foi apresentada uma petição, sendo materialmente impossível proceder-se nessa mesma data a uma análise instantânea à pretensão do contribuinte.
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Concluindo, ainda que, sem conceder, se reconheça o direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente, a data-evento terá necessariamente de coincidir com a data da decisão ora colocada em crise, pois só nesta ocasião é que o erro na autoliquidação passou a ser assumido, lógica e juridicamente, pela Requerida.
5. Por despacho de 7.11.2017 foi dispensada a reunião prevista no art. 18º do RJAT, tendo ainda sido determinado que o contraditório relativo à defesa por exceção seria exercido pela Requerente nas alegações finais escritas ou no prazo em que estas deveriam ser apresentadas.
6. Em 17 de janeiro de 2018, procedeu-se, em audiência designada para o efeito, à inquirição de testemunha indicada pela Requerente.
7. As partes apresentaram alegações escritas nas quais, no essencial, mantiveram as posições já expressas em sede de petição inicial e resposta, tendo ainda sido realizada pela Requerente a apreciação crítica da prova testemunhal produzida.
8. A Requerente respondeu, ainda, à defesa por exceção exercida pela Requerida, em síntese, nos termos seguintes:
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A Requerente não aceita o alegado e requerido pela Administração Tributária quanto à sobredita exceção pois como bem se afirma na decisão proferida no processo n.º 117/2013-T, de 17.05.2013, do Centro de Arbitragem Administrativa:
“(…) a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.” (A mesma posição foi, igualmente, assumida, entre outros, nos processos n.ºs 746/2015-T, de 25.08.2016, 627/2016-T, de 26.04.2017)
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Esse é o entendimento de SERENA CABRITA NETO e CARLA TRINDADE (in Contencioso Tributário, Volume I, Almedina, 2017, página 540) que escrevem:“esses actos de indeferimento [reclamação graciosa a recurso hierárquico] só poderão ser “trazidos” para a jurisdição arbitral, na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do acto tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efectivamente, pretende impugnar pela via arbitral. Nestes casos o tribunal arbitral vai aferir a legalidade do acto de indeferimento aferindo a legalidade do acto tributário. Este é, na verdade, o objecto do pedido de constituição de tribunal arbitral. Se este for legal, o acto de indeferimento da reclamação graciosa será legal, na medida em que confirma a sua legalidade. Se, pelo contrário, o acto tributário for ilegal, o acto de indeferimento de reclamação graciosa também o será na medida em que confirma a legalidade de um acto ilegal.”
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No caso sub judice verifica-se que o ato (de autoliquidação) contestado é manifestamente ilegal, como adiante se verá em pormenor e foi apreciado em sede de Reclamação, pelo que, em consequência, também o ato de indeferimento da mesma – como um todo, incluindo os seus vícios próprios - é ilegal, devendo essa ilegalidade ser conhecida e declarada nesta ação. Não o poderia ser, a contrario, no entendimento da Requerente, enquanto vício único em apreciação nos autos.
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Afigura-se, pois, que a exceção invocada não deve proceder, por infundada, mantendo-se a instância nos termos apresentados pela Requerente.
9. Por despacho de 15-3-2018 e com os fundamentos aí invocados foi prorrogado o prazo previsto no artigo 21º-1, do RJAT.
Saneador
A competência do Tribunal Arbitral
A exceção de incompetência material
Acto de indeferimento de reclamação graciosa – Alegada falta de fundamentação.
Suscita a AT a incompetência parcial do Tribunal Arbitral Coletivo para apreciar a pretensa falta de fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação Graciosa porquanto, segundo alega, a apreciação de tal matéria extravasa as competências do Tribunal Arbitral.
A Requerente exerceu o contraditório relativamente a esta excepção.
Vejamos:
A competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias elencadas no art.º 2.º n.º 1, do RJAT, a saber: «(…) a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.»
Ora, a pretensa falta de fundamentação invocada pela Requerente redunda num vício próprio do ato de indeferimento objeto da Reclamação Graciosa, e não um vício dos atos de primeiro grau - in casu, as autoliquidações de 2008 e 2009.
Apreciar-se-á oportunamente, com o mérito do pedido, a questão de saber se se encontra efetivamente fora da jurisdição arbitral tributária a apreciação de quaisquer questões referentes a vícios próprios de actos de segundo grau (como será, no caso o ato de indeferimento da Reclamação Graciosa) ou de terceiro grau (v.g., Recurso Hierárquico) e, em consequência, se este Tribunal Arbitral será materialmente (in)competente para a apreciação da questão do pretenso vício de falta de fundamentação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa.
Assim é que, como se assinala infra, o vício invocado e/ou a competência material deste Tribunal para o apreciar e decidir, são questões que não prevalecem sobre a apreciação e decisão sobre apreciação (prévia) do vício de violação de lei dos atos de autoliquidação de IRC de 2008 e 2009, objeto dos autos. Isto porque é esta ordem de apreciação dos vícios invocados a que conduzirá à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”: a sua eventual procedência impedirá a renovação do ato, o que não sucede com a hipotética anulação, total ou parcial, decorrente do vício de falta de fundamentação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.
As autoliquidações de IRC da Requerente respeitante aos anos de 2008 e 2009, relativamente às quais a Requerente peticiona a respetiva anulação por ilegalidade, são, a final, o objeto final do presente processo.
É inquestionável a competência do tribunal arbitral para a apreciação destes actos.
Relativamente ao acto de indeferimento da reclamação graciosa, oportunamente se decidirá, se disso for caso, a questão da apreciação do vício decorrente de alegada falta de fundamentação desse ato.
O tribunal é assim materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
Questões a decidir
Cumpre solucionar as seguintes questões:
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Ilegalidade dos atos de autoliquidação objeto do processo por violação de lei substantiva.
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Direito da Requerente a juros indemnizatórios e
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Ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa por alegada falta de fundamentação
II – FUNDAMENTAÇÃO
Factos essenciais provados
Consideram-se provados, com relevância, os seguintes factos:
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No âmbito da sua atividade, a Requerente vende aos seus concessionários veículos automóveis para que estes os coloquem no mercado e procedam à sua venda ao público.
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A Requerente está contratualmente vinculada ao pagamento de comissões, e outras formas de incentivos promocionais aos concessionários, após a data em que estes procedam à venda do veículo automóvel ao cliente final, sendo estes montantes contabilizados ao abrigo do normativo contabilístico como publicidade e promoção de vendas.
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Na vigência do Plano Oficial de Contabilidade (POC), a Requerente registou nas suas contas, até ao ano de 2009 inclusive, relativamente a veículos vendidos pela A… aos concessionários e ainda não vendidos por estes ao cliente final, o ganho proveniente da venda dos veículos aos seus concessionários e, simultaneamente, numa conta de “Provisões”, os montantes referentes à comissão e outros incentivos a pagar aos mesmos (conta POC #298 – Outras provisões).
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No momento em que a Requerente pagava a comissão aos seus concessionários pela venda dos veículos ao cliente final, o respetivo montante era reduzido à mesma conta de “Provisões”.
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[Na medida em que esta provisão não se encontra no artigo 34.º do Código do IRC em vigor à data dos factos] a mesma provisão não era aceite para efeitos fiscais, tendo sido, por esse motivo, objeto de acréscimo ao Q07 da declaração de rendimentos M22 de IRC da Requerente.
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Paralelamente, nos mesmos exercícios, e em virtude do pagamento efetivo de parte dos montantes em questão, a Requerente deduziu à sua matéria coletável parte do montante correspondente à redução de provisões previamente tributadas.
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Em 28.05.2009, a Requerente procedeu à autoliquidação de IRC do exercício de 2008, com o n.º 2009… do qual resultou uma coleta de € 3.528.711,61;
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Em 28.05.2010, a Requerente procedeu à autoliquidação de IRC do exercício de 2009, com o n.º 2010… da qual resultou um prejuízo fiscal de 2.722.792,65 €.
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A Requerente pagou o imposto autoliquidado referente ao ano de 2008.
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Com a implementação do Sistema Normalização Contabilística (SNC), em 2010, e na sequência de análise ao método de reconhecimento dos elementos das suas demonstrações de resultados, a Requerente concluiu que, dada a natureza dos referidos encargos respeitantes comissões a pagar aos seus concessionários no momento em que estes vendam os veículos ao cliente final, estes montantes deveriam ser reconhecidos como estimativas de encargos certos do exercício em que os veículos são vendidos aos concessionários, e não como provisões.
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A Requerente entendeu que aos referidos gastos deveria aplicar-se tal reclassificação aos exercícios anteriores, de 2008 e 2009 pelo que apresentou, em 30 de maio de 2011, uma Reclamação Graciosa, nos termos do artigo 131.º do CPPT, na qual, em suma, alegou que:
-por uma questão de coerência e consistência de leitura do balanço, a Requerente reconhece o seu erro no registo dos montantes referentes às comissões a pagar aos concessionários e, em consequência, entende que deveria proceder à reclassificação dos referidos gastos em balanço;
-que a reclassificação que a Requerente efetivou não respeita a ajustamento de transição decorrente da entrada em vigor do SNC, mas decorre tão só de uma mera reclassificação de contas do balanço, nomeadamente entre rubricas do passivo;
na sequência da reclassificação dos montantes registados contabilisticamente em 2008 e 2009 como “Provisões”, que seja atribuído aos montantes em questão o adequado tratamento fiscal - que passam de “Provisões” para “Acréscimo de custos” -, com a devida correção das autoliquidações relativas aos citados exercícios;
-atendendo à correção das autoliquidações requerida, verifica-se que a Requerente tem direito, por referência ao exercício de 2008, ao reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 3.528,711,61 e, por referência ao exercício de 2009, à consideração de prejuízos fiscais no montante de € 2.094.398,89.
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Através do Ofício n.º…, de 21 de julho de 2015, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada, com base nos seguintes argumentos:
-A interpretação dada pela Requerente para os encargos com as comissões a pagar aos concessionários nos exercícios de 2010 e seguintes, não se traduzem em provisões, porque se encontra perfeitamente definido o momento e quantia a mensurar, tratando-se, pois, de passivos, por respeitarem a obrigações presentes da entidade provenientes de acontecimentos passados, cuja liquidação se espera que resulte num exfluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos;
-Nos anos de 2008 e 2009, na vigência do POC, a Requerente tratou os encargos com a estimativa das comissões a pagar aos concessionários, como provisões, as quais, não sendo aceites para efeitos fiscais, seriam acrescidas no exercício da sua constituição e deduzidas aquando da sua utilização [Seriam, portanto, tratadas como diferenças temporárias];
-Atendendo ao tratamento contabilístico adotado pela Requerente, está-se perante diferenças temporárias dedutíveis, uma vez que são dedutíveis na determinação do resultado fiscal de períodos futuros, quando os correspondentes ativos ou passivos se extinguirem;
-Considera-se que o procedimento escolhido pela Requerente não fere a lei fiscal em vigor naqueles exercícios (2008 e 2009), nem se observa que a Requerente esteja a ser lesada, na medida em que os gastos que considerou como provisões, e não relevados para efeitos fiscais (por não respeitarem os preceitos legais), foram revertidos no exercício seguinte ou nos exercícios seguintes, através da desconsideração fiscal dos proveitos registados contabilisticamente, com respeito à utilização das provisões e com o consequente registo em gastos dos pagamentos efetuados;
-Não existe, numa ótica temporal mais alargada, qualquer imposto entregue pela Requerente indevidamente.
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Por não se conformar com a posição assumida pela Administração Tributária, a Requerente apresentou, em 5 de agosto de 2015, um requerimento abrigo do seu direito de audição, onde, em suma, invocou que:
-A Requerente apenas reverteu parcialmente, nos exercícios de 2008 e 2009, os encargos com comissões e campanhas promocionais reconhecidos na contabilidade até 2009, e desconsiderados para efeitos fiscais, sendo que o montante de € 21.046.959,19 não foi revertido;
-Em 2010 a Requerente não procedeu à dedução dos pagamentos efetuados correspondentes a comissões e campanhas cujo gasto havia sido contabilizado e não deduzido em exercícios anteriores;
-Em 2010 a Requerente analisou a substância dos encargos referidos, e concluiu que estes de facto não deveriam estar a ser reconhecidos na contabilidade como provisões, mas sim como estimativas de encargos certos previstos contratualmente no exercício em que os veículos foram vendidos aos concessionários;
-Nos anos anteriores a 2010, foram indevidamente acrescidos à matéria coletável da Requerente, originando IRC e derrama pagos em excesso no exercício de 2008, e um apuramento erróneo de prejuízos fiscais relativamente ao exercício de 2009;
-A Requerente foi lesada, uma vez que em 2008 pagou IRC em excesso no montante de € 3.328.973,22 e derrama em excesso no montante de € 199.738,39, sendo que adicionalmente, nos exercícios de 2010 e seguintes a Requerente não procedeu à dedução dos montantes pagos correspondentes aos encargos estimados acrescidos em anos anteriores e, por este motivo, não foi possível deduzir os € 21.046.959,19 que haviam sido tributados.
14) A sobredita reclamação foi totalmente indeferida por despacho de 27-4-2017.
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A partir do exercício de 2010 [ano de entrada em vigor do SNC] os montantes das comissões e outros incentivos a que se alude supra, passaram a ser contabilisticamente registados na conta “# SNC 281 – Estimativa de custos – Gastos a reconhecer”
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No número 8 do requerimento em que a Requerente exerceu o direito de audição, consta o seguinte:
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A Requerente foi notificada, em 28 de abril de 2017, do indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada, com base na mesma argumentação vertida no projeto de indeferimento, tendo a Administração Tributária invocado, ainda, que a existir algum ajustamento, este apenas deveria ocorrer a partir de 31 de dezembro de 2009, atenta a reclassificação e, nessa medida, com efeitos a partir do ano de 2010
Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.
Motivação do Tribunal para a decisão da matéria de facto
A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se, essencialmente, no processo administrativo instrutor junto aos autos pela AT e nos documentos constantes do processo, não impugnados reciprocamente pelas partes, tendo ainda relevado o depoimento prestado pela testemunha B…, para esclarecimento das politicas de marketing da Requerente, dos motivos subjacentes ao enquadramento contabilístico das comissões e outros incentivos pagos pela Requerente aos seus concessionários e ainda, os motivos subjacentes à reclassificação dos referidos gastos em balanço.
II – FUNDAMENTAÇÃO (cont.)
O Direito aplicável
Assinale-se preliminarmente que, conforme em data muitíssimo recente assinalou o STA [cfr Acórdão de 14-3-2018, no Proc nº 0716/13/2ª Secção], é jurisprudência corrente e pacífica que o Tribunal não tem de apreciar ou conhecer todos os argumentos ou considerações que as partes tenham produzido. Isto porque uma coisa são as questões submetidas ao tribunal e outra são os argumentos que se usam na sua defesa. Sendo que só têm dignidade de questões as pretensões processuais formuladas pelas partes ao tribunal e não os argumentos por elas usados em defesa das mesmas, não estando assim o tribunal vinculado a apreciar todos os argumentos utilizados pelas partes
Tendo a impugnante invocado a ilegalidade dos atos de autoliquidação por violação de lei substantiva e o vício de falta de fundamentação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa apresentada contra aqueles atos, há que determinar a ordem do conhecimento dos mesmos, devendo ser observada, como é pacífico, a prevista no art. 124º do CPPT, aplicável por força do art. 29º, nº 1, al. a) do RJAT (Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in GUIA DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2017, Almedina, pag. 205).
O vício de violação de lei é aquele que conduzirá à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” na medida em que a sua eventual procedência impedirá a renovação do ato, o que não sucede com a hipotética anulação decorrente do vício de falta de fundamentação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.
Em conformidade, o Tribunal irá apreciar em primeiro lugar a questão da ilegalidade apontada às autoliquidações.
Vejamos então.
A Questão da qualificação contabilística das despesas com comissões e outros incentivos promocionais à face do POC.
De acordo com as Notas Explicativas ao Plano Oficial de Contabilidade, em vigor ao tempo dos factos tributários em questão, a conta de provisões (29) “(…)serve para registar as responsabilidades cuja natureza esteja claramente definida e que à data do balanço sejam de ocorrência provável ou certa, mas incerta quanto ao seu valor ou data de ocorrência. (…)” .
Por sua vez, de acordo com as mesmas Notas Explicativas, a conta acréscimos de custos (273) “(…) serve de contrapartida aos custos a reconhecer no próprio exercício, ainda que não tenham documentação vinculativa, cuja despesa só venha a incorrer-se em exercício ou em exercícios posteriores”.
Há que apurar o sentido destas normas[1], a fim de aferir a qual delas se devem subsumir os gastos em questão, sendo que, atendendo ao elemento literal, ambas parecem, prima facie, potencialmente aplicáveis aos gastos em questão.
Escrevendo a propósito do SNC, diz-nos Tomás Castro Tavares que “A lei contabilística interpreta-se como qualquer outra lei, por mais técnica ou intrincada que seja. Não há aqui nada de original ou complexo. Muitas outras leis regulam outras tantas relações altamente complexas, através de extensos diplomas, igualmente muito técnicos e com linguagem intrincada.”[2]
Estas considerações são também, evidentemente, aplicáveis ao quadro jurídico-contabilístico que antecedeu o SNC.
Vejamos, então, a teleologia de cada um destes comandos normativos, sendo que apenas a aplicação de um deles consubstanciará a aplicação correta do direito contabilístico, uma vez que não estamos perante situação de que resulte um “direito de opção” por parte do decisor contabilístico.[3]
Analisando a conta 273, há que começar por notar que a mesma apresenta as seguintes divisionárias:
2731 – Seguros a liquidar
2732 – Remunerações a liquidar
2733 – Juros a liquidar
…
2739 – Outros acréscimos de custos
Por suas vez, a conta 29 apresenta as seguintes divisionárias:
291 – Provisões – Pensões;
291 – Provisões – Impostos;
291 – Provisões – Processos judiciais em curso;
291 – Provisões – Acidentes de trabalhos e doenças profissionais;
291 – Provisões – garantias a clientes;
…. ……
291 – Provisões – Outras provisões;
Verifica-se, assim, que as divisionárias da conta 29, reportam-se, essencial ou tendencialmente, a cobrir riscos relacionados com a atividade da empresa.
Ponto comum a todas as situações da conta 273 é a base voluntária e contratual dos nascimentos das obrigações jurídicas em causa (contratos se seguro, contrato de empréstimo, contratos de trabalho, etc…).
Como escrevem José Bento-José Fernandes Machado[4] “Esta conta 273 – Acréscimo de custos credita-se por débito das seguintes contas de custos, conforme os custos que nela forem lançados:
62211 -Fornecimento e serviços externos- Electricidade;
62213 -Fornecimento e serviços externos-Água
62222 -Fornecimento e serviços externos-Comunicação
62228 -Fornecimento e serviços externos-comissões
62229 -Fornecimento e serviços externos-Honorários
62233-Fornecimento e serviços externos-Publicidade e propaganda
62642 -Custos com o pessoal-Remunerações do pessoal
62645 -Custos com o pessoal-Encargos sobre remunerações
62681 -Custos e perdas financeiras-Juros suportados.
Ora, os gastos em causa nos presente autos têm precisamente a natureza de serviços externos de base contratual, não se destinando a face a riscos subjacentes à teleologia da conta 29 do POC.
Também sobre esta temática esta questão, escreve Leonor Fernandes Ferreira:
“Rogério Ferreira, na sua obra intitulada Provisões (Ferreira, 1970) clarificou serem as provisões custos atuais e estimados. E assinalou que as provisões se encaram como custos estimados (de exercício) mas relativos a processamentos futuros de despesas (ou de não receitas), despesas de incerta comprovação futura. Porém, nem sempre se entendeu ser assim. Em tempos idos, chegou mesmo a admitir-se que as provisões incluíssem compromissos ou encargos por pagar, tais como comissões a pagar e juros a pagar, e também autênticas reservas e prejuízos certos já verificados”.[5]
Assim sendo, face ao que se acaba de expor a subsunção jurídico-contabilística correta dos gastos em causa seria o registo da mesma na conta 273 (Acréscimos de custos) do POC e não na conta de provisões.
Como se refere no ac. do STA de 28-01-2015, proc. 0652/14[6], “as provisões são registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado mas de montante incerto”.
Ao passo que no caso das “provisões” existe uma incerteza quanto à ocorrência da obrigação, quanto ao seu valor, ou quanto à data da sua ocorrência, no caso do “acréscimo de custos” não existe qualquer uma destas incertezas, verificando-se, apenas, a não ocorrência do vencimento da obrigação, situação que se verifica no caso dos autos.
Assim, na perspetiva contabilística, a inscrição correta seria inquestionavelmente o registo da mesma na conta 273 do POC e não na conta de provisões, tendo em conta que se tratam de obrigações certas, que se constituem com a venda dos veículos aos concessionários.
Obviamente que este enquadramento menos correto feito por opção, errada, do contribuinte durante anos, pode ser, digamos, “corrigido” por via de reclamação graciosa e subsequente pedido de pronúncia arbitral em caso de indeferimento, muito especialmente se se demonstrar que tal procedimento errado redundou em prejuízo do contribuinte em sede de tributação em IRC.
Ou seja: há aqui, subjacente, uma vontade do próprio contribuinte de afastar a presunção de veracidade da sua contabilidade reconhecendo a prática de erros reiterados durante anos e que reputa impeditivos do conhecimento da real matéria tributável (Cfr artigo 75º, da LGT).
E, na verdade, a Lei permite ao contribuinte a correção de erros na declaração fiscal que, como no caso sub juditio, tenham origem na circunstância da própria contabilidade não espelhar, segundo é alegado, o que era suposto acontecer e que era refletir, designadamente, a matéria tributável do contribuinte.
Seria violar gravemente o princípio da justiça tributária a proibição de correção de erros do contribuinte na declaração fiscal (autoliquidação de IRC), desde que esse pedido de correção seja formulado em determinadas condições de tempo (à luz do princípio de que, em geral, todos os direitos têm um tempo e um modo para serem exercidos).
Mais concretamente: verificado um erro de facto ou de direito nas declarações dos contribuintes, estas podem ser substituídas até à liquidação, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber (arts. 59º e ss., do CPPT) ou então, com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial, socorrer-se o contribuinte do mecanismo ou procedimento de reclamação graciosa (artigos 68º e seguintes, do CPPT).
Assim sendo, face ao que se acaba de expor a subsunção jurídico-contabilística correta dos gastos em causa seria o registo da mesma na conta 273 (Acréscimos de custos) do POC e não na conta de provisões.
A periodização dos gastos (e rendimentos) face ao artigo 18º do CIRC.
O artigo 18.º, nº 1 do CIRC, tem a seguinte redação: “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.”
Como explica Rui Duarte Morais, “a imputação de um proveito ou custo a certo exercício obedece a um critério económico (e não a um critério financeiro), ou seja, as operações nele efectuadas afectam o respectivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respectivo preço ou outra contrapartida. Contabilizam-se créditos e débitos e não pagamentos e recebimentos.
(…) não releva, para a imputação temporal de um custo, o momento em que a empresa extingue os seus débitos, mas sim o momento em que tais obrigações nascem. Incluem-se, pois, nos proveitos e custos do exercício, os encargos com origem no mesmo, ainda que a receber ou a pagar no futuro”[7]
Assim, manifestamente, decorre deste preceito que, no caso sub juditio, os gastos em causa deveriam ter sido considerados para efeitos fiscais no ano do nascimento das respetivas obrigações (vendas dos veículos aos concessionários) e não no ano do pagamento, no caso de não coincidência entre os dois factos jurídicos.
Destarte, a solução do art. 18º, nº 1, do CIRC coincide com a contabilística que acaba de se expor sendo certo que, se tal coincidência não ocorresse, sempre prevaleceria, como é bom de ver, a solução do CIRC, de acordo com o disposto no seu art. 17º, nº 1.
Matéria do lucro coletável dos exercícios de 2008 e 2009. Imputação temporal correta.
Em linha com as conclusões antecedentes, quer as regras contabilísticas do POC, quer o artigo 18º, nº 1, do CIRC, diretamente aplicável, impedem que os pagamentos efetuados nos anos de 2008 e 2009 com comissões e outros incentivos promocionais nos anos anteriores possam ser considerados gastos do exercício do pagamento.
Neste ponto, não pode deixar de se observar que a Requerente não utiliza o mesmo critério ao sustentar a não consideração de tais gastos em 2009, pagos nesse ano, mas referentes a anos anteriores, e, simultaneamente, pugnando pela consideração como gastos do exercício de 2008 do mesmos tipo de custos, pagos nesse ano mas referentes a anos anteriores.
Com esta solução, o princípio da especialização dos exercícios continuaria a ser violado, no que respeita ao exercício de 2008, uma vez que seriam considerados gastos que não pertencem a tal exercício, de acordo com artigo 18º, nº 1, do CIRC, sendo que tal conclusão está também em linha com as regras contabilísticas vigentes à data dos factos, conforme supra referido.
Assim, conclui-se que a Requerente tem razão no que respeita à imputação temporal dos custos em causa, com exceção dos gastos com comissões e outros incentivos promocionais dos anos anteriores a 2008 e pagos neste ano (denominados no quadro do nº 14) do probatório como “Reversão de valores acrescidos em anos anteriores”) no valor de 17.870.442,28 €.
Ou seja, de acordo com o exposto, a autoliquidação em causa está incorreta, por não terem sido considerados gastos no valor de 21.991.733,87 € e, de sinal contrário, por se ter deduzido, em violação do art. 18º, nº 1 do CIRC, o valor de 17.870.442,28 € respeitantes a comissões e outros incentivos promocionais de anos anteriores.
Assim, em consonância com o art. 18º, nº 1, do CIRC, a matéria coletável deverá ser reduzida em 4.121.291,59 €.
Análise global da questão à luz do princípio da justiça e da tributação do lucro real das empresas. O problema das comissões pagas em 2008 incorridas em anos anteriores.
A conclusão a que acaba de se chegar em obediência às regras da periodização económica, levanta, todavia, o problema da possível desconsideração definitiva dos gastos com comissões e campanhas dos anos anteriores a 2008 e pagos neste ano, o que deve ser ponderado à luz do princípio da justiça pois, que como refere Manuel Henrique de Freitas Pereira, “(…) a determinação de resultados periódicos assumida como finalidade essencial da contabilidade é relativamente recente. Continua, aliás, a admitir-se unanimemente que o lucro ou o prejuízo de uma empresa só é calculável, em rigor, no termo da sua vida.(…)
Fala-se a propósito de resultado total da empresa ou de resultado final. O resultado periódico – cujo apuramento é imposto por necessidade de gestão, mas que é também indispensável para efeitos fiscais – constitui uma parcela desse resultado total: é o resultado que corresponde a um certo período da vida da empresa”[8] [9]
Na doutrina, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa expendem o seguinte sobre a interação entre o princípio da justiça e a regra da especialização dos exercícios [10]:
“A actividade da administração tributária não pode limitar-se a uma aplicação mecânica das leis às situações de facto, tendo de ter sempre presente o objectivo que a justifica, que é a prossecução do interesse público (arts. 266º, nº 1, da CRP e 5º e 55º da LGT).
(…).
Quando há divergência entre o critério do contribuinte e o da administração fiscal sobre a imputação de determinado ganho ou perda a determinado exercício esta deve proceder a correção da matéria colectável, fazendo acrescer o proveito ou custo ao ano a que entende que ele deve respeitar e, correspondentemente, deveria abater tal proveito ou custo à matéria colectável do ano ao qual o contribuinte o imputou.
Com este procedimento, não haverá qualquer situação de injustiça, pois ao acréscimo de imposto em determinado ano, corresponderá uma diminuição tendencialmente semelhante no outro, não havendo, assim, tributação de um mesmo proveito em dois exercícios ou não dedução em qualquer deles de um custo que deva ser considerado.
Porém, em certas situações em que a correção é efectuada no último ano em que pode ser feita e tem por objecto um custo que deveria ter sido considerado no exercício anterior, não é já (ou pode não ser já) possível corrigir a matéria colectável desse anterior ano, por já ter transcorrido o prazo em que poderiam ser efectuadas as correcções. O mesmo sucede quando, embora no momento em que a administração fiscal faz a alteração da matéria colectável fosse possível efectuar a correspondente correcção no ano a que se entende ser de imputar os custos, ela não o faz e, com o decurso do tempo, se torna inviável fazê-lo.”
(…).
Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266º, nº 2, da CRP e 50º da LGT, para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção.
Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação duma situação de injustiça.
Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça”[11]
Na jurisprudência pode ler-se no por sua vez na decisão arbitral proferida no processo
233/2017-T, de 2017-10-24, em linha com a jurisprudência do STA aí referida[12], o seguinte:“O princípio da justiça, invocado pela Requerente, é imposto à globalidade da actividade da Administração Tributária pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração Tributária ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando delas decorra um resultado manifestamente injusto. A aplicação do princípio da justiça será de sobrepor ao princípio da especialização dos exercícios nos casos em que do incumprimento não tenha resultado prejuízo para o erário público e aquele não tenha sido concretizado intencionalmente com o objectivo de obter vantagens fiscais.
O Supremo Tribunal Administrativo tem adoptado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios».
(…)
Nas situações em que da imputação de gastos ou variações patrimoniais negativas a exercício diferente daquele a que devem serem imputados em face do princípio da especialização dos exercícios advêm vantagens fiscais para os sujeitos passivos, deverá presumir-se, com base nas regras da vida e da experiência comum, que a alteração da imputação correcta foi efectuada intencionalmente, por ser normal que os contribuintes procurem aliviar a sua carga fiscal. Pelo contrário, quando da alteração da imputação correcta de gastos não advém qualquer vantagem, deverá presumir-se que a errada imputação aos exercícios não é intencional. Nos casos em que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido que deva prevalecer o princípio da justiça sobre a legalidade estrita relativa ao princípio da especialização dos exercícios são situações em que da não observância desse princípio não advém qualquer prejuízo para o erário público, nomeadamente situações em que o sujeito passivo não obteve vantagens ou até foi prejudicado pelo erro que praticou na aplicação do princípio da especialização dos exercícios. Em situações desse tipo, não se pode justificar que seja infligida ao contribuinte uma maior oneração fiscal, em nome de um respeito fetichista e acrítico pela observância da legalidade e à margem de qualquer perspectiva de prossecução do interesse público, que é o dever primacial a observar pela Administração Pública, como decorre do n.º 1 do artigo 266.º da CRP.
Mas, no caso em apreço, a imputação da variação patrimonial negativa em causa ao exercício de 2012, em vez de ser imputada ao exercício de 2011, tem como corolário vantagens para a Requerente, que justificam que se presuma que a imputação inadequada foi intencional e implicam que não se possa afastar a aplicação do princípio da especialização dos exercícios com base em pretensas considerações de justiça.”[13]
No caso sub juditio, à luz do princípio da justiça, há que ponderar diversos fatores.
Antes de mais não estamos perante correções efetuadas pela AT à declaração fiscal do contribuinte mas, ao invés, é o sujeito passivo que vem considerar que as suas declarações e autoliquidações enfermam de erro por violação das regras contabilísticas e fiscais referentes à especialização dos exercícios.
O sujeito passivo optou por apresentar reclamação graciosa contra as autoliquidações dos anos de 2008 e 2009, quando poderia, também, ter apresentado o pedido de revisão dos atos de autoliquidação dos anos de 2007 e 2006 ou formular tal pedido para os quatro exercícios referidos, nos termos do artigo 78º da Lei Geral Tributária em vigor à data do pedido da reclamação oficiosa em causa no presente processo, do que decorreria que deixaria de correr o risco de desconsideração os gastos incorridos em tais exercícios com comissões e outros incentivos promocionais.
É certo que o mesmo problema poder-se-ia continuar a colocar relativamente a exercícios anteriores a esses, mas também é certo que o princípio da justiça, como qualquer outro princípio, não possui valor absoluto, devendo ser sempre ponderado em conjunto com os demais princípios, designadamente, o princípio da segurança jurídica e com as regras, que deste derivam, referentes à caducidade do exercício de direito à reclamação e impugnação dos atos tributários. É este o fundamento pelo qual os atos de liquidação ou autoliquidação ilegais e lesivos para o contribuinte, decorrido o prazo da sua reclamação graciosa, revisão oficiosa e impugnação judicial, se solidificam na ordem jurídica, por já não serem suscetíveis de impugnação. Daqui decorre que, em caso de autoliquidação ilegal de que resulte imposto superior ao devido, na ausência de reação do sujeito passivo contra a mesma nos prazos legais, este suporta a consequência que advém da circunstância do ato em causa já não poder ser alterado.
Acresce que não emerge dos autos que a concentração de gastos com campanhas e comissões em 2008 de gastos deste ano mas também de anos anteriores, não lesem o erário publico tanto mais que dos anos de cujos resultados fiscais foi dada notícia nos presentes autos (2008, 2009 e 2010), só no ano de 2008 houve lucro tributável, que seria transformado em prejuízo fiscal caso fossem tomadas em consideração os gastos com comissões e campanhas de exercícios pretéritos, com a consequente anulação total da liquidação de imposto.
Nesta circunstâncias, e designadamente à luz da jurisprudência citada, considera-se que o princípio da justiça não impõe o afastamento do art. 18º, nº 1, do CIRC, tanto mais que tal redundaria no afastamento duma violação da regra especialização dos exercícios, através da violação dessa mesma regra relativamente ao exercício de 2008, período tributário mais relevante nos presentes autos.
Assim sendo, ainda que ponderado o princípio da justiça, nos termos supra expostos, conclui-se, que a autoliquidação em causa está incorreta, não só por não terem sido considerados gastos no valor de 21.991.733,87 € que, de acordo com o art. 18º, nº 1 do CIRC, são imputáveis ao exercício de 2008 mas, também, de sinal contrário, por se ter deduzido, em violação mesmo preceito legal, o valor de 17.870.442,28 € respeitante a comissões e campanhas imputáveis a períodos tributários pretéritos.
Assim, em consonância com o art. 18º, nº 1, do CIRC, a matéria coletável deverá ser reduzida em 4.121.291,59 € e não em 21.991.733,87 €, como pretende a requerida, do que decorre a anulação parcial do ato tributário.
Pela mesma razões e em consequência do exposto é forçoso concluir que na determinação da matéria coletável do ano de 2009, devem ser considerados gastos do exercício os incorridos com comissões e campanhas respeitantes a vendas de viaturas a concessionários ocorridas neste ano, ainda que pagas em exercícios subsequentes e, ao invés, não devem ser considerados gastos com pagamentos de tal tipo de gastos referentes a vendas do mesmo tipo de anos anteriores, designadamente do ano de 2008 que, como supra referido, é imputada a este ano e não a 2009, ao invés do que foi considerado na autoliquidação.
Em consequência, a autoliquidação do ano de 2009 deveria pois refletir um prejuízo fiscal de 1.296.224,56 € e não de 2.722.792,65 €, como foi considerado, pelo que, também esta liquidação padece do vício de violação de lei, devendo, assim, ser anulada.
Acto de indeferimento de reclamação graciosa – Alegada falta de fundamentação.
Conforme se deixou já assinalado supra, suscita a AT a incompetência parcial do Tribunal Arbitral Coletivo para apreciar a pretensa falta de fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa porquanto, segundo alega, a apreciação de tal matéria extravasa as competências do Tribunal Arbitral, sendo que a competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias elencadas no art.º 2.º n.º 1, do RJAT, a saber: «(…) a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.»
Na medida em que só parcialmente procederá o pedido de anulação dos atos de liquidação sub juditio, cumpre apreciar a sobredita questão.
Como se viu já, a falta de fundamentação invocada pela Requerente redunda num vício próprio do ato de indeferimento objeto da Reclamação Graciosa, e não num vício dos atos de primeiro grau - in casu, as autoliquidações de 2008 e 2009.
Ora a apreciação dos vícios próprios dos atos de indeferimento da reclamação graciosa estão subtraídos à competência do Tribunal Arbitral.
A apreciação desta questão poderia ficar prejudicada se procedesse totalmente o pedido de anulação dos atos de liquidação.
Como só parcialmente será anulado, cumpre apreciar e decidir esta questão.
Vejamos:
A questão suscitada prende-se com o objeto do processo arbitral tributário quando previamente tiver sido intentado pelo contribuinte um meio gracioso administrativo (reclamação graciosa, recurso hierárquico ou pedido de revisão oficiosa).
Assinale-se que já em sede de impugnação judicial foi tal matéria discutida no sentido de saber se o objeto real da impugnação era o acto de liquidação ou o acto que decidiu a reclamação, tendo o STA pacificado tal matéria ao decidir que era o primeiro desses actos esse objecto pelo que seriam os vícios próprios da liquidação e não os do despacho que decidiu a reclamação, que deveriam ser judicialmente sindicados (Cfr Ac. do STA, de 18-5-2011 / Proc nº 0156/11).
Ora transpondo para o processo arbitral esta Jurisprudência e considerando ainda o disposto no artigo 2º, do RJAT, resulta evidenciado que o objeto do processo arbitral é o ato de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta, estando excluída a arbitrabilidade dos atos de indeferimento de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou de pedido de revisão oficiosa, sendo certo que do disposto no artigo 10º, do RJAT, apenas resulta, única e exclusivamente, o dies a quo do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral.
Admite-se, no entanto, a arbitrabilidade daqueles atos administrativos tributários (os demnominados actos de segundo e terceiro graus) na medida em que comportem eles próprios (e só nessa medida) a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa.
Na base deste entendimento está uma interpretação teleológica, designadamente do disposto no artigo 10º-1/a), do RJAT quando refere expressamente “decisão do recurso hierárquico”[14], ou seja, esses actos de indeferimento só poderão ser “trazidos” à jurisdição arbitral, “(...)na condição estrita de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do acto tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efectivamente quer impugnar pela via arbitral (...)”[15]
Sobre tal matéria e no sentido ora apontado, se pronunciou, entre outros, o acórdão arbitral proferido no processo nº 272/2014-T.
Descendo ao caso dos autos:
Trata-se aqui de apreciar a ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa com base no vício de falta de fundamentação.
Ora é manifesto que o vício imputado a esse ato não comporta, em si próprio, a ilegalidade dos atos de autoliquidação sub juditio.
Assim é que, na procedência da exceção, o Tribunal se declara materialmente incompetente para apreciar a questão de (i)legalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa por falta de fundamentação.
Juros indemnizatórios
Nos termos da norma do n.º 1 do artigo 43º, da LGT, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive, como se viu, de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
No presente caso, ainda que se reconheça não ser parcialmente devido o imposto pago pela Requerente, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determine tal direito a favor do contribuinte, antes de ser decidida a reclamação graciosa.
E isto porque os actos tributários sindicados têm a sua génese na presunção da AT da correção e legalidade desses actos, derivada da autoliquidação e da contabilidade da Requerente.
Ou seja: no momento em que foram praticados, a AT não incorreu em qualquer erro de facto ou de direito.
Na verdade, será só a partir do indeferimento da reclamação graciosa é que a AT, ao não reconhecer, ainda que parcialmente, os fundamentos invocados pela Requerente, é que incorre no dever de a indemnizar através do pagamento de juros indemnizatórios desde a data do ato de indeferimento.
Nesta matéria tem-se em atenção a orientação decorrente da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que vai no sentido de reconhecer que uma decisão da Administração Tributária que indefere um pedido de anulação de autoliquidação reconhecidamente ilegal e a consequente restituição de tributo indevidamente cobrado, constitui erro imputável aos serviços.
Segundo a mencionada jurisprudência – vertida, v. g., no acórdão de 28 de Outubro de 2009, no Proc. 601/09 – são devidos juros indemnizatórios a partir da data do indeferimento da reclamação até à data do processamento da respectiva nota de crédito, nos termos do artigo 61.º d CPPT.
Por tudo isto, concluímos que a AT não incorreu em qualquer erro de facto ou de direito quando os actos tributários foram praticados mas já não assim quando indefere a reclamação graciosa e mantém a exigência do imposto quando, se tivesse reconhecido a ilegalidade, deveria ter determinado a devolução parcial da quantia paga pela Requerente.
Não o tendo feito, incorreu, desta vez sim, em erro, e tal erro determinou que a Requerente continuasse privada do montante que indevidamente satisfizera.
Por isso, não obstante o prejuízo para a Requerente resultante do pagamento indevido a que foi obrigada não resulte, in limine, de erro imputável aos serviços e não confira direito a indemnização, já o não reconhecimento pela AT, ao decidir o pedido de reclamação graciosa, da ilegalidade em que incorrera, foi fonte de prejuízos para a Requerente, traduzidos na indisponibilidade da quantia que pagara.
Acolhendo-se a orientação referida, reconhece-se o direito a Requerente a juros indemnizatórios com referência ao valor pago a mais decorrente da alteração da matéria coletável e do imposto nos termos fixados infra, em a), respeitante à autoliquidação de 2008 desde apenas 28-4-2017, que foi a data da notificação do indeferimento da sobredita reclamação graciosa.
III – DECISÃO
Pelo assim exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido e, em consequência,
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Anula parcialmente o ato de autoliquidação referente ao ano de 2008, considerando-se como matéria coletável o valor de 9.194.601,27 € em substituição do valor de 13.315.892,86, considerado na autoliquidação, do que resulta uma anulação de imposto no valor de 1.092.142,27 €;
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Condena a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir a importância paga a mais, com juros indemnizatórios desde a data da decisão da reclamação graciosa (28-4-2017) até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (art. 61.º, n.º 5, do CPPT).
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Anula a liquidação referente ao exercício de 2009, por ter sido considerado o prejuízo fiscal de 2.722.792,65 € e não o de 1.296.224,56 €, nos termos supra expostos, com as consequências previstas no art. 24º do RJAT e
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Não aprecia a questão da alegada ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa fundado na incompetência material para o efeito e, em consequência, absolve da instância, nessa parte, a demandada, nos termos dos artigos 96º-a), 99º, 278º-1/a) e 577º-a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29º, do RJAT.
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Valor da ação: € 3.528.711,61, nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
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Custas, no valor de € 44.982,00, a suportar pela Requerente na proporção de sessenta e nove vírgula zero cinco por cento (69,05%) e pela Requerida na proporção de trinta vírgula noventa e cinco por cento (30,95%), nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Lisboa e CAAD, 9 de abril de 2018
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
(Presidente)
Marcolino Pisão Pedreiro
(Vogal)
Cristiana Maria Leitão Campos
(Vogal)
[1] José Luís Saldanha Sanches, “Do Plano Oficial de Contabilidade aos IAS/IFRS”, in O DIREITO DO BALANÇO E AS NORMAS INTERNACIONAIS DE CONTABILIDADE, Coimbra Editora, 2007, designa-as como “normas implícitas, uma vez que temos aí comandos normativos” (cfr. pag. 61-62)
[2] “A interpretação jurídica da lei contabilística”, in O SNC E OS JUÍZOS DE VALOR, uma perspectiva crítica e disciplinar, Almedina, 2013, pag. 288
[3] Sobre a questão veja-se o artigo de Nina Aguiar, “A lei fiscal e os juízos contabilísticos discricionários” in O SNC E OS JUÍZOS DE VALOR, uma perspectiva crítica e disciplinar, Almedina, 2013, pags. 297-332.
[4] PLANO OFICIAL DE CONTABILIDADE EXPLICADO, Porto Editora, 27ª Ed., 2005, pag. 197, destaques nossos.
[5] “Provisões”, in O SNC E OS JUÍZOS DE VALOR, uma perspectiva crítica e disciplinar, Almedina, 2013, pag. 182-183.Nosso destaque.
[6] Consultável in “www.dgsi.pt”
[7] APONTAMENTOS AO IRC, Almedina, 2007, pags. 64-65.
[8] A PERIODIZAÇÃO DO LUCRO TRIBUTÁVEL, Cadernos de CIÊNCIA E TÉCNICA FISCAL, CENTRO DE ESTUDOS FISCAIS, LISBOA,1988, pags. 38-39)
[9] No mesmo sentido José Luís Saldanha Sanches, A QUANTIFICAÇÃO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa, Cadernos de CIÊNCIA E TÉCNICA FISCAL (173) CENTRO DE ESTUDOS FISCAIS, LISBOA, 1995, que nos diz que “o princípio da especialização dos exercícios constitui uma resposta da técnica contabilística à necessidade prática de calcular, dentro de intervalos regulares, o lucro obtido por uma empresa.
É sabido que só depois de terminada actividade de uma dada empresa, com liquidação total do seu património, se pode determinar com exactidão, se ela obteve e com que dimensão, um lucro ou um prejuízo.
(…)
(…)
A limitação de períodos constitui um corte artificial num processo que é contínuo.(…)(pag. 294)
[10] LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA E COMENTADA, 4ª Ed., encontros da escrita editora, 2012.
[12] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 25-6-2008, processo n.º 0291/08; de 2-4-2008, processo n.º 0807/07 (disponíveis in www.dgsi.pt); de 13-11-1996, processo n.º 020404; de 29-02-2000, processo n.º 024039, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 494, página 182; de 05-02-2003, processo n.º 01648/02;
[13] https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=233%2F2017-T&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=3025
[14] Cfr Jorge Lopes de Sousa, CPPT Anotado, vol. I, pgs 625-626.
[15] Cfr Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina/2016, pg. 70.