Decisão Arbitral
O Árbitro Dra. Maria Antónia Torres, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar este Tribunal Arbitral Singular, constituído em 18 de setembro de 2017, acorda no seguinte:
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RELATÓRIO
1.1. A…, contribuinte nº…, com residência na Rua…, nº…, …, notificado do acto de liquidação de imposto de selo com o nº 2014…, com as notas de cobrança nº 2015…, nº 2015… e nº 2015…, e na sequência do despacho de indeferimento do recurso hierárquico apresentado, requereu a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e artigo 10.º, ambos do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante “RJAT”[1]).
1.2. O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, do acto de liquidação de imposto de selo com o nº 2014…, com as notas de cobrança nº 2015…, nº 2015… e nº 2015…, relativo ao ano de 2014, e relativo ao imóvel, em propriedade total, constante da matriz predial urbana nº…, da União de Freguesias de … e …-…, melhor identificado na petição inicial apresentada pelo Requerente, e que aqui se dá por articulada e reproduzida, para todos os efeitos legais.
De acordo com a petição inicial, foi o Requerente notificado do acto de liquidação acima referido, tendo como valor a pagar o montante total de €10 121,93 (dez mil cento e vinte e um euros e noventa e três cêntimos), a liquidar em três tranches a 30 de abril de 2017, 31 de julho de 2015 e 30 de novembro de 2015, o que fez. Não concordando com tal liquidação de IS, e após indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico apresentados pelo Requerente, solicitou este a constituição deste Tribunal Arbitral, pedido que foi aceite.
1.3 O Requerente entende, desde logo, que o acto de liquidação deve ser considerado ilegal por vício de fundamentação, considerando que da nota de liquidação não consta toda a informação necessária para que o contribuinte entenda o acto em questão.
Vem ainda o Requerente sustentar a ilegalidade do acto em análise, dado que não lhe foi notificado o VPT atribuído ao imóvel e que serviu de base à liquidação de imposto de selo. Refere o Requerente que se trata de um prédio em propriedade total, sem andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, relativamente ao qual, através dos Oficios nº…, de 21 de outubro de 2008, e nº…, de 29 de janeiro de 2009, foi notificado que, em resultado da avaliação efectuada ao imóvel, foi-lhe atribuído um VPT de €954.140,00. Conforme resulta dos autos, e foi confirmado pela Requerida durante o procedimento gracioso, conforme documentos juntos aos autos, não voltou o Requerente a ser notificado de quaisquer alterações ao VPT.
Contudo, a liquidação de IS sub judice foi efectuada ao abrigo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo, com referência a um VPT de €1.012.193,46.
1.4. O entendimento da Requerida é o de que a alegação de vício de fundamentação não deve proceder, dado que tal dever não configura a necessidade de uma descrição exaustiva de todas as razões subjacentes à decisão da Autoridade Tributária, mas bastarão as suficientes para que o contribuinte possa ficar esclarecido quanto ao iter cognitivo e valorativo da Requerida. Tal acontece, segundo a Requerida, quando o visado revela ter apreendido os seus fundamentos, o que entende ser o caso.
Entende a Requerida também que o acto de liquidação depende de dois vectores: (i) afectação habitacional do imóvel e (ii) VPT superior a €1.000.000 e que ambos se encontram verificados no caso em apreço.
Sustenta também a Requerida a sua posição de que, decorrendo o VPT do imóvel em 2014 de uma mera actualização da matriz, conforme previsto na lei, e não de uma avaliação do imóvel, não se vislumbra a necessidade de ter o valor resultante da actualização sido notificado ao Requerente.
Mais refere a Requerida, entendemos que por lapso, tratar-se de um imóvel em propriedade total com divisões susceptíveis de utilização independente, e expondo a sua posição quanto ao tema. Contudo, não resulta ser esse o caso, em função dos documentos juntos aos autos.
1.5. Foi dispensada a reunião do tribunal arbitral prevista no artigo 18º do RJAT.
2. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Não foram identificadas nulidades no processo.
3. MATÉRIA DE FACTO
Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:
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O Requerente é proprietário de um imóvel em propriedade total, constante da matriz predial urbana nº…, da União de Freguesias de … e…– …;
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Trata-se, de acordo com a documentação junta aos autos, de um prédio em propriedade total sem andares ou divisões susceptíveis de utilização independente;
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Recebeu o Requerente a nota de liquidação de imposto de selo com o nº 2014…, com as notas de cobrança nº 2015…, nº 2015… e nº 2015…, relativa ao ano de 2014 e ao imóvel acima referido, tendo efectuado o pagamento do montante de imposto devido;
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A referida liquidação é efectuada ao abrigo da verba 28.1 da Tabela de Imposto de Selo, considerando (i) a existência de afectação habitacional (o que é o caso) e (ii) um VPT igual ou superior a €1.000.000;
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Apresentou o Requerente Recurso Hierárquico e Reclamação Graciosa da referida nota de liquidação, tendo ambos os pedidos sido indeferidos;
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Foi o Requerente notificado pelo Oficio nº…, de 21 de outubro de 2008, e pelo ofício nº…, de 29 de janeiro de 2009, da avaliação efectuada ao imóvel, tendo-lhe sido atribuído um VPT de €954.140,00.
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Conforme resulta dos autos, e foi confirmado pela Requerida durante o procedimento gracioso, não voltou o Requerente a ser notificado de quaisquer alterações ao VPT.
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Subsequentemente, ocorreu uma actualização do valor de matriz, de acordo com o artigo 138º do CIMI, a qual não foi notificada ao Requerente, e que serviu de base à nota de liquidação sub judice, e melhor identificada nos autos, passando o VPT para de €1.012.193,46.
Factos não provados:
Não se constataram factos essenciais, com relevo para a apreciação do mérito da causa, os quais não se tenham provado.
Fundamentação da Matéria de Facto
A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova apresentada pelo Requerente e pela Requerida, junta aos autos.
4. DO DIREITO
Fixada a matéria de facto, importa conhecer a matéria de direito suscitada pelas partes.
A questão coloca-se em virtude da tributação em sede de imposto de selo da propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz seja igual ou superior a € 1 000 000, sendo o imposto devido, à taxa de 1% sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI, por prédio com afectação habitacional.
Começa o Requerente por suscitar a falta de notificação do acto de fixação do VPT que antecedeu a liquidação de IS objecto desta acção, acto aquele que, em consequência, seria ineficaz na sua esfera. De facto, terá sido notificado pelo Oficio nº…, de 21 de outubro de 2008, e pelo ofício nº…, de 29 de janeiro de 2009, que em resultado de avaliação efectuada ao imóvel, foi-lhe atribuído um VPT de €954.140,00. Após tais notificações não foi o Requerente notificado de qualquer outra avaliação ao imóvel. De facto, decorre claro do exposto quer pelo Requerente, quer pela Requerida, que o VPT do imóvel que serviu de base à liquidação controvertida não foi notificado ao Requerente, decorrendo da actualização automática da matriz.
Ora, entendemos ser inegável que o acto de fixação do VPT de um prédio urbano deve ser notificado ao seu destinatário, independentemente da natureza, oficiosa ou não, do procedimento em que se insere.
A exigência de notificação é, desde logo, um imperativo constitucional (artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), segundo o qual “[o]s actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos”). No mesmo sentido reforça o artigo 36.º, n.º 1 do CPPT que determina que os actos em matéria tributária “que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados”, ficando a eficácia da decisão dependente da notificação nos termos também expressos pelo artigo 77.º, n.º 6 da LGT.
Assim, um acto que não foi notificado ao sujeito passivo é ineficaz e não lhe é juridicamente oponível. É irrelevante se estamos perante (i) uma actualização oficiosa no âmbito do regime de avaliação geral dos prédios urbanos, cuja iniciativa é atribuída aos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos”; ou (ii) uma actualização oficiosa contemplada no artigo 13.º, n.º 3 do Código do IMI, a cargo do Chefe de Finanças ou (iii) de uma actualização com base em declaração apresentada pelo sujeito passivo (artigo 13.º, n.º 1 do Código do IMI). Qualquer um dos procedimentos de avaliação é sujeito às mesmas regras e operações de avaliação, tendo em qualquer dos casos que ser notificado ao contribuinte.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) corrobora que a “fundamentação do acto de fixação do VPT, quer resulte de avaliação, quer resulte de actualização, deve ser comunicada ao sujeito passivo do IMI a liquidar com base nessa matéria tributável”:
“I – Os actos tributários estão sujeitos a fundamentação (art. 268.º, n.º 3, art. 77.º da LGT e art. 125.º do CPA).
II – A fundamentação do acto de fixação do VPT, quer resulte de avaliação quer resulte de actualização, deve ser comunicada ao sujeito passivo do IMI a liquidar com base nessa matéria tributável.
III – Se o não tiver sido, e também a liquidação de IMI não der a conhecer a forma como foi determinado o VPT, aquela liquidação não pode ter-se por suficientemente fundamentada, tanto mais que o n.º 2 do art. 77.º da LGT impõe que a fundamentação dos actos tributários seja integrada, entre o mais, pelas operações de apuramento da matéria tributável.”
Em idêntica linha, refere o Acórdão 036/12, de 19 de Abril de 2012, que “a liquidação de IMI que não dá conta alguma da forma como foi determinado o valor patrimonial tributário não pode ter-se por suficientemente fundamentada, a menos que se demonstrasse que a AT anteriormente tinha procedido à pertinente comunicação dos motivos por que esse valor foi fixado no montante considerado naquele acto.” – vide a este respeito os Acórdãos proferidos nos recursos n.º 036/12, de 19 de Abril de 2012, n.º 0659/12, de 19 de Setembro de 2012 (Rel. Francisco Rothes) e n.º 0822/12, de 17 de Outubro de 2012 (Rel. Fernanda Maçãs).
Não tendo o Requerente sido notificado do apuramento da matéria tributável, i.e., da fixação do VPT, é sustentável a sua posição de que o facto do acto de liquidação não indicar a razão de ser do novo valor tributável, superior ao VPT que lhe tinha anteriormente sido notificado, e de não lhe permitir perceber em que é que o procedimento de avaliação em causa teve origem no regime da avaliação geral previsto nos artigos 15.º-A a 15.º-P do Decreto-Lei n.º 287/2003, ou nos artigos 37.º a 46.º do Código do IMI, ou ainda em quaisquer outras disposições legais, consubstancia a violação do dever de fundamentação dos actos tributários, ao abrigo dos artigos 268.º, n.º 3 da CRP, 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT e 125.º do CPA, conforme acima se expõe, e constitui vício formal invalidante da liquidação.
Do pedido de juros indemnizatórios
O Requerente peticiona a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, previstos nos artigos 43.º da Lei Geral Tributária e 61.º do Código do Procedimento e Processo Tributário.
É claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem respeitar todos os trâmites legais.
Consequentemente, o Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios sobre as quantias pagas, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
5. DECISÃO:
Face ao exposto, só se pode concluir que o Requerente foi incorrectamente tributado, termos em que, e com a fundamentação que se deixa exposta, decide este tribunal arbitral julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação de IS, relativo ao ano de 2014, melhor acima identificado, com o reembolso da quantia de imposto paga e respectivos juros indemnizatórios.
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Fixa-se o valor do processo em €10 121,93 (dez mil cento e vinte e um euros e noventa e três cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.
O montante das custas é fixado em €918 (novecentos e dezoito euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a serem pagos pela Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de Março de 2018
O Árbitro
(Maria Antónia Torres)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.