Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 256/2013-T
Data da decisão: 2014-04-30  IUC  
Valor do pedido: € 847,83
Tema: Incidência subjetiva; artigo 3.º do CIUC
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O árbitro Guilherme d’Oliveira Martins, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 27 de dezembro de 2013, decide nos termos que se seguem:

I. Relatório

1. A sociedade A…, NIPC …, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à anulação de atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) no montante global de € 847,83.

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14.11.2013.

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.

4. Em 30.12.2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.

5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 15.01.2014.

6. No dia 05.03.2014 teve lugar a primeira reunião do Tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º do RJAT, tendo sido lavrada ata da mesma, que igualmente se encontra junta aos autos.

7. Iniciada a reunião, foi dada a palavra à Representante da Requerida para se pronunciar sobre a manutenção do ato, que a mesma declarou manter.

8. De seguida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, foi dada a palavra às representantes da Requerente e da Requerida para, por esta ordem, se pronunciarem sobre a necessidade de marcação de uma nova reunião para a realização de alegações orais.

9. No uso da palavra, os representantes da Requerente e da Requerida declararam prescindir das alegações orais.

10. O Tribunal solicitou então a junção aos autos, no prazo de 10 dias, do documento comprovativo da data da matrícula do veículo …, tendo ainda concedido um prazo de 10 dias para a Requerida, querendo, se pronunciar.

11. O Tribunal fixou o dia 02.05.2014 para a prolação da decisão arbitral.

12. No dia 10.03.2014, a Requerente juntou aos autos o referido documento. Sobre a junção, a Requerente não se pronunciou.

I3. Os fundamentos do pedido da Requerente são os seguintes:

- No âmbito da atividade financeira que realiza, a Requerente concede financiamentos para a aquisição de viaturas automóveis.

- Nos termos dos contratos de financiamento (contratos de locação financeira), o mutuário concede ao mutuante uma reserva de propriedade do veículo até integral pagamento do crédito, como forma de garantia do capital mutuado.

- A AT liquidou IUC à Requerente em relação a 15 veículos que se encontram abrangidos por contratos de locação financeira do tipo enunciado. Das notificações consta que “com base nos elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira dispõe, em 2008, V. Exa. era o proprietário / locatário do veículo da categoria ... com a matrícula ...”, assim como que “nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), conjugado com os artigos 3.º, 4.º e 6.º, todos do Código do Imposto Único de Circulação, é devido o imposto respeitante ao ano de 2008, por aplicação da taxa prevista no art. 11.º do CIUC.”

- A Requerente diz ter efetuado o pagamento do imposto em todas as situações em que na data da génese do facto tributário sujeito a imposto era a proprietária do veículo e o mesmo não se encontrava locado.

- Nos outros casos, em que a Requerente não era, naquela data, proprietária do veículo ou em que o mesmo se encontrava locado, entende que o IUC não é devido.

- Relativamente aos 15 veículos em relação aos quais foi efetuada a liquidação de IUC, 1 deles foi alienado antes de 2008 e 14 deles estavam locados ao abrigo de contratos de locação financeira no ano de 2008.

- Nos termos do artigo 3.º do CIUC: “1- São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” e “2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.” O legislador presume, portanto, que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados.

- Segundo a Requerente, os impostos anteriores ao IUC consagravam a mesma presunção, a qual era expressa e ilidível; no seu entender, o legislador do IUC manteve a presunção ilidível, mas alterou-a para implícita. A natureza de ilidível decorre do facto de a LGT prever expressamente a inadmissibilidade de presunções inilidíveis.

- Assim, o sujeito passivo é o proprietário ou equiparado, considerando-se como tal a entidade que figura no registo automóvel como proprietário, mas admitindo-se prova em contrário.

- A Requerente apresentou, durante o decurso do processo administrativo, prova em contrário, a qual consiste, relativamente ao veículo vendido, no contrato de compra e venda e, relativamente aos veículos locados, nos contratos de locação financeira.

- Quanto à necessidade ou não de registo daqueles contratos para o efeito em causa nos presentes autos, a Requerente defende não ser o registo necessário para o negócio possuir eficácia em relação a terceiros (nomeadamente a AT), já que, de acordo com jurisprudência unânime, terceiros para efeitos de registo são aqueles que adquiriram do mesmo autor ou transmitente direitos entre si incompatíveis sobre o mesmo prédio, o que não sucede em relação à AT no caso concreto.

- Acrescentam ainda que a compra e venda e locação são contratos com eficácia real no sentido de que a transferência da propriedade se verifica por efeito do contrato.

- Finalmente, quanto à questão de saber se o incumprimento da obrigação declarativa prevista no artigo 19.º do CIUC (“para efeitos do disposto no artigo 3.º do presente código, bem como no n.º 1 do artigo 3.º da lei da respectiva aprovação, ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados”), defende a Requerente que da mesma só poderá resultar a aplicação de uma coima, não podendo dela extrair-se qualquer consequência em termos de aferição da condição de sujeito passivo da obrigação principal de pagamento de imposto.

- Face ao exposto, requerem a procedência do pedido de anulação dos atos tributários de liquidação de IUC n.º 2008 …, n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …; n.º 2008 …, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto, nos termos do artigo 99.º, alínea a) do CPPT, conjugado com o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC.

14. Em resposta ao pedido da Requerente, a AT:

- Comunicou ao tribunal que 13 dos 15 atos tributários em causa tinham sido revogados por despacho de 07.01.2014 do Diretor-Geral da AT, por ter considerado que a Requerente tinha provado a celebração dos contratos de locação financeira, bem como o respetivo registo junto da Conservatória do Registo Automóvel, documentos que, juntamente com a informação recolhida pela AT junto da Conservatória do Registo Automóvel relativa ao histórico da propriedade e ónus e encargos dos veículos em causa, comprovam que a Requerente não é sujeito passivo de IUC no que respeita ao exercício de 2008, sendo sujeitos passivos os locatários devidamente registados junto da Conservatória do Registo Automóvel.

- Quanto aos documentos de cobrança n.º 2008 …., de 2008, no valor de € 35,20, relativo ao veículo de matrícula … e n.º 2008 …, de 2008, no valor de € 61,17, relativo ao veículo de matrícula …, não enfermam do alegado erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que, à luz do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do CIUC, e do artigo 6.º do mesmo Código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC, tal como atesta a informação relativa ao histórico da propriedade dos veículos em causa emitida pela Conservatória do Registo Automóvel.

A AT mantém os dois atos indicados com os seguintes fundamentos:

  • O artigo 3.º do CIUC não contém uma presunção, mas sim uma previsão expressa e intencional de quem se considera ser sujeito passivo do CIUC;
  • O sujeito passivo é o proprietário do veículo, sendo a propriedade atestada pela matrícula ou registo em território nacional (art. 6.º, n.º 1 do CIUC).
  • Em relação aos atos tributários que continuam em discussão, os veículos a que os mesmos respeitam estavam registados a favor do sujeito passivo no período em causa, pelo que deve ser esse o sujeito passivo a tributar.

- Nestes termos, requer a AT que o pedido de pronúncia arbitral seja considerado improcedente quanto aos dois atos de liquidação do IUC que se mantêm, no valor total de € 96,37.

15. Em resposta à revogação parcial do objeto do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente, através de requerimento apresentado no dia 14.01.2014:

- Afirmou manter o interesse no processo, apesar da revogação parcial, mantendo o pedido quanto ao documento de cobrança n.º 2008 …, de 2008, no valor de € 35,20, relativo ao veículo de matrícula … e ao documento de cobrança n.º 2008 …, de 2008, no valor de € 61,17, relativo ao veículo de matrícula ….

II. SANEAMENTO

 

1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

3. O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias que importe analisar.

 

4. Estão, pois, reunidas as condições para se apreciar o mérito do pedido.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

iii.a fACTOS PROVADOS

Antes de entrar na apreciação das questões de mérito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo tributário junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

1. A Requerente é uma instituição financeira de crédito que tem por objeto social a prática das operações permitidas aos bancos, com exceção da receção de depósitos.

2. No âmbito da sua actividade, a Requerente concede aos seus clientes financiamentos destinados à compra de viaturas automóveis.

3. O financiamento de veículos automóveis é formalizado através da celebração de contratos de mútuo em que o mutuário concede ao mutuante, como garantia do integral pagamento da quantia mutuada, uma reserva de propriedade do veículo automóvel, até ao integral pagamento da quantia mutuada.

4. Em alternativa à outorga de contratos de mútuo, o financiamento é efetuado através da outorga de contratos de locação financeira.

5. Em 2012, foi a Requerente notificada para exercer o direito de audiência prévia relativamente aos atos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativos às viaturas identificadas no pedido e ao ano de 2008.

6. No exercício do direito de audição, a Requerente alegou que, no ano a que o tributo respeita, não era sujeito passivo do imposto visto que as viaturas já tinham sido previamente vendidas a clientes ou objeto de contratos de locação financeira.

7. Tais factos, não foram, porém, atendidos pela AT com os fundamentos de que “consultada a base de dados gerida pelo IMTT (...), verifica-se que a propriedade do veículo com a marca (...) se encontra em V/ nome, em situação ativa, não existindo cancelamento de matrícula à presente data (o pedido apreensão de documentos não suspende o pagamento de imposto) pelo que o Imposto de Circulação dos anos de 2008 é devido de acordo com o registo de propriedade dos veículos, bem assim como as respetivas coimas.”

8. Depois de apresentado o pedido de pronúncia arbitral, a AT revogou, através de despacho de revogação de 07.01.2014 comunicado ao processo a 08.01.2014, 13 dos 15 atos de liquidação de IUC que constituíam o objeto inicial do pedido, mantendo apenas dois: o referente ao documento de cobrança n.º 2008 …, de 2008, no valor de € 35,20, relativo ao veículo de matrícula … e o referente ao documento de cobrança n.º 2008 …, de 2008, no valor de € 61,17, relativo ao veículo de matrícula ….

9. A Requerente e B… celebraram um contrato de locação financeira relativo ao veículo de matrícula …, com início a 23.04.2008.

10. O veículo de matrícula … foi matriculado pela primeira vez no dia 04.04.2008.

11. O veículo de matrícula … foi vendido pela Requerente à sociedade C…, em 10.08.1995, tendo sido emitida, pela referida venda, a fatura n.º …, relativa ao contrato ….

III.B FACTOS NÃO PROVADOS

Não há, alegados ou de conhecimento oficioso, factos relevantes para a decisão que não tenham sido dados como provados.

 

III. C MOTIVAÇÃO

A fixação da matéria de facto baseou-se no processo administrativo, nos documentos juntos à petição inicial ou no decurso do presente processo e em afirmações da Requerente que não são impugnadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

III.D Da cumulação de pedidos

Considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 104.º do CPPT e 3.º do RJAT, à cumulação de pedidos verificada in casu.

III.E do direito

Tendo em conta que, dos 15 atos de liquidação de IUC que constituíam o objeto inicial do presente processo arbitral, restam apenas 2, será sobre esses que se debruçará a presente análise.

Estão, pois, em causa, duas liquidações: uma, no valor de € 35,20, relativa ao veículo de matrícula …. e a outra, no valor de € 61,17, relativa ao veículo de matrícula ….

Vejamos, então.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente invoca duas circunstâncias que, no seu entender, a desqualificam da posição de sujeito passivo do IUC relativamente aos veículos e períodos de tributação em causa:

(i) a circunstância de, à data a que se reporta o facto tributário que originou a liquidação, não ser a proprietária do veículo;

(ii) a circunstância de, à data a que se reporta o facto tributário que originou a liquidação, estar em vigor um contrato de locação financeira ao abrigo do qual o veículo em questão se encontrava locado a outrem.

Nas duas circunstâncias, entende a Requerente não ser sujeito passivo do IUC em virtude de não estarem satisfeitos os requisitos de incidência subjetiva do imposto previstos no artigo 3.º do CIUC, conjugado com os artigos 4.º e 6.º do mesmo Código.

O cerne da discussão que subjaz aos presentes autos prende-se com a definição da incidência subjetiva do IUC: de acordo com a tese da AT, o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado; para a Requerente, a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do IUC estabelece uma presunção, derivada do registo, ilidível por força do disposto no artigo 73.º da LGT.

Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a Requerente que, à data da ocorrência dos factos tributários, já tinha vendido ou locado os veículos a terceiros ao abrigo de contratos de locação financeira. Como prova do alegado, junta ao pedido de decisão arbitral cópias dos contratos de locação e facturas de venda em que são identificados os veículos bem como os respectivos locatários/adquirentes.

 

Sucede, porém, que, de acordo com as diligências efetuadas pela AT, no caso dos veículos relativamente aos quais se mantêm os atos tributários, os respetivos locatários/adquirentes não tinham, à data dos factos tributários, efetuado os registos de aquisição ou da locação financeira junto da Conservatória do Registo Automóvel, pelo que, na base de dados desta, a Requerente continuava a figurar como proprietária dos mesmos.

O artigo 3.º do CIUC, sob a epígrafe “incidência subjetiva”, prevê o seguinte:

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, portanto, na interpretação da norma do n.º 1 daquele art. 3.º do CIUC, no sentido de determinar se a norma de incidência subjetiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado na Conservatória possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em direito, que não obstante tal facto, não é proprietário[1] do veículo no período a que o imposto respeita e, assim, afastar a obrigação de imposto que sobre ela recai. Trata-se, por conseguinte, da questão de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, suscetível de ilisão, nos termos gerais, como pretende a Requerente ou se, como entende a AT, “o legislador tributário, ao estabelcer no artigo 3.º, n.º 1, quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

Ora, sendo verdade que o legislador do CIUC elegeu o registo automóvel como elemento estruturante deste imposto (o que resulta, desde logo, do artigo 6.º do Código, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional), sendo, além disso, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação (artigo 4.º, n.º 2, do CIUC), bem como o momento até ao qual o imposto é devido (artigo 4.º, n.º 3, do CIUC) e a respetiva base tributável (artigo 7.º do CIUC), outra questão é a da interpretação que deve ser dada à norma de incidência subjetiva prevista no artigo 3.º do CIUC, a qual deve obedecer a princípios gerais da interpretação das normas tributárias, não se cingindo apenas ao ambiente normativo criado pelas restantes normas do CIUC.

 

Nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Porém, para ser detetada a consagração de uma presunção numa norma de incidência tributária, será que esta tem sempre que a prever expressamente, ou poderá, pelo contrário, extrair-se de uma norma de incidência tributária uma presunção que nela não esteja expressamente enunciada?

 

Por exemplo, no âmbito do regulamento do Imposto Municipal de Veículos[2], que o atual IUC substituiu, estabelecia-se uma presunção de forma expressa, dizendo a lei que “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”.  Ora, no âmbito do CIUC, o legislador entendeu substituir a palavra “presumindo-se” pela palavra “considerando-se”. Será que esse facto deve ser relevado da forma defendida pela AT, ao ponto de se dizer que a norma não prevê uma presunção, mas antes estabelece que os proprietários dos veículos como tal constantes do registo automóvel são sempre os sujeitos passivos do imposto?

 

Não é esta a nossa interpretação do texto legal. Com efeito, não existindo razões substantivas que permitam detetar uma razão para a alteração de postura do legislador relativamente a este ponto – ou seja, não havendo razões para crer que o legislador quis efetivamente afastar a possibilidade de outras pessoas, além do proprietário do veículo, serem sujeitos passivos do IUC, parece-nos que se deve ler a referida alteração semântica como isso mesmo – uma mera alteração semântica, sem impacto na norma que decorre do texto legal. Assim, entendemos que a norma que decorre do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC continua a ser uma presunção de incidência subjetiva relativamente ao proprietário do veículo como tal registado junto da Conservatória do Registo Automóvel, que não afasta a possibilidade de prova em contrário. Com efeito, parece-nos que a norma consagrada no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC tem a estrutura de uma norma de presunção tal como esta é descrita no artigo 349.º do Código Civil, ou seja, como uma ilação que a lei, ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. No caso concreto, a lei retira do facto conhecido (a propriedade do veículo nos termos do registo automóvel), a presunção acerca do sujeito que deve suportar o encargo tributário relativo ao veículo em causa. No entanto, será sempre possível ao proprietário constante do registo afastar a aplicação a si próprio da norma de incidência, posto que faça prova de que a capacidade contributiva que justifica a imposição tributária pertence a outrem, por exemplo, em função da venda do veículo em momento prévio ao da ocorrência do facto tributário, ou da celebração de contrato de locação financeira do qual o mesmo seja objeto.

 

As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no art. 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, pelo que o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui objecto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência matéria deste tribunal arbitral nos termos do disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT.

 

Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece os seguintes elementos relativos aos dois veículos que estão agora em apreciação:

a) Cópia do contrato de locação financeira relativo ao veículo de matrícula …, com início a 23.04.2008, sendo a data da primeira matrícula do veículo o dia 04.04.2008.

b) Cópia da factura de venda do veículo de matrícula …, vendido pela Requerente à sociedade C..., em 10.08.1995.

Da análise dos documentos apresentados extrai-se que, relativamente ao veículo de matrícula …, foi celebrado um contrato de locação financeira a 23.04.2008, mas o imposto era devido, relativamente ao ano de 2008 e nos termos do n.º 2 do artigo 4.º e do n.º 3 do artigo 6.º do CIUC, no dia 04.04.2008.

Relativamente ao veículo de matrícula …, o mesmo foi vendido pela Requerente à sociedade C…., em 10.08.1995, ou seja, em ano anterior àquele a que o imposto respeita.

Assim, conclui-se que, quanto ao ato de liquidação do IUC relativo ao veículo de matrícula …, o mesmo é válido por ter sido considerado sujeito passivo de imposto o respetivo proprietário como tal constante do registo, não tendo sido efetuada prova em contrário por parte da Requerente; quanto ao ato de liquidação do IUC relativo ao veículo de matrícula …, conclui-se a partir da prova apresentada pela Requerente, que se considera idónea nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, que a mesma não era proprietária do veículo em 2008. Assim, o ato de liquidação em causa deverá ser anulado.

IV. Decisão

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à ilisão da presunção de incidência subjetiva do IUC relativa ao ato de liquidação referente ao veículo de matrícula …, com a consequente anulação da liquidação questionada.

Fixa-se o valor do processo em € 847,83, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente e pela Requerida na proporção, respetivamente, de 7,2% e de 92,8%, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Lisboa, 30 de abril de 2014

O árbitro,

 

 

Guilherme W. d’Oliveira Martins



[1] O que, para este efeito, sucede também quando foi celebrado um contrato de locação financeira nos termos do qual é outra pessoa a locatária do veículo.

[2] Cfr. o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º

143/78, de 12 de junho.