Acordam os Árbitros Desembargador Manuel Macaísta Malheiros (Árbitro Presidente), Dr. José Pedroso de Melo e Dr. João Santos Pinto, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral:
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Relatório
A…, pessoa colectiva número …, com sede na …, veio, ao abrigo dos artigos 10.º e 2.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, prescindindo da faculdade de designar árbitro, para pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação adicional de IRC e juros compensatórios referente ao exercício de 2008 emitida sob o n.º …, no montante de Eur. 96.065,21.
Sustenta a Requerente, resumidamente, que as correções ao valor do crédito de imposto por dupla tributação internacional que subjazem à emissão da referida liquidação adicional de imposto e correspondentes juros compensatórios, levadas a cabo pelos serviços de inspecção tributária da Direção de Finanças de Lisboa, carecem de fundamento legal, sendo por conseguinte ilegais. Mais sustenta ainda a Requerente, a título subsidiário, que, mesmo que assim não se entendesse, deveriam os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) ter considerado como dedutível, em valor correspondente ao do crédito de imposto corrigido, o montante do benefício fiscal decorrente do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) disponível para dedução naquele exercício, o que sempre obstaria ao apuramento do imposto liquidado.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo em suma, que as correções efetuadas e subjacentes à emissão da liquidação adicional de imposto decorrem de uma correta aplicação da lei, designadamente os artigos 90.º e 91,º do Código do IRC, não havendo motivos para a sua anulação. Mais sustenta ainda, a AT Requerida, em resposta ao pedido formulado a título subsidiário, que não se verificam no caso vertente os pressupostos legais para a fruição pela Requerente do benefício fiscal resultante do SIFIDE, no exercício de 2008, sendo em qualquer caso extemporâneo o pedido efetuado, nesta parte.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Desembargador Manuel Luís Macaísta Malheiros (Árbitro Presidente), o Dr. José Pedroso de Melo e o Dr. João Santos Pinto, que comunicaram a aceitação do encargo.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 24-01-2013.
No dia 30 de Janeiro de 2014, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual, face à inexistência de prova testemunhal a produzir, se agendou prazo para a apresentação de alegações escritas que vieram a ter lugar.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias.
Tudo visto, cumpre proferir decisão.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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Os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa procederam a uma acção inspectiva de âmbito univalente – IRC – à Requerente, tendo por referência o exercício fiscal de 2008, de acordo com a Ordem de Serviço …;
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Em resultado daquela accão inspetiva, a Requerente foi notificada, em 13 de Setembro de 2012, do Projecto de Correcções do Relatório de Inspeção;
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O referido Projecto propunha diversas correcções em sede de IRC, referentes ao exercício fiscal de 2008, relativas à dedução do crédito de imposto por dupla tributação internacional, no montante de Eur. 96.065,21;
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O referido valor Eur. 96.065,21, resulta da soma de uma correcção de Eur. 77.412,86, referente ao montante deduzido pela Requerente à colecta do IRC com referência a retenção na fonte sofrida no Egipto relativamente aos serviços facturados pela Requerente à B…, com uma correcção de Eur. 18.652,35, correspondente ao valor da retenção na fonte sofrida no Brasil por referência a serviços prestados à entidade C…;
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A Requerente exerceu, por escrito, o direito de audição prévia relativamente a todas as correcções propostas;
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Apesar da argumentação apresentada, as correcções propostas foram mantidas no Relatório de Conclusões de Inspecção, daí resultando a emissão da uma liquidação adicional de IRC e juros compensatórios;
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Por não concordar com as correcções promovidas pelos Serviços de Inspecção Tributária, a requerente apresentou, em 13 de Março de 2013, uma reclamação graciosa com vista à anulação daquela liquidação;
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Na reclamação, a Requerente solicitou, em alternativa, que, caso as correcções contestadas fossem mantidas, a consideração do crédito fiscal de SIFIDE que se encontrava disponível para dedução à colecta no exercício de 2008;
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Em 15 de Julho de 2013 a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, na qual foram mantidas todas as correcções promovidas pela Inspecção tributária;
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A Requerente efectuou o pagamento do imposto, e dos respectivos juros compensatórios;
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No ano de 2007 a Requerente facturou a sociedade B... por serviços prestados no Egipto, num montante total de Eur. 399.570,13;
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O pagamento dos referidos serviços por parte da B... só veio a ocorrer no exercício fiscal de 2008;
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No ano de 2008, a Requerente facturou à sociedade de Direito Brasileiro “C...” um montante de Eur. 124.349,00, sobre o qual foram efectuadas retenções na fonte de imposto de renda, à taxa de 15%, no montante total de Eur. 18.652,35;
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As referidas facturas respeitam a prestações de serviços de consultoria em regime de “time & materials” referentes à análise, desenho e construção realizadas no âmbito de um projecto denominado de “…”;
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A remuneração e facturação dos indicados serviços foi determinada em função de um rate diário por cada perfil de técnico afecto ao projecto;
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Na sequência de candidaturas apesentadas para efeitos do benefício fiscal do SIFIDE, criado pela Lei n.º 40/2005, de 3 de Agosto, a Requerente foi notificada pela Comissão Certificadora para os Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial do montante do SIFIDE aprovado com referência a cada um dos exercícios de 2006 a 2008;
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O valor do crédito fiscal comunicado por aquela Comissão para os exercícios de 2007 e 2008 foi, respectivamente, de Eur. 260.913,59, e, Eur. 305.563,37
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Dos indicados valores foram deduzidos pela Requerente, até à concorrência das colectas de cada um dos indicados exercícios de 2007 e 2008, os valores de, respectivamente, Eur. 245.781,12, e, Eur. 152.473,38;
Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objeto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.
2.2. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os juízos probatórios basearam-se exclusivamente nos documentos juntos aos autos pelas Partes.
3. Decisão
3.1. Crédito de Imposto por dupla tributação internacional relativo a serviços facturados à B...
Resumida nos seus aspectos essenciais, é bem simples na verdade a questão de Direito que cumpre dirimir com referência a este ponto. Consiste esta em saber se, em face das disposições legais aplicáveis, designadamente do disposto no artigo 85.º do Código do IRC, na redacção em vigor à data dos factos (91.º, na redacção actual) é lícito pretender deduzir à colecta de um determinado exercício o crédito por dupla tributação internacional referente a imposto suportado no estrangeiro por referência a rendimentos pagos nesse ano (no caso, o exercício de 2008), mas que foram incluídos na base tributável do IRC do exercício anterior (de 2007), em que os serviços foram prestados.
No entender da Requerente, a resposta a tal interrogação deve ser afirmativa, sustentando a sua tese na afirmação de que o actual artigo 91.º do Código do IRC apenas impor como requisito para a dedução do crédito de imposto por dupla tributação internacional, que os rendimentos obtidos no estrangeiro tenham sido incluídos na matéria colectável, seja no próprio exercício seja em exercícios anteriores.
Pela negativa responde a AT Requerida, para quem a interpretação conjugada dos artigos 83.º e 85.º do Código do IRC (actuais 90.º e 91.º) impunha que a dedução do crédito de imposto por dupla tributação internacional só poderia ser efectuada no mesmo exercício em que os rendimentos obtidos no estrangeiro tenham sido incluídos na matéria colectável, arreigando a sua posição no entendimento veiculado em “ficha doutrinária” resultante de resposta a um pedido de Informação vinculativa (Proc.º n.º 3489/2005).
Compulsado o quadro legal aplicável, parece inegável a razão que assiste à Requerida neste ponto.
Vejamos.
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A matéria do crédito de imposto por dupla tributação internacional encontra-se formalmente inserida no Capítulo V do Código do IRC, onde vêm previstas as regras sobre o procedimento e a forma de liquidação do imposto.
Tratando-se aquelas de regras referentes à liquidação do imposto, as mesmas não podem deixar de ser lidas e interpretadas em consonância com as normas que conformam estruturalmente o imposto, designadamente as que disciplinam a respectiva incidência.
Ora, uma das regras elementares em matéria de incidência do IRC é a regra prevista no artigo 8.º do Código, na qual se dispõe que o imposto é devido por cada exercício económico, em consonância com o princípio da anualidade dos impostos.
Desta forma, ao se dispor o n.º 1 do artigo 91.º, que a dedução por dupla tributação internacional é aplicável quando na matéria colectável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro, tem-se por pressuposto que aquela referência é feita aos rendimentos incluídos na matéria colectável desse próprio exercício. Como é óbvio, também, que as demais deduções à colecta permitidas pelo n.º 2 do artigo 90.º consistem nos benefícios fiscais, pagamentos especiais por conta e retenções na fonte do próprio exercício, não carecendo a lei de o referir expressamente (in claris non fit interpretativo).
É certo que, como mera regra de liquidação que é, a norma em apreço pode admitir excepções, quando expressamente previstas.
Foi o que veio a suceder, de resto, em momento posterior ao da verificação do facto tributário a que respeita o acto tributário em crise, com o aditamento, pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, de um n.º 4 ao artigo 91.º em análise, no qual, repristinando a regra eliminada pela Lei n.º 39-A/2005, de 9 de Julho, se dispõe que sempre que não seja possível efetuar a dedução do crédito de imposto por dupla tributação internacional, por insuficiência de coleta no período de tributação em que os rendimentos obtidos no estrangeiro foram incluídos na matéria coletável, o remanescente pode ser deduzido à coleta dos cinco períodos de tributação seguintes.
Sendo certo que esta excepção não só confirma a regra que vimos de enunciar, como demonstra a falta de acerto da tese sustentada pela Requerente, deixando claro que o reporte do crédito de imposto passa a ser admitido, mas apenas no caso de a colecta do exercício no qual os rendimentos foram incluídos na matéria colectável se revelar insuficiente para consumir a totalidade daquele crédito.
Saliente-se, em benefício de um correcto enquadramento da situação sub studi, que, em rigor, a questão que ora nos ocupa não releva da aplicação do princípio contabilístico da especialização dos exercícios ou periodização económica acolhido no artigo 18.º do Código do IRC, o qual, sendo também decorrência da regra da anualidade do imposto, se destina a regular a imputação temporal das componentes positivas e negativas do próprio rendimento, num momento prévio ao do apuramento da matéria colectável e subsequente liquidação.
Razão pela qual não surge aplicável, designadamente, o disposto no n.º 2 daquele preceito, que, em derrogação da regra geral, permite a imputação ao período de tributação das componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
Aliás, à parte o facto de uma e outras soluções normativas decorrerem da aplicação do princípio da anualidade vertido no artigo 8.º do Código, nenhuma analogia, se pode procurar fazer entre a imputação temporal das componentes do lucro tributável, designadamente em matéria de gastos, e a imputação temporal das deduções à colecta previstas no artigo 90.º, n.º 2, na lógica do funcionamento do imposto.
Dir-se-á que, no caso das deduções por dupla tributação internacional, a rigidez desta norma poderá conduzir, não raras vezes, a situações como a que ora nos ocupa, i.e., ao apuramento de um imposto que se venha posteriormente a revelar excessivo, sempre que, no momento do preenchimento da declaração de rendimentos, o efectivo pagamento de facturas emitidas no decurso do exercício económico a que respeita a declaração, ainda não se tenha verificado.
A verdade, porém, é que, tal efeito constitui o resultado lógico da aplicação das normas conjugadas dos artigos 8.º, 90.º e 91.º, e da sua inserção sistemática no Código do IRC -, sem que se vislumbre norma ou princípio constitucional ou ordinário que a tanto se oponha[1] - pois, se por um lado, o crédito de imposto só pode operar por referência ao exercício em que o rendimento foi incluído na matéria colectável, por outro lado, o nascimento do direito à sua utilização depende da verificação da situação de efectiva dupla tributação.
Estamos perante uma consequência incontornável decorrente da dimensão periódica do imposto e da forma como se convencionou o fraccionamento da vida económica da empresa em exercícios económicos para efeitos de tributação. Como bem resume MANUEL de FREITAS PEREIRA[2], “esta dimensão periódica do imposto está repleta de consequências. Desde logo ela é fonte do que alguns chamam a independência dos exercícios económicos entre si. Cada período é, em princípio, tomado, para efeitos de tributação, isoladamente, sem conexão com o que se passou ou vai passar nos outros exercícios. O imposto que é arrecadado toma a realidade do período como autónoma e capaz de servir de base ao lançamento de uma prestação que é, pela sua natureza, definitiva. É certo que existem regras que atenuam o rigor desta independência dos exercícios entre si, mas o que importa sublinhar é que o cálculo de um rendimento para efeitos de tributação não tem uma natureza provisória que possa ser susceptível de correcção posterior devido a eventuais erros de avaliação ou a ocorrências verificadas posteriormente.”
Não vai sem dizer, no entanto, que, apesar do exposto, a impossibilidade de utilização do crédito de imposto em exercício diverso daquele em que foi gerado o rendimento não tinha que resultar num dano irreversível para o sujeito passivo.
Tem razão, com efeito, a AT Requerida, quando afirma que, nem por isso o sujeito passivo ficou privado daquele direito, pois, não só possuía o prazo de um ano para substituir a declaração de rendimentos e reflectir na liquidação do imposto o respectivo crédito, se entretanto se viesse a verificar a retenção na fonte de que o mesmo depende, como poderá, se tal vier a verificar-se ulteriormente, vir a obter o mesmo efeito por via da reclamação da autoliquidação ou revisão oficiosa do acto de liquidação.
No limite, se o pagamento nunca se vier a verificar, nunca se virá a colocar o problema da dupla tributação (tendo ademais o sujeito passivo à sua disposição mecanismos de provisionamento dos créditos que lhe permitem anular o proveito fiscal correspondente).
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Por todo o exposto, conclui-se pois que, não assistindo à Requerente o direito à dedução à colecta do exercício de 2008, do crédito de imposto por dupla tributação internacional relativo a serviços facturados à B... em 2007, não merecem qualquer censura as correcções efectuadas com esse fundamento.
3.2. Crédito de Imposto por dupla tributação internacional relativo a serviços facturados à entidade C….
O acto tributário sob impugnação vem ainda sindicado na parte e montantes correspondentes à desconsideração por parte da AT, no exercício de 2008, do crédito de imposto por dupla tributação internacional deduzido pela Requerente na declaração modelo 22 apresentada com referência aquele exercício, relativo a retenção na fonte de imposto suportado no Brasil, sobre rendimentos decorrentes de serviços prestados a uma sociedade residente para efeitos fiscais no Brasil, em resultado da sua alegada qualificação como royalties pela entidade pagadora.
Considerou, em suma, a AT ora Requerida, como fundamento da correcção promovida, que, à luz da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil Destinada a Evitar a Dupla Tributação e a Prevenir a Evasão Fiscal em matéria de Impostos sobre o Rendimento (adiante abreviadamente designada por CDT), e na dúvida sobre a sua qualificação como royalties, os serviços prestados pela Requerente à referida entidade devem ser subsumidos no conceito de “lucro da empresa” previsto no artigo 7.º, razão pela qual só o Estado Português teria competência para tributar os respectivos rendimentos, não podendo o imposto retido na fonte, por indevido, conferir direito à dedução de qualquer crédito de imposto nos termos do n.º 2 do artigo 91.º do Código do IRC.
Contra aquela conclusão insurge-se a Requerente baseando, em suma, a sua argumentação, no seguinte silogismo: (i) de acordo com o 5.º travessão do Protocolo de Aplicação da CDT, a qualificação como royalty para efeitos da aplicação do regime previsto no artigo 12.º da CDT deve ser estendida a qualquer espécie de pagamento recebido em razão da prestação de assistência técnica e de serviços técnicos; (ii) de acordo com as regras da CDT competia exclusivamente à sociedade devedora dos rendimentos qualificar os mesmos à luz da lei interna brasileira, devendo o Estado português aceitar aquela qualificação; (iii) encontrando-se demonstrado que os rendimentos auferidos no Brasil se subsumem no referido conceito de serviços técnicos, os mesmos seriam necessariamente qualificados como royalties à luz do CDT, estando a retenção efectuada em conformidade com aquela Convenção.
Cumpre pois dirimir.
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Constitui questão central do litígio que opõe o sujeito passivo Requerente e a AT Requerida a aplicação do crédito de imposto por dupla tributação internacional previsto, à data dos factos, no artigo 85.º do Código do IRC (a que corresponde, actualmente, o artigo 91.º), o qual dispunha como segue:
Artigo 85.º
Crédito de imposto por dupla tributação internacional
1 - A dedução a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 83.º é apenas aplicável quando na matéria colectável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro e corresponde à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) Fracção do IRC, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos dos custos ou perdas directa ou indirectamente suportados para a sua obtenção.
2 - Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efectuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção
Consagra este preceito um mecanismo unilateral genérico para a eliminação do fenómeno de dupla tributação jurídica ou internacional consistente no designado método normal ou método da imputação, segundo o qual se um residente em território nacional auferir rendimentos no estrangeiro sujeitos a imposto, poderá deduzir (creditar) o imposto pago no país da fonte para efeitos da determinação do IRC a pagar.
Dispõe o número 2 daquele preceito que, sempre que entre Portugal e o Estado da fonte dos rendimentos tenha sido celebrada Convenção para Evitar a Dupla Tributação, o crédito de imposto ficará limitado ao imposto pago nos termos permitidos pela Convenção.
Trata-se de uma regra-travão compreensível e que funciona como contraponto dos limites negociados entre as partes para a limitação dos poderes de tributação constantes dos tratados: se o Estado da fonte, contra o que contratou, impuser uma tributação superior à que lhe permite a Convenção, não poderá ser o Estado da residência a suportar esse excesso, cabendo ao sujeito passivo, querendo, reclamar a sua devolução perante aquele.
A questão que se coloca é a de saber como definir os limites permitidos pela Convenção sempre que, por exemplo, as normas internas dos dois Estados adoptem postura diversa face aos conceitos da Convenção, aplicando as regras daquela de forma diferente à mesma situação de facto. Trata-se de saber, no fundo, se, perante duas qualificações diferentes de determinada situação e facto perante cada um dos ordenamentos internos, qual a qualificação daquela situação que deve prevalecer, ou se alguma deve prevalecer.
E a resposta a esta questão assume, no quadro da resolução do litígio que opõe a Requerente à AT, importância crucial.
Isto porque, à semelhança do que sucede com a maioria das convenções internacionais bilaterais para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado Brasileiro, a CDT celebrada com Portugal prevê no respectivo Protocolo (travessão 5) uma disposição que alarga o conceito de royalties previsto no n.º 3 do artigo 12.º a qualquer espécie de pagamento recebido em razão da prestação de assistência técnica e serviços técnicos - estendendo dessa forma o direito a tributar na fonte como royalties, os rendimentos decorrentes daquelas realidades -, sem que contudo defina o que entender por assistência técnica ou royalties para aquele efeito.
Alega, em suma, a Requerente, que em face do disposto no n.º 2 do artigo 3.º da CDT, o qual dispõe que, “no que se refere à aplicação a Convenção, num dado momento, por um Estado Contratante, qualquer termo ou expressão que nela não se encontre definido terá, a não ser que o contexto exija interpretação diferente, o significado que lhe for atribuído nesse momento pela legislação desse Estado que regula os impostos a que a Convenção se aplica, prevalecendo a interpretação resultante desta legislação fiscal, na definição dos respectivos efeitos tributários,” cabe à sociedade brasileira devedora do rendimento preencher aquele conceito à luz da legislação fiscal brasileira e concluir sobre a qualificação da situação de facto. Pelo que, se em face da legislação fiscal brasileira, os serviços que prestou à sociedade residente no Brasil são qualificados como serviços técnicos, esta qualificação deveria ter sido acriticamente aceite pela AT.
Resulta daquela disposição, no entender da Requerente, que a qualificação conferida pelo Estado da fonte relativamente a um determinado rendimento deve prevalecer, caso não haja concordância nessa qualificação entre os dois Estados, suportando tal conclusão nos ensinamentos do Professor Alberto Xavier[3], quando escreve que “o Estado da residência deve aceitar a qualificação do Estado da fonte, sendo-lhe vedado proceder a “nova qualificação”, autónoma, em face do seu ordenamento interno”.
Não tem razão, porém, a Requerente.
E isto porque, como bem nota a AT Requerida, e como parece resultar claro do texto da norma citada, o referido preceito da Convenção não possui o alcance que a Requerente lhe pretende conferir, não dispondo, designadamente, sobre o problema da qualificação, i.e., da subsunção da situação de facto aos conceitos-quadro da Convenção. Seguimos, pois, nesta matéria, os ensinamentos de Alberto Xavier[4], para quem o alcance deste preceito “reporta-se exclusivamente ao problema da interpretação dos tratados, não sendo invocável no que concerne ao autónomo problema da qualificação.”
Resta definir então quem teria competência para proceder à qualificação no caso vertente, e definir se os serviços em causa se poderiam subsumir ao conceito de serviços técnicos, admitido que foi pela Requerente que os mesmos não assumiam a natureza de serviços de assistência técnica.
Ora, é sabido que o texto da Convenção não consagra qualquer regra que permita dirimir esta questão. Em face desta lacuna, é entendimento de Alberto Xavier que “as Convenções contêm regras específicas, explícitas ou implícitas que atribuem competência qualificatória exclusiva a um dos dois Estados, em função da natureza da questão a que respeita”, sendo certo que, no que a “competência qualificatória relativa aos tipos de rendimentos que constituem o conceito-quadro da norma de conflitos, é sempre atribuída exclusivamente ao Estado da fonte.”
Tem pois razão a Requerente, no que não parece ser contestado pela Requerida, que competia ao ordenamento jurídico Brasileiro subsumir o rendimento em causa nas categorias de rendimentos previstos pela Convenção.
Já não tem razão a Requerente, ao pretender retirar dessa ilação a conclusão de que a retenção de imposto de renda efectuada no Brasil deva, por esse facto, ser automaticamente reputada como traduzindo uma correcta interpretação e aplicação da Convenção face à lei brasileira, impondo-se automaticamente ao Estado Português.
E isto porque, como bem nota a Requerida, resulta igualmente da doutrina que vimos de seguir, que a aceitação automática da qualificação apenas se impõe ao Estado da residência nos casos em que a interpretação e qualificação que lhe subjaz foi correctamente efectuada face às regras da Convenção, subsistindo sempre uma margem de apreciação dessa conformidade pelos órgãos de aplicação da lei do Estado da residência, tanto para mais quando aquela interpretação e qualificação é efectuada por uma entidade privada que pode obviamente proceder a uma errada aplicação da lei.
Esta conclusão apresenta-se-nos como irrecusável, pois não parecem restar dúvidas que a AT não estaria obrigada a reconhecer um crédito de imposto, por exemplo, numa situação absurda em que o devedor de determinado rendimento viesse a considerar como dividendo um rendimento decorrente de uma prestação de serviços, sujeitando-o a retenção na fonte. Temos para nós claro que, nesta situação, o Estado da residência não poderia aceitar tal qualificação, impondo-se ao sujeito passivo que sindicasse essa retenção junto das autoridade fiscais do Estado da fonte.
De onde resulta, em suma, que sempre seria lícito à AT exigir da Requerente que fizesse prova da subsunção dos serviços prestados ao conceito de serviços técnicos previstos na legislação fiscal brasileira.
E esta prova não resulta produzida.
Assim e desde logo, não logrou a Requerente fazer prova das normas da legislação brasileira que consagram o conceito de “serviço técnico”. Pelo contrário, o teor da própria Instrução Normativa n.º 252/02 que a Requerente junta aos autos como alegadamente elucidativa da clareza daquele conceito, refere afinal, textualmente, na disposição citada apenas em parte pela Requerente no artigo 64º do pedido arbitral, que apenas deve ser considerado como tal “o trabalho, obra ou empreendimento cuja execução dependa de conhecimentos técnicos especializados prestados por profissionais liberais ou de artes e ofícios” (sublinhado nosso). Sendo certo, também, que os documentos de Arrecadação de Receita Fiscal e os documentos respeitantes aos registos de operações de câmbio no banco Central Brasileiro, não permitem extrair qualquer conclusão no que respeita ao enquadramento normativo dos rendimentos, pelas razões que bem aponta a requerida nos artigos 114.º a 120.º da sua Resposta.
De resto, a Requerente não logrou sequer juntar aos autos o contrato que subjaz à prestação de serviços realizada, ou apresentar prova testemunhal no sentido de demonstrar o objecto do mesmo.
Ora tal deficit probatório não pode deixar de ser valorado em desfavor da Requerente.
E isto porque, todos os elementos documentais disponíveis apontam, como bem o refere a AT na sua resposta, no sentido da qualificação do objecto da sua prestação como uma mera prestação de serviços, designadamente as próprias facturas.
Note-se que, nesta perspectiva, afigura-se totalmente desnecessário por irrelevante enveredar pela discussão doutrinal a respeito da diferenciação entre os contratos de “know-how” e prestação de serviços, ou de assistência técnica e de prestação de serviços técnicos, pois foi a própria Requerente que afastou a qualificação do rendimento como royalties à luz das regras do artigo 12.º da CDT, balizando o thema decidendum na mera extensão resultante do travessão 5 do protocolo da Convenção.
Sucede, que, a Requerente, suportando toda a sua tese na qualificação dos serviços como de “serviços técnicos” passíveis de tributação como royalties à luz do Protocolo, não logrou produzir qualquer prova nesse sentido.
O que autoriza a qualificação do rendimento em causa como rendimento subsumível ao conceito de lucro da empresa previsto na CDT, e legitima, consequentemente, a não aceitação do crédito de imposto pro dupla tributação internacional à luz do que dispunha, à data, o n.º 2 do artigo 85.º do Código do IRC.
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Razão pela qual não merece também qualquer censura a correcção que subjaz à emissão do acto impugnado, nesta parte.
3.3. SIFIDE
Subsidiariamente, entende ainda a Requerente que, mesmo que se considerassem como devidas as correcções ao crédito de imposto que motivaram a emissão do acto de liquidação impugnado, ainda assim este enfermaria de ilegalidade, por não considerar, em substituição daquele crédito, o valor do benefício resultantes do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) passível de dedução à colecta do exercício de 2008.
Sustenta a Requerente, resumidamente, que, restando por utilizar um valor de crédito fiscal por SIFIDE naquele exercício, por insuficiência de colecta dos exercícios de 2007 e 2008, susceptível de consumir a colecta correspondente às deduções do crédito de imposto por dupla tributação internacional desconsideradas pelos Serviços de Inspecção Tributária, deveriam os referidos serviços ter considerando a utilização desse benefício em substituição dos créditos desconsiderados, o que sempre impediria o apuramento de qualquer colecta.
Considera, por seu turno, a AT Requerida, que tal pedido não pode proceder, na medida em que, por um lado, esse pedido apenas veio a ser formulado na reclamação graciosa, razão pela qual a inspecção tributária não teria de se pronunciar sobre a matéria, e em que, por outro, o valor do benefício a que a Requerente teria direito estaria limitado aos valores da dotação indicado na declaração modelo 22 do IRC. Mais entende a requerida que, ainda que assim não fosse, o efeito pretendido teria de passar pela apresentação de reclamação da autoliquidação do IRC do exercício de 2007, no momento em que recebeu, em Fevereiro de 2009, a declaração da entidade certificadora das despesas elegíveis de valor superior ao indicado naquela declaração.
Não tem razão, porém, a autoridade Requerida.
Cumpre salientar, antes do mais que, tal como o reconhece a Requerida na sua Resposta, o crédito fiscal resultante do SIFIDE, tal como estabelecido na Lei n.º 40/2005, de 3 de Agosto, consiste num benefício fiscal automático não dependente de reconhecimento.
Resulta dessa constatação que o sujeito passivo adquire o direito ao benefício pela mera realização das despesas elegíveis, desde que as mesmas venham a ser comprovadas pela respectiva entidade certificadora.
Decorre ainda do disposto no referido diploma legal que as despesas elegíveis poderiam ser efectuadas no próprio exercício em que foram efectuadas, podendo no entanto ser reportadas até ao sexto exercício seguinte, no caso de insuficiência de colecta daquele.
O mecanismo de aproveitamento deste benefício funciona, assim, numa lógica semelhante ao da utilização dos prejuízos fiscais, sendo reportado para a frente, no limite do período legal de utilização, sempre que inexista no exercício, e nos exercícios seguintes, colecta que o permita absorver.
À semelhança também do que sucede com os prejuízos, constitui prática recorrente a indicação na declaração de rendimentos modelo 22 apenas a dotação do crédito reputada suficiente para consumir a colecta estimada do exercício. Sem que tal signifique, no entanto, que o direito ao benefício fique limitado aquele valor, mas tão-somente que essa é a parcela do direito que o sujeito passivo vai utilizar na sua autoliquidação de imposto.
Sendo aquele um direito automático, resulta evidente que, sempre que a AT vier a corrigir o valor da colecta, ou, como na situação em apreço, a reduzir o montante das deduções à colecta, tem o sujeito passivo direito a utilizar a parcela que havia reportado para a frente, na medida do valor que ainda tiver disponível, tal como sucede com os prejuízos fiscais sempre que ocorram correcções ao valor do lucro tributável.
Se tal não suceder, o acto tributário que venha a exigir o pagamento de imposto com base na colecta que não seria apurada caso viesse a ser relevado o crédito a que o sujeito passivo tem direito, enferma automaticamente de ilegalidade por violação desse direito.
E foi exactamente isso o que sucedeu relativamente à liquidação em crise nos presentes autos arbitrais: a partir do momento em que foram desconsiderados os créditos de imposto por dupla tributação internacional, tinha a Requerente o direito de utilizar, em substituição dos mesmos, as dotações disponíveis do exercício anterior que ainda se mostrassem utilizáveis, bem como as dotações do exercício até integral cobertura da colecta deixada a “descoberto” por aquelas correcções. Não o fazendo, e apurando imposto sobre aquela colecta desconsiderando as deduções a que o sujeito passivo teria direito, enferma o acto de liquidação de ilegalidade por violação daquele benefício.
Ora, se assim é, a AT estava, a partir desse momento, vinculada a promover a respectiva anulação.
É certo que, não tendo sido alertada para o facto quando da inspecção tributária, seria difícil à AT evitar a emissão do acto ilegal.
Contudo, tal dever impunha-se-lhe inapelavelmente logo que tomou conhecimento do facto na reclamação graciosa.
Com efeito, conforme decorre do disposto no artigo 55.º da Lei Geral Tributária, toda a actividade administrativa, seja ela correctiva ou decisória deverá observar obrigatoriamente os princípios da legalidade, igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e da celeridade, daí decorrendo, não só, que a aplicação da lei constitui o único pressuposto e fundamento da actuação dos serviços da administração tributária, mas também que estes intervêm no procedimento de revisão dos actos tributários como órgãos de aplicação da justiça devendo, nesta actividade, ser absolutamente imparciais, conjugando o objectivo de arrecadação de receita com a satisfação das justas pretensões do contribuinte.
Para além do que, de acordo com o disposto no artigo 58.º do mesmo compêndio, todos os serviços da administração fiscal se encontram sujeitos ao princípio da prossecução da verdade material devendo, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à reposição da legalidade e à satisfação do interesse público.
E nem se diga que, como se subentende da posição assumida pela AT Requerida, que a violação dos referidos princípios do procedimento seria no caso vertente permitida pela lei, como consequência da configuração do procedimento de reclamação como um contencioso de mera anulação das correcções efectuadas, e da circunstância de a Requerente não ter suscitado essa actuação no decurso do procedimento de inspecção.
É que tal afirmação sempre desprezaria que a actividade decisória da administração fiscal no procedimento não se reconduz à mera anulação ou confirmação dos actos tributários por si praticados, podendo designadamente, de acordo com o artigo 79.º da referida LGT, e por força, de resto, dos citados princípios da legalidade e prossecução da verdade material, conduzir à reforma, rectificação e conversão de actos anteriores no prazo da sua revisão, mesmo, aliás, à prática de actos de rectificação das declarações dos contribuintes em casos de erros de cálculo ou de escrita.
Mas ainda que se entendesse não ser a reclamação da liquidação, mas a reclamação da autoliquidação por parte do sujeito passivo, a sede própria para requerer da AT a anulação do acto tributário, tal não significaria que esta não devesse oficiosamente sanar aquela ilegalidade.
Note-se, com efeito, que a conformação do exercício do poder decisório com os referidos princípios procedimentais não traduz o uso de um qualquer poder discricionário, impondo-se inapelavelmente em qualquer caso aos serviços da administração tributária, sob pena de ilegalidade do procedimento por omissão injustificada do dever legal de decidir.
Pelo que, constatando a ilegalidade resultante da exigência à Requerente de um imposto que esta, por força da mera aplicação da lei, nunca teria de suportar, sempre os serviços da administração tributária se encontrariam obrigados a proceder à revisão oficiosa do acto ilegal praticado.
E essa obrigação impor-se-ia ainda que, por hipótese, já tivesse decorrido entretanto o prazo para apresentação da reclamação da autoliquidação.
Como lapidarmente resumem F. Pinto Fernandes e J. Cardoso dos Santos, a respeito então dos princípios vertidos no Código de Processo Tributário[5], mas com total actualidade:
“a actividade da administração fiscal está subordinada a vários princípios, de que cumpre frisar aqui o da legalidade, pois tratando-se de direitos indisponíveis, há-de conter-se dentro dos estreitos limites da lei, com inteira salvaguarda dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos - que são, afinal, a razão de ser da própria administração. O Estado apenas deve cobrar aquilo a que legalmente tem direito, nem mais nem menos, a fim de ser respeitada a legalidade da tributação. Assim se respeitam os direitos e interesses dos cidadãos».
Aliás, já previamente à entrada em vigor do Código de Processo Tributário, a jurisprudência vinha consagrando uma vasta aplicação do princípio da legalidade no âmbito da Administração Fiscal, retirando daí a necessidade de uma actuação justa e imparcial dos seus órgãos e agentes, pautada por regras de equidade e boa fé (v., por todos, o Acórdão do Tribunal Tributário de 2ª Instância, de 03/11/88, in CTF nº 353, págs 250 a 259).
Embora entregues fora do prazo de reclamação, as exposições dirigidas pelo contribuinte à administração fiscal levaram ao conhecimento desta uma situação de desconformidade entre o rendimento efectivamente auferido pelos sujeitos passivos e o rendimento sobre o qual incidiu a tributação.
Ora, perante a doutrina e jurisprudência citadas, não pode deixar de concluir-se que, independentemente do modo - e do prazo - da tomada de conhecimento daquele facto, pela Administração Fiscal, compete a esta, logo que tal aconteça, tomar as medidas necessárias à reposição da verdadeira situação tributária do contribuinte, revogando o respectivo acto de liquidação que, embora válido, se veio a verificar, comprovadamente, ter recaído sobre um montante erradamente declarado, e substituindo-o por outro que faça incidir a tributação apenas sobre o rendimento efectiva e comprovadamente auferido.”
E nem se pretenda invocar contra a conclusão acabada de enunciar, como pretende a AT Requerida, que a correcção do acto impugnado nos termos referidos estaria precludida pelo facto de, entretanto, a Requerente já ter utilizado a totalidade do crédito pelo benefício fiscal nos exercícios subsequentes.
É que, à semelhança do que sucede com o reporte de prejuízos fiscais, esta constatação não obsta à conclusão de que, nos termos da lei, a Requerente tinha direito a ver reconhecido o benefício no exercício de 2008, sendo ilegal dessa forma o acto de liquidação emitido com referência àquele exercício. Sendo certo que não se trata de uma opção meramente comutativa sem quaisquer efeitos financeiros, na medida em que com o imposto foram apurados conjuntamente juros compensatórios que integram a liquidação.
Acresce referir, por fim, que a AT nunca ficaria prejudicada por esta conclusão, na medida em que pode sempre corrigir o(s) exercício(s) em que, em função da imputação do benefício ao exercício de 2008 na proporção da colecta, se venha a revelar indevidamente deduzido.
***
Termos em que se conclui assistir razão à Requerente no pedido subsidiariamente formulado, devendo anular-se, em conformidade, o acto submetido à presente pronuncia arbitral.
4. Juros indemnizatórios
A Requerente pede juros indemnizatórios, como consequência da anulação da liquidação impugnada.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Cumpre, assim, apreciar o pedido de juros indemnizatórios.
Resulta claro da decisão proferida sobre o mérito da acção, que a AT estava vinculada a reconhecer, quando tomou conhecimento do facto em sede de reclamação graciosa da liquidação, o direito da Requerente a ver reconhecido o crédito de imposto por SIFIDE não utilizado na parte correspondente ao crédito de imposto por dupla tributação internacional corrigido, o que resultou na manutenção de um acto tributário ilegal.
Está-se perante vício de violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária
Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia indevidamente paga, até ao integral reembolso do referido montante.
Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação de IRC e juros compensatórios respeitante ao exercício de 2008, no montante de Eur. 96.065,21, anulando-se em consequência o acto tributário.
– julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no pagamento à Requerente de juros indemnizatórios à taxa legal contados calculados sobre aquela quantia desde a data do pagamento até ao integral reembolso, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar este pagamento.
Valor do processo: De harmonia com o disposto no art. 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de Eur. 96.065,21.
Custas: Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em Eur. 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 5-5-2014
Os Árbitros
(Manuel Macaísta Malheiros)
(José Pedroso de Melo)
(João Santos Pinto)
[1] No sentido da não conflitualidade do princípio da tributação do lucro real com o princípio da especialização de exercícios, cf. por todos o Acórdão do TCA Sul de 30 de Janeiro de 2001 (Proc. 4588/00).
[2] A Periodização do Lucro Tributável, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 152, Centro de Estudos Fiscais, 1988, pág. 42.
[3] In Direito Tributário Internacional, Almedina, 2ª edição actualizada, pág. 172.
[5] In Código de Processo Tributário Anotado e Comentado, Edição Rei dos Livros, pág. 79.