Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 97/2017-T
Data da decisão: 2018-02-19  IRS  
Valor do pedido: € 37.076,39
Tema: IRS - Regime de Contabilidade Organizada - Regime Simplificado.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

  1. RELATÓRIO
  1. Em 2 de Fevereiro de 2017, A…, contribuinte n.º…, residente na …, n.º…, …-… Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral com intervenção do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).

 

  1. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Entidade Requerida”).

 

  1. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente solicitou ao Tribunal Arbitral a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2016…, de 4 de novembro de 2016, relativa ao ano de 2012, no montante global de EUR 37.076,39 (……).

Em concreto, por referência ao ano de 2012, o Requerente contesta o seu enquadramento no regime simplificado de tributação em sede de IRS, atento o disposto no artigo 28.º do CIRS.

Diversamente, motivada pela circunstância de no ano de 2011 o Requerente não ter atingido o volume de negócios correspondente ao valor mínimo para enquadramento obrigatório no regime de contabilidade organizada, entende a Entidade Requerida ser-lhe aplicável o regime simplificado de tributação em sede de IRS no ano de 2012.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 6 de fevereiro de 2017 pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD, tendo em seguida sido promovida a notificação da Entidade Requerida.

 

  1. Subsequentemente, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, o Árbitro Signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente Tribunal Arbitral singular, tendo a respetiva nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

 

  1. A 21 de março de 2017, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral foi constituído a 5 de abril de 2017, em conformidade com o artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

  1. Em 11 de maio de 2017, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta, tendo anteriormente junto o processo administrativo.

 

  1. Em 19 de maio de 2017, o Requerente pronunciou-se sobre a exceçao invocada pela Entidade Requerida na sua resposta.

 

  1. Por despacho de 6 de outubro de 2017 foi dispensada a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações pelas Partes.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

Não se verificam nulidades, mas foi invocada exceção dilatória pela Entidade Requerida, impondo-se a sua apreciação pelo Tribunal Arbitral.

 

-        Exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria

Invoca a Entidade Requerida a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria por, em seu entender, pretender o Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade da decisão oficiosa de enquadramento no regime simplificado, não tendo este tribunal poderes para tal, atenta a delimitação de competências operada pelo artigo 2.º do RJAT.

Discorda o Requerente deste entendimento, assinalando que o objeto do presente processo consiste na liquidação adicional de IRS n.º 2016…, de 4 de novembro de 2016, relativa ao ano de 2012, no montante global de EUR 37.076,39, pretendendo ver apreciada a sua conformidade legal à luz, nomeadamente, do artigo 28.º do CIRS.

Vejamos a quem assiste razão.

Em regra, os atos interlocutórios do procedimento tributário, sendo meramente instrumentais ou preparatórios da respetiva decisão final, não são lesivos dos direitos ou interesses legalmente protegidos do contribuinte, uma vez que não definem nem resolvem a sua situação tributária.

Com efeito, sendo o procedimento de liquidação do imposto formado por uma série de atos preparatórios e instrumentais dirigidos à liquidação propriamente dita, tendencialmente só esta, na qualidade de ato tributário em sentido estrito, é suscetível de causar uma lesão objetiva, imediata e atual na esfera do contribuinte, constituindo por isso o ato contenciosamente impugnável.

Porém, se lesivos nos termos expostos (objetiva, imediata e atualmente) ou mediante disposição expressa em sentido diverso, os atos interlocutórios do procedimento poderão ser objeto de impugnação contenciosa autónoma, assim o prevendo, a contrario sensu, o regime ínsito no artigo 54.º, primeira parte, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), nos termos do qual «salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento [...]».

Não obstante, prevê ainda a parte final do mesmo preceito legal que a não impugnabilidade autónoma em geral, ou a não impugnação autónoma in casu, ocorre sempre «[...], sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida».

Assim, independentemente do que se possa aportar quanto à eventual lesividade do ato interlocutório de alteração oficiosa do enquadramento cadastral do contribuinte (passagem do regime de contabilidade organizada ao regime simplicado), ou à possível existência de disposição expressa que preveja a sua impugnação autónoma, o certo é que o referido preceito legal não assaca à inércia do contribuinte qualquer efeito preclusivo do direito à impugnação da decisão final do procedimento – in casu, do direito à impugnação da liquidação adicional de IRS n.º 2016…, de 4 de novembro de 2016, relativa ao ano de 2012, no montante global de EUR 37.076,39.

Pelo contrário, o artigo 54.º do CPPT expressamente prevê que qualquer ilegalidade cometida na pendência do procedimento possa ser invocada na impugnação da decisão final do procedimento.

Perante o exposto, nenhum reparo merece a pretensão manifestada pelo Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral, no sentido de ver declarada a ilegalidade da liquidação adicional de IRS acima identificada, porquanto, constituindo esta o ato final do procedimento tributário em referência, pode ser contestada com fundamento em quaisquer ilegalidades, incluindo as respeitantes a atos interlocutórios, tais como o de alteração oficiosa do enquadramento cadastral do Requerente em sede de IRS.

Sem prejuízo dos fundamentos (causa de pedir) alicerçantes do pedido de pronúncia arbitral, o certo é que este pedido tem por objeto a mencionada liquidação de imposto e não qualquer outro ato, pelo que o Tribunal Arbitral é competente para a apreciação da sua (i)legalidade nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, não se verificando a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, alegada pela Entidade Requerida.      

Termos em que se julga improcedente a exceção dilatória invocada, inexistindo obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

  1. OBJETO DA PRONÚNCIA ARBITRAL

O thema decidendum objeto de pronúncia arbitral consiste na determinação do correto enquadramento em sede de IRS do Requerente no ano de 2012: se no regime simplificado de tributação (como defende a Entidade Requerida) se no regime de contabilidade organizada (como advoga o Requerente).

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente iniciou a sua actividade como médico estomatologista a 1 de janeiro de 1986, tendo estado enquadrado em sede de IRS no regime de contabilidade organizada até 31 de dezembro de 2011 (cfr. documentos n.os 1, 4 e 5 juntos do pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. No triénio 2012-2014, o Requerente foi oficiosamente enquadrado pela Administração Tributária no regime simplificado de tributação em IRS, por no ano anterior a esse triénio ter registado um volume de negócios inferior a EUR 150.000,00 (cfr. documento n.º 5 junto ao pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. A 4 de julho de 2013, por discordar da sua inclusão no referido regime, o Requerente apresentou exposição ao Diretor de Serviços de Registo de Contribuintes, na qual requereu a sua manutenção no regime de contabilidade organizada (cfr. documento n.º 3 junto ao pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Em novembro de 2016, o Requerente foi notificado da liquidação adicional de IRS n.os 2016…, de 4 de novembro de 2016, relativa ao ano de 2012, no montante global de EUR 37.076,39, refletindo o seu enquadramento no regime simplificado (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral);

 

  1. Por ofício n.º…, de 19 de dezembro de 2016, da Diretora de Serviços do IRS, e por referência à exposição supra, o Requerente foi informado do seguinte:

 

«Consultadas as bases de dados da AT, verifica-se que o sujeito passivo se encontra desde 2001 no Regime da Contabilidade Organizada por exigência legal em virtude do volume de negócios que tinha (contribuinte anterior ao registo). Dado que no ano de 2011 não ultrapassou o montante anual ilíquido de €150.000,00 e que não manifestou qualquer opção, traduzida na entrega de uma declaração de alterações de atividade, até ao fim do mês de março de 2012, com a opção pelo Regime da Contabilidade Organizada, foi enquadrado para o triénio 2012-2014 no Regime Simplificado» (cfr. documento n.º 5 junto ao pedido de pronúncia arbitral); 

 

  1. Em 2 de fevereiro de 2017, o Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação da liquidação adicional de IRS com fundamento na preterição do artigo 28.º do Código do IRS (“CIRS”) e/ou dos artigos 349.º e 334.º do Código Civil (“CC”).

 

 

  1. Factos não provados

Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes do pedido de pronúncia arbitral e da resposta, todos objetos de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra elencada.

 

C)     Fundamentação da decisão da matéria de facto

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e ao processo administrativo.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

Em face da matéria de direito a dirimir neste processo ser idêntica à oportunamente decidida no âmbito do processo n.º 760/2015-T, transcrevem-se em seguida os fundamentos de direito nele aduzidos, os quais integralmente se subscrevem:

«O regime de contabilidade organizada deve ser considerado como o regime regra de tributação, como decorre do princípio da tributação da real capacidade contributiva, apurada nos termos dos rendimentos realmente auferidos [...].

Razões práticas impuseram, porém, a possibilidade de, para valores menores, considerar[-se] apenas o volume de negócios (rendimentos brutos), deduzido de despesas presumidas em percentagem daquele. Isto para reduzir os custos de cumprimento dos sujeitos passivos e os custos de fiscalização da AT [...]. Mas o legislador entende que essa simplificação não pode ocorrer para valores de rendimentos elevados. Por isso a lei estabelece que, ainda que o sujeito passivo opte pelo regime simplificado, essa opção deixa de ser eficaz se, no ano precedente [...], em razão do valor do desvio, os rendimentos brutos do sujeito passivo forem superiores a determinado montante (pois, nesse caso, a consideração fortetária das despesas dedutíveis tornaria mais evidente o desvio ao princípio da tributação pelos rendimentos reais).

Estas considerações servem para explicar que se a mudança oficiosa do regime “simplificado” para o de “contabilidade organizada” é motivada por razões de coerência do sistema, já o inverso não é verdade (dir-se-ia até que é inversa a essa coerência, assente, bem ou mal, no paradigma dos “valores reais”) [...]. Isto sem prejuízo do exercício de livre opção pelos sujeitos passivos, mas livres também de reclassificações “oficiosas” com as quais legitimamente não contariam.

Essa constatação ajuda-nos a perceber melhor a disciplina do art. 28.º [...]. Tendo o sujeito passivo optado pela faculdade de usar o regime “simplificado”, essa opção deixa de ser válida se os rendimentos assumirem uma magnitude que para o legislador a desaconselhem. E, por essa razão, o novo enquadramento é obrigatório e pode ser oficiosamente processado pela AT.

Se a variação for a inversa, tenha sido ela precedida de opção voluntária do sujeito passivo ou de inserção automática, não há razão imperiosa que imponha o enquadramento (de novo) no regime simplificado. É até aconselhável que essa opção seja deixada ao critério do sujeito passivo. Vale isto por dizer que, nesse caso, o enquadramento pode permanecer imutável. E deve permanecer imutável pois é essa a forma de melhor garantir a tutela da segurança do sujeito passivo [...].

Mais, a interpretação que se propõe, sendo a mais consentânea com os princípios de tributação do rendimento e com o sistema de tributação deste, tem total acolhimento na letra da lei [...]. Por tudo quanto antecede, deve sustentar-se a interpretação do Requerente e não a da [Entidade] Requerida».

No que respeita à preterição dos artigos 349.º e 334.º do CC, entende o Tribunal Arbitral corresponder a questão cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução anteriormente adotada. Com efeito, incumbe ao Tribunal Arbitral a obrigação de apreciar e resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, independentemente da sua pertinência ou viabilidade, com exceção das questões cuja apreciação e decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do Código de ProcessoCivil (“CPC”)).

 

  1. DECISÃO

De harmonia com o exposto, julga-se totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente e, em consequência, declara-se ilegal, anulando-se, a liquidação adicional de IRS n.os 2016…, de 4 de novembro de 2016, relativa ao ano de 2012, no montante global de EUR 37.076,39, com fundamento em vício de violação de lei, por preterição do regime ínsito no artigo 28.º do CIRS.

Nos termos dos artigos 306.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em EUR 37.076,39, condenando-se a Entidade Requerida nas custas do processo, as quais perfazem EUR 1.836,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e, bem assim, da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Texto elaborado em computador, nos termos do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, com versos em branco e revisto pelo Árbitro Signatário.

 

Lisboa, 19-02-2018

 

O Árbitro

 

 

(Jaime Carvalho Esteves)