Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 366/2017-T
Data da decisão: 2018-02-12  IRC  
Valor do pedido: € 31.243,76
Tema: IRC – não aceitação de gastos fiscalmente dedutíveis – “faturação falsa”.
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Decisão Arbitral

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o tribunal arbitral coletivo constituído em 21 de junho de 2017, decide nos termos que se seguem:

 

  1. RELATÓRIO

 

No dia 12-06-2017, a sociedade “A…, UNIPESSOAL, LDA, NIPC …, B…, LDA.”, NIPC…, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável e notificou as partes dessa designação em 03-08-2017.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo ficou constituído em 21-08-2017, tendo-se seguido os pertinentes trâmites legais.

 

  1. Posições das Partes

 

Através do presente pedido de pronúncia arbitral vem a Requerente impugnar o ato tributário de liquidação de IRC n.º 2017…, referente ao ano de 2012 com origem no procedimento inspetivo levado a cabo pelos serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças do Porto, com a ordem de serviço n.º OI2014… .

 

A Requerente não impugna a totalidade do valor da liquidação supra identificada: quanto ao valor de € 13.228,00, referente a gastos por dívidas incobráveis irregularmente deduzidas em 2012, a Requerente conforma-se com essa parte da correção e não a pretende impugnar” (cf. artigo 3 do pedido de pronúncia arbitral).

 

Portanto, o objeto do pedido cinge-se “(…) ao que respeita à não aceitação como gasto fiscal em 2012 do valor de € 89.911,36 referente a compras de mercadoria à empresa C…, Lda, por a AT entender que o mesmo é sustentado em faturas falsas, não correspondentes a transações reais.” (cf. ponto 4 do pedido de pronúncia arbitral). Assim, peticiona, a final, que “a) Deve ser anulada parcialmente a liquidação supra identificada, nos termos impugnados, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei, e errónea qualificação do facto tributário. b) Mais se deve considerar que a Contribuinte tem direito à integral consideração como gasto fiscal do exercício de 2012, para efeitos de IRC, o valor constante das facturas emitidas pela C…, Lda, no montante total de € 89.911,36, uma vez que as mesmas titulam operações verdadeiras.”

 

A Requerente é uma empresa que tem por atividade, entre outras, o comércio, fabrico e afinação e ouro e prata.

 

No exercício dessa atividade, adquire prata fina e ouro em cascalho, tendo sido no exercício dessa atividade que fez compras à C…, Lda., compras essas que estão em causa no presente processo.

 

A liquidação impugnada tem a sua origem, conforme referido supra, num procedimento de inspeção realizado com base na seguinte motivação:

II.2.1 - Motivo

Sujeito passivo selecionado, pelo facto de, no âmbito da ação de inspeção à sociedade C…, Lda., NIF …, que decorreu ao abrigo da OI2013…, se ter detetado a emissão de faturas sem correspondência com transações reais com destino à A…, no período compreendido entre outubro e dezembro de 2012.”

 

No que diz respeito às transações com a sociedade C…, LDA, os serviços de inspeção tributária apuraram o seguinte:

III.2 TRANSAÇÕES COM A C…

Consoante inicialmente se referiu detetou-se a emissão de faturas sem correspondência com transações reais com destino à A…, no período compreendido entre outubro e dezembro de 2012, por parte da sociedade C…, Lda., doravante designada somente por C…, NIF … .

De facto analisada a contabilidade da A… atesta-se que entre 10 (dez) de outubro e 17 (dezassete) de dezembro do ano de 2012, constam fornecimentos por parte da sociedade C… de 106.272,10 gramas de prata fina e 519,56 gramas de cascalho de ouro, de acordo com a discriminação constante do quadro reproduzido no artigo 11.º da Resposta da Requerida.”

 

Os serviços inspetivos concluíram, no RIT cujas correções são sindicadas pela Requerente, o que se passa a transcrever:

“Outrossim, se concluiu no âmbito do procedimento inspetivo à sociedade C…, Lda. que tais fornecimentos, perante os factos descritos, constituem fortes indícios que se trata de faturas que não correspondem a transações reais, dos quais se destacam:

Inexistência de instalações para o exercício da atividade declarada, não possui nem possuía à data dos factos, instalações através das quais pudesse exercer a atividade, o proprietário das instalações indicadas como sede pelo sujeito passivo, declarou desconhecer a sociedade e o sócio gerente, alegando ter emprestado as instalações a D…, irmão do E…, instalações que se verificou não terem condições para o exercício de qualquer atividade, ou seja, nada foi encontrado com interesse ou que indiciasse que naquele local se desenvolvesse qualquer atividade relacionada com a comercialização de ouro.

Coletou-se para o exercício de atividade de fabrico em 2012/07/11, e logo em 2012/07/17 começou a emitir faturas de venda de metal ouro e prata;

Falta de recursos económicos financeiros da sociedade, constituída com o capital apenas de €1,00, e do sócio gerente para o exercício da atividade. Sócio que desde 2009 não declarava rendimentos, e dos rendimentos declarados de 2012, € 2.425,00 da Categoria A pagos pela empresa C…, que não recebeu, e apenas €3.086,13 da categoria A que lhe foram pagos pela empresa F…, SA;

Ocultou à AT e ao TOC os elevados valores faturados e de IVA liquidado, pois apesar de proceder ao envio das declarações periódicas de IVA, não declarou qualquer valor de vendas nem de IVA liquidado, e que dos documentos conhecidos atingem o valor respetivamente de € 817.962,77 e € 81.735,92, sendo ainda desconhecidas parte das faturas emitidas. Pretendeu justificar a existência de tais faturas com o facto de alguém, que diz desconhecer, estar a utilizar indevidamente o nome da empresa, sem que ele tenha tido qualquer participação na emissão e requisição das mesmas na tipografia.

O sócio gerente negou ter emitido em nome da empresa qualquer fatura, tendo também o TOC declarado desconhecer as Faturas/Recibo em causa;

Apesar dos elevados valores dos metais preciosos faturados, ninguém declarou vendas para o sujeito passivo;

As Faturas – Recibo conhecidas apresentam caligrafias diferentes no seu preenchimento, consoante o utilizador;

Junto da tipografia apurou-se que o primeiro livro de faturas-recibo foi requisitado por E… e o segundo livro de faturas-recibo foi requisitado pelo seu irmão D… . De facto, no ano de 2012, a sociedade C…, Lda., emitiu faturas para três entidades, entre as quais a A… (...).”

 

Perante o relatado, os serviços de inspeção tributária explanaram as seguintes conclusões:

“Em suma, coligadas todas as evidências, a factualidade descrita e os elementos probatórios recolhidos constituem fortes indícios de que a faturação emitida em nome de C… para a A… não consubstancia transações reais e efetivas entre aquelas duas entidades, tratando-se de faturação falsa.

Apesar do sócio gerente da C…, alegar nada ter transacionado, somos levados a crer que todo este esquema foi desenvolvido com a colaboração do sócio gerente, pois ficou demonstrado que foi o próprio a requisitar o 1º livro de faturas na tipografia e a levantar ao balcão os cheques emitidos pelos utilizadores, tendo em vista dar credibilidade às faturas. Contabilisticamente e fiscalmente, o valor de € 89.911,363 influenciou positivamente o custo das mercadorias vendidas (CMV), diminuindo o resultado líquido do exercício (RLE) da entidade A… pelo mesmo montante, pelo que nos termos do art.º 23.º do CIRC não poderá ser aceite como gasto fiscal. Para efeitos de IVA, nos termos do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA, o IVA deduzido pela A…, nos meses de outubro, novembro e dezembro do ano de 2012, constante das faturas emitidas pela C… não confere direito à dedução, de acordo com o quadro seguinte:

Nota: Na declaração de IVA, do período de outubro de 2012, relativamente à fatura/recibo 30, de 10/10/2012, emitida pela C…, apesar de na mesma constar o montante de €1.184,21 de IVA, somente foi deduzido o montante de €1.184,11.”

 

Refere a Requerente, quanto ao elenco de circunstâncias invocadas pela Requerida para justificar as correções efetuadas, que a desadequação da estrutura empresarial do fornecedor não pode ser utilizada, por si só, para considerar como simulada a faturação efetuada. Por outro lado, argumenta que não podem ser considerados como indícios fortes de faturação falsa indícios recolhidos apenas com base numa análise à contabilidade e organização do emitente da fatura, sem qualquer análise ao utilizador da fatura. Aliás, tendo em conta o tipo de operações comerciais realizadas com a C… e o setor de atividade em que as mesmas se inserem, não era exigível à Requerente que tivesse conhecimento da estrutura organizativa por detrás das pessoas com quem contactava na C… .

 

Por exemplo, atendendo a que as quantidades de prata transacionadas eram sempre relativamente pequenas, não era necessário a C… dispor de um armazém ou de instalações próprias para armazenar e vender o metal; por outro lado, as compras eram feitas pela C… e quase imediatamente esta procedia à venda, nomeadamente à Requerente, pelo que era normal que o transporte tivesse lugar no próprio automóvel do gerente da sociedade. Também não é estranho que a C… não necessitasse de equipamentos de fundição da prata ou de ensaio e afinação porque recorria a terceiros para prestarem esses serviços. No que respeita aos meios financeiros para operar, também não havia grandes exigências: a empresa fazia pequenas transações de cada vez, entre € 2.000 e € 15.000, pagando a pronto e recebendo a pronto: a realização de liquidez numa transação permitia realizar outra de seguida.

 

Quanto a outras circunstâncias alegadas pela Requerida, refere a Requerente o seguinte:

  1. Quanto à alegação de que não teria sido o gerente da C… a preencher as faturas emitidas à Requerente, afirma não ser verdade por ter sido o mesmo a emiti-las e preenchê-las;
  2. Quanto à alegação de que não seria a caligrafia do gerente da C…, e sim a do utilizador das faturas, a constar das faturas, contesta repudia igualmente dizendo que foi sempre o gerente, E…, ou o seu ajudante e irmão, D…, a preencher as ditas faturas;
  3. As operações comerciais entre a Requerente e a C… foram sempre realizadas nos exatos termos que constam das faturas;
  4. O material em causa foi sempre entregue nas instalações da Requerente em …, concelho de Gondomar;
  5. O metal era sempre pesado nas instalações da Requerente, por um empregado de nome G… ou pelo próprio gerente H…;
  6. A Requerente de imediato emitia o cheque e entregava-o ao representante da C… e em nenhum momento retornou à Requerente qualquer valor pago à C…;
  7. Toda a prata adquirida foi depois revendida pela Requerente à I…, S.A., que atua em Portugal como agente de uma sociedade espanhola (J…) no âmbito do atividade de compra e venda de metais preciosos. A Requerente juntou ao processo provas da entrega da prata à J…;
  8. Reitera que os indícios de falsidade eventualmente encontrados na esfera da C… apenas poderiam ser utilizados contra a Requerente para justificar as correções efetuadas se pudessem ser corroborados por elementos recolhidos junto desta, o que não é o caso.

 

Assim, pugnam pela manutenção dos custos deduzidos e pela anulação da liquidação impugnada quanto a este aspeto, resultante das correções efetuadas pela Requerida na sequência da ação inspetiva.

 

Em Resposta, a Requerida pronunciou-se no seguinte sentido:

 

Para além do que já havia sido referido no relatório de inspeção, em parte reproduzido supra, a AT contrapõe, na sua resposta, o entendimento da Requerente de que não foi feita prova suficiente da falsidade das faturas.

 

Refere, para tanto, que, efetuada a prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam as correções à matéria tributável declarada, passou a incumbir à Requerente a prova que coloque em causa os montantes apurados, designadamente cabendo-lhe o ónus de comprovar a veracidade dos valores em causa, de acordo com as regras sobre o ónus da prova constantes do artigo 74.º da LGT. Cita ainda variada jurisprudência, da qual se destacam alguns excertos:

- Acórdão proferido pelo TCA Norte 2015-02-26, proc. n.º 3276/09.4BEPRT:

Ou seja, estando em causa indícios de faturação falsa, a ATA não tem o encargo de provar a falsidade das faturas; basta-lhe demonstrar os indícios de falsidade e que estes são consistentes, sérios e reveladores de uma alta probabilidade de que as faturas são «falsas» para cumprir o seu ónus da prova (art.º 74º/1 e 75º/2,a) LGT);

A lei não exige senão “indícios fundados”, ou seja, não impõe à Administração a “prova provada” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente refletem e comprovam, basta-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte.

- Acórdãos do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 17-02-2016, proc. n.º 0591/15, de 16-03-2016, proc. n.º 0587/15, e de 16-03-2016, proc. n.º 0400/15:

II - Para que a AT proceda à correcção do lucro tributável por desconsideração dos custos suportados por facturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efectivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240.º do CC) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende. III - Basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito de deduzir os custos ao lucro tributável) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efectivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução.”

 

Quanto à interpretação do artigo 23.º do CIRC, cumpre esclarecer que o fundamento da correção prende-se com a dúvida sobre se a alegada aquisição dos bens em causa efetivamente ocorreu, não se tendo feito a prova indispensável para ser considerado o contrário.

 

  1. PROVA TESTEMUNHAL

 

No dia 07.12.2017 teve lugar a reunião para realização de prova por inquirição de testemunhas e por declarações de parte.

 

Nesta reunião foi suscitada uma questão pela Requerente relativa à ausência da página 9 do processo administrativo dos autos. Foi, então, determinado que a referida folha fosse junta aos autos e que depois se determinaria a sequência processual subsequente. Encerrado o assunto foi realizada a prova tendo em conta a factualidade indicada pela Requerente. O relato desta diligência consta da “Ata da Reunião do Tribunal Arbitral Singular – Inquirição de Testemunhas – Processo 366/2017-T”, para a qual se remete.

 

Posteriormente, a Requerida apresentou cópia da dita folha 9 do processo administrativo, que corresponde à página de assinaturas do auto de declarações de E…, tendo a Requerente apresentado, em sequência, um requerimento nos seguintes termos:

“Não deve ser admitido o documento como elemento de prova a considerar nestes autos, quer por não estarem verificadas razões para a sua admissibilidade, quer por o mesmo não cumprir os requisitos formais e substanciais para a sua validade;

b. O documento apresentado não tem qualquer virtualidade probatória atendendo a que não o depoimento nele alegadamente contido não foi sujeito a qualquer exame contraditório;

c. Desconhece-se quem assinou o documento e de quem é a autoria das declarações nele ínsitas, pelo que se invoca processualmente a falsidade do documento.

d. Aliás, tal falsidade está bem patente no facto de no mesmo constarem declarações que contrariam dados objectivos constantes dos autos (nomeadamente a autoria no preenchimento

e na emissão das facturas ajuizadas).”

 

Em Resposta, veio a Requerida dizer o seguinte:

O Senhor E… foi ouvido por um inspetor tributário, no âmbito de um procedimento inspetivo, no exercício das suas funções e competências.

6. Tanto que, o inspetor tributário encontrava-se munido da credencial legalmente estipulada para o efeito, que consubstancia o despacho n.º DI2016…, o que se comprova pela leitura dos dados inscritos no auto de declarações, em obediência ao disposto no artigo 46.º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

7. Do auto de declarações, além da assinatura do Senhor E…, estão igualmente apostas as assinaturas do inspetor tributário credenciado assim como de uma testemunha.

8. Não se pode aceitar que a Requerente queira colocar em causa a veracidade do documento quando o mesmo resulta de um procedimento inspetivo realizado tendo em conta as prerrogativas legalmente concedidas, como decorre da alínea e), do artigo 29.º do RCPITA.

 

Cumpre não esquecer que, de acordo com alínea b), do artigo 55.º, do RCPITA “A recolha de elementos no âmbito do procedimento de inspeção deve obedecer a critérios objetivos e conter: b) A integral transcrição das declarações, com identificação das pessoas que as profiram e as respetivas funções, sendo as referidas declarações, quando prestadas oralmente, reduzidas a termo.”

 

Posteriormente, as Partes juntaram alegações escritas, nas quais repetiram, sintetizando, os argumentos já apresentados, os quais alicerçaram na prova testemunhal entretanto realizada em audiência.

 

  1. Matéria de facto

 

  1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade de direito português que se dedica, entre outras atividades, ao comércio, fabrico e afinação de ouro e prata.
  2. A liquidação impugnada é consequente de uma ação inspetiva realizada com a seguinte motivação:

Os serviços de inspeção tributária iniciaram o procedimento de inspeção com base na seguinte motivação: 

“II.2.1 - Motivo

Sujeito passivo selecionado, pelo facto de, no âmbito da ação de inspeção à sociedade C…, Lda., NIF…, que decorreu ao abrigo da OI2013…, se ter detetado a emissão de faturas sem correspondência com transações reais com destino à A…, no período compreendido entre outubro e dezembro de 2012.”

  1. Perante o relatado, os serviços de inspeção tributária explanaram as seguintes conclusões:

“Em suma, coligadas todas as evidências, a factualidade descrita e os elementos probatórios recolhidos constituem fortes indícios de que a faturação emitida em nome de C… para a A… não consubstancia transações reais e efetivas entre aquelas duas entidades, tratando-se de faturação falsa.”

  1. A Requerente foi notificada para o exercício do direito de audição a 06/12/2016, direito esse que não veio a exercer, convolando-se o projeto do relatório de inspeção tributária em definitivo.
  2. A contabilidade da Requerente está adequadamente organizada;
  3. No exercício normal da sua atividade, a Requerente compra prata fina e ouro em cascalho;
  4. Entre 10 (dez) de outubro e 17 (dezassete) de dezembro do ano de 2012, a Requerente registou aquisições à sociedade C… de 106.272,10 gramas de prata fina e 519,56 gramas de cascalho de ouro;
  5. A prata vendida era adquirida pela C… já fundida ou, por vezes, em cascalho;
  6. O ouro era adquirido em cascalho e em pequenas quantidades;
  7. A compra dos materiais pela C… era feita em pequenas quantidades de cada vez;
  8. O transporte dos materiais era realizado na viatura do próprio gerente da C…;
  9. Quando a mercadoria lhe era apresentada, a Requerente procedia à respetiva pesagem e verificação, nas suas próprias instalações.
  10. Acordado o preço entre as Partes, era emitida uma fatura pelo representante da C… na negociação.

 

  1. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.

 

  1. Fundamentação da decisão quanto à matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, no processo administrativo, em factos enunciados pelas Partes nas respetivas peças processuais relativamente aos quais não existe controvérsia e na prova testemunhal e por declarações de parte realização na audiência que teve lugar para esse efeito.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que for alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT).

Os factos são selecionados de acordo com a respetiva pertinência jurídica, a qual é determinada em função das várias soluções possíveis para a causa (cf. o anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, atual 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima enunciados, tendo em conta, nomeadamente e como se escreveu no Acórdão do TCA Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13, “o valor probatório do relatório de inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas.”

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

De acordo com o pedido formulado pela Requerente, impõe-se, no presente caso, uma análise relativa à veracidade dos factos titulados pelas faturas emitidas pela C… e contabilizadas como custos pela Requerente ao longo do exercício de 2012.

 

Está em causa saber se o conjunto de factos indicados pela AT no relatório de inspeção em que se fundou a liquidação impugnada, e que serviram de base à desconsideração dos custos com as aquisições de prata e ouro ao longo daquele exercício à C…, são suficientes para pôr em causa a presunção de veracidade dos documentos que integram a contabilidade da Requerente que resulta do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT. Com efeito, nos termos desta norma, os contribuintes não precisam de demonstrar que os documentos da sua contabilidade, nomeadamente as faturas relativas a aquisições de bens ou serviços, correspondem a operações efetivamente realizadas, dado que as mesmas se presumem verdadeiras, cabendo à AT elidir esta presunção. Assim, sabendo-se que “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz” (cf. art.º350.º, n.º1 do Código Civil, aplicável ex vi artigo 2.º alínea d), da LGT), esta regra desonera o contribuinte da prova dos factos tributários decorrentes da sua contabilidade e escrita.

 

A presunção de veracidade das operações inscritas em contabilidade regularmente organizada, nos termos do artigo 75.º da LGT, cessa com a demonstração de que existem indícios fundados de que os documentos se reportam a operações simuladas. Significa isto que, estando em causa indícios de faturação falsa, a AT tem que demonstrar quais são os indícios de falsidade e que estes são consistentes, sérios e reveladores de uma alta probabilidade de que as faturas são «falsas» para cumprir o seu ónus da prova (art.º 74º/1 e 75º/2, a) LGT).

 

No presente processo, a AT considerou como indícios de falsidade das faturas os seguintes:

- A inexistência de instalações da C… para o exercício da atividade declarada;

- O facto de a C… se ter coletado em 11.07.2012 e logo em 17.07.2012 ter começado a emitir faturas de venda de metal ouro e prata;

- A C… ter falta de recursos económicos e financeiros e ter sido constituída com um capital social de apenas € 1.00 e o sócio gerente ter parcos rendimentos declarados;

- A C… ter ocultado à AT e ao TOC os elevados valores faturados e de IVA liquidado, não tendo declarado qualquer valor de vendas;

- Ninguém ter declarado vendas à C… .

 

Quanto à existência ou não de instalações onde a C… pudesse exercer a sua atividade, resulta dos depoimentos das testemunhas e do gerente da Requerente, através da descrição que todos fizeram da forma como uma empresa como a C… exerce a sua atividade, que tal circunstância não releva para se considerarem como reais ou simulados os factos titulados pelas faturas. Ou seja, o tipo de atividade realizada pela C…, que consistia em recolher metais junto de particulares e outros pequenos fornecedores e levá-los até à Requerente, não implicava a realização de operações para as quais se exigisse, em termos normais, a existência de instalações físicas. Tal como relatado em audiência, o que acontecia era que os materiais eram adquiridos junto dos seus vendedores e de imediato transportados até à Requerente para que esta decidisse se os comprava ou não. A atividade da C…– e a mais-valia empresarial que a mesma parece ter representado para a Requerente – é apenas a de proceder à recolha de material junto de pequenos vendedores e de, reunida alguma quantidade do material em questão (predominantemente prata), ir junto da Requerente para o vender e assim realizar capital para as aquisições subsequentes. Desta forma, de facto, não parece ser requisito de uma atividade “real” a existência de instalações, mais a mais tendo em conta que, quando era necessário proceder a pequenas operações de transformação do metal antes da venda, a empresa podia fazê-lo junto de outras empresas com especial competência para o efeito.

 

Quanto ao facto de a C… se ter coletado em 11.07.2012 e logo em 17.07.2012 ter começado a emitir faturas de venda de metal ouro e prata, não nos parece sequer indício relevante da inexistência de operações comerciais efetivas na medida em que muitas vezes as sociedades são constituídas apenas para dar um determinado enquadramento jurídico – e tributário, naturalmente – a atividades que já estão iniciadas ou prontas a ser iniciadas. Tal circunstância não é, por si mesma, reveladora de qualquer prática ilegal nem de que a atividade declarada através das faturas emitidas não é real.

 

Do mesmo modo, entende-se que não consubstanciam indícios da falsidade das faturas aqui em causa a circunstância de a C… ter falta de recursos económicos e financeiros, a de ter sido constituída com um capital social de apenas € 1.00 e a de o sócio gerente ter parcos rendimentos declarados. Decorre também da prova produzida em audiência que a atividade realizada não implicava a realização de investimentos avultados – as próprias circunstâncias, invocadas pela AT, de não existirem instalações, de não haver pessoal, de a atividade ter lugar, maioritariamente, no veículo do gerente da C…, de a Requerente parecer ser a única compradora de mercadoria à C…, apontam no sentido de não ser necessário capital de partida para iniciar e depois desenvolver a atividade. Decorre também das explicações que foram dadas pelas testemunhas e pelo gerente da Requerente que, depois de feitas as primeiras transações, a própria venda de mercadoria à aqui Requerente permitia financiar a compra de nova mercadoria aos pequenos vendedores juntos dos quais a C… se fornecia. Quanto ao capital social de € 1.00, sendo uma vantagem permitida pela lei comercial, o seu aproveitamento não deve ser visto como indício de inexistência de operações por parte da sociedade em causa.

 

Quanto aos factos de a C… ter ocultado à AT e ao TOC os elevados valores faturados e de IVA liquidado, não tendo declarado qualquer valor de vendas e de ninguém ter declarado vendas à C… podem ser reveladores de fraude nas declarações fiscais das entidades implicadas, mas não indiciam necessariamente a inexistência de operações reais. Se assim fosse, teríamos certamente muitos mais casos provados de faturação falsa.

 

Por fim, relativamente à questão da assinatura constante das faturas, e tendo sido impugnado pela Requerente o que consta do relatório de inspeção a esse propósito (nomeadamente as declarações aí imputadas ao gerente da C… de que não tinha assinado tais faturas), fica a dúvida sobre quem de facto preencheu as faturas em questão. No entanto, na audiência realizada, o irmão do gerente da C…, que declarou ter presenciado a maioria das transações em causa, declarou reconhecer a sua assinatura e a do seu irmão nas faturas que lhe foram apresentadas. Não foi realizado nem solicitado pela AT o exame à caligrafia constante das faturas e a hipótese avançada pela AT de que a caligrafia seria a do gerente da aqui Requerente não ficou sequer indiciariamente provada, visto que essa hipótese, que mais nada representa para o tribunal do que isso mesmo, foi afastada pelas declarações de parte do próprio H…, que o tribunal não tem motivos para pôr em causa. Acresce que é reconhecido pela própria AT no RIT que “Apesar do sócio gerente da C…, alegar nada ter transacionado, somos levados a crer que todo este esquema foi desenvolvido com a colaboração do sócio gerente, pois ficou demonstrado que foi o próprio a requisitar o 1º livro de faturas na tipografia e a levantar ao balcão os cheques emitidos pelos utilizadores, tendo em vista dar credibilidade às faturas”.

 

Em suma, e tendo em conta a presunção de veracidade de que beneficiam, nos termos legais, as faturas aqui em causa, bem como os requisitos, igualmente estabelecidos na lei, de que carece a demonstração de que tal presunção não está correta, não nos parece que tenha sido realizada, por parte da AT, prova suficiente para que se considerem falsas as faturas emitidas por simulação das operações pelas mesmas tituladas. Significa isto que este tribunal entende, face ao estabelecido nos artigos 74.º e 75.º da LGT, que seriam necessários indícios mais fortes do que os que foram apresentados para se considerarem falsas as faturas aqui em causa.

 

Consideramos, portanto, em linha com a corrente jurisprudencial constante, por exemplo, do Ac. do TCAS de 4-6-2013, proferido no Processo n.º 06478/13, que a AT não conseguiu, in casu, evidenciar a consistência do juízo de falsidade “invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas faturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade - artigo 75º da LGT.” Daqui resulta que, não se considerando provada a existência de fundados indícios de deficiente contabilidade ou de que esta e/ou documentos que lhe servem de suporte não refletem a matéria tributável real do sujeito passivo, não é exigível ao contribuinte que seja ele a provar ou demonstrar o eventual erro da AT na quantificação ou na desconsideração total ou parcial da matéria coletável. A este propósito, diga-se, no entanto, que a AT não pôs em causa a prova documental apresentada pela Requerente relativamente à venda dos materiais adquiridos à C…, nem de outra forma a questionou.

 

  1. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC relativa a 2012, com o n.º 2017…, objeto de impugnação, no que respeita à ilegalidade da desconsideração como gasto fiscalmente relevante do montante de € 89.911,36.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 31.243,76 (trinta e um mil, duzentos e quarenta e três euros e setenta e seis cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.

 

VI. Custas

O montante das custas é fixado em € 1.836.00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 12 de fevereiro de 2018.

A Árbitro

 

 

Raquel Franco

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.