Os árbitros José Baeta de Queiroz (árbitro-presidente), Tomás Cantista Tavares e Américo Brás Carlos (árbitros vogais), designados respetivamente pelo CAAD (na falta de acordo dos árbitros nomeados pelas partes), pela Requerente e pela Requerida para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
1. Relatório
A…, S.A., contribuinte fiscal n.º…, com sede na…, n.º … –…– Piso…, …-… Carnaxide (doravante A… ou Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), e 6.º, n.º 2, al. b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração da ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e juros compensatórios n.º 2016…, relativa ao exercício de 2012, da qual resultou um valor total de IRC e de juros compensatórios a pagar de € 159.512,54.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Todos os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros.
O tribunal arbitral coletivo foi constituído em 26/6/2017.
A AT respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.
Por Despacho, com acordo das partes, não se realizou a reunião do art. 18.º do RJAT; foram produzidas alegações escritas.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos arts. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e arts. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
RELATIVOS À FUSÃO INVERTIDA
a) A requerente dedica-se à atividade de exploração, administração e gestão de espaços comerciais.
b) Em 2000, as sociedades B…, S.A. (detida pela C…) e D…, S.A. (detida pela E…), detinham, cada uma, 50% da Requerente:
c) Em 2000, as sociedades B… e D… (em representação da A…) celebraram um contrato de construção do que viria a ser o …, localizado na área metropolitana do Porto, em … (“…”) –, no valor de € 53.360.787,00.
d) As sociedades B… e D… dotaram a Requerente dos valores necessários para que esta fizesse a construção: concederam-lhe um financiamento (suprimentos) no valor total de € 53.360.787, repartido em partes iguais entre cada financiador (empréstimo 1).
e) Posteriormente, o grupo F… e (cotado na Bolsa de Valores de França) adquiriu 100% do capital e créditos sobre a A…– e no início de 2009, a estrutura societária dos investimentos do grupo F… e em Portugal era a seguinte:
f) Em 2009, o Grupo F… procedeu a uma reestruturação empresarial, para simplificar a estrutura societária em Portugal.
g) Em 29 de junho de 2009, a I… vendeu as participações que detinha na Requerente (100%) à G… (sociedade detida pela H…, SGPS, SA – “H…”) pelo preço de mercado, no montante global de € 69.884.000,00.
h) A H… concedeu à G… um financiamento no montante correspondente ao preço em causa, no valor total de € 69.884.000,00 (“Empréstimo 2”).
i) Além disso, a I… cedeu à H… SGPS, ao valor nominal, os créditos que detinha sobre a Requerente (para construção do…), já de € 35.817.057,30 (empréstimo 1).
j) Em 18 de novembro de 2009, a Requerente incorporou, por fusão invertida com a sua sócia única (G…) passando assim a ser detida diretamente (em 100%) pela H…, na seguinte estrutura societária:
k) Na sequência da fusão, o empréstimo concedido pela H… à G… para a aquisição das ações da Requerente, no valor de € 69.884.000,00, foi transmitido para a requerente, por efeito da fusão.
l) Consequentemente, a H… consolidou os empréstimos referidos no montante global de € 104.937.330,91 (€35.817.057,30€ + €69.884.000,00)
m) A Requerente tem vindo a saldar essa dívida ao longo dos anos, conforme resulta do seguinte quadro:
n) Em 2012, a Requerente incorreu em encargos financeiros (juros) com respeito a este empréstimo total (consolidado), no valor € 3.795.540, que o qualificou e tratou, na sua autoliquidação de IRC, como um custo fiscalmente dedutível na sua integralidade.
o) A AT advoga, ao invés, (como decorre da fundamentação da liquidação em causa) que a parte dos juros que corresponde ao empréstimo de que a G… era devedora (e que passou a ser devedora a Requerente em consequência da fusão) não é dedutível por não serem tais encargos indispensáveis nos termos do art.º 23.º do Código do IRC.
RELATIVOS AO PROCEDIMENTO DE INSPEÇÃO
p) Em 26/7/2015, a Requerente foi notificada para apresentar à AT – ao abrigo do princípio da colaboração – diversos elementos respeitantes aos encargos financeiros de 2012: balancetes analíticos, relação de detentores de capital, relação das partes de capital, relação de créditos obtidos e concedidos, incluindo os respetivos contratos e extratos de conta (doc. n.º 10 da PI).
q) Em Abril e Maio de 2016 a AT solicitou à Requerente novos pedidos de esclarecimento, numa cadência de nove e-mails trocados (tipo pergunta e resposta), essencialmente para esclarecer situações de contabilização de ativos e composição detalhada de contas contabilísticas.
r) A Requerente facultou à AT toda a informação e documentação solicitada - descrita nos factos provados p) e f).
s) Na sequência dos referidos atos de inspeção, a requerente foi notificada, pelo Ofício n.º … de 31 de maio de 2016 de que “ação de inspeção de âmbito interno levada a cabo por este Serviço, ao abrigo da Ordem de Serviço acima referida, não resultam atos tributários desfavoráveis, dado que, com base no procedimento inspetivo efetuado internamente, não foi possível analisar a sua situação tributária, propondo-se ação externa” – sublinhados nossos.
t) Em 27/6/2016, a Requerente foi notificada da ordem de serviço n.º OI2016…, respeitante a procedimento de inspeção de natureza externa tendo por âmbito o IRC de 2012.
u) Neste procedimento de inspeção, os inspetores deslocaram-se às instalações da Requerente (para recolher informações e esclarecimentos) e a Requerente entregou esses documentos solicitados, bem como, embora sob reserva, proposta de alocação dos juros incorridos com o Empréstimo Consolidado.
v) Neste processo de inspeção externa, a AT não esteve em contacto com factos novos, que já não conhecesse ou pudesse ter conhecido na primeira inspeção.
w) Em 03/11/2016, a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção tributária, onde a AT propôs as seguintes correções à matéria coletável de IRC da Requerente (depois convertido em definitivo), por não-aceitação da parte dos encargos financeiros alocados ao empréstimo 2.
Exercício
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Resultado Fiscal (Lucro Tributável / Prejuízos Fiscais)
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Correção Proposta
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Matéria Coletável Corrigida
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2012
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(€ 821.826,91)
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€ 2.543.011,80
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€ 1.721.184,89
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x) Na sequência desta correção à matéria coletável, a Requerente foi notificada da Liquidação Contestada (liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º 2016…, referente ao exercício de 2012, da qual resultou um valor a pagar no montante total de € 159.512,54) – a liquidação impugnada.
y) A requerente suspendeu o correspondente processo de execução fiscal n.º …2010…, com a prestação de garantia bancária n.º…, emitida em 22 de março de 2017, no valor de € 202.157,79, e prestação e pagamento de caução no valor de € 238,21
2.2. Factos não provados
Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos apresentados pelas partes (que são, essencialmente, documentos emitidos pelas Finanças, da fusão e financiamentos), no consenso das partes (também em relação aos documentos e valores e datas dos pagamentos) e nas informações oficiais juntas ao processo.
3. Matéria de direito
3.1. Questões a decidir
Segundo a Requerente, a liquidação impugnada padece das seguintes ilegalidades:
a) Do procedimento de inspeção (que acarreta a ilegalidade da liquidação – art. 54.º do CPPT), porque: (i) ocorreram dois procedimentos de inspeção externa, em violação do art.º 63.º, n.º 4, da LGT; ou (ii) caso se considerasse que houve apenas um procedimento de inspeção, teria sido ultrapassado o respetivo prazo legal máximo de duração (art. 36.º do RCPIT);
b) Violação de lei, ao desconsiderar a dedutibilidade de parte dos encargos financeiros (juros) incorridos e deduzidos pela Requerente no exercício de 2012, por violação do art.º 23.º, n.º 1, al. c) do Código do IRC;
c) Inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade tributária (art. 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. i), da CRP), se o art.º 23.º do CIRC for interpretado no sentido em que a AT o interpreta;
d) Inconstitucionalidade e ilegalidade da liquidação, por falta de fundamentação e erro de cálculo, em violação do n.º 3 do art.º 268.º da CRP e do art.º 77.º da LGT.
A AT refuta todas apontadas ilegalidades:
a) Entende que existiu um legal procedimento de inspeção interno, depois seguido de um legal procedimento externo: donde, não houve violação do art. 63.º, n.º 4, da LGT, nem se ultrapassaram os prazos máximos de duração da inspeção externa.
b) Os juros em causa (decorrentes ou após a fusão) não seriam não indispensáveis à obtenção do rendimento ou à manutenção da fonte produtora, pelo que não devem ser dedutíveis em termos fiscais, na interpretação por si preconizada do art. 23.º do CIRC.
c) A liquidação e respetiva fundamentação estão devidamente fundamentadas e interpretam preceitos legais que cumprem com o princípio da legalidade e da tipicidade, com o que não existe qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade.
3.2. Ordem de conhecimento dos vícios da Sentença
A Requerente invocou, em síntese, dois blocos distintos de argumentos que conduziriam na sua ótica à anulação da liquidação, com a seguinte precedência: em primeiro lugar, abordou os argumentos que se reconduzem à existência de ilegal dupla inspeção externa; e, em segundo lugar, desenvolveu a retórica relativa à ilegalidade e inconstitucionalidade do art. 23.º do CIRC (e vício de fundamentação).
Ora, tendo em conta, por um lado, os quatro seguintes argumentos:
a) Nenhuma das ilegalidades apontadas se reconduz substancialmente a uma matéria de nulidade;
b) Ambos os vícios produzem a mesma eficácia na tutela dos interesses ofendidos, ou seja, a procedência de cada um dos argumentos [porventura se excecionarmos a invocada falta de fundamentação] determina a anulação da liquidação impugnada, com a impossibilidade de se praticar um novo ato substitutivo;
c) A Requerente abriu a sua argumentação com a matéria da dupla inspeção – e só depois falou da parte relativa à interpretação e aplicação do art. 23.º do CIRC aos juros em causa;
d) No processo arbitral não existe um pronunciamento do Ministério Público.
E atendendo, por outro lado, ao que dispõe o art. 124.º do CPPT (aplicável ao processo arbitral, ex vi art. 29.º do RJAT).
O Tribunal decide analisar em primeiro lugar a matéria da alegada dupla inspeção externa (produz tutela eficaz dos interesses do ofendido e foi deduzida em primeiro lugar na PI) e debruçar-se-á apenas sobre os restantes fundamentos aduzidos pela Requerente, em caso de improcedência daquela primeira argumentação.
A procedência da matéria da dupla inspeção externa determina uma tutela eficaz dos interesses do contribuinte – no sentido de que põe fim à causa, com impossibilidade de repetição do ato por parte da AT (tal como a procedência da restante argumentação gizada com base na interpretação do art. 23.º do CIRC).
Por outro lado, a matéria da dupla inspeção foi aduzida em primeiro lugar na PI efetuada pela Requerente e afere-se a vícios do procedimento, cronologicamente anteriores aos observados na liquidação (e sua fundamentação) com base na imputada errónea interpretação do art. 23.º do CIRC.
3.3. O tema da chamada “dupla inspeção externa”
3.3.1: As leis aplicáveis
O art. 63.º, n.º 4, da LGT dispõe: “O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas”.
O art. 13.º do RCPIT (na redação conferida pelo Dec. Lei n.º 36/2016, de 1 de Julho) classifica os procedimentos de inspeções tributária entre internas e externas, nos seguintes moldes:
“a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.
A redação anterior do art. 13.º al. a) do RCPIT prescrevia que o procedimento era: a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos”.
Por seu turno, o art. 34.º, n.º 1, do RCPIT dispõe: “Quando o procedimento de inspeção envolver a verificação de mercadorias, do processo de produção, da contabilidade, dos livros de escrituração ou de outros documentos relacionados com a atividade da entidade a inspecionar, os atos de inspeção realizam-se nas instalações ou dependências onde estejam ou devam legalmente estar localizados os elementos”.
Por fim, o art. 54.º do CPPT indica que “salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida”.
3.3.2 Os argumentos das partes
A requerente invoca que a primeira inspeção, embora formalmente qualificada pela AT como de interna, foi, na realidade, externa, pois a AT, apesar de não se ter deslocado às instalações da Requerente ou de terceiros, solicitou ao contribuinte um conjunto de informações que a AT nunca poderia possuir, por si mesma. Donde, existiram duas inspeções externas, sendo a segunda ilegal (contaminando a liquidação decorrente com igual epiteto), por violação do art. 63.º, n.º 4, da LGT. Ou caso se entendesse que houve apenas uma inspeção pelo somatório do prazo das “duas”, a mesma é ilegal, por ter decorrido por mais tempo do que o previsto na lei (art. 36.º do RCPIT).
A Requerida pugna que houve uma inspeção interna (que não desembocou em atos corretivos) seguida de uma inspeção externa (efetuada no prazo legal) – donde não existiria qualquer dupla inspeção externa. Na ótica do Fisco, a primeira inspeção foi interna, pois a AT não se deslocou às instalações do contribuinte, nem de terceiros. Efetuou todo o seu trabalho inspetivo “dentro de portas”, consentindo a inspeção interna com perguntas ao contribuinte (carta ou e-mail) ligadas a informações e esclarecimentos relativos às declarações dos sujeitos passivos.
3.3.4. Decisão
Para a boa decisão das questões em causa, importa organizar o percurso decisório em CINCO pontos.
Primeiro: a natureza jurídica de um processo quando ao respetivo local de realização (externo ou interno) não se afere pela qualificação conferida pela AT à inspeção, mas pela real natureza do processo inspetivo, atendendo as suas concretas características e vicissitudes. A qualificação dada pelo Fisco a uma inspeção não tem efeito vinculativo. E além disso, se uma inspeção não é interna, então passa a ser externa – e não existe um qualquer terceiro género intermédio.
Segundo: no caso dos autos, não existe qualquer questão de aplicação da lei no tempo em relação ao disposto no art. 13.º, al. a) do RCPIT. A primeira inspeção decorreu entre 6/2015 e 27/6/2016; o art. 13.º, do RCPIT foi alterado pelo Dec. Lei n.º 36/2016, de 1 de Julho. Donde, a lei nova, que entende que existe uma inspeção interna, pela análise formal e coerência de documentos, mesmo que obtidos (do contribuinte ou de terceiros) durante o referido procedimento, não se aplica ao caso dos autos, pois quando tal preceito entrou em vigor a primeira inspeção já estava totalmente extinta.
Por conseguinte, ao caso dos autos aplica-se a Lei antiga (mais restritiva), que entende que existe uma inspeção interna apenas quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos.
E não pode haver qualquer interpretação retroativa da lei nova – com a aplicação a situações jurídicas passadas já consolidadas (passando inspeções externas já terminadas a ser consideradas como internas!), por violação das garantias e direitos de defesa dos anteriormente constituídos dos contribuintes (cfr. art. 12.º, n.º 3, da LGT).
Terceiro: é indesmentível que a AT, naquela primeira inspeção, não se deslocou fisicamente às instalações do contribuinte ou de terceiro. Mas também é indesmentível que a AT, na vigência da lei antiga, não se limitou a organizar a informação que dispunha – solicitou que a requerente lhe fornecesse um conjunto de dados, informações e documentos.
Quarto: a proibição relativa à existência de duas ou mais inspeções externas com objeto similar (mesmo contribuinte, mesmos atos ou operações, mesmo exercício, mesmo imposto) visa a tutela da segurança jurídica do sujeito passivo (e estabilidade da relação jurídica) contra o prolongar no tempo das obrigações de cooperação e instabilidade fáctica (ter um local para os funcionários, disponibilizar tempo e recursos próprios do contribuinte) e jurídica que uma inspeção necessariamente comporta.
Os princípios são claros: a AT pode inspecionar (de forma externa) quem entender, pelos prazos legais (6 meses, prorrogáveis), com o acesso global a toda a informação do contribuinte (adscrito a exigentes deveres de cooperação). Reclama-o o princípio da legalidade e é a contra face de um sistema que coloca a declaração e autoliquidação a cargos dos particulares. Mas, por princípio, só pode haver uma inspeção externa com o mesmo objeto – por segurança do contribuinte e instar o sistema, necessariamente com recursos limitados, a alargar os visados pela inspeção. Pode ocorrer uma segunda inspeção externa, se acaso se vierem a conhecer factos novos, não identificados na primeira inspeção, usualmente por deficiente cooperação do contribuinte ou por, entretanto se ter obtido informação junto de terceiros (com relações económicas com o contribuinte) em relação ao comportamento do contribuinte no período inspecionado (e operações analisadas).
Estas são as exceções que confirmam a regra: proíbe-se em geral a dupla inspeção externa com identidade de objeto; mas permite-se, excecionalmente, com base em factos novos, obtidos por qualquer forma (junto de terceiros ou do contribuinte) mas que foram omitidos na primeira inspeção (usualmente por atos censuráveis de não cooperação e colaboração). Neste caso, a segurança não pode prevalecer sobre a justiça, pois assenta seguramente num comportamento ardiloso do contribuinte (de esconder ou camuflar factos e informações), que não merece tutela jurídica. Agora, nos outros casos, a lei dá prevalência à segurança jurídica: se o Fisco, em inspeção externa, teve acesso a toda a informação em total cooperação do contribuinte e advoga que tudo está bem, não pode depois contradizer-se, se nada de factualmente novo tiver na sua posse (que antes não conheceu porque lhe foi omitido e que não alcançaria no seu normal dever de investigação).
Quinto: a qualificação de inspeção como interna ou externa, na ausência de deslocação ao contribuinte ou a terceiro, tem de se aferir, em concreto, pelo tipo de documentos obtidos pela AT: se acaso se trata de informação que está na sua posse (ou pública), por decorrência das declarações enviadas pelo sujeito passivo – e nesse caso a inspeção é interna; ou ao invés, se acaso se socorreu de informação mais vasta, solicitada ao sujeito passivo ou a terceiro (mesmo que sem se deslocar fisicamente), mas que não estava originariamente na sua posse ou conhecimento, por efeito das obrigações declarativas do contribuinte – e então estaremos em presença de uma real inspeção externa, ainda que não seja assim qualificada pela AT. No fundo, neste último caso, a AT obtém informação (porque solicitada ao contribuinte em correio físico ou eletrónico) que só a poderia obter, segundo a lei, em ação de inspeção externa (com deslocação física).
Resta agora analisar o concreto caso dos autos perante as cinco ideias acima referidas.
A AT, na primeira inspeção à Requerente, que durou cerca de um ano, apesar de a qualificar como interna, requereu e solicitou ao contribuinte, por correio físico e eletrónico, que lhe disponibilizasse o seguinte conjunto de dados, informações e documentos (relativos ao IRC de 2012 e referente à operação de fusão e encargos financeiros consequentes): balancetes analíticos, relação de detentores de capital, relação das partes de capital, relação de créditos obtidos e concedidos, incluindo os respetivos contratos e extratos de conta. E posteriormente, ainda na mesma inspeção, pediu ao contribuinte (em troca de e-mails, tipo pergunta/resposta) que esclarecesse situações de contabilização de ativos e composição detalhada de contas contabilísticas.
Ora, este tipo de informação – contratos, detalhe de contas contabilísticas, elementos de suporte (extratos de conta) – extravasam, manifestamente, o tipo de informação detida pela AT, ínsitas nas declarações enviadas. O Fisco só conseguiria obter tais dados, na deslocação às instalações da empresa, na análise da contabilidade do sujeito passivo e obtenção de outros elementos da entidade a inspecionar – cfr. art. 34.º, n.º 1, do RCPIT.
Dito de outro modo: na primeira inspeção, a AT não se limitou à análise formal e coerência de documentos na sua posse – mas, por solicitação ao contribuinte, obteve e analisou outra informação mais extensa, em pedidos sucessivos, com dados que não os possuía ab initio.
Assim sendo – e em suma – aquela primeira inspeção dever ser qualificada de externa, até porque ao caso dos autos se aplica a redação antiga do art. 13.º, al. a) do RCPIT em que a inspeção interna tinha um âmbito mais restrito e reduzido. Atualmente, a inspeção continua a ser interna, quando a AT obtém esses elementos no âmbito desse procedimento. Ao passo que à época a lei restringia a inspeção externa à análise formal e coerência de documentos ligados estritamente com as declarações fiscais prestadas pelo próprio.
Por consequência, estamos em presença de dois processos de inspeção externa com o mesmo objeto (mesmo contribuinte, mesma operação, mesmo imposto, mesmos factos). Na primeira, a AT arquivou o processo; na segunda, iniciada logo após o termo da primeira, a AT corrige a matéria fiscal do sujeito, desembocando na liquidação agora contestada.
Ora, a segunda inspeção externa é ilegal, por violação do art. 63.º, n.º 4, da LGT. Ela não se sustenta em factos novos, desconhecidos pela AT durante o primeiro processo inspetivo. A A… sempre cooperou ativamente com o Fisco durante a primeira inspeção: mostrou e exibiu tudo o que o Fisco solicitou. Por outro lado, não se demonstrou que a segunda inspeção se baseou em outros factos novos, que não fossem conhecidos e evidenciados na primeira inspeção.
Acresce que não é possível efetuar qualquer raciocínio válido, que conseguisse salvar o procedimento: a consideração de que poderia existir materialmente apenas um só processo de inspeção externo, que abrangeria o tempo dos dois procedimentos, esbarra na situação de clara ultrapassagem do prazo de inspeção, que duraria por mais de 12 meses, em clara violação do disposto no art. 36.º, n.º 3 e 4, do RCPIT).
Impõe-se, assim, a anulação da liquidação em causa, por violação do disposto no art. 63.º, n.º 4, da LGT. O procedimento é ilegal, por se sustentar numa segunda inspeção externa ilegal – e esse vício comunica-se ao ato final da liquidação, nos termos do art. 54.º do CPPT.
3.4. Demais temas do processo
A decisão em causa – ilegalidade da liquidação por se sustentar numa ilegal inspeção externa, por força do art. 63.º, n.º 4, da LGT – torna desnecessário o pronunciamento das demais questões pelo Tribunal (ilegalidade e inconstitucionalidade do art. 23.º do CIRC).
A ilegalidade da liquidação de imposto é acompanhada, com igual desfecho, em relação aos juros compensatórios, que por imposição legal, se integram aliás na própria dívida de imposto, com o qual são conjuntamente liquidados (art. 35.º, nº 8, da LGT). Se a liquidação é ilegal, também o é a liquidação de juros compensatórios, até porque a AT não invocou nem provou qualquer causa que porventura justificasse desfecho diverso quanto aos juros.
Por outro lado, tendo a requerente apresentado garantia bancária para suspender o processo executivo, deve a mesma ser declarada caduca, perante o teor desta sentença, nos termos do art. 26.º, n.º 2, do RJAT e o contribuinte tem direito a ser indemnizado, nos termos legais, em sede de execução de sentença (desejavelmente ou então por via coerciva [judicial]), dos custos por ele suportados, porque se considera que houve um erro imputável aos serviços (art. 53.º da LGT) ao efetuar um procedimento ilegal e ao liquidar (e executar) um imposto sem cobertura legal (n.º 2).
4. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação impugnada de IRC e juros compensatórios n.º 2016…, relativa ao exercício de 2012, da qual resultou um valor total de IRC e de juros compensatórios a pagar de € 159.512,54.
-
Anular a liquidação de imposto e juros compensatórios referida em a.
E em consequência:
-
Conceder à requerente o direito de indemnização por garantia indevida, a ser liquidado espontaneamente pelos serviços da Autoridade Tributária ou, na falta de cumprimento voluntário, em execução de Sentença.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 159.512,54€.
Notifique-se
Lisboa, 12 de Dezembro de 2017
Os Árbitros
José Baeta de Queiroz (árbitro presidente)
Tomás Cantista Tavares (árbitro vogal)
Américo Brás Carlos (árbitro vogal – vencido conforme declaração junta, a qual faz parte integrante da presente decisão)
(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)
Declaração de voto
Não votei favoravelmente o Acórdão porque:
1. Já antes da alteração à alínea a) do nº 1 do artigo 13º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT), efectuada pelo Decreto-Lei nº 36/2016, de 1 de Julho, se entendia, doutrinária e jurisprudencialmente, que o procedimento interno de inspeção comportava também a possibilidade de a inspecção tributária poder «solicitar informações e esclarecimentos aos sujeitos passivos, podendo ser feitas correcções em resultado do que for apurado»[1]; e, na mesma linha: «É normal, em sede de análise interna (a administração tributária), solicitar informações, esclarecimentos e justificações aos contribuintes inspeccionados»[2].
2. Esta possibilidade de os serviços de inspeção tributária solicitarem informações e esclarecimentos ao sujeito passivo destina-se a concretizar, e é adequada, ao primeiro princípio enformador do procedimento de inspeção tributária – o princípio da verdade material (arts. 5º e 6º do RCPIT).
3. Além disso, a natureza dos elementos em concreto solicitados, o modo não impositivo como o foram, a não imposição de prazos para a resposta, a não referência a quaisquer efeitos negativos para o sujeito passivo em caso de não resposta[3], respeitam os princípios da igualdade, da proporcionalidade[4], da justiça, da imparcialidade e da boa fé, constitucionalmente consagrados no nº 2 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como os princípios da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação previstos nos artigos 5º, 7º, 8º, 9º do RCPIT.
4. A solicitação ao sujeito passivo, por correio eletrónico, de respostas a perguntas, de informações ou esclarecimentos, individualizados e concretamente identificados, efectuada nos termos que constam dos autos, cumpre e concretiza também, de modo evidente, o princípio da desburocratização e eficiência[5], consagrado no artigo 5º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), diploma que integra a legislação subsidiária do RCPIT (art. 4º, al. d)).
5. Portanto, a atuação da Autoridade Tributária (AT), não violou nesta parte, os princípios ao caso aplicáveis, antes os concretizou.
6. No que concerne à qualificação dos referidos pedidos de informação e esclarecimentos como procedimento externo de inspeção, entendo que a letra do artigo 13º do RCPIT não suporta, nem suportava à data dos factos, esta conclusão do Acórdão. Para efeitos do lugar da realização do procedimento de inspecção, dispõe a alínea b) do preceito que o procedimento é «externo, quando os actos de inspeção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos». Ora, é para mim claro que, se um esclarecimento, informação ou documento é enviado pelo sujeito passivo para os serviços da administração tributária e por estes analisado, o respectivo ato de inspeção é efectuado nas suas instalações, não podendo, por isso, ser considerado um ato de inspeção externa, porque só o são os que se efectuarem total ou parcialmente nas instalações ou dependências dos sujeitos passivos.
7. Ao invés, o ato de análise nos serviços da administração tributária de uma resposta, uma informação, um esclarecimento, ou um documento individualmente identificado, anteriormente solicitado, tendo em vista averiguar da coerência dos documentos em causa em face de outros elementos, só pode, em face da letra da lei, ser um ato de procedimento interno de inspeção.
8. Sobre a probabilidade de, no limite, a interpretação acima perfilhada - com correspondência direta na lei - levar a que, as inspeções externas possam ser substituídas por inspeções internas com sucessivos pedidos de elementos ao sujeito passivo, há, porém, que distinguir, em concreto, quais os elementos solicitados. A questão colocar-se-ia se os serviços da administração tributária tivessem, por exemplo, solicitado informação em bloco, como por exemplo, o envio de toda a contabilidade financeira da empresa, ou o conjunto global dos documentos de suporte dos respetivos lançamentos.
9. No caso subjudice, não foi, porém, isso que se passou. Os serviços da administração tributária solicitaram alguns – relativamente poucos, considerando o total da informação empresarial - esclarecimentos ou informações pontuais, para efectuar a análise e averiguar da coerência de informação que, consta das declarações a entregar pelo sujeito passivo, incluindo a documentação contabilística e de gestão a disponibilizar na declaração IES (Informação Empresarial Simplificada) e que, obrigatoriamente, o sujeito passivo fornece anualmente à Autoridade Tributária, mas também, através dela
a outras entidades públicas, como o Instituto Nacional de Estatística, as entidades de supervisão, e o Ministério da Justiça - Registo Comercial.
Pelo que, tudo visto, não devia o ato tributário em análise ser anulado.
Lisboa, 12 de dezembro de 2017
Américo Brás Carlos
[1] Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT) – Anotado e Comentado, Coimbra Editora, 2013, p.82; e Acórdão do TCA Sul, de 01/10/2014, procº n.º 04817/11.
[2] Jesuíno Alcântara Martins e José Costa Alves, Procedimento e Processo Tributário - Uma perspectiva prática, Almedina, 2015, p. 165.
[3] Resulta dos autos que, perante o não envio de alguns documentos solicitados, o novo pedido foi, depois de um prazo razoável para o efeito, efectuado nos mesmos termos informais em que tinha sido inicialmente feito.
[4] A Administração deve prosseguir os fins legais, adoptando, dentre as medidas necessárias e adequadas para atingir esses fins, aquelas que impliquem menos gravames, sacrifícios ou perturbações aos administrados (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume II, 4ª edição, Coimbra Editora, 2014, p. 801).
[5] V. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 2016, p. 276.