Decisão Arbitral
1. Relatório
A…, LDA.”, doravante designada por “A…, Lda.” ou “Requerente”, pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua ... n.º…, …-… …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto nos art.ºs 2.º, 3.º e 10.º do Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”). Invocou ainda os art.ºs 68.º e 99.º e ss. do CPPT. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), e o Pedido é a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, com a consequente anulação dos mesmos, em cumulação de pedidos nos termos do art.º 3.º, n.º 1 do RJAT.
Pretende, pois, a Requerente a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos - a saber, IRC e IVA - nos termos do art.º 2.º, n.º 1 al. a) do RJAT. Liquidações que têm por base um procedimento inspectivo de que resultou a fixação da matéria tributável por métodos indirectos, que se referem aos exercícios de 2013, 2014 e 2015 e que conduziram à fixação da matéria tributável em IRC e do imposto em falta em IVA.
As demonstrações de liquidação de IRC e liquidações adicionais de IVA foram acompanhadas, respectivamente, de demonstrações de acertos de contas e de correcções, e a Requerente pagou os montantes apurados, sem prejuízo do seu direito de defesa, no âmbito do qual vem agora pedir a anulação dos actos de liquidação em crise e a consequente devolução das quantias pagas e dos juros liquidados.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD, e notificado à AT em 12-06-2017.
Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.
A 26-07-2017 as partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar (cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico).
Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 10-08-2017.
Uma vez notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta, suscitando a excepção decorrente de não ter sido apresentado pedido de revisão da matéria tributável, que entende ser condição de procedibilidade da impugnação judicial fundada em erro na quantificação ou nos pressupostos da avaliação indirecta. Defende que fica assim impedido o conhecimento do mérito, devendo ser determinada a absolvição da instância. Pugna depois pela improcedência do Pedido também por impugnação.
Notificada pelo Tribunal para se pronunciar sobre a matéria da excepção suscitada pela AT, veio a Requerente responder, alegando que a excepção não tem fundamento por do facto de não ter sido apresentado pedido de revisão, o que reconhece, não decorrer que fique impossibilitado o conhecimento de outros vícios. Designadamente do vício de falta de fundamentação, como ali expõe. E defende que já havia invocado tal vício no Pedido.
Por Despacho de 18-10-2017 decidiu o Tribunal dispensar a produção de prova testemunhal bem como a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, e que o processo prosseguisse com alegações.
Ambas as partes apresentaram alegações, nas quais reafirmam e desenvolvem o que já antes haviam afirmado, acrescentando a AT nas suas a excepção da falta de competência ou de jurisdição para o pedido, do Tribunal.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é abstractamente competente, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O Processo não enferma de nulidades e importa apreciar, desde logo, a matéria de excepção.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
- As liquidações impugnadas têm todas, na sua base, um procedimento inspectivo, referente às ordens de Serviço n.ºs OI2016…, OI2016… e OI2016…, a que corresponde o relatório final de inspecção tributária (doravante “RIT”) junto pela Requerente como doc. n.º 20.
- Do RIT resultou a decisão de se proceder à fixação por métodos indirectos da matéria tributável de IRC e do IVA em falta, como segue:
(i) IRC, ano de exercício – matéria tributável fixada
2013 - € 1.590,79; 2014 - € 1.745,74; 2015 - € 2.847,26.
(ii) IVA, ano – imposto em falta
2013 – 2.087,36; 2014 – 2.050,80; 2015 – 2.314,95.
- A Requerente não apresentou pedido de revisão da matéria tributável.
Quanto ao mais, remete-se para a fundamentação da matéria de facto.
2.2. Factos não provados
Não existem factos com relevo para a decisão a proferir que devam considerar-se como não provados.
2.3. Fundamentação da matéria de facto
Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos com o Pedido e no Processo Administrativo, bem como nas posições manifestadas pelas partes, não existindo controvérsia quanto aos mesmos.
Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[1]).
3. Matéria de Direito
Nos termos do art.º 608.º, n.º 1 do CPC “(...) a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.”[2] Assim passamos a apreciar.
3.1. Excepção de incompetência do Tribunal Arbitral
3.1.1. Da competência em razão da matéria
Como ponto prévio a este respeito especificamente, refira-se que entende o Tribunal Arbitral verificar-se caso de manifesta desnecessidade de contraditório, nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do CPC e, ainda, ao abrigo do princípio da livre condução do processo arbitral (cfr. art.º 19.º do RJAT).
Da competência do tribunal, como pressuposto processual que é, depende a possibilidade e o dever do juíz de se pronunciar sobre a procedência ou improcedência do pedido. Os pressupostos processuais condicionam todo o poder-dever de apreciação do mérito da acção. Assim,“Para que possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão requer-se que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja competente.”[3]
Estabelece o art.º 13.º do ETAF[4], quanto ao conhecimento da competência e do âmbito da jurisdição, que “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.
Dispõe, por sua vez, o CPC - art.º 96.º, al. a) - que a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, e quanto ao respectivo regime de arguição - art.º 97.º, n.º 1 - que a mesma pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal.
A incompetência absoluta do tribunal constitui excepção dilatória (cfr. art.º 577.º, al. a) do CPC). As excepções dilatórias obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa, conduzem à absolvição da instância[5] (cfr. art.º 576.º, n.º 2) e são de conhecimento oficioso (cfr. art.º 578.º).
A AT em sede de alegações veio, de todo o modo e ainda que com alguma indefinição conceptual, invocar esta excepção.
O Tribunal Arbitral, refira-se, tem competência para decidir sobre a sua própria competência. É o “princípio da competência da competência do Tribunal Arbitral” (na sua vertente positiva), desde há muito reconhecido como regra em matéria de arbitragem.[6] Diferentemente do Centro de arbitragem institucionalizada, que não tem interferência nas decisões dos casos submetidos a cada Tribunal Arbitral.[7]
A arbitragem tributária, como arbitragem institucionalizada que é, reveste-se de especificidades próprias. Desde logo a que decorre de, não obstante a sua natureza de arbitragem, tratar de direitos (créditos) indisponíveis. Assim, o respeito pelo Princípio da indisponibilidade, aplicável à AT, conduziu a que o legislador - cfr. art.º 4.º do RJAT - tivesse sido exigente ao ponto de determinar que a comum convenção de arbitragem sofresse aqui adaptações e, assim, que a AT se vinculasse à via da arbitragem, previamente, por Portaria.
De onde decorre que a competência do presente Tribunal Arbitral se afere pelo disposto a este respeito no RJAT em conjugação com o disposto na Portaria de vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março). Portaria através da qual uma das partes, a AT, veio previamente vincular-se à jurisdição dos Tribunais Arbitrais a funcionar sob a égide do CAAD. À qual decidiu assim submeter-se, nos termos e condições que aí definiu.
Ora, se por um lado no RJAT a competência dos Tribunais Arbitrais é estabelecida nos termos do seu art.º 2.º, n.º 1, por outro, nos termos do art.º 2.º da referida Portaria, a AT recortou (excluindo) daquela delimitação de competência a apreciação das pretensões relativas a determinadas situações, a que não aceitou vincular-se.
Incluem-se nesse “recorte” precisamente, cfr. al. b) do art.º 2.º da Portaria de vinculação, as “Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.
Não se incluindo pois - na auto-vinculação da AT à jurisdição dos Tribunais Arbitrais - apreciações por estes de pretensões dos Sujeitos Passivos relativas a actos de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, como é o caso.
Sendo o Pedido da Requerente o de declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos que têm por base um procedimento inspectivo do qual resultou a fixação da matéria tributável por métodos indirectos, e sendo, por isso, os actos de liquidação em crise directamente determinados pela decisão de fixação da matéria tributável por métodos indiretos, a apreciação da pretensão solicitada ao presente Tribunal Arbitral extravasa - nos termos conjugados dos art.ºs 2.º, n.º 1 do RJAT e 2.º, al. b) da Portaria - o âmbito da competência material do mesmo.
É este o nosso entendimento. E é este, de resto, o entendimento que vem sendo firmado na Jurisprudência dos Tribunais Arbitrais.[8]
Verifica-se pois a excepção dilatória de incompetência absoluta, que obsta ao conhecimento do mérito e conduz à absolvição da instância (tudo cfr. dispositivos normativos percorridos supra).
Refira-se ainda que, mesmo que se aderisse (o que não fazemos) ao entendimento no sentido de que a al. b) do art.º 2.º da Portaria de vinculação não afasta a arbitrabilidade dos actos de liquidação que tenham na sua base o recurso a métodos indirectos[9], - e para que se pudesse considerar como admissível, no âmbito desse entendimento a que não aderimos, o conhecimento do mérito do Pedido pelo Tribunal Arbitral - sempre teria que verificar-se cumprido (contrariamente ao que sucedeu no caso) o pressuposto processual do prévio recurso ao procedimento de revisão, cfr. art.ºs 91.º e 86.º, n.º 5 da LGT. Pois que a causa de pedir tal como configurada pela Requerente se reporta, no entender deste Tribunal, aos vícios do acto de liquidação aos quais se aplica esse pressuposto processual, a saber, erro nos pressupostos de utilização e na quantificação dos métodos indirectos. Com efeito, apesar de a Requerente, em resposta à excepção invocada pela AT, alegar que invocara também o vício de falta de fundamentação, entende este Tribunal que a mesma o não arvorou em sede de causa de pedir (v. o teor do Pedido de Pronúncia Arbitral, e em particular os seus artigos 8.º e 14.º). Mais, ainda que se entendesse tê-lo feito, tal vício não se verifica no caso. Conclusão a que se chega seja pela análise do RIT (e em face do art.º 77.º, n.º 4 da LGT), seja porque a Requerente revela não desconhecer o iter cognoscitivo e valorativo seguido pela AT (e tendo em conta a Jurisprudência firmada a este último respeito).
3.2. Excepção decorrente de não ter sido apresentado pedido de revisão da matéria tributável
Embora tenha ficado prejudicado o conhecimento desta última excepção, invocada pela AT na sua Resposta, entendemos apreciá-la brevemente como ficou exposto no final do ponto anterior, dada a sua potencial conexão com a excepção ali apreciada. Para ali se remetendo.
4. Decisão
Termos em que decide este Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria e, em consequência
b) Determinar a absolvição da Requerida AT do Pedido.
5. Valor do processo
Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 10.836,90.
6. Custas
Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido, e na Tabela I anexa ao mesmo, fixa-se o montante das custas em € 918,00, a cargo da Requerente.
Aos 17 de Dezembro de 2017
O Árbitro
(Sofia Ricardo Borges)
[1]Estes últimos Diplomas legais aplicáveis ao nosso processo ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para eles se remeter na presente Decisão).
[2] Vejam-se ainda os art.ºs 89.º, n.º 4 do CPTA e 278.º, n.º 1 do CPC.
[3]V. Antunes Varela et al., “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2.ª Ed., 1985, p. 195
[4]Aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT.
[5]Ou à remessa do processo para outro Tribunal.
[6]V. Mariana França Gouveia, “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, Almedina, 3.ª Edição, 2014, p. 183
[8]V. também, no mesmo sentido, Jorge Lopes de Sousa em comentário ao RJAT, in “Guia da Arbitragem Tributária”, Coord. Nuno Villa-Lobos e Tânia Carvalhais Pereira, 2.ª Ed., Almedina, 2017, p. 125.
[9] v. Carla Castelo Trindade, “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, Almedina, reimpressão 2016, p. 108 e ss.