Decisão arbitral
Os árbitros, Dra. Fernanda Maçãs (árbitro-presidente), Dr. Álvaro Caneira e Dra. Magda Feliciano, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29 de agosto de 2017, acordam no seguinte:
I- RELATÓRIO
A…, Lda., pessoa coletiva número…, com sede na Av…, Lote…, …, em Lisboa, vem requerer a declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º …2016… relativamente aos atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos exercícios de 2008 a 2015.
A Requerente pretende, assim, que seja declarada a ilegalidade da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e reconhecido o seu direito a juros indemnizatórios.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT, respondeu por exceção, defendendo a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral e, por impugnação, alegando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), em face do teor da matéria contida nos autos, tendo o processo prosseguido para alegações escritas.
As partes apresentaram alegações e contra-alegações reiterando os argumentos apresentados nas anteriores peças processuais.
II- SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
Foi suscitada a exceção de intempestividade que cumpre apreciar prioritariamente.
Na resposta apresentada, vem a AT defender-se por exceção que, caso se verifique, conduz à absolvição da instância.
A apreciação da exceção de intempestividade do pedido depende da questão de saber se a Requerente impugnou o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado ou se, ao invés disso, se limita a impugnar cada um dos atos de liquidação de IUC de per si.
Ora, a Requerente identifica com clareza na sua petição arbitral (artigo 1.º e 2.º) a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, referindo expressamente “que não se conforma com essa decisão, que considera ilegal”.
Mais resulta da petição arbitral que a Requerente impugna a decisão indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado, juntando-se cópia daquele ato decisório.
Tendo em conta que o ato que decidiu o pedido de revisão oficiosa é um ato de segundo grau, em que é analisada a legalidade dos atos de liquidação identificados, considera-se que a Requerente identifica suficientemente o ato objeto da petição arbitral como sendo a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentada com referência aos atos de liquidação subjacentes.
Em consequência, não procede a exceção de intempestividade do pedido deduzida pela Requerida.
Quanto à cumulação de pedidos, considerando a existência de uma relação direta entre as liquidações tributárias cuja legalidade é questionada no presente processo, nada obsta à apreciação conjunta dos atos tributários em causa, dado que, em face do que vem alegado e documentação junta, se constata que, no essencial, a eventual procedência do pedido depende das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das normas legais relativas à incidência subjetiva do IUC.
Assim, estando em questão, essencialmente, a apreciação das mesmas circunstâncias de facto e aplicação das mesmas normas legais acerca da incidência subjetiva do IUC, é legal a cumulação de pedidos, nos termos em que é admitida no artigo 3.º do RJAT.
Com efeito, determina o citado preceito, bem como o artigo 104.º do CPPT, que é admissível a cumulação de pedidos "quando a procedência dos pedidos dependam essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito."
Salienta-se que as referidas normas legais não exigem uma identidade plena dos atos impugnados nem tampouco a coexistência, a par dos fundamentos comuns, de um fundamento específico de anulação de algum ou alguns dos atos impugnados.[1]
No presente caso, estão em causa atos tributários relativos ao IUC, envolvendo um número elevado de viaturas automóveis, e, no plano do direito, a aplicação das normas legais relativas à incidência subjetiva deste tributo.
Nestes termos, considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, conclui-se, face ao disposto nos artigos 3.º do RJAT e 104.º do CPPT, que nada obsta à cumulação de pedidos.
O processo não enferma de nulidades.
III- MATÉRIA DE FACTO
1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
A) A Requerente tem como principal atividade atuar como operador registado da B… em Portugal;
B) A Requerente está incumbida de promover a comercialização dos veículos automóveis com a marca B… em território nacional prestando para este efeito ao Grupo B… um conjunto de serviços relacionados com a coordenação das atividades de marketing, suporte à distribuição automóvel e acompanhamento dos serviços pós-venda da B… em Portugal;
C) Os automóveis novos da marca B… são adquiridos diretamente ao fabricante C… SA, sociedade residente em Espanha;
D) Cada um dos veículos comercializados é vendido ao concessionário que o encomendou, antes da sua admissão em Portugal;
E) Cabe ao concessionário efetuar a entrega dos veículos ao cliente após a admissão e matrícula;
F) A transmissão dos veículos da marca B… inicia-se com a celebração de um contrato de compra e venda entre o concessionário e o seu cliente;
G) Com base no contrato de compra e venda celebrado entre o concessionário e o seu cliente, é emitida uma ordem de encomenda feita pelo concessionário junto da B… PT;
H) A B… PT, por sua vez, coloca essa encomenda à fábrica C… SA;
I) Após a produção da viatura, de acordo com as especificações do cliente, a mesma é enviada para Portugal, sendo da responsabilidade da B… PT (operador registado) toda a tramitação legal e fiscal necessária à admissão em Portugal;
J) Os veículos objeto dos atos de liquidação de IUC constantes dos autos foram objeto de compra e venda aos concessionários;
K) A Requerente pagou as notas de liquidação de IUC identificadas nos autos;
L) A Requerente foi notificada do indeferimento do pedido de revisão oficiosa em 28 de março de 2017;
M) O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 19 de junho de 2017 .
1.1. Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.
2. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto dada por provada teve por base os documentos juntos ao processo pela Requerente e o processo administrativo.
IV- MATÉRIA DE DIREITO
A Requerente fundamenta o pedido de pronúncia arbitral, essencialmente, com base na ilegitimidade da sua qualificação como sujeito passivo do IUC, relativamente aos veículos e períodos de tributação que identifica em documentos anexos ao pedido, considerando o facto de ter sido transmitida a terceiros a propriedade dos veículos ainda antes da data da sua matrícula em Portugal;
Segundo alega a Requerente, muito embora os veículos em causa se encontrassem registados em seu nome na Conservatória do Registo Automóvel, não era a sua efetiva proprietária à data da ocorrência dos factos que determinam a obrigação de imposto, dado terem aqueles sido já vendidos aos respetivos concessionários, conforme documentação relativa à faturação emitida aos concessionários, e respetivo pagamento, oportunamente junta, como elemento probatório, ao pedido de revisão oficiosa.
Com efeito, verifica-se, em face dos elementos juntos ao processo comprovativos dos factos alegados, que a Requerente, no âmbito da sua atividade empresarial, procede à importação em território português de veículos novos, que, em momento anterior ao da respetiva matrícula, transmite aos seus concessionários, sendo este facto comprovado através de cópia da respetiva faturação.
Todavia, por força das normas legais aplicáveis, o registo dos veículos em causa é efetuado em nome da Requerente, ainda que, no momento em que se efetiva, não seja esta a sua proprietária.
É o que resulta da leitura conjugada dos artigos 117.º, n.º4, do Código da Estrada - que atribui à pessoa, singular ou coletiva, que proceder à admissão, importação ou introdução no consumo em território nacional, a obrigatoriedade de requerer a matrícula dos veículos - e 24.º, n.º 1, do Regulamento do Registo Automóvel, que determina que o registo inicial de propriedade de veículos importados, admitidos, montados, construídos ou reconstruídos tem por base o respetivo requerimento.
Das referidas normas resulta, pois, que a Requerente, na qualidade de operador registado que procede à importação de veículos novos em território nacional, necessariamente figura no respetivo registo inicial como sua proprietária, ainda que no momento em que este se efetua, a propriedade dos mesmos tenha sido já transmitida a terceiros.
Do exposto, extrai a Requerida que, " A atribuição à Requerente de um certificado de matrícula consubstancia, nos termos do disposto do artigo 6.º do CIUC, o facto gerador do imposto pelo que, tendo a Requerente solicitado a emissão de certificado de matrícula encontrando-se o mesmo registado em nome desta, encontram-se reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto”.
Diversamente, entende a Requerente que a norma de incidência subjetiva do referido tributo, vertida no artigo 3.º do respetivo Código, consagra uma presunção legal de propriedade, suscetível de elisão mediante prova em contrário.
Está, pois, em causa a interpretação do artigo 3.º, n.º1, do CIUC, na redação vigente à data dos factos, no sentido de se determinar se a mesma consagra, ou não, uma presunção relativa à qualificação como proprietário, e consequentemente, como sujeito passivo deste imposto, a pessoa, singular ou coletiva, em nome da qual na propriedade do veículo se contra registada e, caso de conclua pela afirmativa, a sua elisão com base dos elementos probatórios que o integram.
Da incidência subjetiva do IUC
Não obstante o Código do IUC erigir como princípio estruturante deste tributo o princípio da equivalência, entendido como compensação pelos efeitos nefastos em termos ambientais e energéticos resultantes da circulação de veículos [2], o referido Código elege, no tocante à incidência subjetiva, o proprietário do veículo, considerando como tal a pessoa em nome da qual o mesmo se encontre registado (art. 3.º, n.º 1, do CIUC, na redação inicial da Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho).
Não atribuindo, em geral, especial relevância à utilização efetiva dos veículos, o legislador não deixa, porém, de considerar tal facto em situações específicas que envolvem a sua presuntiva e potencial utilização, equiparando a proprietários, os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direito de opção de compra por força de contrato de locação (art.3.º, n.º 2, do CIUC).
A norma de incidência, ao remeter para os elementos do registo automóvel, não distingue entre o registo inicial do veículo e registos posteriores: o sujeito passivo do imposto é o proprietário do veículo, considerando-se como tal a pessoa, singular ou coletiva em nome da qual o veículo se encontrar registado.
É, pois sobre a interpretação da norma do n.º 1 do artigo 3.º que, como já referido, se evidenciam as diferentes posições expressas pela Requerente e pela Requerida.
Segundo a Requerente, a referida norma, na redação em vigor à data da ocorrência dos factos tributários a que se reportam as liquidações questionadas, estabelece uma presunção de propriedade, com base no registo automóvel, ilidível nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária.
Diversamente, entende a Requerida que estabelecendo o CIUC a sujeição passiva bem como o facto gerador da obrigação de imposto, por referência aos elementos constantes do registo automóvel, conforme decorre dos artigos 3.º e 6.º do respetivo Código, sendo a Requerente a solicitar a emissão do certificado de matrícula e encontrando-se os veículos registados em seu nome nos períodos de tributação a que se referem as questionadas liquidações, "encontram-se reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto."
Esta matéria tem sido objeto de numerosas decisões arbitrais que, reiterada e uniformemente, se têm pronunciado no sentido da que a norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, da redação inicial da Lei n.º 22-A/2007, de 29/06, estabelece uma presunção, ilidível, nos termos gerais e, em especial, for força do disposto no artigo 73.º da LGT.[3] É esta a orientação a que se adere e se seguirá de perto.
Com efeito, com ressalva do disposto no n.º 2, relativamente a situações de venda com reserva de propriedade e locações que assumam natureza de financiamento, estabelece o artigo 3.º do CIUC, na redação vigente à data da ocorrência dos factos tributários a que se referem as liquidações impugnadas, que são sujeitos passivos deste imposto os proprietários dos veículos, sendo como tal consideradas as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
O recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do sistema de liquidação deste tributo evidencia-se ao longo de todo o respetivo Código. Refira-se, designadamente, o seu artigo 6.º relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, " tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional". Deste preceito decorre que os veículos automóveis que não estejam, nem devam estar, registados em território português, apenas ficam abrangidos pela incidência objetiva deste tributo se no mesmo permanecerem por período superior a 183 dias, conforme dispõe o n.º 2 do mesmo artigo. É, pois, uma norma que, recorrendo ao elemento registral, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respetiva conexão fiscal. É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação e constituição da obrigação tributária e, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como, de resto, bem acentuado vem na resposta elaborada pela AT.
Todavia, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode extrair, como imediata conclusão, que a norma de incidência subjetiva, no segmento em que considera como proprietário a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado, não constitua uma presunção de incidência.
Haverá, pois, que recorrer a outros elementos interpretativos, com a especial relevância da noção legal de presunção.
Segundo noção vertida no artigo 349.º do C. Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. As presunções constituem meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º do C. Civil). Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art. 350.º, n.º1, do C. Civil). Todavia, as presunções, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do C. Civil). Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o artigo 73.º da LGT.
As presunções podem ser explícitas ou meramente implícitas no texto da lei.
Com efeito, na definição da incidência subjetiva do ICI, do ICA e do IMV, impostos que o atual IUC veio substituir, foi essa a expressão utilizada pelo legislador. No âmbito dos impostos abolidos, estabelece-se que "o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados" [4]
No mesmo sentido, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem, aprovado pelo DL n.º 116/94, de 03/05, que são sujeitos passivos destes tributos "os proprietários dos veículos presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontrem registados."
No que ao IUC diz respeito, o legislador optou por utilizar uma formulação diversa da norma de incidência subjetiva. Tal como nos impostos abolidos, continua a atribuir aos proprietários dos veículos a qualidade de sujeitos passivos. Porém, abandona a expressão "presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome quem os mesmos se encontrem registados" em favor de "considerando-se como tais as pessoas (...) em nome das quais os mesmos se encontrem registados".
Diversamente da posição expressa pela Requerida, entendemos que se está perante uma mera questão semântica, que não altera minimamente o conteúdo da norma em questão e por duas ordens de razões: Para que se esteja perante uma presunção legal, é necessário que a norma que a estabelece se amolde ao respetivo conceito legal, vertido no art. 349.º do C. Civil, sendo para tal irrelevante que a mesma seja explícita, revelada pela utilização da expressão "presumem-se" ou apenas implícita [5].
É, pois, no sentido do conceito legal de presunção e no respeito dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva que o legislador atribui plena eficácia à presunção derivada do registo automóvel acolhendo-a, como tal, na definição da incidência subjetiva deste tributo estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.
Acresce que o DL n.º 54/75, de 12/02, que disciplina o registo de veículos automóveis, não prevendo qualquer norma acerca do carácter constitutivo do registo da propriedade automóvel, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 1.º que o registo automóvel visa apenas dar publicidade à situação jurídica dos bens. De acordo com o artigo 7.º do Código do Registo Predial, supletivamente aplicável ao registo automóvel, por remissão do artigo 29.º daquele diploma, determina que o registo apenas "(...) constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define."
Pronunciando-se sobre esta matéria, o STJ, em acórdão de 19-02-2004, proferido no processo n.º 3B4369, conclui que "(...) o registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível (presunção "juris tantum") da existência do direito (arts- 1.º, n.º 1, e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º2, do C. Civil) bem como da respectiva titularidade, nos termos dele constantes (...)".
Assim, acompanhando-se a reiterada jurisprudência arbitral relativa a situações idênticas, não pode deixar de se entender que a expressão "considerando-se como tais" constante da referida norma, configura uma presunção legal, e que esta é ilidível, nos termos gerais, e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT que determina que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Da elisão da presunção
As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos atos tributários que nelas se baseiem.
No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, tendo antes optado pelo presente pedido de decisão arbitral que, assim, constitui meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC em que se suportam as liquidações tributárias cuja anulação constitui o seu objeto, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do DL 10/2011).
Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece, como meio de prova, a faturação emitida com referência à transmissão dos veículos a que respeitam as liquidações questionadas.
Pronunciando-se sobre a prova documental apresentada, considera a Requerida que “a facturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena”.
No entender da Requerida, “... as regras do registo automóvel (ainda) não chegaram o ponto de meras faturas unilateralmente emitidas poderem substituir o requerimento de registo automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial... Ora, as faturas não constituem contratos de compra e venda.”
Em abono desta tese, a Requerida refere o processo 63/2014-T do CAAD em que, embora com voto de vencido, o Tribunal Arbitral considerou serem as faturas "documentos unilaterais e internos, aos quais a jurisprudência tem reconhecido um muito reduzido valor para provar a existência de um contrato sinalagmático."
No mesmo sentido da insuficiência das faturas para afastar a presunção constante do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, refere, ainda, as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 150/2014-T e 220/2014-T.
Como bem se extrai da posição da Requerida quanto à prova produzida, escorada na fundamentação das citadas decisões jurisprudenciais, seria aquela insuficiente para ilidir a presunção consagrada na norma de incidência tributária, definida com base da propriedade, tal como consta do registo automóvel.
Não sendo, porém, esse o entendimento do Tribunal, importa avaliar a prova produzida pela Requerente no sentido de se determinar se é esta bastante para ilidir a presunção derivada do registo que, no plano da incidência subjetiva, é acolhida para efeitos do IUC.
Para tanto, importa ter-se presente que, na situação em análise, se está perante contractos de compra e venda que, relativos a coisas móveis e não estando sujeitos a quaisquer formalismos especiais (C. Civil, art. 219.º), operam a correspondente transferência de direitos reais (C. Civil, art. 408.º, n.º 1).
Tratando-se de contractos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C. Civil, arts. 874.º e 879.º).
No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objeto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[6]
Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transação, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova de tal facto.
Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, art. 25.º, n.º 1, alínea a)).
Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respetivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante transações comerciais, efetuadas por uma entidade empresarial no âmbito da atividade que constitui seu objeto social.
Nesse âmbito, a empresa está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a faturação assume especial relevância.
Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma fatura relativamente a cada transmissão de bens qualquer que seja a qualidade do respetivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).
Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a fatura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho.
É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico - como é o caso da generalidade das situações a que se refere o presente processo - irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2).
Por seu lado, é também com base na faturação por si emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respetivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.
Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.
Com efeito, a referida presunção abrange não só os livros e registos contabilísticos, mas também os respetivos documentos justificativos, conforme, de resto, constitui entendimento pacífico da própria administração tributária [7] e da jurisprudência firmada dos tribunais superiores [8].
A presunção de veracidade das faturas comerciais emitidas nos termos legais pode, porém, ser afastada sempre que as operações a que se referem não correspondam à realidade, bastando, para tanto, que a Administração Tributária recolha e demonstre indícios fundados desse facto (LGT, art. 75.º, n.º 2, al. a) [9].
No presente caso, a Requerida não impugnou, nem suscita qualquer dúvida, quanto às operações tituladas pelas faturas apresentadas pela Requerente.
Considerada, pois, a relevância atribuída pela legislação tributária às faturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua atividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas constituem, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente, acompanhando-se, nesta matéria, a jurisprudência arbitral maioritária. [10]
Considerando-se, assim, provada documentalmente a transmissão do direito de propriedade dos veículos em causa, há apenas que determinar a data em que, segundo a respetiva fatura, a mesma se terá verificado, atendendo a que a exigibilidade do imposto, relativamente a veículos terrestres novos, ocorre no primeiro dia do período de tributação, que se inicia na data da matrícula, conforme prevê o artigo 6.º, n.º3, do CIUC, sendo esse o momento em que se define a relação jurídica tributária.
Com base nos documentos que integram o presente processo, designadamente o processo administrativo junto pela AT, verifica-se que, à data da exigibilidade do imposto, os veículos aí identificados já não eram propriedade da Requerente em virtude de, por esta, terem sido transmitidos a terceiros.
Em face do exposto, conclui-se não haver fundamento legal para os atos de liquidação de IUC e de juros compensatórios relativamente aos veículos e períodos identificados em anexo ao pedido de pronúncia arbitral.
Nestes termos, considerando-se ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no artigo 3.º do CIUC - na redação em vigor à data dos factos a que respeitam as liquidações em causa - deverá proceder-se à anulação das liquidações identificadas em lista anexa ao presente pedido de pronúncia, no montante global de € 130 555,24, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos em que se suportam.
Do direito a juros indemnizatórios
A par da revogação da decisão de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido o imposto liquidado à Requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando-se, em consequência, a anulação das liquidações questionadas, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.
Com efeito, ao promover as liquidações de IUC considerando a Requerente como sujeito passivo deste imposto, a Administração Tributária não poderia proceder por forma diversa, limitando-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito/dever de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar os factos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do art. 350.º do C. Civil.
Não se mostrando, assim, reunidos os pressupostos em que se suporta o direito a juros indemnizatórios, não pode, pois, nesta vertente, o pedido proceder [11].
Todavia, estipula o artigo 100.º da LGT que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
No presente caso, a anulação das liquidações ocorreu por via da impugnação do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa apresentados pela Requerente em Setembro de 2016, pelo que lhe é aplicável o disposto na al. c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (…) - c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”
O facto de a AT ter decidido antes do decurso do prazo de um ano (cerca de três meses após os pedidos de revisão) não é, no entender deste Tribunal Arbitral, circunstância inibitória do direito aos juros indemnizatórios reclamados pela Requerente, porquanto nessa sede a AT não reviu os atos tributários, antes obrigando a Requerente a recorrer do indeferimento para este Tribunal.
Com efeito, constitui jurisprudência pacífica que os juros indemnizatórios são devidos sempre que a AT decida favoravelmente à pretensão do contribuinte, depois de decorrido aquele prazo de um ano a contar do pedido de revisão, como serão igualmente devidos quando decorra mais de um ano após o pedido de revisão por o contribuinte se ver obrigado a recorrer à via judicial para obter decisão favorável à sua pretensão, em virtude de a AT (dentro ou fora daquele prazo) ter recusado rever o ato.[12] Tal é o que sucede no caso da Requerente que só depois de recorrer a esta arbitragem vê proceder a sua pretensão.
Assim, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, mas apenas àqueles que forem devidos a partir de um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa e até à data da restituição à Requerente dos montantes das liquidações anuladas.
Por outro lado, há também lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
V - Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa, determinando-se, em consequência, a sua anulação;
b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à elisão da presunção de incidência subjetiva do IUC, com a consequente anulação das liquidações de Imposto Único de Circulação, relativamente aos períodos de tributação e veículos identificados em lista anexa ao presente pedido de pronúncia arbitral;
c) Julgar procedente o pedido no que concerne ao reconhecimento do direito aos juros indemnizatórios que forem devidos a partir de um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa e até à data da restituição à Requerente dos montantes das liquidações anuladas.
d) Condenar a Requerida nas custas do presente processo.
VI- Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 130 555,24.
VII-Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3 060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 14 de dezembro de 2017.
Os Árbitros
(Fernanda Maças)
(Álvaro Caneira)
(Magda Feliciano)
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
[1] Neste sentido, vd. STA, Ac. de 16.11.2011, Proc. 608/11.
[2] Vd. Sérgio Vasques, "Os Impostos Especiais de Consumo", Almedina, 2000 e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 118-X, que deu origem à Lei n.º 22-A/2007, de 29/05 (reforma da tributação automóvel).
[3] Neste sentido, Decisões Arbitrais de 19.7.2013, Proc. 26/1013-T, de 10.9.2013, Proc. 27/2013-T, de 15.10.2013, Proc. 14/2013-T, de 5.12.2013, Proc. 73/2013-T, de 14.2.2014, Proc. 170/2013-T, de 30.4.2014, Proc. 256/2013-T, de 2.5.2014, Proc. 286/2013, de 16.6.2014, Proc. 289/2013-T, de 14.7.2014, Proc. 43/2014-T, de 6.6.2014, Proc. 294/2013-T, de 15.9.2014, Procs. 63/2014-T e 220/2014 e, mais recentemente, referidas a situações factuais idênticas às do presente processo, Decisões Arbitrais de 13.9.2017, Proc. 173/2017-T e de 4.10.2017, Proc. 185/2017-.
[4] Vd. artigo 3.º, n.º1 do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho.
[5] Cfr. Jorge de Sousa, CPPT, 6.ª Edição, Áreas Editora. Lisboa, 2011, pags. 586 e STA, Acs. de 29.2.2012 e de 2.5.2012, Procs. 441/11 e 381/12.
[6] Cfr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.
[7] Cfr. Parecer do Centro de Estudos Fiscais, homologado por despacho do Director-Geral dos Impostos, de 2 de Janeiro de 1992, publicado em Ciência e Técnica Fiscal n.º 365.
[8] Cfr. STA, Ac. de 27.10.2004, Proc. 0810/04, TCAS, Ac. de 4.6.2013, Proc. 6478/13 e TCAN, Ac. de 15.11.2013, Proc. 00201/06.8BEPNF, entre outros.
[9] Cfr. STA, Acs. de 24.4.2002, Proc. 102/02, de 23.10.2002, Proc. 1152/02, de 9.10.2002, Proc. 871/02, de 20.11.2002, Proc. 1428/02, de 14.1.2004, Proc. 1480/03, entre muitos outros.
[10] Neste sentido, cf. , entre outras, Decisões Arbitrais de 19.7.2013, Proc. 26/2013-T, de 10.9.2013, Proc. 27/2013-T, de n15.10.2013, Proc. 14/2013-T, de 5.12.2013, Proc. 73/2013-T, de 14.2.2014, Proc. 170/2013-T, de 30.4.2014, Proc., 256/2013-T, de 2.5.2014, Proc. 289/2013-T, de 6.6.2014, Proc. 294/2013-T, de 25.6.2014, Proc. 42/2014, de 6.7.2014, Proc. 52/2014-T, de 15.9.2017. Proc. 173/2017-T e de 4.10.2017, Proc 185/2017-T..
[11] Neste sentido, Decisões Arbitrais proferidas nos Procs. 26/2013-T, 170/2013-T, 136/2014-T, 140/2014-T, 230/2014-T e 185/2017-T, entre outros.
[12] Neste sentido, STA, Acs. de 12.12.2006, Proc, 0918/06 e de 6.2.2013, Proc. 0839/11.