Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 166/2017-T
Data da decisão: 2017-11-13  IUC  
Valor do pedido: € 52,71
Tema: IUC – Incidência.
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

 

1. A…, contribuinte n.º…, com domicílio postal em Apartado …, …, …-… Lisboa, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária com vista declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), e respetivos juros compensatórios, relativos ao período de tributação de 2016 e ao veículo automóvel com o número de matrícula …-…-…, no montante € 52,00 de imposto e € 0,71, de juros, perfazendo a importância total de € 52,71.

 

2. Como fundamento do pedido, apresentado em 09-03-2017, o Requerente invoca a ilegalidade da liquidação impugnada, alegando, em síntese, não ser sujeito passivo da obrigação tributária a que se reportam os atos impugnados porquanto desde 2005 que a viatura em causa, que se encontrava numa oficina para reparação, tendo desaparecido em Dezembro de 2013, desconhecendo-se atualmente o seu paradeiro ou mesmo se a viatura, ou as peças que a compunham, ainda existe. 

 

3. Em resposta ao solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, expressando entendimento no sentido de dever manter-se na ordem jurídica o ato tributário impugnado e, em conformidade, dever o tribunal pronunciar-se pela absolvição da entidade requerida.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20 de Março de 2017.

 

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 05-05-2017.

 

6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral singular foi constituído em 22-05-2017.

 

8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

9. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

10. Considerando estar-se, essencialmente perante uma questão de direito e, atento o conhecimento que decorre das peças processuais junto ao processo, que se julga suficiente, o Tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

 

 

 

 

II. Matéria de facto

 

11. Com relevância para a apreciação da questão suscitada, destacam-se os seguintes elementos factuais, que, com base nos elementos que integram o presente processo, se consideram provados:

 

11.1. Em 20-06-2016 o Requerente foi notificado, pelo Serviço de Finanças de Sintra …, da liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), referente ao período de tributação de 2016 e ao veículo com o número de matrícula …-…-… .

 

11.2. Na liquidação, efetuada em 04-06-2016 sob o n.º…, foram apurados os montantes de € 52,00 de imposto e € 0,71 de juros compensatórios, constando a respetiva notificação, como data limite do pagamento voluntário, o dia 4 de Julho seguinte (cfr. Docs.1 e 2).

 

11.3. Em 26 de Junho do mesmo ano, o ora Requerente apresentou pedido de proteção jurídica, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação de patrono, ao abrigo da Lei n.º 34/2004, de 29/07 (Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais). O facto foi oportunamente notificado aos serviços tributários competentes por via postal registada (cfr. Docs. 3 e 4).

 

11.4. Entretanto, e de acordo com sentença proferida em 19-05-2015, no processo n.º …/13… YXLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, instância local do Cartaxo, foi dado como provado que:

 

* o Autor (ora Requerente) é legítimo proprietário do veículo com a matrícula …-…-…;

 

* no início do ano de 2005, em data que não pode precisar, o A (ora Requerente) colocou o veículo supra referido numa oficina para reparação pertencente ao R. e a cuidado deste;

 

* o R. comprometeu-se a prestar o serviço de arranjo da chapa e pintura e, dado o estado degradado da viatura, a informar quando a mesma estivesse pronta;

 

* ao longo do tempo, o A (ora Requerente), por si e através de familiares e pessoas amigas, contactou por diversas vezes o R. com vista a tratar do arranjo da viatura;

 

* entretanto, o R. teve a oficina fechada cerca de seis meses, a partir de Dezembro de 2013 e, nesse período, desapareceu a viatura em causa.

 

* o R. não participou às autoridades policiais o desaparecimento do veículo.

 

11.5. Em face dos elementos apurados, e dados como provados, foi o R. condenado no pagamento de indemnização ao A. pelo valor do desaparecido veículo com a matrícula …-…-…, fixada na quantia de € 2 500,00.

 

11.6. O R. deduziu recurso da referida sentença, tendo este sido julgado improcedente por acórdão de 09-02-2017 do Tribunal da Relação de Évora.

 

11.7. Conforme certidão junta ao presente processo, o referido acórdão foi devidamente notificado tendo transitado em julgado em 20-03-2017.

 

12. Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.

 

 

III. Matéria de direito

 

13. No pedido de pronúncia arbitral o Requerente submete à apreciação deste tribunal o ato de liquidação de IUC e juros compensatórios, relativos ao período de tributação de 2016 e ao veículo com a matrícula …-…-…, solicitando que seja declarada a sua ilegalidade e, consequentemente, determinada a respetiva anulação.

 

14. No pedido formulado com base na factualidade acima descrita, mais desenvolvido em alegações posteriormente produzidas, alega o Requerente que:

 

“ 9 ... o IUC obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária (art.1º, do CIUC).

 

10. A afirmação do princípio da equivalência, como princípio legitimador e enquanto limite do IUC, impõe que os contribuintes sejam onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária, cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 118/X.

 

11. Parece, assim, evidente que o IUC não visa tributar quem não possui qualquer veículo nem, consequentemente, produz qualquer “custo ambiental e viário”, não sendo o “poluidor-pagador” que o legislador pretendeu tributar.

 

12. Efectivamente, o “princípio da equivalência” imanência do princípio da igualdade, exige que os impostos sejam repartidos de acordo com o custo provocado pelo contribuinte.

 

13. Porém, não existindo o facto gerador de tais custos e danos ambientais, ou seja, o veículo automóvel, não existe fundamento para a tributação.

 

14. Nos termos do artigo 2.º, do CIUC, norma de incidência objectiva, o imposto incide sobre os veículos das categorias nele previstas.

 

15. A existência desses veículos é condição sine qua nom da fixaçao da matéria tributável e da liquidação efectuada.

 

16. Mostrando-se provada a perda do veículo, não se encontra sequer preenchida a norma de incidência real do imposto.” 

 

15. A par da fundamentação, no essencial acima transcrita, o Requerente alega, ainda, que muito embora o veiculo em questão se encontre registado em seu nome, não foi o seu proprietário no período de tributação a que respeita a liquidação impugnada, circunstância que, segundo entende, afastaria a presunção derivada daquele registo consagrada na norma de incidência subjetiva do IUC constante do artigo 3.º, n.º 1, do respetivo Código.

 

16. Tal presunção seria, assim, ilidida em face dos factos dados como provados na sentença judicial, já transitada em julgado, a que acima se fez referência, designadamente o desaparecimento do veiculo.

 

17. Diversa é a posição da Requerida, que sustenta entendimento no sentido de que a norma de incidência subjetiva do IUC, na redação em vigor à data dos factos, não estabelece qualquer presunção legal pelo que, o proprietário do veículo que conste do respetivo registo, é o sujeito passivo do imposto em causa.

 

18. No presente caso, conclui a Requerida, que “Como não providenciou pelo cancelamento da matrícula, é o Requerente que consta do registo automóvel como proprietário do veículo, logo é este o responsável pelo pagamento do IUC.”

 

19. Ainda no entender da Requerida, “a sentença referida, caso eventualmente tenha já transitado em julgado, apenas prova que o Requerente, durante um determinado período temporal, não usufruiu do veículo automóvel... Na verdade, a decisão judicial apenas reconhece que o veículo automóvel esteve numa oficina para reparação e não faz qualquer referência quanto á transmissão do veiculo automóvel”. Pelo que, “mesmo que já tenha ocorrido o trânsito em julgado, o facto de o Requerente não ter usufruído naquele período de tempo do veículo em questão, não faz com que o mesmo deixe de ser o seu proprietário, uma vez que se provou que esteve numa oficina para reparação, mas que sempre continuou em seu nome no Registo Automóvel e consequentemente, é o Requerente o responsável pelas obrigações fiscais, nomeadamente pelo pagamento do IUC.”

 

20. Expostas as posições das partes, no essencial vertidas nos trechos acima transcritos, verifica-se estar em causa no presente processo a apreciação da eventual ilegalidade da liquidação de IUC com referência a uma viatura e a um período de tributação no decurso do qual aquela não esteve na posse do respetivo proprietário mantendo-se, contudo, registada em nome deste.

 

21. De acordo com o Requerente, não se mostram preenchidos os pressupostos de incidência, objetiva e subjetiva, do referido tributo: aquela por inexistência do veículo tributável, entretanto desaparecido, e esta por o veículo se não encontrar na sua posse no período de tributação considerado. Para a Requerida esses factos não assumem qualquer relevância, definindo-se a incidência subjetiva do tributo unicamente em face do respetivo registo automóvel.

 

22. Dos elementos apurados em sentença judicial, e nela dados como provados, extrai-se, com relevância para a apreciação do mérito do presente pedido de pronúncia arbitral, em síntese, que, no período de tributação de 2016, o veículo a que respeita o ato impugnado não esteve na posse do Requerente, seu legítimo proprietário.

 

23. Na sentença referida é esta qualidade de proprietário reconhecida, sem que sobre ela se suscitem quaisquer dúvidas, facto que justifica o direito do ora Requerente à indemnização pelo valor do veículo desaparecido a que o Réu foi condenado.  

 

24. A questão que se coloca, é, pois, a de saber se a propriedade, atestada pelo registo do veículo, prevalece, para efeitos tributários, sobre quaisquer outras circunstâncias, designadamente, pela ausência da posse, por motivos de todo alheios à vontade do titular daquele direito, como pretende a Requerida. Ou se, diversamente, conforme sustenta o Requerente, do princípio da equivalência que enforma o regime de tributação dos veículos, decorre que é a posse e fruição destes que releva para efeito da sujeição passiva ao IUC.

 

25. Sobre a questão que assim se coloca, importa reter que da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X, de 07 de Março de 2007, que originou a Lei n.º 22-A/2007, de 29/06, que aprovou o Código do Imposto Único de Circulação, resultam, com clareza, as razões que levaram o legislador a erigir o principio da equivalência como elemento estruturante do referido tributo.

 

26. Assim, e de acordo com a referida Exposição de Motivos, pretendeu-se empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” em função da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

 

27. Nessa enunciada perspetiva, “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”

 

28. Em consonância com a motivação que enuncia, o legislador veio consagrar, no artigo 1.º, do CIUC, o princípio da equivalência, clarificando que que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respetiva propriedade e até ao momento do abate”.

 

29. Este princípio está presente na norma de incidência subjetiva do imposto, consagrada no artigo 3.º do Código, que aponta no sentido de serem tributados os efetivos utilizadores dos veículos, considerando como tal os respetivos proprietários, no pressuposto de que, conforme decorre o artigo 1305.º do Código Civil, deles gozam dos direitos de uso e fruição.

 

30. É, ainda, em consonância com aquele princípio que o n.º 2 do referido artigo atribui relevância à propriedade económica dos bens definindo como sujeitos passivos do imposto os respetivos locatários, porquanto são estes que detém o potencial de causar custos ambientais e à rede viária.

 

31. No entanto, salienta-se, que com referência aos tributos cujo elemento definidor da incidência subjetiva é a posse, fruição ou propriedade de bens, constitui fundamento admissível da oposição à execução fiscal a ilegitimidade substantiva do oponente, fundada no facto de este, apesar de figurar como devedor no título executivo, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram (Cf. art.º 204.º, n.º 1, al. b), do CPPT).

 

32. Conforme decorre da doutrina acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo, “Trata-se de uma das excepções à regra geral de que não é possível discutir em sede de oposição à execução fiscal a legalidade da liquidação que deu origem à dívida exequenda.

Na verdade, nas referidas situações admite-se que seja questionada a legalidade da liquidação quanto à sua incidência subjectiva, mas essa possibilidade excepcional justifica-se pela «falta de verificação, pela administração tributária, dos pressupostos fácticos do acto de liquidação, relativamente a tributo deste tipo e na constatação de um erro que lhe é imputável», pois, «para proceder à liquidação destes tributos, não é recolhida qualquer informação do contribuinte através de declaração, nem é feita qualquer indagação sobre quem é o real proprietário, fruídor ou possuidor dos bens referidos, antes se efectuando a liquidação a partir do conhecimento da qualidade de proprietário que conste dos registos da administração tributária ou de outros serviços públicos» (JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., anotação 5 ao art. 158.º, pág. 103).

Ora, uma das situações em que a propriedade de determinados bens é pressuposto da incidência do tributo em causa, é precisamente o IUC, pois o art. 3º do respectivo Código dispõe no seu nº 1: «São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados»” (cfr. STA, Ac. de 24.2.2016, Proc. 0677/15. No mesmo sentido, STA, Ac. de 8.7.2015, Proc. 0606/15) .

 

33. De acordo com a jurisprudência citada, referida à norma do artigo 240.º, n.º 1, al. b), que define como fundamento de oposição à execução fiscal o facto de o citado “não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram” é precisamente esta a situação que se verifica quanto ao IUC:

 

34. Segundo a doutrina citada, e acolhida no acórdão referido, está-se perante uma possibilidade excecional de questionar, em sede de oposição à execução fiscal, a própria legalidade da liquidação tributária que, tomando como referência a propriedade, tal como consta do registo, não atribui relevância à posse ou fruição do bem a originou., não sendo feita “qualquer indagação sobre quem é o real proprietário, fruidor ou possuidor dos bens”.

 

35. Conclui-se, pois, acompanhando-se o entendimento do Requerente que, muito embora seja ele o proprietário do veículo no período a que respeita a liquidação impugnada, não foi, nesse período, o seu possuidor ou fruidor, facto de que decorre a ilegalidade da mesma, que, assim, aqui se declara.

 

 36. Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e consequente anulação do ato de liquidação de IUC, respeitante ao veículo com a matrícula …-…-… e ao período de tributação de 2016.

 

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 52,71, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 306, 00, a cargo da Requerida (AT).

 

Lisboa, 13 de novembro de2017,

 

O árbitro,

Álvaro Caneira