Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 263/2017-T
Data da decisão: 2017-11-03  IRC  
Valor do pedido: € 1.455.276,23
Tema: IRC – RFAI - direito à dedução
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Os árbitros José Baeta de Queiroz (árbitro-presidente), Magda Feliciano e Luis Manuel Pereira da Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o tribunal arbitral, constituído em 28 de Junho de 2017, acordam no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO E SANEAMENTO

 

A…, S.A., pessoa colectiva…, com sede em …, …, …, com capital social de € 104.391.080,00 (doravante “Requerente”), pertencente ao Serviço de Finanças de …, notificada das demonstrações de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e de juros compensatórios de 2014 e da demonstração de acerto de contas, vem requerer a anulação dos actos de liquidação n.ºs 2017 …, referente a IRC de 2014, e 2017 …, referente a juros compensatórios.

 

A Requerente pretende, assim, que seja declarada a ilegalidade dos referidos actos de liquidação de IRC e dos correspondentes juros compensatórios.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT, respondeu defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado.

 

Foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), tendo o processo prosseguido para alegações escritas.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades que o invalidem, nem há excepções ou questões prévias de que deva conhecer-se e que possam obstar à apreciação do mérito da causa.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente dedica-se à extracção mineira nas minas de …;
  2. No exercício de 2011, 2012, 2013 e 2014, a Requerente preencheu todos os requisitos, formais e materiais, para poder usufruir do benefício fiscal decorrente do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI);
  3. Em 2011 o benefício decorrente do RFAI foi fixado em €8.771.595,38;
  4. Em 2012, o benefício decorrente do RFAI foi fixado em €5.305.308,21;
  5. Com base no valor da colecta da Requerente nos exercícios de 2011 e 2012, não foi possível deduzir o valor do benefício fiscal apurado de acordo com o RFAI quer em 2011, quer em 2012;
  6. A Requerente reportou os valores não deduzidos, em 2011 e em 2012, relativos ao benefício fiscal decorrente do RFAI para os anos seguintes;
  7. Em 2013, a Requerente relevou e deduziu os valores sobrantes relativos ao benefício fiscal decorrente do RFAI à colecta de 2013, proporcionalmente e tendo em conta os restantes benefícios apurados em 2013 e o reporte legalmente realizado;
  8. A Requerente relevou na sua Declaração Modelo 22 de IRC como valor a reportar para 2013 com referência ao RFAI de 2011 e de 2012 o montante total de €7.849.225,59, correspondendo €5.302.625,07 a 2011 e €2.546.600,52 a 2012, tendo deduzido naquele exercício de 2013 o valor de €3.179.117,59 atinente a 2011, reportando o excedente;
  9. Em 2014, a Requerente relevou e deduziu os valores sobrantes do RFAI de 2011 e de 2012 que não tinham sido deduzidos nem naqueles anos, nem em 2013, deduzindo ainda a parte do benefício do RFAI de 2013 que tinha sido reportada para os anos seguintes;
  10. A Requerente relevou na sua Declaração Modelo 22 de IRC de 2014 como valor a reportar para 2014, correspondente ao benefício do RFAI de 2011, 2012 e 2013, não deduzido em tais exercícios, o montante total de €4.870.956,67, tendo apurado no que tange ao RFAI de 2014 benefício em montante de € 3.655.476,00 e tendo, de facto, deduzido naquele exercício de 2014 o valor de € 5.443.767,81, reportando para 2015 o valor de € 3.082.664,86.
  11. No final 2015 a Requerente foi objecto de acção inspectiva ao exercício de 2013 em sede de IRC na qual a AT sustentou uma correcção ao valor do investimento relevante para efeitos do apuramento do benefício fiscal do RFAI com referência a 2013 e, nessa conformidade, uma correcção ao montante daquele benefício, à qual a Requerente não se opôs e uma correcção ao valor total e à repartição da dedução de benefícios fiscais à colecta de 2013;
  12. Em 28 de Outubro de 2016, no seguimento da correcção efectuada no âmbito do procedimento de inspecção a 2013 e a 2014, a Requerente apresentou declaração Modelo 22 de IRC de 2014 de substituição;
  13. De acordo com a declaração de substituição, a Requerente inscreveu como valor a reportar para 2014 com referência ao RFAI de 2011, 2012 e 2013, o montante total de €4.780.777,72, tendo apurado no que tange ao RFAI de 2014 benefício em montante de €2.169.814,33;
  14. A Requerente deduziu naquele exercício de 2014 a totalidade do valor respeitante ao RFAI dos anos anteriores e reportou para 2015 o valor de €2.169.814,33, ou seja, o RFAI de 2014.
  15. No final de 2016, a Requerente foi notificada de Projecto de Relatório de Inspecção a 2014, de acordo com o qual é corrigido o valor total e a repartição da dedução de benefícios fiscais à colecta de 2014;
  16. A 14 de Dezembro de 2016, a Requerente exerceu o direito de audição-prévia;
  17. Por decisão emitida no processo arbitral n.º 285/2016-T de 10 de Janeiro de 2017, as liquidações de IRC e juros compensatórios de 2013 foram anuladas, tendo esta decisão transitado em julgado;
  18. A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento do acto de liquidação adicional de IRC de 2014 e a respectiva liquidação de juros compensatórios, até ao dia 9 de Março de 2017;
  19. A Requerente procedeu, no prazo conferido para o efeito, ao pagamento do montante apurado nos actos de liquidação já identificados.

2. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo.

Não ficaram por provar factos relevantes para o conhecimento do mérito do pedido.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

 

  1. Posição da Requerente

 

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral, em síntese, o seguinte:

 

  1.  O problema-chave neste caso é somente o de saber se é à Requerente possível relevar em 2014 o valor do benefício fiscal decorrente do RFAI dos anos de 2011 e 2012, na medida em que a dedução nos respectivos exercícios não foi possível na sua totalidade em razão da aplicação do artigo 92.º do Código do IRC;
  2. A Requerente não pretende discutir a sujeição do benefício do RFAI em 2011 e em 2012 ao limite do artigo 92.º do Código do IRC, a qual ademais apenas teria relevância naqueles exercícios e não foi posta em causa pela Requerente ou fica afectada pela sua pretensão in casu;
  3. Segundo o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do RFAI, aos sujeitos passivos de IRC residentes em território português ou que aí possuam estabelecimento estável, que exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola que efectuem, no exercício em causa, investimentos considerados elegíveis, são concedidos determinados benefícios fiscais, entre os quais, a dedução à colecta de IRC, e até à concorrência de 25 % da mesma, das seguintes importâncias, para investimentos realizados em regiões elegíveis para apoio no âmbito dos incentivos com finalidade regional: (i) 20% do investimento relevante, relativamente ao investimento até ao montante de € 5.000.000; (ii) 10% do investimento relevante, relativamente ao investimento de valor superior a € 5.000.000;
  4. Nesta conformidade, prevê o n.º 3 do artigo 3.º do RFAI que quando a dedução dos investimentos elegíveis nos termos deste regime não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatro exercícios seguintes.
  5. Com efeito, uma vez que o RFAI limita a dedução à colecta de IRC a 25% do valor da mesma, mas estabelece que aquela dedução corresponde a 20% ou 10% do investimento relevante, a permissão de «reporte» pretendeu garantir que o facto de, no ano da concretização dos investimentos, o sujeito passivo apurar um montante de colecta que não permita a totalidade da dedução em causa não restringe a aplicação do benefício em causa, o qual pode ainda ter efeito nos quatro exercícios seguintes;
  6. Sem a norma do n.º 3 do artigo 3.º do RFAI, o objectivo de incentivo ao investimento subjacente ao RFAI não lograria ter real impacto prático;
  7. Na verdade, até ao momento em que os investimentos realizados conduzissem ao um substancial aumento da colecta de IRC, aqueles investimentos teriam uma diminuta relevância fiscal, pelo que não se criariam incentivos a que as empresas efectuassem novos investimentos com reflexo a curto médio prazo.
  8. Ora, é exactamente o efeito contrário que o RFAI pretende despoletar, consubstanciando um instrumento de política fiscal anticíclica que, mediante a promoção do investimento empresarial em determinadas regiões e da criação de emprego, visou contribuir para a revitalização da economia nacional;
  9. Tendo o artigo 92.º do CIRC passado a prever que o valor de imposto liquidado não poderia ser inferior a 90% daquele que seria fixado sem a dedução de benefícios fiscais, então a dedução do benefício fiscal do RFAI deixou de poder ultrapassar 10% da colecta;
  10. Aplicando esta norma ao benefício consagrado no RFAI, se a dedução à colecta de IRC fixada nos termos daquele regime for em montante superior a 10% da mesma, então esta mostra-se insuficiente para a concretização daquela dedução, tal como pressupõe o n.º 3 do artigo 3.º do RFAI.
  11. É que, de facto, e ao contrário do que parece a AT querer veicular no seu Relatório Final de Inspecção, em resultado da aplicação do artigo 92.º, n.º 1 do CIRC, a Requerente foi impedida de efectivamente deduzir a totalidade do valor do benefício fiscal decorrente do RFAI, tanto em 2011 como em 2012.
  12. Quer isto significar que a interpretação, imediatamente de uma perspectiva literal, mas também sistemática, do n.º 3 do artigo 3.º do RFAI, só pode conduzir a uma conclusão, a saber: a de que a dedução nos quatro exercícios seguintes do valor que não puder sê-lo no exercício respeitante aos investimentos relevantes por insuficiência de colecta se aplica igualmente quando aquela insuficiência resulte da limitação plasmada no artigo 92.º do CIRC.
  13. Acrescente-se ainda que, se se viesse a considerar a existência de dúvidas na interpretação das normas do n.º 3 do artigo 3.º do RFAI e do artigo 92.º do CIRC — o que só por absurdo se poderia admitir, sem conceder —, sempre caberia recorrer às regras de interpretação do Código Civil constantes do respectivo artigo 9.º, para as quais remete o artigo 11.º da Lei Geral Tributária («LGT»), e às regras especiais respeitantes aos benefícios fiscais.
  14. Designadamente, segundo aquelas normas, a interpretação não deve cingir-se à letra da Lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada;
  15. Ora, de acordo o Relatório do Orçamento do Estado para 2005 (aprovado pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro), que introduziu a regra do artigo 92.º do CIRC (então artigo 86.º), este artigo constitui um «limite à redução da taxa efectiva de tributação por utilização de benefícios fiscais» (cit.).
  16. Adicionalmente, também no Relatório do Orçamento do Estado para 2011 (aprovado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), que reduz o limite para 10%, «aponta-se para uma taxa de tributação efectiva de 22,5%».
  17. Decorre do aludido artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que as normas sobre benefícios fiscais, enquanto normas excepcionais (na medida em que obviam à regra geral da tributação), não são susceptíveis de integração analógica ou tão pouco de interpretação restritiva, admitindo, apenas, interpretação extensiva — cfr. igualmente artigo 11.º do Código Civil.
  18. Daí que, ainda que não se pudesse concluir imediatamente da letra da Lei a possibilidade de reporte do benefício fiscal do RFAI nos termos sustentados — o que se admite por mero dever de patrocínio, sem conceder —, por ser manifesto que a intenção legislativa subjacente ao n.º 3 do artigo 3.º do RFAI é permitir ao contribuinte utilizar o benefício fiscal a que tem direito em anos subsequentes, até ao limite de quatro, quando não puder utilizá-lo em anos anteriores — sem recurso a qualquer analogia, mas antes com base em interpretação extensiva — dever-se-ia concluir que decorre da aplicação do artigo 92.º do Código do IRC uma situação de insuficiência de colecta;
  19. Entendimento em tudo semelhante foi igualmente adoptado nos processos n.º 369/2015-T, n.º 370/2015-T e n.º 285/2016-T, nos quais o tribunal arbitral volta a sustentar que a sujeição do RFAI ao limite do artigo 92.º do CIRC pode determinar a verificação de uma situação de insuficiência de colecta, o que deve permitir ao contribuinte, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do RFAI, reportar o valor sobrante para anos posteriores;
  20. Concretizando, as normas decorrentes do artigo 92.º, n.º 1, do Código do IRC e do artigo 3.º, n.º 3, do RFAI, interpretadas no sentido de impedir o reporte do benefício fiscal do RFAI para exercícios posteriores no caso ter sido pela aplicação do limite do artigo 92.º do CIRC que o contribuinte não pôde integralmente deduzir o benefício apurado naquele ano — negando-se a verificação de uma situação de insuficiência de colecta, tal como prevista no artigo 3.º, n.º 3, do RFAI — mostram-se inconstitucionais por violação do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da Constituição, inconstitucionalidade que, de imediato, se argúi.
  21. Por fim, vale ainda destacar que a negação da possibilidade de reporte do valor do benefício não utilizado no ano em que foi apurado em resultado de insuficiência de colecta causada pela aplicação da regra do artigo 92.º, n.º 1, do Código do IRC implica igualmente uma evidente e intolerável violação do princípio da proporcionalidade, vertente do artigo 2.º da CRP e consagrado no n.º 2 do artigo 266.º do mesmo compêndio constitucional como princípio orientador e limitador da actuação da AT;
  22. Tudo visto, não pode a Requerente aceitar a correcção propugnada pela AT e ora contestada na medida em que pela mesma a AT nega relevância ao valor do benefício do RFAI de 2011 e de 2012 que não pôde ser aproveitado naqueles anos, impedindo a sua consideração e reporte para anos subsequentes, e nega a dedução à colecta de 2014 do valor de €4.780.777,72 em concreto declarada e efectuada pela Requerente e correspondente a parte do benefício de 2011, 2012 não utilizado naqueles exercícios e que não foi reportado e deduzido em 2013, assim como a parte do RFAI de 2013 igualmente não deduzido nesse exercício, a qual se mostra legal e terá de ser aceite.

 

  1. Posição da AT

 

  1. A Requerente invocou na declaração modelo 22 de IRC de 2014 o direito a deduzir um crédito fiscal a titulo de RFAI, de €7.849.225,59 (2011: €5.302.625,07 e 2012: €2.546.600,52), relativo a períodos anteriores, mas que corresponde aos valores dos benefícios fiscais não deduzidos naqueles exercícios por força do cálculo do resultado da liquidação , nos termos do art.º 92.º do Código do IRC, todavia, segundo a AT não é possível, neste caso em concreto, aproveitar de valores de RFAI que, por referência a anos anteriores, não tenham tido eficácia ao nível da dedução, por força do comando legal daquele preceito;

 

  1. Efectivamente, a não dedução dos referidos montantes não decorre de insuficiência de colecta, mas, antes, da aplicação do normativo que regula o resultado da liquidação das deduções aos benefícios fiscais;

 

  1. Sendo certo que o n.º 3 do art.º 3.º do RFAI 2009 determinava que “Quando a dedução referida no número anterior não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatro exercícios seguintes.”, ou seja, pode ser deduzido, mas, ao montante referido na alínea a) do n.º 1, do mesmo artigo, i.e. ao montante determinado de acordo com as regras do n.º 1 do art.º 90.º do Código do IRC;

 

  1. Ou seja, a colecta a que se refere a alínea a) do n.º 1 do art.º 3.º do RFAI é a que resulta do acto de liquidação do IRC, processado nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do respectivo Código, que consiste na aplicação da taxa do imposto à matéria colectável;

 

  1. O legislador do RFAI não fez qualquer referência no n.º 3 do art.º 3.º do RFAI, a propósito de insuficiência de colecta, que a mesma poderia advir também do cálculo do resultado da liquidação tal como previsto no art.º 92.º, normativo introduzido no Código do IRC em 2005, com o propósito de reduzir o impacto na colecta das deduções efectuadas a título de benefícios fiscais;

 

  1. Por isso, mal se compreenderia que, por um lado, tivesse havido a preocupação de reduzir o efeito dos benefícios fiscais no cálculo do IRC devido ao Estado e, por outro, se esse efeito fosse neutralizado, consentido os valores não deduzidos num determinado período de tributação pudessem sê-lo em exercícios futuros, pelo mecanismo do reporte;

 

  1. Assim, o RFAI de 2011 e de 2012 apenas estará incluído no conjunto de créditos de imposto por benefícios fiscais dedutíveis em 2014 se, e só na parte em que por insuficiência de coleta não tenha sido possível utilizar na determinação do IRC de 2011 e 2012 tal não acontece conforme bem se demonstra no resumo das liquidações de IRC para os períodos de 2011 e 2012;

 

  1. De resto, o valor que a empresa reclama como crédito fiscal de RFAI reportado dos anos de 2011 e 2012 mais não é que o imposto pago a título de resultado da liquidação nos termos previstos no artigo 92.º do Código do IRC;

 

  1. Ao aceitar-se reportar para os períodos de tributação seguintes o acréscimo do «resultado da liquidação», que no caso em concreto, terá a ver com a utilização [excessiva conforme art.º 92.º do CIRC] de RFAI, iria-se inutilizar o próprio artigo uma vez que se estaria primeiramente a limitar o impacto da utilização do benefício no imposto a pagar, para posteriormente, com a permissão do reporte, invalidar a própria limitação que é o objectivo contido na norma;

 

  1. Ademais, labora, ainda, em erro a Requerente, nas considerações feitas no art.º 55 do Requerimento de pronúncia arbitral, sobre a interpretação das normas sobre benefícios fiscais, pois, se é verdade que “decorre do artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que as normas sobre benefícios fiscais, enquanto normas excepcionais (na medida em que obviam à regra geral da tributação), não são susceptíveis de integração analógica”, nada na letra desse normativo autoriza a concluir que é afastada por essa norma, a interpretação restritiva, desde logo porque apenas é dito que interpretação extensiva é admitida;

 

  1. Como bem se recorda, na Decisão do Tribunal Arbitral do CAAD, proferida no proc.º n.º 400/2015, “As normas que criam benefícios fiscais têm natureza de normas excepcionais, como decorre do teor expresso do artigo 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), pelo que devem ser interpretadas nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições, de forma a abrangerem todos os casos nelas literalmente previstos e apenas esses, como é jurisprudência pacífica.”

 

  • Assim sendo, não é correcto afirmar que a interpretação da AT, no sentido de que o artigo 92.º do CIRC podia restringir a aplicação do RFAI, envolve uma inadmissível interpretação restritiva deste regime fiscal, que se limitou neste caso a considerar que as normas do RFAI valem por si mesmas, devendo ser interpretadas atendendo ao exacto sentido das palavras utilizadas;

 

  1. Sendo assim, a não dedução à colecta, em 2011 e em 2012, do montante de benefícios fiscais relativos ao RFAI, por efeito do cálculo do resultado da liquidação, não pode ser imputada a insuficiência de colecta, propriamente dita, pois, o que se verificou foi produto de um efeito de um normativo com objectivo de minimizar o efeito da “erosão” na colecta provocada pela cumulação de benefícios fiscais;

 

  • Assim, e salvo o devido respeito, entendemos que as alegações da Requerente, não podem de todo proceder, porquanto fazem uma interpretação e aplicação das normas legais subsumíveis ao caso sub judice notoriamente errada;

 

  • Destarte, fenecem todos os argumentos aduzidos pela Requerente, sendo que a AT fez uma correcta subsunção dos factos à lei, actuando no estrito cumprimento dos seus deveres e obrigações legalmente vinculados.

 

Face às posições das partes, a principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se os actos de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, objecto da presente petição, são ou não válidos, considerando a interpretação que deve ser dada ao disposto nos artigos 92.º, n.º 1 do Código do IRC (CIRC) e 3.º, n.º 3 do RFAI, aprovado pela Lei n.º 10/2009, de 10 de Março.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

A – DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 3.º, N.º 3 DO RFAI E DO ARTIGO 92.º DO CÓDIGO DO IRC

 

Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.

 

Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:

 

 

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Assim, tendo em conta os referidos princípios, importa atender ao disposto no artigo 3.º, n.º 3 do RFAI, aplicável à data dos factos relevantes, segundo o qual:

 

“Artigo 3.º

Incentivos fiscais

1 - Aos sujeitos passivos de IRC residentes em território português ou que aí possuam estabelecimento estável, que exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola abrangida pelo n.º 1 do artigo anterior que efectuem, em 2009, investimentos considerados relevantes, são concedidos os seguintes benefícios fiscais:

  1. Dedução à colecta de IRC, e até à concorrência de 25 % da mesma, das seguintes importâncias, para investimentos realizados em regiões elegíveis para apoio no âmbito dos incentivos com finalidade regional: i) 20 % do investimento relevante, relativamente ao investimento até ao montante de (euro) 5 000 000; ii) 10 % do investimento relevante, relativamente ao investimento de valor superior a (euro) 5 000 000;

(…)

2 - A dedução a que se refere a alínea a) do número anterior é efectuada na liquidação respeitante ao período de tributação que se inicie em 2009.

3 - Quando a dedução referida no número anterior não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatro exercícios seguintes.”

 

Por sua vez, dispõe o artigo 92.º do Código do IRC o seguinte:

“Artigo 92.º
Resultado da liquidação

1 —  Para as entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como as não residentes com estabelecimento estável em território português, o imposto liquidado nos termos do n.º 1 do artigo 90.º, líquido das deduções previstas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do mesmo artigo, não pode ser inferior a 90 % do montante que seria apurado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais e do regime previsto no n.º 13 do artigo 43.º.

2 —  Excluem-se do disposto no número anterior os seguintes benefícios fiscais:
a) Os que revistam carácter contratual;

b) O sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial II (SIFIDE II), previsto no Código Fiscal do Investimento;

c) Os benefícios fiscais às zonas francas previstos nos artigos 33.º e seguintes do Estatuto dos Benefícios Fiscais e os que operem por redução de taxa;

d) Os previstos nos artigos 19.º e 32.º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais; 
e) O regime fiscal de apoio ao investimento (RFAI), previsto no Código Fiscal do Investimento.

f) O regime de dedução por lucros retidos e reinvestidos (DLRR), previsto no Código Fiscal do Investimento; (aditada pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31/10)
g) O regime de remuneração convencional do capital social previsto no artigo 41.º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais. (aditada pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31/10)
h) O incentivo à produção cinematográfica previsto no artigo 59.º-F do Estatuto dos Benefícios Fiscais. (Redação do Decreto-Lei n.º 22/2017, de 22 de fevereiro e Declaração de Retificação n.º 13/2017, de 13 de abril)”.

 

Assim, atendendo ao elemento literal da norma constante do artigo 3.º, n.º 3 do RFAI, entende-se que quando a dedução à colecta relativa aos investimentos elegíveis não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatro exercícios seguintes.

Por sua vez, o artigo 92.º, n.º 1 do Código do IRC determina que o IRC liquidado não pode ser inferior a 90% do imposto que seria devido, caso não fossem deduzidos os benefícios fiscais, excluindo-se do apuramento desse limite os benefícios decorrentes do RFAI.

Em consequência, da interpretação literal daquelas normas resulta que o artigo 3.º, n.º 3 do RFAI permite aos sujeitos passivos deduzir à colecta de IRC até 25% dos investimentos relevantes, enquanto que o artigo 92.º do Código do IRC limita o direito à dedução até ao máximo de 10%, nada estabelecendo sobre o direito de reporte das deduções sobrantes.

Do ponto de vista histórico e teleológico, resulta do Relatório do Orçamento do Estado de 2011, que o artigo 92.º constitui “uma disposição que foi já objeto de revisão na Lei do Orçamento do Estado para 2010, momento em que se elevou a percentagem em referência de 60% para (…) 75%, apontando para uma tributação efetiva de 18,75%. (…) Elevando para 90% a percentagem de referência abaixo da qual se desconsideram os benefícios fiscais (…) aponta-se para uma taxa de tributação efetiva de 22,5% (…)”.

Por sua vez, como resulta do artigo 1.º do RFAI, este regime é criado como um sistema de incentivos fiscais ao investimento em determinados sectores de actividade, visando-se contribuir para a promoção do investimento e da competitividade e para a manutenção de um contexto fiscal favorável ao investimento.

Resulta, assim, da ponderação do elemento histórico e teológico das normas em análise que o sentido impresso ao regime especial de apoio ao investimento pretende criar um conjunto de incentivos fiscais, entre os quais se incluí o direito ao reporte do direito à dedução consagrado expressamente no artigo 3.º, n.º 3 do RFAI.

Tendo em conta, também, o disposto no artigo 9.º, n.º 3 do CC, deve presumir-se que o legislador consagrou a solução mais acertada para atingir o fim visado de incentivar o investimento e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Na verdade, apesar da norma que estabelece aqueles benefícios fiscais ser uma norma excepcional, a interpretação da norma nos termos referidos não ultrapassa os limites irremovíveis da letra da lei, sendo a interpretação defendida meramente declarativa.

Por isso, atendendo aos elementos interpretativos das normas, entende-se que o direito de reporte consagrado no RFAI, em caso de insuficiência de colecta, deve ser interpretado no sentido de atribuir ao contribuinte a possibilidade de usufruir do benefício fiscal, fazendo o seu aproveitamento integral, através do reporte.

Em todo o caso, e mesmo que dúvidas existissem relativamente à interpretação das normas em análise, havia de ter se entender, nesse caso, que as normas em causa seriam normas em conflito. Sendo a norma estabelecida no artigo 3.º, n.º 3 do RFAI, uma norma especificamente criada para regular o regime jurídico-fiscal daqueles incentivos fiscais, no sentido em que cria o direito de reporte, a limitação quanto ao direito de reporte resultante do artigo 92.º do Código do IRC não poderia prevalecer sobre a norma resultante do artigo 3.º, n.º 3 do RFAI, que visa precisamente impedir o nascimento da obrigação tributária com o seu conteúdo normal, que cabe na tributação-regra, com natureza excepcional e fundamento extrafiscal.[1]

Na verdade, e acompanhando o defendido da Decisão n.º 369/2015-T, de 25 de Janeiro de 2016, “Uma interpretação da lei, não expressamente imposta pelo texto legal, que restrinja o “aproveitamento” dos benefícios fiscais em causa feriria a credibilidade das “promessas legislativas” em matéria fiscal, seria, em suma, contrária ao princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito.

No confronto entre entes dois objetivos, é a própria lei que nos indica o que deve prevalecer. Os interesses públicos que determinam a criação de um benefício fiscal são, por natureza, superiores aos da tributação que impedem.

Tal é, ainda mais, manifesto relativamente aos incentivos fiscais ao investimento, uma vez que constituem uma verdadeira promessa pública, no sentido de que aos sujeitos passivos que adotarem determinados comportamentos, supostamente do maior interesse económico e social, é garantida determinada “recompensa fiscal”.


Assim, acompanhando o sentido das decisões proferidas no processo n.º 693/2014-T do CAAD, no processo 369/2015-T e 370/2015-T, conclui-se que o benefício fiscal resultante do RFAI em matéria de IRC apenas pode ser utilizado na medida em que não ponha em causa o limite previsto no artigo 92.º, n.º 1, do Código do IRC, podendo a parte que não seja utilizada no ano do investimento ser utilizada para dedução à colecta de IRC nos anos subsequentes, até ao limite previsto no n.º 3 do artigo 3.º do RFAI.

Consequentemente, deve ser anulado o acto de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios sub judice referentes ao exercício de 2014, por vício de violação de Lei, reconhecendo-se o direito a juros indemnizatórios da Requerente, uma vez que a ilegalidade do acto de liquidação é imputável a erro da Requerida, nos termos previstos no artigo 43.º, n.º 1 da LGT e n.º 4 do artigo 61.º do CPPT.

 

  1. DECISÃO

Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1.  Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios identificados no processo, no valor de € 1.455.276,23 (um milhão, quatrocentos e cinquenta e cinco, duzentos e seis euros e vinte e três cêntimos);
  2. Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios;

 

  1. Condenar a Requerida nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto no artigo 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.455.276,23 (um milhão, quatrocentos e cinquenta e cinco, duzentos e seis euros e vinte e três cêntimos).

 

  1. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 19.584,00 (dezanove mil quinhentos e oitenta e quatro euros), conforme a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

 

Notifique-se.

 

 

 

Lisboa, 03 de Novembro de 2017

 

 

 

Os Árbitros

 

 

 

(José Baeta de Queiroz)

                                                                                      

 

 

(Magda Feliciano)

 

 

 

 

 

(Luis Manuel Pereira da Silva)

 

 

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)



[1] Teoria Geral Dos Benefícios Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Nuno Sá Gomes, pp.