Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 64/2017-T
Data da decisão: 2017-10-26  IUC  
Valor do pedido: € 1.263,17
Tema: Imposto Único de Circulação.
Versão em PDF

 

Decisão Arbitral

 

I – RELATÓRIO

  1. pedido  

A…, S.A., pessoa coletiva n.º…, com sede na Rua…, …, …-… Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou, em 17-01-2017, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 2º e no art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), um pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista a:

  • A anulação, com base em violação de lei, dos seguintes atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativos aos anos de 2013, 2014 e 2015, nos termos da al. c), do n.º 1 do art.º 2.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC):

- Liquidação comunicada através do documento nº 2013…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2013

- Liquidação comunicada através do documento nº 2014…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2014

- Liquidação comunicada através do documento nº 2015…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2015

- Liquidação comunicada através do documento nº 2013…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2013

- Liquidação comunicada através do documento nº 2014…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2014

- Liquidação comunicada através do documento nº 2015…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2015

  • A condenação da Requerida ao reembolso das quantias pagas referentes ao imposto liquidado e ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios.

 

  1. Fundamento do pedido

Para sustentar o seu pedido, a Requerente alega, em síntese:

  • Os veículos automóveis sobre os quais incidiram as liquidações de imposto impugnadas foram dados em locação financeira pela Requerente e encontravam-se em vigor no ano (ou, mais concretamente, no mês relevante do ano) em que se venceu a obrigação de pagar o IUC associado ao respectivo veículo;
  • Nessa data e, de resto, durante todo o período em que os sobreditos contratos estiveram em vigor – tal como ocorre em qualquer contrato desta natureza – a utilização dos respetivos veículos automóveis esteve sempre exclusivamente a cargo dos locatários.
  • A propriedade (jurídica) pertencia, é certo, à Requerente, enquanto entidade locadora; porém, esta jamais usufruiu dos veículos, que estiveram, desde o momento da sua aquisição, a ser utilizado (apenas e só) pelos locatários.
  • Conclui-se, pois, sem qualquer margem para duvidas, que a Requerente jamais usufruiu, desde o primeiro momento, dos veículos automóveis em questão. Dito de outro modo, o potencial de utilização destes veículos jamais pertenceu à Requerente.
  • Consequentemente, e conforme se argumentará infra, não pode a Requerente assumir a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado;
  • Ao vir exigir o imposto em falta à ora Requerente, a AT age com base num fundamento que, salvo o devido respeito, se nos afigura errado: o de que a entidade locadora de determinado automóvel é, à luz do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), responsável pelo seu pagamento, ou seja, é o sujeito passivo deste imposto.
  • Com efeito, apenas assim se percebe que, mesmo tendo conhecimento da existência de contratos de locação financeira – e, inclusive, da identidade dos locatários –, tenha vindo liquidar o imposto devido, por referência aos veículos automóveis em causa, na esfera da Requerente.
  • A vexata quaestio subjacente a estes autos reside, essencialmente, em determinar quem assume a qualidade de sujeito passivo do IUC devido na vigência de um contrato de locação financeira: se o locatário, ou se a entidade locadora (ainda que proprietária).
  • O IUC é o tributo que visa onerar os contribuintes pelo custo ambiental e viário que lhes está associado, numa lógica de equivalência e igualdade tributária (cfr. artigo 1.º do Código do IUC).
  • Assim, quanto a este imposto, o legislador optou por onerar o sujeito passivo não de acordo com (e na medida da) sua riqueza – afastando o princípio da capacidade contributiva –, mas sim na justa medida do custo para o ambiente e para as infra-estruturas viárias que aquele sujeito passivo, através da utilização de veículos automóveis, pode gerar.
  • Subjacente a esta regra de incidência está, claro está, o pressuposto do potencial de utilização de veículos automóveis: é precisamente porque tem à sua disposição o direito de utilizar um veículo – gerador de determinado nível de poluição, desgaste das vias, etc. –, que aquele sujeito passivo tem um potencial acrescido de provocar danos ao ambiente e às infra-estruturas, danos esses que justificam, do ponto de vista económico-jurídico, a sua tributação em sede de IUC.
  • Na verdade, e como é consabido, o peso da componente ambiental, no imposto sob apreciação, é muito significativo.
  • Este foi, aliás, um dos pontos centrais da reforma global da tributação automóvel que, em 2007, promoveu a substituição do (extinto) Imposto Automóvel pelo (actual) IUC.
  • Conforme resulta da Proposta de Lei N.º 118/X, que precedeu a Lei n.º 22-A/2007, esta reforma foi essencialmente marcada pela necessidade de subordinar a tributação automóvel aos “princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
  • No momento em que esta Proposta foi apresentada, assumiu-se que “Portugal, como a generalidade dos países europeus, [se confrontava] com graves dificuldades de política energética e ambiental, resultantes do agravamento dos preços do petróleo e do aumento imparável da taxa de motorização. A circunstância de cerca de 60% da energia consumida no País ter origem no petróleo e o facto de mais de dois terços dessa parcela respeitar ao sector dos transportes revelam uma grande dependência energética no plano internacional e uma exposição do País ao futuro incerto dos combustíveis fósseis”.
  • Assim, a criação do IUC (e, de resto, também do ISV) constituiu “muito mais do que o prolongamento técnico das figuras [de imposto] criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel”.
  • Nos termos da referida Proposta, estes impostos “constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade”.
  • São impostos que comportam, pois, uma mensagem de responsabilidade social; “para além dos compromissos internacionais e das exigências de política energética que, de modo mais urgente, nos obrigam à presente reforma, espera-se que ela contribua, por si mesma, para a transformação de mentalidades e de rotinas, para uma percepção mais clara dos problemas do ambiente e para um equilíbrio mais são entre o uso do transporte público e o do transporte particular”.
  • O critério determinante de tributação deixou de ser (exclusivamente) a cilindrada, e passou a decorrer, então, “de indicadores da capacidade poluidora de um veículo”, sendo certo que, “como elemento estruturante e unificador destas categorias, consagra-se o princípio da equivalência”,
  •  “deixando-se assim claro” – conclui a Proposta – “que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.
  • No momento em que a apresentava ao Parlamento, para que se procedesse à sua votação, o então Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais explicava que “a proposta de codificação da tributação ou fiscalidade dos veículos automóveis, recentemente aprovada pelo Governo e remetida à Assembleia da República para discussão e aprovação, visa pôr fim a um sistema jurídico envelhecido nos seus princípios e formulação e estabelecer, ao mesmo tempo, seguindo os princípios do Programa do Governo, as bases para uma política fiscal automóvel que tenha em conta as preocupações ambientais e energéticas do nosso tempo”.
  • Atento o exposto, dúvidas não restam de que o imposto ora sob apreciação é fortemente marcado por uma lógica ambiental, pretendendo-se que seja cobrado em função do potencial de poluição a que um determinado veículo automóvel se presta (a sua “capacidade poluidora”, conforme refere a Proposta acima identificada).
  • Esta preocupação de natureza ambiental encontra-se reflectida, como se referiu supra, na própria configuração do imposto.
  • Assim, no que respeita desde às regras de determinação da base tributável, até à taxa aplicável, passando mesmo pelas isenções consagradas, é reconhecido ao longo do Código do IUC um vector comum: a intenção de tributar o veículo na justa medida do seu potencial polutivo.
  • É que, conforme explicou DIOGO LEITE DE CAMPOS, “o Imposto Único de Circulação não tem o veículo, em si mesmo, como objecto da sua incidência, mas antes a sua utilização (em acto ou em potência)” (retirado de Parecer realizado a pedido de «ALF – Associação Portuguesa de Leasing, Factoring e Renting» (...).
  • Daí que o encargo correspondente compita, em primeira linha, à pessoa ou entidade que tem o potencial de utilização do referido automóvel; i.e., que tenha o potencial de produção da poluição que se pretende, justamente, desincentivar.
  • Na maioria dos casos, será o proprietário do automóvel – que aparece, por isso mesmo, referenciado como sujeito passivo “de primeira linha” no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC (“O proprietário é sujeito passivo por ser de pressupor que o proprietário usa o bem”, DIOGO LEITE DE CAMPOS in Parecer junto (...)).
  • Para além de consistir, na maior parte das situações, no seu utilizador por excelência, o proprietário é, de igual modo, a figura de referência – perante a Autoridade Tributária (AT) e demais entidades públicas – daquele veículo automóvel em particular.
  • É, por assim dizer, o seu utilizador mais facilmente detectável: na medida em que a propriedade de um veículo automóvel está sujeita a registo, a consideração da “propriedade” como facto gerador de tributação (e, consequentemente, do proprietário como sujeito passivo) permite à AT alcançar um grau de controlo dificilmente substituível,
  • para além de, conforme acima se referiu, se revelar – na maior parte dos casos – inteiramente acertada; afinal, a regra é a de que, juntamente com a titularidade de uma viatura, o indivíduo detenha também o seu usufruto.
  • Nas situações em que assim não seja, todavia, a ratio subjacente ao imposto sob consideração resulta violada; pois que, nesses casos, a pessoa onerada com a tributação não é aquela a quem está associado o potencial de poluição.
  • Dito de outro modo, nesses casos, verifica-se um desfasamento entre o comportamento que consiste na “razão de ser desta figura tributária” (expressão retirada da Proposta de Lei acima identificada) – i.e., a utilização do veículo, com o seu potencial para causar custos ao ambiente e à rede viária –, e a realidade concreta: o proprietário, que suporta o imposto, não é quem detém o potencial de utilização da viatura correspondente.
  • Na maior parte destes casos, pouco haverá a fazer: conforme se referiu, poucos indicadores permitirão um controlo tão eficaz, por parte da AT, quanto a propriedade.
  • não apenas isso: se a AT souber – ou dever sabê-lo – que o proprietário, por força do contrato que celebrou, está até impedido de utilizar o veículo, uma vez que atribuiu o direito ao seu gozo exclusivo à tal terceira entidade.
  • No fundo: de que o proprietário não teve, não tem, e jamais terá – enquanto o contrato vigorar – o potencial de utilização daquele veículo, que cabe, assim, exclusivamente, a um terceiro, terceiro esse que, de resto, está perfeitamente identificado perante a AT e demais entidades públicas.
  • Não apenas por força do registo, junto da Conservatória do Registo Automóvel, da existência de um contrato de locação financeira, mas também em virtude do dever que recai sobre as entidades locadoras, nos termos do artigo 19.º do Código do IUC, de “fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados” (cfr. artigo 19.º do Código do IUC) – de tal modo que não se afigura de qualquer complexidade a tarefa de, cumprindo o desígnio com que foi introduzido no ordenamento jurídico nacional, imputar-lhe a responsabilidade pela capacidade poluente do automóvel e, subsequentemente, pela sua tributação.
  • Nesses casos, pouco sentido fará, à luz da teleologia que perpassa este imposto, que seja o proprietário onerado com o dever de pagar o IUC.
  • E, conforme ensinou BAPTISTA MACHADO, “cessante ratione legis cessat eius dispositio” (“lá onde termina a razão de ser da lei, termina o seu alcance” – Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 186).
  • Não surpreende, por isso, que, em tais casos, o legislador se tenha afastado da regra geral da propriedade – i.e., da regra que faz coincidir o obrigado ao imposto com o proprietário da viatura –, em prol de uma maior aderência à substancialidade económica da situação.
  • I.e., tenha optado por deixar de parte o critério da propriedade jurídica – atribuindo relevo à mera circunstância da titularidade de uma viatura automóvel –, decidindo atender, ao invés – e, na opinião da Requerente, acertadamente –, à propriedade económica, i.e., ao “complexo de poderes de aproveitamento de um bem, que não são senão, fundamentalmente, os poderes integrantes do direito de propriedade, tal como foi reconhecido pelo ordenamento jurídico” (Saldanha Sanches, «O surgimento do conceito de propriedade económica no Direito Fiscal: a sua natureza e os seus limites (um caso particular no problema geral da relação entre Direito e Economia)», Os Limites do Planeamento Fiscal – Forma e Substância no Direito Fiscal Português, Internacional e Comunitário, Coimbra, 2006, p. 29 e seguintes).
  • Assim, depois de fixar a regra geral de que a obrigação de pagamento de imposto cabe “[a]os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”.
  • O que se explica, de resto, pelos motivos já adiantados: de tipicidade das situações em que o proprietário é também o utilizador, e de maior controlo associado à propriedade –, o legislador fiscal fez-lhes equivaler, logo de seguida, “os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”, reconhecendo, pois, que nem sempre os proprietários são os sujeitos passivos do IUC.
  • Nestes casos – de locação financeira, aquisição com reserva de propriedade, etc. –, o legislador optou, pois, e (na opinião da Requerente) bem, por onerar com a obrigação de imposto não os proprietários, mas os indivíduos a quem cabe o gozo (potencial de utilização) exclusivo dos automóveis: os locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade ou locatário com opção de compra. I.e., não os seus proprietários jurídicos, mas aqueles a quem compete a sua propriedade económica.
  • Algo que, de resto, está em conformidade com o pressuposto subjacente a este imposto, a que acima se referiu: a potencial capacidade de poluição associada à utilização do veículo automóvel sobre que incide a tributação.
  • Ora, de acordo com o n.º 2 do artigo 3.º do Código do IUC, a regra é muito simples: cabendo aos locatários o gozo exclusivo do veículo automóvel sobre o qual recai o contrato, cabe-lhes também a obrigação de pagar o imposto.
  • E esta regra é, salvo melhor opinião, a que se afigura mais consistente, justamente do ponto de vista da ratio da lei, a que acima se referiu: sabendo-se de antemão que o IUC visa imputar aos contribuintes a responsabilidade que lhes é assacada pelo potencial de utilização de veículos automóveis – no que respeita aos custos ambientais e viários que tal utilização acarreta – não pode o mesmo deixar de consistir encargo de quem efectivamente causa tais custos, que não há-de deixar de ser a pessoa a quem pertence o direito de utilizar o veículo em questão.

 

  1. Resposta

Na sua Resposta, a Requerida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, alega, em síntese:

  • (...) Tal como é sabido, é no texto da lei que deve ser procurada a resposta para qualquer problema; é este o ponto de partida do processo hermenêutico e também um seu limite, na medida em que não é possível considerar aqueles sentidos que não tenham «(...) “Na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.»
  • O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
  • Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei.
  • Tal resulta não apenas do aludido n.º1 do artigo 3.º do CIUC, mas também de outras normas consagradas no referido Código.
  • Nestes termos, e no mesmo sentido, estabelece o artigo 6.º do CIUC, sob a epígrafe “Facto Gerador e Exigibilidade”, no seu n.º 1, que: «O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.»
  • Da articulação entre o âmbito da incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objeto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por um período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto.
  • Por sua vez, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que «o imposto considera-se exigível no primeiro dia do período de tributação referido no n.º 2 do artigo 4.º».
  • Ou seja, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo (Cfr. artigos 4.º/2 e 6.º/3 do CIUC, artigo 10.º/1 do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis).
  • No mesmo sentido milita a solução legislativa adotada pelo legislador fiscal no artigo 3.º/2 do CIUC ao fazer coincidir as equiparações aí consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respetivo registo.
  • Na falta de tal registo, naturalmente, será o proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois a Requerida, tendo em conta a atual configuração do sistema jurídico, não terá que proceder à liquidação do imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos.
  • Nestes termos, a não atualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito ativo deste Imposto.
  • Tendo em vista a liquidação do IUC, a Requerida procede à consulta das bases de dados, quer do Instituto da Mobilidade dos Transportes Terrestres (IMTT), quer do Instituto de Registo e Notariado/Conservatória do Registo Automóvel (IRN), como forma de determinar os proprietários ou os locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra, sujeitos passivos do IUC à luz do disposto no artigo 3.o do CIUC, conjugado com o artigo 6.º do mesmo código.
  • Determinado o sujeito passivo de IUC em função das pessoas em nome das quais o veículo em causa se encontre registado junto da Conservatória do Registo Automóvel, a Requerida procede à liquidação do IUC relativamente a estas.
  • Após liquidar o IUC, vem o sujeito passivo em causa invocar com fundamento na celebração de contrato (que, veja-se, pode até ser de natureza meramente verbal) invocar que já não é proprietário do veículo ou que deu o veículo em locação financeira, mas não procedeu ao registo e que o sujeito passivo é outrem.
  • A aceitar-se a posição defendida pela Requerente (de que o artigo 3.º do CIUC nunca poderá ser interpretado no sentido de pretender tributar apenas quem conste do registo como proprietário, porquanto o registo é uma mera aparência da realidade), a Requerida teria de proceder à liquidação de IUC relativamente a esse outrem identificado pela pessoa constante do registo automóvel a quem havia primeiramente liquidado o IUC (ou não, uma vez que a este último lhe bastaria afastar a sua qualidade de sujeito passivo à data do facto tributário).
  • Por sua vez, após liquidar o IUC relativamente a esse outrem, este também poderia alegar e provar que entretanto já celebrou contrato de compra e venda, locação financeira, aluguer de longa duração, ou outro com um outro terceiro, mas que este não também não registou.
  • A Requerida teria então que voltar a liquidar o IUC contra esse outro (presumível) sujeito passivo
  • Colocando, inclusivamente, em causa, o prazo de caducidade do imposto.
  • E pondo em causa, inequivocamente, a segurança e a certeza jurídicas (na medida em que o instituto do registo automóvel deixaria de proporcionar a segurança e a certeza que constituem as suas finalidades principais), assim como o poder-dever de a Requerida liquidar impostos.
  • Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
  • Importa ainda demonstrar que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada.
  • E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
  • Note-se a este propósito desde logo que os casos taxativamente tipificados no artigo 3.º do CIUC, tanto no seu n.º 1, como no n.º 2, correspondem exatamente aos casos de registo automóvel obrigatório nos termos do Código do Registo Automóvel.
  • Com efeito, o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública.
  • Isto é, o IUC passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.
  • Neste sentido, atente-se ao teor dos debates parlamentares em torno da aprovação do DL 20/2008, de 31 de janeiro, dos quais resulta inequivocamente que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.
  • Com efeito, a aprovação do referido decreto-lei teve como objetivo estabelecer procedimentos tendentes a adaptar o registo automóvel ao novo regime de tributação, de molde a evitar os problemas existentes, nomeadamente, os relacionados com o facto de existirem muitos veículos não registados em nome do real proprietário.
  • E isto precisamente porque o novo regime de tributação do IUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública.
  • Porque o IUC passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.
  • À luz de tudo quanto até aqui se expôs e por força do disposto no artigo 3.º do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária constante da Conservatória do Registo Automóvel, o sujeito passivo do IUC.
  • Daí que todo o raciocínio propugnado pela Requerente se encontra eivado de erro, não sendo possível ilidir a presunção legal estabelecida.
  • Todavia, ainda que assim não se entenda – o que somente por mera hipótese académica se admite – e aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão.
  • Pois bem, tendo em vista tal ilisão veio a Requerente instruir o seu pedido de pronúncia arbitral com a junção cópias dos contratos de locação financeira (Cfr. amálgama documental denominada de “Documentos 7 a 9” junto à p.i.).
  • Pois bem, face ao alegado pela Requerente decorre naturalmente a seguinte questão: constituirão os contratos de locação financeira prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC?
  • Dito de outra forma: demonstrarão tais contratos que, à data dos factos geradores de IUC, os veículos em causa eram (ainda) objeto de locações financeiras celebradas pela Requerente?
  • A resposta não pode deixar de ser negativa pelas razões que passar-se-ão a elencar, pelo que desde já se impugnam para todos os efeitos legais os Documentos 7 a 9 juntos à p.i.
  • Tal como resulta clara e inequivocamente da amálgama documental denominada “Documentos 7 a 9”, o contrato de locação financeira respeitante ao veículo com a matrícula … teve o seu termo a 2011-03-31.
  • Isto significando que à data dos factos geradores de IUC aqui em causa (i.e., 2013, 2014 e 2015) já havia findado o referido contrato de locação financeira.
  • Portanto, nenhuma prova faz a Requerente quanto à efetiva opção de aquisição do veículo acabado de elencar no termo do contrato de locação, uma vez que se limitou a juntar mero contrato-promessa, ou seja, documento que apenas vale como declaração de intenção, mas inapto a comprovar a efetiva compra.
  • Recorde-se que é a Requerente quem afirma que «todos os actos de liquidação adicional de imposto assentam nos mesmos factos e, bem assim, nos mesmos fundamentos de direito», ou seja, de que «(...) todos eles pressupõem o mesmo entendimento jurídico-tributário: o de que na pendência dos respetivos contratos de locação financeira, a aqui Requerente, entidade locadora dos veículos em questão, é responsável pelo pagamento de IUC (...)» (cfr. artigos 3.o e 4.o da p.i.).
  • Acresce ainda que se concluísse estarmos perante um contrato de locação financeira outorgado pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.o do CIUC.
  • Efetivamente, importa recordar que a aplicação do artigo 3.º do CIUC deve ser conjugada com o disposto no artigo 19.º do mesmo código, no qual se estabelece que «para efeitos do artigo 3.º do presente código (...), ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados.»
  • Deste modo, a seguir-se a propugnada tese defendida pela Requerente quanto ao facto do artigo 3.º do CIUC consagrar uma presunção ilidível, então forçoso é concluir que o funcionamento daquele artigo (i.e., a ilisão da presunção) depende igualmente do cumprimento do estatuído no artigo 19.º do CIUC, conforme se retira o seu elemento literal («para efeitos do artigo 3.o do presente código (...)».
  • Por palavras mais simples, em matéria de locação financeira e para efeitos da ilisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores financeiros (como a Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º daquele código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto.
  • Ora, nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação, como aliás lhe competia, pelo que necessariamente terá de improceder a pretendida ilisão do artigo 3.o aqui em causa.
  • De facto, em matéria de locação financeira a Requerente só se poderia exonerar do imposto caso tivesse dado cumprimento à obrigação específica prevista naquela norma do CIUC.
  • Neste desiderato, isto é, não tendo a Requerente dado cumprimento àquela obrigação, forçoso é concluir que aquela é o sujeito passivo do imposto.
  • E não se alegue em desabono da (necessária) aplicação do artigo 19.º o facto desta norma carecer de uma pretensa regulamentação, pois que esta norma é auto-suficiente.
  • Efetivamente, o fornecimento de dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados não carece de qualquer formalidade legal, bastando para o seu cumprimento uma mera comunicação dirigida à Requerida.
  • Assim, não tendo a Requerente cumprido o ónus probatório que se lhe impunha e constatando-se agora o incumprimento da obrigação declarativa exigida pelo artigo 19.º do CIUC, duas consequências (intra e extraprocessuais) necessariamente se haverão de extrair do seu comportamento omisso:
  • Em primeiro lugar, a sua responsabilidade pelas custas arbitrais relativas ao presente pedido de pronúncia arbitral, dado que a falta do fornecimento dos dados deu inexoravelmente azo à emissão a parte das liquidações sub judice, nos termos melhor explanados em capítulo próprio.
  • E em segundo lugar, ao apuramento da sua responsabilidade em termos contra- ordenacionais à luz do artigo 117.º, conjugado com o artigo 26.º/4, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias, punível com coima de € 300,00 a 7.500,00 por cada um dos contratos de locação financeira.
  • A acrescer a tudo quanto acima foi exposto, cabe ainda referir que a ser aceite a interpretação veiculada pela Requerente, então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que tal interpretação traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade.
  •  Na ótica da Requerida, a interpretação defendida pela Requerente acarreta uma violação dos não menos importantes princípios da confiança, da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade.
  • Efetivamente, a interpretação proposta pela Requerente, uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registral em detrimento de uma realidade informal e insuscetível de um controlo mínimo por parte da Requerida, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.
  •  Paralelamente, a interpretação dada pela Requerente é ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, de que quer a Requerente quer a Requerida fazem parte.
  • Neste sentido, atente-se à exposição de motivos referente à Proposta de Lei n.º 118/X, ou seja, à proposta de reforma global da tributação automóvel:
  • «A presente proposta de lei procede à reforma global da tributação automóvel portuguesa, aprovando o Código do Imposto sobre Veículos (ISV) e o Código do Imposto Único de Circulação (IUC) e abolindo, ao mesmo tempo, o imposto automóvel, o imposto municipal sobre veículos, o imposto de circulação e o imposto de camionagem.
  • Empreende-se, assim, pela primeira vez, uma reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis, figuras marcadas ao longo do tempo por um relativo abandono, disciplinadas por textos legais sem sistemática segura, nem princípio ordenador evidente.
  • Visa-se, também, com esta reforma o aprofundamento do progresso que, nos últimos tempos, se tem feito ao nível da Administração tributária, particularmente no que respeita à gestão de um sistema de informação completo, organizado e fiável. Passando a tributação automóvel a formar um todo coerente, importa eliminar custos administrativos e de cumprimento, apostando na prevenção e controlo das situações de abuso e incumprimento
  • Paralelamente, a interpretação dada pela Requerente é ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, de que quer a Requerente quer a Requerida fazem parte.
  • Ora, a posição defendida pela Requerente é um entendimento que está nas antípodas daquele princípio e da própria reforma da tributação automóvel na medida em que, ao pretender desconsiderar a realidade registral, uma realidade que constitui a pedra angular na qual assenta todo o edifício do IUC, gera para a Requerida, e em última instância para o Estado Português, custos administrativos adicionais, entorpecimento do desempenho dos seus serviços, ausência de controlo do tributo e inutilidade dos sistemas de informação registral.
  • Finalmente, a argumentação veiculada pela Requerente representa uma violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade a Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade (v.g., o registo automóvel, pedido de apreensão de documentos e pedido de cancelamento de matrículas), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo.

 

  1. Reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações

Com a concordância das Partes, o Tribunal determinou a dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

Foram apresentadas alegações escritas.

 

  1. Alegações da requerente

Diz a Requerente nas suas alegações, com relevância para a decisão da causa:

  • Tendo sido revogado, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT, ou Requerida), nos termos e para os efeitos do artigo 13.° do RJAT, o ato de liquidação de IUC referente ao veículo com a matrícula …, no valor global de € 854,39, discute- se agora a legalidade de 5 (cinco) atos de liquidação de IUC, de 2 (dois) dos veículos melhor identificados no Anexo A do pedido de pronúncia arbitral.
  • Note-se, porém, que o único elemento que permite aquilatar da revogação da liquidação referente ao veículo de matrícula … é um requerimento junto aos autos pela Requerida, no qual manifesta a intenção de revogar a liquidação em causa. Nessa medida, não tendo a AT provado que procedeu à revogação de tal liquidação, deverá este douto Tribunal considerar que tal não ocorreu, anulando-a e relevando este facto para efeitos de custas.
  • Quanto aos restantes atos de liquidação, reconhece a Requerente que tem razão a AT no que alega nos artigos 82.° e 83.° da sua resposta: o contrato de locação financeira referente ao veículo com a matrícula … já se encontrava findo à data da ocorrência do facto gerador do imposto ora em discussão. Nessa medida, reconhecendo a Requerente que apenas por lapso impugnou, na presente sede, as liquidações referentes a tal veículo (com os números 2013…, 2014… e 2015…, vem, relativamente às mesmas — mas tão só quanto a estas — desistir do pedido.
  • Quanto à questão de saber quem deve ser, à luz do artigo 3.° do Código do IUC, o sujeito passivo desse Imposto, a jurisprudência arbitral produzida sobre a matéria é uniforme e perentória no sentido de que o artigo 3.° do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível e que, como tal, durante a vigência de um contrato de locação financeira, será́ o locatário o sujeito passivo do imposto, ainda que o respectivo contrato não se encontre registado: vide, por todos, a decisão arbitral proferida nos autos do processo 73/2014-T (Árbitro: José António Jesus dos Anjos), cujas passagens mais relevantes para o caso em apreço se toma a liberdade de reproduzir:

Assim sendo, como é, não dispondo o locador por imposição legal e contratual do potencial de utilização do veiculo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, reafirmamos a conclusão a que já tínhamos chegado de que, em nosso entender, manda a ratio legis do CIUC que nos termos do referido n°2 do artigo 3° deste Código seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, urna vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes. (...)"

E continua: "aqui chegados, somos de opinião que se na data da ocorrência do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira que tem como objecto um automóvel, sujeito passivo do imposto não é o locador mas sim, à luz do nº 2 do artigo 3° do CIUC, o locatário, o que, a nosso ver, faz todo o sentido, dado ser este que tem o gozo do veículo e, como tal, o inerente potencial poluidor".

 

  • E não se diga que só será assim se a locação financeira estiver registada junto da Conservatória do Registo Automóvel: aquela decisão refere ainda que a responsabilidade pelo pagamento do imposto é do locatário "independentemente do registo do direito de propriedade permanecer em nome do locador".
  • Importa também salientar que, ao contrário do que argumenta a AT na sua resposta, a interpretação preconizada pela Requerente e tantas vezes sindicada pelo douto Tribunal Arbitral não viola, de qualquer modo, a Constituição da República Portuguesa.
  • Também quanto a esta matéria já se pronunciou unanimemente a jurisprudência arbitral. A título meramente exemplificativo, veja-se o que foi decidido no âmbito do Processo n.° 372/2015-T (Árbitra: Maria do Rosário Anjos):

"21. Assim, também não colhe a alegação da Requerida a propósito da interpretação defendida pela Requerente traduzir uma leitura enviesada da lei e assentar numa interpretação contra legem, se mostra contrária à Constituição.

Ora, por tudo o que se deixa exposto supra, resulta claro que o tribunal arbitral não acompanha a Requerida nesta alegação. Importará, ainda assim, acrescentar a todos os argumentos já expostos, um último extraído da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Assim, refira-se que, contrariamente ao alegado pela Requerida, a consideração de que o disposto no art. 3.°, n.° 1, do CIUC consagra uma presunção ilidível representa a melhor interpretação e a mais conforme à Constituição, conforme resulta do acórdão do TC com o n.° 348/97, de 29.4.1997, posição reiterada no acórdão n.° 311/2003, de 28.4.2003, os quais declaram a inconstitucionalidade do "estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção juris et de jure  já que "veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria coletável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária". Nesta conformidade, não se vislumbra a alegação da Requerida possa ter acolhimento."

  • Tudo o que a Requerente tem vido a arguir já foi, também, reconhecido pela própria Requerida, no âmbito de outros processos, em tudo idênticos ao aqui em apreço.
  • Com efeito, nos autos do processo arbitral n.° 129/2014-T, no qual estava em causa um litígio em tudo idêntico ao presente, a AT veio requerer a inutilidade superveniente da lide por ter revogado todos os atos de liquidação de IUC.
  • E revogou-os porque, conforme a Nota Jurídica da Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso, não lhe assistia razão:

 “Assim, e encontrando-se devidamente averbados os respectivos locatários, as liquidações ora  sindicadas, i.e., referentes aos anos de 2010 a 2012, deveriam ter sido emitidas ern nome dos locatários, tal como dispõe o número 2 do artigo 3.° do CIUG e não em nome do proprietário, como - efectivamente o foram ao abrigo do número 1 do artigo 3.º do ClUC”.

  • É, aqui, de realçar o facto de a própria AT ter assumido que, mesmo nos casos em que os locatários se encontram devidamente "averbados" no sistema, a referida insuficiência de meios (também referida pela Chefe de Finanças) conduz a que as liquidações sejam emitidas em nome do proprietário, como foram no caso em apreço., i.e., em nome da Requerente.
  • Ora, considerando que à data em que o IUC seria devido, os veículos a que se referem as liquidações ainda em causa nos presentes autos, se encontravam abrangidos por contratos de leasing, nunca poderá o Douto Tribunal Arbitral deixar de considerar que o sujeito passivo do imposto em causa será o respectivo locatário.
  • E não se diga que a mera apresentação, em sede arbitral, de cópia dos contratos de locação financeira celebrados não é suficiente para ilidir a presunção constante do artigo 3.° do Código do IUC.
  • Isto porque a vigência e a validade dos contratos em causa, juntos pela Requerente com o seu pedido de pronúncia arbitral, nunca foi posta em causa pela Requerida, uma vez que esta não contestou nem impugnou, a qualquer momento, qualquer aspecto, material ou formal, dos documentos em questão.
  • Note-se que, no que concerne a "impugnar documentos", a Requerida refere, no artigo 81.° da sua resposta, que "se impugnam para todos os efeitos legais os Documentos 7 a 9 juntos à pi". No entanto, tal referência a impugnação de documentos, de nada serve, pois não especifica a que impugnação se refere. O que queria a Requerida impugnar? A veracidade dos documentos? A veracidade das assinaturas apostas aos mesmos? A veracidade do seu conteúdo? Na falta de referência, a Requerida, quanto aos documentos em causa, nada impugnou.
  • Com efeito, a Requerida não impugnou nem a letra, nem a assinatura, nem a reprodução mecânica do documento nos termos do artigo 444.° do Código de Processo Civil. Não arguiu, igualmente, a falta de autenticidade do documento e nem sequer a sua falsidade, nos termos do artigo 445.° do mesmo Código.
  • Ou seja, não impugnou nem a genuinidade dos documentos nem pretendeu sequer ilidir a sua autenticidade (caso se tratasse de documentos autênticos) ou força probatória.
  • Ou seja, de acordo com as normas legais aplicáveis, o conteúdo dos documentos em causa ter-se-á de considerar, necessariamente, verdadeiro, por não descredibilizado nem impugnado, ficando assim provado que o veículo relativamente ao qual incidem as liquidações de IUC ainda em apreço se encontrava à data do respectivo facto gerador, sujeito a um contrato de locação financeira.
  • E mais se diga que a validade e eficácia de tais contratos não é prejudicada pela circunstância de poderem não ter sido devidamente registados na Conservatória do Registo Automóvel competente. Isto porque, ao abrigo do artigo 7.° do Código do Registo Predial (subsidiariamente aplicável ao Registo Automóvel por remissão do artigo 29.° do Decreto-Lei n.° 54/75, de 12 de Fevereiro), o registo deste tipo de contratos é meramente declarativo, não constitutivo, apenas dando origem a uma presunção de que os direitos existem nos termos ern que se encontram inscritos, sujeita a prova em contrário.
  • Na resposta apresentada pela AT, vem a mesma afirmar que a Recorrente não terá cumprido, relativamente aos veículos em causa, a obrigação acessória que sobre ela impendia, de comunicar à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativamente à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados e que, tendo incumprido tal obrigação, forçoso seria concluir que a Requerente seria o sujeito passivo do respectivo IUC.

 

  1. ALEGAÇÕES DA REQUERIDA

Por sua vez, a Requerida apresentou também alegações escritas, nas quais contra-alegou o seguinte:

  • A Requerente em momento algum deu cumprimento à obrigação de comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC. Ou seja, a Requerente não cumpriu o dever informativo que proporcionaria à Requerida o conhecimento da existência dos pretensos contratos de locação financeira, uma vez que, como também se disse naquele articulado, o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e do Notariado, sendo certo que este não lhe transmitiu dados suscetíveis de revelar a existência de tais contratos.
  • Consequentemente, recaía sobre a Requerente a prova do cumprimento desse dever de informação, pois que, tratando-se de um facto negativo, tal ónus transfere-se da Requerida para a Requerente.
  • Ora, sucede que no caso vertente a Requerente não demonstrou, como lhe incumbia, o cumprimento daquele dever como pretende fazer crer.
  • Portanto, ao não ter procedido com o zelo que lhe era exigível levou inevitavelmente a Requerida a seguir a informação registal que lhe foi fornecida por quem de direito, ou seja, o Instituto dos Registos e do Notariado, titular dos dados do registo automóvel.
  • Circunstância que não poderá deixar de ser levada em linha de conta na determinação da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais decorrentes deste processo. Neste sentido, veja-se a decisão proferida no processo que, sob o n.º 742/2016-T, correu termos no CAAD.

 

II. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído em 28-03-2017, tendo sido o Árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, cumpridas as respetivas formalidades legais e regulamentares (artigos 11º, n-º 1, als. a) e b) do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD), e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas.

A cumulação de pedidos é admissível ao abrigo do art. 2º, nº 1 do RJAT.

Não foram identificadas nulidades no processo.

 

 

 

III. DESISTÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO

 

Nas suas alegações, a Requerente declara que desiste do pedido no que diz respeito às liquidações notificadas através dos documentos 2013…, 2014… e 2015…, por não existirem elementos que a sustentem, declarando que foi devida a lapso inicial a inclusão das mesmas no âmbito do pedido.

Assim, em vista da liberdade de desistência do pedido, total ou parcial, que vigora no direito processual, nos termos do art. 283º, nº 1 do Código do Processo Civil, aplicável ao processo arbitral tributário ex vi do art. 29º, nº 1, al. e) do RJAT, homologa-se a desistência parcial do pedido.

 

IV. QUESTÕES A DECIDIR

A questão a apreciar e a decidir é a da incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação liquidado nos casos em apreço.

A questão pode subdividir-se em duas, a fim de se organizar a fundamentação de modo a cobrir o leque de argumentos apresentados pelas Partes:

A primeira questão será a de definir, em abstrato, quem é sujeito passivo do imposto na vigência de um contrato de locação financeira.

A segunda será a questão de saber que condições formais é necessário verificarem-se em concreto para que se opere a translação da sujeição passiva do imposto do proprietário para o locatário do veículo e se, nos casos concretos em apreço, tais condições se verificam.

 

V – FACTOS PROVADOS

São os seguintes os factos provados considerados relevantes para a decisão da causa:

1º: A Requerente foi notificada das liquidações de IUC:

Nº da liquidação

Matrícula

Ano

Montante

2013…

2013

148,04

2014…

2014

155,33

2015…

2015

854,39

 

2º: As liquidações de IUC referiam-se a veículos cuja propriedade se encontrava registada em nome da Requerente à data dos factos tributários;

3º: A Requerente celebrou, na qualidade de locadora, contratos de locação financeira de todos os veículos sobre os quais incidem as liquidações impugnadas;

5º: O contrato de locação financeira respeitante ao veículo com a matrícula … teve o seu termo em 2011-03-31;

6º: As liquidações de IUC referentes a este veículo referem-se aos anos de 2013, 2014 e 2015;

Os factos considerados provados foram-no com base nos documentos juntos ao processo.

Considera-se como não provado:

1º : que tenha sido revogada a liquidação nº  2015…, referente ao veículo com  a matrícula …, referente ao ano 2015, no valor de 854,39 euros, uma vez que o ato de revogação não consta do processo administrativo nem nenhuma prova dessa revogação foi trazida ao processo. Com efeito, o único elemento de prova de que o Tribunal dispõe em relação à revogação da liquidação indicada é um requerimento da Requerida junto aos autos em 10-12-2015, em que se lê: “A Requerida vai proceder à revogação da liquidação de IUC atinente ao veículo com a matrícula …, bem como aos respetivos juros.” Este documento, que contém apenas uma declaração de intenção, não pode ser considerado prova de que o referido ato foi revogado.

2º: Que a Requerente tenha comunicado a celebração dos contratos de locação financeira em causa, ao abrigo do artigo 19º do CIUC (entretanto revogado mas que ainda vigorava à data dos factos relevantes).

Não existem outros factos dados como provados ou não provados com relevância para a decisão da causa.

 

VI – FUNDAMENTAÇÃO

  1. Determinação, em abstrato, da incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação na vigência de um contrato de locação financeira

A primeira questão que cabe dilucidar, na perspetiva de acompanhar a argumentação das Partes, é a que respeita à determinação, em abstrato, da incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação em caso de vigência de um contrato de locação financeira do veículo sobre o qual incide a tributação.

Sobre esta questão existe já uma jurisprudência arbitral considerável que unanimemente considera que, quando, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigorar um contrato de locação financeira, o sujeito passivo do imposto não é o proprietário do veículo mas sim, à luz do nº 2 do artigo 3º do CIUC, o locatário do mesmo (vd. as decisões arbitrais proferidas nos processos nº 14/2013-T, de 15-10-2013; nº 294/2013-T, de 2014-06-06; nº 775/2014-T de 26-11-2015; nº 136/2014-T, de 14-07-2014; nº 137/2014-T, de 2014-10-21; n.º 232/2014-T, de 09-12-2014; nº 191/2015-T de 26-10-2015; e nº 169/2015-T de 30-09-2015).

Por nossa parte, é também esta a posição que subscrevemos, pelas razões que sumariamente passamos a expor.

O artigo 3º do Código do CIUC tem a seguinte redação:

Artigo 3.º

Incidência subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

3 –(…)

Para a questão que ora nos ocupa, releva a interpretação do nº 2 do preceito, nomeadamente a determinação do sentido da equiparação que o legislador aí realiza. Dada a inserção sistemática da disposição legal, parece-nos isento de qualquer dúvida que o mesmo se refere à incidência subjetiva do imposto. E sendo assim, o sentido da norma é o de que os “locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” são equiparados a proprietários para efeitos de incidência subjetiva do imposto, ie para efeitos de determinar quem é sujeito passivo de imposto.

A sujeição subjetiva a imposto dá-se a título de contribuinte direto, de substituto ou de responsável tributário por dívida de terceiro, de acordo com o artigo 18º, nº 3 da Lei Geral Tributária (LGT).

No caso do nº 2 do artigo 3º, nada se encontrando na lei que nos permita falar de uma situação de substituição tributária ou de responsabilidade por dívida de terceiro, há que concluir que os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, e os outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação são sujeitos passivos do imposto a título de contribuintes diretos. Neste sentido indica claramente a própria literalidade da norma, quando equipara estes titulares ao proprietário.

E no mesmo sentido pende ainda a ratio do preceito, já que as situações de locatário financeiro, de adquirente com reserva de propriedade e de titular de direito de opção de compra por força do contrato de locação são situações jurídicas cujo conteúdo substancial, nomeadamente em termos dos poderes que cabem aos titulares, se aproxima muito do que é próprio do direito de propriedade.

Poderia, finalmente, questionar-se se o legislador quis estabelecer uma sujeição passiva solidária, nos termos do artigo 21º da LGT.

Quanto a este aspeto acompanhamos a decisão ditada no processo 232/2014-T, de 09-12-2014: “Não sendo questão de solução linear, podendo elaborar-se argumentos quer num quer noutro dos possíveis sentidos de resposta, entende-se que a resposta a dar deverá ser positiva, ou seja, que no caso de existir um “equiparado” a proprietário, a sujeição deste (do proprietário) ver-se-á afastada, sendo apenas o “equiparado” sujeito passivo do imposto.”

E decidimo-nos por esta interpretação porque, não se encontrando nas normas em causa qualquer elemento que indique nesse sentido, e sendo a solidariedade passiva tributária uma situação excecional, não vemos que haja nas situações em causa nenhuma razão para o legislador a ter querido estabelecer. Mais concretamente, julgamos, pelas razões atrás já mencionadas, que, sendo a posição do locatário financeiro substancialmente equivalente à do proprietário, e ficando este privado de todos os poderes que integram a propriedade, só em relação ao locatário se verificam substancialmente os pressupostos da tributação.

Sendo assim, concluímos que, na vigência de um contrato de locação financeira, o único sujeito passivo do imposto é o locatário, e não o proprietário.

Vejamos seguidamente a segunda questão, relativa às condições formais de que, em concreto, depende a translação da posição de sujeito passivo do proprietário para o locatário.

  1. Existência de condições formais para que se verifique, em concreto, a translação da incidência subjetiva do proprietário para o locatário do veículo.

Antes de mais, cabe ressalvar que, ao examinar-se a questão da translação da incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para o respetivo locatário, não está em causa qualquer ilisão de qualquer espécie de presunção.

Ao passo que, na situação de venda do veículo, quando não seja alterado o registo automóvel, a definição da incidência subjetiva se defronta com duas presunções, a constante do próprio art. 3º, nº 1 do CIUC e a do registo automóvel, ambas no sentido de que o proprietário do veículo é a pessoa em nome da qual o mesmo se encontra registado, no caso de locação do veículo, nenhuma presunção é chamada à controvérsia.

Com efeito, não se põe em causa que o proprietário do veículo seja a pessoa em nome da qual o mesmo se encontra registado, pelo que se torna desnecessária a ilisão da presunção do registo nesse sentido.

Discute-se, sim, apenas, o que é necessário para que seja o locatário do veículo e não o seu proprietário o sujeito passivo do imposto, questão que não tem que ver com nenhuma presunção.

Para que se dê a translação da incidência passiva do imposto do proprietário para o locatário do veículo, nos termos do art. 3º, nº 2 é necessário, antes de mais, que esteja em vigor um contrato de locação financeira válido no momento da verificação do facto tributário.

Ora, esta questão não chega a ser suscitada pelas Partes, e designadamente pela Requerida, que seria a quem competiria suscitá-la.

A Requerente apresenta cópias dos contratos de locação financeira. A Requerida não questiona ou impugna nem a validade formal dos contratos nem o seu conteúdo, assim como também não questiona a situação relativa à respetiva vigência.

A Requerida anuncia, é certo, uma intenção de impugnar o valor probatório dos contratos, dizendo: “Dito de outra forma: demonstrarão tais contratos que, à data dos factos geradores de IUC, os veículos em causa eram (ainda) objeto de locações financeiras celebradas pela Requerente? A resposta não pode deixar de ser negativa pelas razões que se passarão a elencar”.

A verdade, porém, é que a Requerida não explicita minimamente essas razões que promete elencar.

Ora, o Tribunal, por força do art. 608.º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, aplicável no processo arbitral tributário por força do art. 29º, nº 1, al. e) do RJAT, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, o que não é o caso.

Por conseguinte, não são questões que caibam no poder de cognição e decisão do Tribunal, nos autos, nem a existência, nem a validade formal ou substancial, nem a vigência dos contratos de locação financeira em que a Requerente baseia a sua pretensão.

A Requerida alega, isso sim, que os contratos de locação não são atendíveis para efeitos de determinar a incidência passiva do imposto porque não foi efetuada a comunicação dos mesmos à Autoridade Tributária nos termos do art. 19º do CIUC e, por outro lado, não foi efetuado o respetivo registo.

Vejamos:

O contrato de locação financeira de veículo automóvel está sujeito a registo obrigatório, nos termos do art. 5º, nº 1, al. d) e nº 2 do Código do Registo Automóvel (DL 54/75, de 12/2).

No entanto, como é sabido, o registo não tem eficácia constitutiva, destinando-se a dar publicidade ao acto registado, funcionando como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (artigos 1º, nº 1 e 7º, do Cod.Reg.Pred, e 350º, nº 2, do C. Civil) bem como da respetiva titularidade.

Por outro lado, também no Código do IUC nenhuma disposição se encontra que faça depender a sujeição a imposto do locatário financeiro do registo do contrato respetivo.

Embora a Requerida se ocupe longamente a demonstrar que o sistema de gestão do IUC está assente no registo automóvel, o que se aceita, a verdade é que a Requerida não aponta nenhuma disposição legal, dentro do CIUC ou fora dele, da qual se possa extrair com segurança a norma: “não existindo registo, não existe sujeição passiva”.

Mas há ainda outro dado legal que faz pender o juízo, quanto a nós de modo decisivo, no sentido de que o registo do contrato de locação financeira não pode ser condição para que se dê a translação da sujeição passiva do proprietário para o locatário. É que o sujeito da obrigação de registo, no caso de locação financeira, é o locatário, e apenas o locatário, nos termos do artigo 8º-B do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do Código do Registo Automóvel.

Ora, não é defensável que o locador veja recair sobre si a sujeição a imposto, que em princípio não lhe caberia por força do art. 3º nº2 do CIUC, por não ter adotado uma conduta à qual não está obrigado.

Assim sendo, há que concluir que o locatário financeiro de veículo automóvel é sujeito passivo do IUC independentemente de o contrato se encontrar ou não registado. Como tal, a inexistência de registo nos casos dos autos não é impeditiva de que a incidência subjetiva do IUC recaia sobre o locatário.

Quanto ao facto de a Requerente não ter comunicado os contratos de locação financeira à Autoridade Tributária, também não o vemos como impeditivo de que a incidência subjetiva do imposto recaia sobre o locatário.

Sobre esta questão, mantemos a posição que já adotámos em decisão anterior, no processo nº 655/2015-T, em que expusemos a nossa posição nos seguintes termos:

“(...) [C]onsideramos que, sendo a incidência subjetiva um elemento da obrigação tributária que não pode deixar de ser perfeitamente delimitado pela lei (princípio da legalidade tributária, de acordo com o artigo 103º n. 2 da Constituição da República Portuguesa), e não se encontrando na lei qualquer elemento que inequivocamente nos leve a concluir que o legislador quis fazer depender do cumprimento da obrigação prevista no entretanto revogado artigo 19º a translação da incidência subjetiva do proprietário para o locatário, e configurando-se esta obrigação como uma obrigação acessória, não é legítimo considerar que o cumprimento ou incumprimento desta obrigação acessória era determinante da incidência subjetiva do imposto

Acompanhamos, quanto a este aspeto, o que já foi a doutrina seguida em várias decisões arbitrais, como por exemplo a proferida no processo nº 191/2015-T de 26-10-2015, na qual se diz:

“Para estes casos, o legislador instituiu uma regra explícita, no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, segundo a qual, na vigência do contrato de locação, são os locatários os sujeitos passivos de imposto. (…) Perguntar-se-á ainda: e quanto à comunicação prevista no artigo 19.º do CIUC? O seu incumprimento contende com a conclusão constante do parágrafo anterior quanto ao responsável pelo pagamento do imposto? A resposta é, em nosso entender, negativa. Efetivamente, a consequência que decorre do incumprimento dessa obrigação acessória é aquela a que assistimos: a AT emite as notas de liquidação em nome do proprietário do veículo, por desconhecer que foi celebrado o contrato de locação financeira. Contudo, isso não impede esse mesmo proprietário / locador de fazer prova da celebração do contrato e do prazo pelo qual o mesmo foi celebrado e, assim, obstar ao pagamento do imposto.”

E um pouco mais à frente, prossegue a mesma decisão:

“Importa ainda não esquecer que a falta da Requerente é passível de responsabilidade contra-ordenacional à luz do artigo 117.º, conjugado com o artigo 26.º n.º 4, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, punível com coima de € 300,00 a € 7.500,00 por cada um dos contratos de locação financeira. Essa é a forma encontrada pelo legislador para penalizar quem incumpre com o dever informativo para com a AT.”

No mesmo sentido se decantou a decisão prolatada no processo n.º 232/2014-T, de 09-12-2014, em que se escreveu:

“Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância de a Requerente poder não ter dado o devido cumprimento ao disposto no atrás referido artigo 19.º do CIUC. Com efeito – e como é bom de ver – a sanção pelo incumprimento de qualquer obrigação que a esse respeito caiba ou coubesse à requerente, ter-se-ia sempre que procurar em sede do Regime das Infrações Tributárias, e não, naturalmente, na sujeição a um imposto”.

No mesmo sentido ainda se pronunciou o tribunal arbitral no processo nº 136/2014-T de 14 -07- 2014, em que se lê:

 “A incidência subjectiva do IUC está estabelecida, em todos os seus elementos, no art. 3º do CIUC, e será através da aplicação deste normativo que será apurado o sujeito passivo, não relevando para efeitos da incidência do imposto a falta de cumprimento da mencionada obrigação acessória.”

É esta a posição que também defendemos. O incumprimento de uma obrigação acessória não pode determinar a incidência subjetiva do imposto, estritamente sujeita como está ao princípio da legalidade tributária, a não ser que tal se encontre claramente determinado na lei.”

Se o legislador quisesse que a translação da posição de sujeito passivo do proprietário para o locatário do veículo ficasse dependente da comunicação do contrato, por parte do locador, à Autoridade Tributária, deveria tê-lo dito. Isto porque a incidência subjetiva do imposto é um dos elementos do imposto abrangidos no âmbito do princípio da legalidade tributária, e portanto deve ser possível determiná-la com segurança a partir do texto da lei.

Por conseguinte, não pode considerar-se que a falta de comunicação do contrato, por parte do locador, à Autoridade Tributária, nos termos do revogado art. 19º do CIUC, implique que o locador se torne sujeito passivo do imposto, em vez do locatário.

E assim, há que concluir que nem o registo nem a comunicação nos termos do art. 19º do CIUC (entretanto revogado) são condição para que se opere a translação da posição de sujeito passivo do proprietário para o locatário do veículo.

Nestes ternos, não tendo sido posta em causa nem a validade nem a vigência dos contratos de locação financeira, há que concluir que são os locatários dos veículos os sujeitos passivos do imposto e não o proprietário dos mesmos.

 

VII. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, julga-se:

1) Procedente o pedido de anulação das liquidações de Imposto Único de Circulação notificadas à Requerente através dos documentos nº 2013…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2013; nº 2014…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2014; e nº 2015…, referente ao veículo com a matrícula … e ao ano 2015;

2) Procedente o pedido de condenação da Requerida ao reembolso das quantias pagas pela Requerente referentes ao imposto liquidado e ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos do art. 43º da Lei Geral Tributária.

 

Valor da utilidade económica do processo

Fixa-se o valor da utilidade económica do processo em 1.263,17 euros.

 

Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 306,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

As custas são divididas nos seguintes montantes, tendo em conta os termos do art. 527, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil:

  1. 25,50 euros a cargo da Requerente, relativo aos pedidos objeto de desistência;
  2. 280,50 euros a cargo da Requerida, relativo aos restantes pedidos.

Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às Partes.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 26 de outubro de 2017

 

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)