Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 685/2016-T
Data da decisão: 2017-09-30  IRC  
Valor do pedido: € 411.279,98
Tema: IRC - art. 51.º do CIRC; art. 63.º do TFUE - dupla tributação económica de dividendos - Acordo Euromediterrânico
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Cristina Aragão Seia e Fernando de Jesus Amado dos Santos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 17 de Novembro de 2016, A…, S.A., NIPC…, com sede na …, n.º…, …, …-… Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação n.º 2015…, de 14-05-2015, de IRC relativo ao exercício de 2013, e do acto do indeferimento da reclamação graciosa que apresentou tendo aquele como objecto, no valor de € 411.279,98.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que o acto de liquidação objecto da presente acção arbitral é ilegal, na parte relativa à tributação que incidiu sobre os dividendos recebidos das participações sociais detidas na sociedade com residência fiscal na Tunísia e na sociedade com residência fiscal no Líbano, no exercício de 2013, uma vez que os dividendos em apreço não puderam gozar das regras de eliminação da dupla tributação económica previstas na lei doméstica.

 

  1. No dia 18-11-2016, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 17-01-2017, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 01-02-2017.

 

  1. No dia 08-03-2017, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações pela Requerida.
  2. Tendo em conta o período de férias judiciais de verão e o disposto no art.º 17.º-A do RJAT, nos termos e para os efeitos do art.º 21.º/2 do RJAT, em 31-07-2017 prorrogou-se por dois meses o prazo para emissão e notificação da decisão, a que se refere o n.º 1 do mesmo artigo.

 

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Autora era em 2013 a sociedade dominante de um grupo de sociedades (o Grupo B…) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) previsto e regulado no artigo 69.º e ss. do Código do IRC.
  2. Durante o exercício de 2013, a Requerente deteve uma participação social na subsidiária na Tunísia – a C…– de 98,72%.
  3. A detenção da referida participação verificava-se desde 2000.
  4. Essa mesma participação rendeu-lhe, no ano de 2013, dividendos de €638.205,22.
  5. No ano fiscal em apreço – 2013 – aquela subsidiária apresentou um volume de negócios de 135 milhões dinares tunisinos (cerca de 67,1 milhões de Euros), e contava com 283 trabalhadores nos seus quadros.
  6. Relativamente ao exercício de 2013, a referida subsidiária na Tunísia, declarou para efeitos fiscais uma perda contabilística de 1.377.590,149 dinares tunisinos, e uma perda para efeitos fiscais de 241.461,764 dinares tunisinos, tendo apurado um valor de imposto a pagar de 289.651,672 dinares tunisinos.
  7. No mesmo exercício de 2013 a Requerente deteve também participações sociais na sua subsidiária no Líbano – a D... – que correspondiam a um total de 50,67% do respectivo capital, sendo 28,64% detido directamente, e 22,03% detido indirectamente, isto é, através de outras sociedades dominadas pela Autora.
  8. As participações referidas eram detidas pela Requerente, sensivelmente nas mesmas percentagens, desde 2007 e garantiram, no ano de 2013, um dividendo de €1.320.270,87.
  9. A subsidiária libanesa apresentou no ano fiscal de 2013 um volume de negócios de 169 milhões de libras libanesas (cerca de 90.4 milhões de Euros) e contava, à data, com 436 trabalhadores.
  10. Relativamente ao exercício de 2013, a referida subsidiária no Líbano, declarou para efeitos fiscais um lucro de 41.471.256.318 libras libanesas, das quais foram sujeitas a imposto 26.901.193.786 libras libanesas, tendo apurado um valor de imposto a pagar de 4.276.902.000 libras libanesas.
  11. As referidas subsidiárias tunisina e libanesa dedicavam-se, tal como a Requerente, à produção e comercialização de ….
  12. Tanto os dividendos distribuídos pela sociedade tunisina como pela sociedade libanesa foram sujeitos a tributação em Portugal à taxa normal de IRC, tendo por isso concorrido para a determinação do lucro tributável da Autora.
  13. A Requerente recebeu no total dividendos de € 17.808.476,09 em 2013, tendo beneficiado da eliminação da dupla tributação económica o montante de €15.850.00,00.
  14. A diferença entre os dividendos que beneficiaram da eliminação da dupla tributação económica e os dividendos totais recebidos pela A… nesse exercício, no montante de €1.958.476,09, corresponde aos dividendos recebidos das sociedades tunisina e libanesa.
  15. Em 30-05-2016, a Requerente apresentou pedido de reclamação graciosa do acto de liquidação de IRC n.º 2015…, de 14-05-2015, relativo ao período de tributação correspondente ao ano civil de 2013.
  16. Pelo Ofício n.º…, de 27-07-2016, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento do pedido de reclamação graciosa.
  17. Foi proferida decisão final de indeferimento, conforme despacho, de 18-08-2016, da Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes.
  18. Do despacho de indeferimento consta, para além do mais, o seguinte:
    1. «não estão preenchidos os requisitos para a Requerente beneficiar da aplicação do art.º 51.º do CIRC.», pois que «ao dispor nesses termos, a legislação nacional opõe-se, frontalmente, à aplicação do mesmo regime, quando a entidade que distribui os lucros seja residente num Estado terceiro.»;
    2. «fica mais clara a intenção do legislador [a]quando do alargamento do mesmo regime aos Estados da “EFTA”; Noruega, Islândia e Liechtenstein que teve lugar já em 2010 [...] quando acrescentou ainda, que nestes casos, só se aplica se o Estado em causa estiver vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia e desde que quer a entidade participante, quer a participada reúnam condições equiparáveis às estabelecidas no artigo 2.º da Directiva n.º 90/43 5/CEE [...] reforçando assim a ideia que o legislador quis impor cláusulas de salvaguarda de forma a restringir a aplicação deste regime mesmo a estes Estados, cuja aplicação está especificamente prevista na lei, e, incongruentemente, na perspetiva da Requerente, este mesmo regime deveria ser um regime completamente aberto a Estados terceiros, caso da Tunísia e do Líbano, sem previsão nem tipificação na lei fiscal portuguesa, mas com aplicação direta sem quaisquer cláusulas de salvaguarda ou restrições. [...]

Tão pouco se verificam os pressupostos para a aplicação ao caso em apreço do artigo 42.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), uma vez que nem a Tunísia nem o Líbano se incluem na estatuição da referida norma, que prevê a eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos por sociedades residentes nos países africanos de língua oficial portuguesa e na República Democrática de Timor-Leste.

Acresce ainda que nesta matéria a AT não goza de qualquer margem de liberdade ou oportunidade no exercício da sua competência fiscalizadora da conformidade da atuação dos contribuintes com a lei (artigo 133.º do CIRC) sendo que à data dos factos tributários os artigos 51.º do CIRC e 42.º do EBF regula em todos os aspetos aquilo que a AT deve fazer vinculando-a à luz de critérios exclusivamente de natureza fiscal em respeito pelos princípios fundamentais previstos no artigo 266.º n.º 2 da CRP e por força do princípio da legalidade consignado no artigo 55.º da LGT, cujos preceitos legais impõem aos órgãos e agentes administrativos uma atuação subordinada à Constituição e à lei.

Por conseguinte, ainda que por mera hipótese de raciocínio se pudesse admitir que na situação tributária em apreço estariam reunidas as circunstâncias típicas de uma “omissão legislativa” em matéria de eliminação da dupla tributação económica de lucros recebidos por uma sociedade portuguesa de sociedades por aquela participadas com residência fiscal na Tunísia e no Líbano, traduzida numa violação por parte do Estado de um dever geral, e como tal inespecífico, de legislar sobre essa matéria, o reconhecimento de um direito subjetivo à “A…” consubstanciado na dedução ao resultado líquido de IRC do valor dos dividendos em causa que o ordenamento jurídico-tributário português não contempla, não é sindicável quer nos procedimentos tributários inspetivos quer nos procedimentos tributários de revisão oficiosa, não cumprindo a esta UGC enquanto intérprete-aplicador da lei dirimir tal questão.»;

  1. «Em suma, à luz do quadro factual e legal à data vigente em sede de eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos decorrente dos artigos 51.º do CIRC e 42.º do EBF bem como da doutrina administrativa fixada no citado Parecer n.º 79/09, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, afigura-se que deve ser indeferida a presente reclamação graciosa apresentada pelo sujeito passivo “A…” com referência ao IRC do exercício de 2013».
  2. Por Ofício remetido “Via CTT”, a Requerente foi notificada a 19-08-2016 desta decisão final de indeferimento da reclamação graciosa.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Em especial, relativamente aos factos dados como provados nos pontos 6 e 10, teve-se em conta a documentação junta pela Requerente, com o seu Requerimento inicial e, subsequentemente, no decurso da presente acção arbitral.

A Requerida, pugnou pela insuficiência de prova de tais factos, essencialmente porquanto entende que não foi junto “qualquer documento emitido pelas respetivas autoridades fiscais desses países”, que se verifica “falta de correspondência entre o número de páginas dos documentos originais e a tradução com que surgiam em português (do inglês e do francês)”, e que não foi junta “tradução direta para o português, devidamente certificada e apostilada.”, bem como que aos “documentos particulares, por serem unilaterais, não pode senão ser reconhecido um valor probatório limitado”, pelo que, no seu entender, “meio idóneo para tal prova – da sujeição a imposto e da tributação efetiva dos lucros distribuídos pelas sociedades tunisina e libanesa – tem, necessariamente, que corresponder a documento emitido e certificado pelas autoridades fiscais dos respetivos países da residência dessas sociedades”.

A Requerente, por seu lado, sustenta, em suma, para além do entendimento de que a documentação por si junta comprova, devidamente, os referidos factos, que “nunca foi matéria controvertida para a AT”, e que se trata de “fundamentação a posteriori que a Autoridade Tributária e Aduaneira veio colocar em sede de Contestação”.

Relativamente a estes dois argumentos, diga-se, desde logo, que serão irrelevantes para a decisão da matéria de facto, onde o Tribunal está constituído na obrigação de se pronunciar sobre a prova ou não prova de todos os factos alegados pela partes, com relevância sob o prisma das várias soluções de Direito plausíveis, sendo que, na presente sede, a Requerente alegou – seguramente por entender pertinentes – os factos em questão, e a Requerida impugnou – tornando controvertidos – esses mesmos factos.

Já no que diz respeito à ocorrência – ou não – de fundamentação a posteriori, deverá ser questão a analisar em sede da apreciação jurídica da causa, sendo tal circunstância irrelevante sob o prisma do juízo da matéria de facto.

Não obstante o quanto vem de se referir, considera-se que a prova apresentada pela Requerente é suficiente para que o Tribunal possa concluir, com a segurança necessária, pela prova dos factos em causa.

Com efeito, ao contrário do que sustenta a Requerida, inexiste qualquer norma que imponha uma prova legal, pelo que vigora nesta matéria o princípio da liberdade de prova e da livre apreciação da mesma pelo Tribunal, sendo certo, por um lado, que a própria Requerida concede que a prova junta é “abstratamente admitida” (ponto 82 das alegações), e, por outro, que não se levantam quaisquer dúvidas fundadas sobre a idoneidade das traduções apresentadas pela Requerente.

Por outro lado, o entendimento da Requerida, segundo o qual “meio idóneo para tal prova (...) tem, necessariamente, que corresponder a documento emitido e certificado pelas autoridades fiscais dos respetivos países da residência dessas sociedades”, pressupõe a circunstância, indemonstrada, de ser possível em tempo útil, face aos ordenamentos jurídicos em questão e às práticas administrativas ali instituídas, a obtenção do tipo de documento postulado.

Deste modo, considera-se que a documentação apresentada pela Requerente, é suficiente, em concreto, para dar como provados os factos em causa, já que se reporta directamente a tais factos, tal como dados como provados.

A circunstância de tal documentação ter sido, ou não, objecto de confirmação junto das autoridades tributárias estrangeiras, ou de existir ou não possibilidade de confirmação, não deverá contender com o juízo de prova formulado.

Com efeito, e desde logo, tal juízo funda-se na convicção, fundamentada, do julgador, à luz de um juízo de normalidade.

Por outro, a confirmação junto das autoridades tributárias estrangeiras não é obrigatória, podendo a AT, face à prova apresentada pelo contribuinte, considerar suficientemente provada a sujeição a tributação efectiva, sendo que, a opção por procurar tal confirmação apenas se colocará se o contribuinte apresentar documentos que indiciem minimamente que aquela tributação ocorreu.

Por fim, e em todo caso, não se perdendo de vista que as dúvidas suscitadas pela Requerida se prendem com a forma, e não com o conteúdo da documentação em questão, se se viesse a verificar que a documentação apresentada era falsa, sempre subsistiria a possibilidade consagrada pelo artigo 696.º do Código de Processo Civil, de interposição de recurso de revisão, se “Se verifique a falsidade de documento (...) que possa(...) ter determinado a decisão a rever”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, designadamente o referido nos pontos 105. e 106. do Requerimento Inicial, que se haverá de aferir face aos pontos 6 e 10 da matéria de facto.

 

B. DO DIREITO

 

i. da matéria de excepção

 

            Começa a Requerida por arguir a excepção da incompetência material do tribunal arbitral para conhecer da pretensão jurídica formulada pela Requerente, arguindo ainda, com os mesmos fundamentos, a excepção da inidoneidade do meio processual, considerando que está em causa.

            Entende a Requerida que “a Requerente pretende obter o reconhecimento de um direito que, nos termos previstos na legislação em vigor no ordenamento jurídico nacional, não lhe assiste”, ou seja, que estará em causa “o reconhecimento de um direito subjetivo à “A…” consubstanciado na dedução ao resultado líquido de IRC do valor dos dividendos em causa”.

Daqui conclui a Requerida que “o pedido formulado pela Requerente encontra-se fora do âmbito material da arbitragem tributária e do âmbito de vinculação nos termos moldados pelo legislador” e que “o meio adequado para obter o reconhecimento de tal direito seria sempre a ação para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária prevista no artigo 145.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.

            Ao contrário do que pretende a Requerida, não está em causa, no presente processo, um “caso em que o contribuinte se encontra numa situação de facto em que se geram sucessivas relações semelhantes com a administração tributária e pretende definir o seu conteúdo não só quanto ao passado mas também quanto ao futuro.”, mas a apreciação da legalidade de um acto tributário de liquidação, o acto de liquidação n.º 2015…, de 14-05-2015, de IRC relativo ao exercício de 2013 da Requerente, e do acto do indeferimento da reclamação graciosa que apresentou tendo aquele como objecto

Como se referiu no Acórdão do TCA-Sul de 09-06-2016, proferido no processo 09156/15[1], “A lei não restringe os fundamentos na base dos quais é formulado o pedido de anulação das liquidações em causa, com vista à delimitação da competência material do tribunal arbitral. Donde resulta que a asserção contida na decisão em apreço da vigência de isenção fiscal que obsta à tributação em causa corresponde à aplicação do parâmetro de legalidade, tarefa que foi atribuída por lei (artigo 2.º, nº 2, do RJAT) aos tribunais arbitrais.”.

Deste modo, face ao disposto no artigo 2.º/1/a) do RJAT, é este Tribunal competente para o conhecimento da (i)legalidade do referida acto de liquidação n.º 2015…, de 14-05-2015, de IRC relativo ao exercício de 2013 da Requerente, e do acto do indeferimento da reclamação graciosa que apresentou tendo aquele como objecto, finalidade para a qual a presente acção é meio idóneo.

            Deve, assim, improceder as excepções em apreço.

 

*

            Alega ainda a Requerida a incompetência deste Tribunal para apreciação do peticionado nas alíneas iv) e v) do pedido arbitral, onde consta:

«(iv) ordene a correcção do lucro tributável determinado pela AT relativamente ao exercício de 2013 pela Autora a nível individual e consequente que por se apurar então um prejuízo fiscal, seja anulada a liquidação adicional de derrama estadual (€1.308,73) e derrama municipal (€23.154,36) determinada pela AT e respectivo reembolso das quantias pagas a esse título, acrescidas de juros indemnizatórios;

(v) bem como ordene a correcção do prejuízo fiscal determinado pela AT relativamente ao exercício de 2013 do grupo fiscal B… do qual a Autora é a Sociedade Dominante, com as demais devidas consequências legais.»

            Relativamente a esta matéria haverá que reconhecer razão à Requerida.

            Com efeito, na sequência do atrás referido, o objecto da presente acção arbitral é a apreciação da legalidade do acto de liquidação n.º 2015…, de 14-05-2015, de IRC relativo ao exercício de 2013 da Requerente, e do acto do indeferimento da reclamação graciosa que apresentou tendo aquele como objecto, devendo as consequências de tal declaração ser efectivadas, se necessário, em sede de execução da decisão que venha a ser proferida.

            Como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 28-04-2016, proferido no processo 09286/16, citado pela Requerida:

“Na falta de disposição legal que permita concluir em contrário, o âmbito do processo de impugnação judicial e dos processos arbitrais restringe-se às questões da legalidade dos actos dos tipos referidos no artigo 2.º que são abrangidos pela vinculação que foi feita na Portaria n.º 112-A/2011, não competindo aos tribunais arbitrais definir os termos em que devem ser executados julgados anulatórios que sejam proferidos.”.

            Deste modo deve proceder a excepção ora em apreço.

 

***

ii. do fundo da causa

 

            Antes de prosseguir para a apreciação do fundo da causa, cumpre, por se apresentar relevante face às posições processuais das partes, esclarecer alguns traços essenciais da presente relação material controvertida.

            Em causa no presente processo arbitral, como se viu, está a apreciação da legalidade do acto de autoliquidação n.º 2015…, de 14-05-2015, de IRC relativo ao exercício de 2013 da Requerente, e do acto do indeferimento da reclamação graciosa que teve aquele como objecto.

            Conforme resulta do artigo 2.º/1/a) do RJAT, acima citado, o tribunal arbitral é competente, em primeira linha, para apreciar a legalidade do acto de autoliquidação, sem cuja existência, na pendência da lide, faleceria a competência material para a intervenção daquele tribunal.

            Adicionalmente, e na sequência do que tem sido entendido nos tribunais judiciais tributários relativamente ao âmbito do processo de impugnação judicial, tem-se entendido pacificamente, que para além daquele acto de autoliquidação, o tribunal arbitral é competente para apreciar a legalidade dos actos de segundo e terceiros graus (reclamação graciosa, revisão oficiosa, recurso hierárquico), que se pronunciem sobre a legalidade do acto de autoliquidação, na medida de tal pronúncia[2].

            Deste modo, tratando-se de actos distintos, existentes, concomitantemente, à data da propositura e na pendência da presente acção arbitral, cumprirá apreciar a (i)legalidade de cada um dos referidos actos.

 

*

            Começando pela decisão do pedido de reclamação graciosa, está unicamente em causa saber se a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, entre o tratamento dos lucros quando estes são distribuídos por uma sociedade não residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes.

            Com efeito, a AT, no acto em causa, entendeu que não haveria qualquer incompatibilidade, pelo que a referida legislação não seria aplicável, uma vez que estão em causa sociedades residentes na Tunísia e no Líbano.

Atenta a profundidade e exaustão da análise efectuada, seguir-se-á, com a devida vénia, de muito perto o quanto se fundamentou no processo arbitral nº 577/2016-T do CAAD[3], a propósito desta questão[4], e que se transcreve de seguida:

“3.1.2.1.1.      Enquadramento

De acordo com a legislação portuguesa aplicável à liquidação que se questiona, de um modo geral, sempre que uma sociedade participa no capital de outra sociedade e, nesse contexto, beneficia de uma distribuição de lucros por parte da sociedade participada, esses lucros são incluídos na sua base tributária. Isto é, são considerados como fazendo parte dos rendimentos da sociedade que deles beneficia. A incorporação desses lucros no lucro tributável da sociedade beneficiária gera uma dupla tributação económica, uma vez que o mesmo lucro é tributado na esfera de duas pessoas jurídicas distintas. No sentido de obviar a esta dupla tributação e aos efeitos negativos que tem sobre a atividade económica o legislador fiscal criou alguns mecanismos.

            O mecanismo do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC, que a requerente pretende ver ser-lhe aplicado, elimina a dupla tributação económica ao permitir deduzir aos rendimentos incluídos na base tributável os lucros distribuídos, desde que sejam preenchidos vários requisitos. Exige para isso que (i) a sociedade que distribui os lucros tenha a sede e direção efetiva em Portugal ou num Estado da União Europeia (51.º, n.º 5), (ii) esteja sujeita a imposto sobre o rendimento; (iii) a sociedade beneficiária não se encontre abrangida pelo regime da transparência fiscal e (iv) detenha diretamente uma participação no capital da sociedade que distribui os lucros não inferior a 10%, tendo esta permanecido na titularidade da beneficiária, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da colocação à disposição dos lucros, ou se detida há menos tempo, desde que a participação seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período.

            O mecanismo descrito e de que a requerente pretende beneficiar, tal como resulta da letra da lei, pode apenas ser aplicado a sociedades que preencham os requisitos descritos, designadamente (i) o que concerne ao montante e duração da participação detida nas sociedades que distribuem os lucros, (ii) o relativo à sujeição a tributação das sociedades: B… (doravante sociedade tunisina) e E… (doravante sociedade libanesa)] e (iii) o respeitante ao facto de a Requerente não estar sujeita a transparência fiscal ─ a sociedade tunisina e a sociedade libanesa não têm residência em Portugal ou num Estado-Membro.

 

3.1.2.1.2.      Direito da União Europeia

Não obstante a limitação decorrente da letra da lei, é possível conceber que, por via do Direito da União Europeia, se possa alargar, no plano abstrato, sem cuidar de saber se os requisitos do 51.º do CIRC estarão ou não preenchidos, o âmbito de aplicação do mecanismo do artigo 51.º. do CIRC. Pois, como é sabido, apesar de só os Estados-Membros terem competência em matéria de impostos diretos, o Tribunal de Justiça (TJ) tem sustentado, através das suas decisões, que esses Estados devem exercer essa competência em conformidade com o direito da União Europeia[13]. Evitando assim, violações das cinco liberdades económicas fundamentais, designadamente: (i) a livre circulação de mercadorias (artigos 28.º e seguintes do TFUE); (ii) a livre circulação de trabalhadores (artigos 45.º e seguintes do TFUE); (iii) a liberdade de estabelecimento (artigo 49.º e seguintes do TFUE); (iv) a liberdade de prestação de serviços (artigo 56.º e seguintes do TFUE) e (v) a livre circulação de capital (artigo 63.º e seguintes do TFUE). Ora, é precisamente através da proteção de cada uma destas liberdades, diretamente aplicáveis, que ocorre uma verdadeira harmonização pela via jurisprudencial que se traduz na obrigatoriedade de as legislações nacionais se conformarem a cada uma dessas liberdades.

 

3.1.2.1.3.       Liberdade de circulação de capitais

Tendo como base o circunstancialismo da situação em análise, designadamente o recorte do mecanismo de eliminação da dupla tributação constante do artigo 51.º do CIRC, constata-se que a aplicação desse artigo, unicamente a sociedades com residência na União Europeia ou em Portugal que distribuam lucros, representa, à primeira vista, uma violação da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º do TFUE). Esta liberdade é, aliás, a única que se aplica também face a Estados terceiros, sendo neste momento pacífico que o seu conteúdo é exatamente o mesmo quando estão em causa Estados-Membros e Estados terceiros. Consequentemente, as restrições a esta liberdade são proibidas independentemente de estarem em causa Estados-membros ou Estado terceiros [14], exatamente da mesma forma, sendo as situações perfeitamente comparáveis. Dito de outro modo, todas as restrições relativas à circulação de capital e pagamentos entre os Estados-Membros e entre estes e países terceiros são proibidas [15].

            A sustentação de que, de facto, a não aplicação do regime do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC aos dividendos distribuídos pelas sociedades tunisina e libanesa corresponde a uma situação de discriminação intolerável face à livre circulação de capitais (ao dissuadir os contribuintes tributados em Portugal de investir o seu capital na Tunísia e Líbano) pressupõe, consequentemente, por um lado que o artigo 63.º do TFUE seja aplicável a essas situações e por outro que, sendo esse o caso, e havendo, portanto, discriminação, não seja aplicável a cláusula de reserva ou não haja uma justificação válida para essa discriminação.

            Para responder à primeira questão, isto é, saber se o artigo 51.º está ou não abrangido pelo âmbito da liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º do TFUE) é necessário esclarecer desde logo se tanto a aquisição de partes sociais numa sociedade como o pagamento de dividendos decorrentes dessa operação quadram ou não com essa liberdade.

            Não há uma definição de «circulação de capital» no Tratado. Importa relevar, no entanto, que o TJ confirmou em vários acórdãos, ao fazer uma lista não exaustiva dos movimentos de capital, que a terminologia aplicada a esses movimentos no Anexo I da Diretiva do Conselho 88/361/ CEE, de 24 de Junho de 1988, para a implementação do antigo artigo 67.º do TCE, hoje revogado, ainda tem alguma relevância. Nesse contexto o TJ decidiu que podem ser reconduzidos aos movimentos de capitais no contexto do artigo 63.º, nomeadamente, os investimentos ditos «diretos», a saber, os investimentos sob a forma de participação numa empresa pela detenção de ações que confere a possibilidade de participar efetivamente na sua gestão e no seu controlo, assim como os investimentos ditos «de carteira», isto é, os investimentos sob a forma de aquisição de títulos no mercado de capitais com o único objetivo de realizar uma aplicação financeira sem intenção de influir na gestão e no controlo da empresa[16].

            Segundo o TJ as restrições aos movimentos de capitais aludidos abrangem «não só as medidas nacionais que, quando aplicadas a movimentos de capitais com destino a países terceiros ou deles provenientes, restringem o estabelecimento ou os investimentos, mas também as que restringem os pagamentos de dividendos deles decorrentes» [17].

            Decorre, como consequência do exposto, nas palavras do próprio TJ que «uma sociedade residente num Estado-Membro e que detenha uma participação numa sociedade residente num país terceiro que lhe confere uma influência certa nas decisões desta última sociedade e lhe permite determinar as suas atividades pode invocar o artigo 63.º TFUE para pôr em causa a conformidade com esta disposição de uma legislação do referido Estado-Membro relativa ao tratamento fiscal de dividendos originários do referido país terceiro, não exclusivamente aplicável às situações em que a sociedade-mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que procede à distribuição dos dividendos»[18].

            Relativamente à última parte do excerto transcrito, cumpre sublinhar que apesar de em termos históricos, até pela sua relação com a Diretiva sociedades-mãe/sociedades afiliadas, ser concebível a ideia de que o artigo 51.º, n.º 1 do CIRC teria na origem em vista situações de controlo ou influência efetiva, hoje, porém, não obstante poder haver essa preponderância, surge como claro que não se refere exclusivamente a essas situações. Desde logo porque 10% do capital, dependendo da maior ou menor dispersão deste, não garantem um controlo efetivo. Não se pode, por conseguinte, de modo algum dizer que o artigo 51.º, n.º 1 do CIRC se aplica de forma exclusiva às situações em que a sociedade-mãe exerce uma influência decisiva na sociedade que procede à distribuição dos dividendos. Com efeito, o TJ já declarou que uma participação desta importância não implica necessariamente que o titular dessa participação exerça uma influência efetiva nas decisões da sociedade de que é acionista [19]. 

Resulta claro, portanto, que o artigo 51.º do CIRC é claramente abrangido pela circulação de capitais, pelo que a recusa de um Estado em conceder eliminação da dupla tributação a dividendos com origem na Tunísia e no Líbano, quando essa eliminação é permitida a favor de dividendos de origem doméstica constitui, uma discriminação [20]. Pois, como é óbvio, essa disposição limita a aquisição de ações nas sociedades desses países, o que não pode ser permitido. Neste sentido o TJ afirmou: «Uma legislação como a que está em causa no processo principal, segundo a qual uma sociedade residente num Estado‑Membro pode efetuar uma dedução integral ou parcial dos dividendos da sua base tributável quando estes são distribuídos por uma sociedade residente no mesmo Estado‑Membro, mas não pode proceder a essa dedução quando a sociedade distribuidora é residente num país terceiro, constitui uma restrição aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros e os países terceiros, que, em princípio, é proibida pelo artigo 63.° TFUE»[21].

            Salienta a este propósito o Advogado-Geral que «…a legislação portuguesa em causa no processo principal não distingue os dividendos recebidos por uma sociedade residente com base numa participação que lhe confere uma influência certa sobre as decisões da sociedade que procede à distribuição desses dividendos, e que lhe permite condicionar as atividades desta, dos dividendos recebidos com base numa participação que não lhe confere tal influência»[22] e que «consequentemente, no que diz respeito ao Tratado FUE, o presente processo está abrangido pela livre circulação de capitais»[23]. Ideias corroboradas pelo TJ ao dizer:

«Uma vez que a legislação em causa no processo principal não tem por objeto aplicar‑se exclusivamente às situações em que a sociedade beneficiária exerce uma influência decisiva na sociedade que distribui os dividendos, há que considerar que uma situação como a que está em causa no processo principal está abrangida pelo artigo 63.° TFUE, relativo à livre circulação de capitais»[24].

«Por conseguinte, numa situação como a que está em causa no processo principal, uma sociedade estabelecida em Portugal que recebe dividendos de sociedade estabelecidas, respetivamente, na Tunísia e no Líbano pode invocar o artigo 63.° TFUE para impugnar o tratamento fiscal reservado a esses dividendos no referido Estado‑Membro com base numa legislação que não tem por objeto aplicar‑se exclusivamente às situações em que a sociedade beneficiária exerce uma influência decisiva sobre a sociedade distribuidora»[25].

 

3.1.2.1.4.      Cláusula de Salvaguarda

            Verificada a suscetibilidade de aplicação do artigo 63.º do TFUE é necessário, todavia, antes de retirar daí consequências plenas, verificar ainda se é suscetível de ser aplicada a cláusula de salvaguarda do artigo 64.º do TFUE. Este artigo permite que, existindo restrições em vigor em 31 de dezembro de 1993 ao abrigo de legislação nacional ou da União adotada em relação a certos movimentos de capitais com países terceiros que envolvam, entre outras operações, o investimento direto (situação de que cuidamos), seja possível obstar à livre circulação de capitais. Isto porque «o objetivo e o contexto jurídico da liberalização dos movimentos de capitais são diferentes consoante se trate das relações entre Estados-Membros e países terceiros ou da livre circulação de capitais entre Estados-Membros, [assim] estes consideraram necessário prever cláusulas de salvaguarda e exceções que se aplicam especificamente aos movimentos de capitais com destino ou provenientes de países terceiros» [26]. A cláusula de salvaguarda tem em vista, ao cabo e ao resto, permitir algum controlo por parte dos Estados, dado que a liberdade de circulação de capitais é normalmente assegurada unilateralmente e sem reciprocidade.

Independentemente de a regra portuguesa que exclui os dividendos distribuídos por sociedades de Estados terceiros do mecanismo da dupla tributação económica configurar ou não uma disposição conforme aos requisitos do artigo 64.º do TFUE, a existência e o teor dos Acordos Euro-Mediterrânico celebrados com a Tunísia e Líbano sempre impediriam a aplicação dessa cláusula de salvaguarda às situações envolvendo sociedades tunisinas e libanesas. Convém lembrar que, o direito português consagra uma cláusula de receção automática plena do direito convencional internacional, cumpridas as formalidades de aprovação, ratificação e publicação (artigo 8.º, n.º 2 da CRP). Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados perante os tribunais.

            Os tratados são superiores hierarquicamente relativamente à lei ordinária. Esta superioridade decorre não só dos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas igualmente do artigo 8.º n.ºs 1 e 2 da CRP. Apresenta-se, pois, como claro que, para que a convenção vigore na ordem interna, é necessário que a lei ordinária posterior a não possa revogar. Ou seja, o direito internacional convencional não pode ser afastado por leis ordinárias, surgindo como superior àquelas. Sejam essas leis subsequentes, as quais serão materialmente inconstitucionais se o contrariarem; sejam anteriores, as quais terão de ser suspensas se forem conflituantes com esse direito convencional internacional, só retomando a vigência no caso de suspensão ou cessação da convenção internacional que estiver em causa.

            Aliás, os acordos celebrados com a Tunísia e o Líbano, enquanto tratados mistos, ou seja, tratados celebrados conjuntamente pela União Europeia (na altura Comunidade Europeia) e os Estados-Membros é fonte de Direito por duas vias, enquanto Direito da União Europeia [27] e enquanto Direito Internacional de incorporação automática no nosso sistema jurídico.

            Não obstante estes acordos terem essencialmente em vista a liberalização a nível das liberdades económicas fundamentais e evitar a discriminação, é-lhes ínsita, dada a abrangência dessas liberdades, a questão fiscal pelo impacto que tem sobre elas. O facto de os acordos com Tunísia e o Líbano incorporarem cláusulas que especificamente fazem referência aos impostos atesta isso mesmo. São exemplo aquelas que permitem às partes, designadamente, o direito de distinguir residentes e não residentes para efeitos de tributação. Ora, só faz obviamente sentido a inclusão de cláusulas deste tipo se os acordos como os celebrados com a Tunísia e o Líbano tiverem impacto na legislação fiscal dos Estados signatários. O facto de terem sido assinados pelos vários Estados-Membros, e, portanto, também por Portugal, assegura que lhes subjaz um exercício de uma indiscutível e plena soberania fiscal, o que reforça o seu efeito direto.

            Importa salientar que, anteriormente à assinatura destes acordos, a livre circulação de capitais da Tunísia e do Líbano para Portugal e outros Estados-Membros já estava assegurada; com a eventual aplicação da cláusula de salvaguarda, é certo, mas já existia. Pelo que somos forçados a concluir que o objetivo dos acordos com a Tunísia e o Líbano, à semelhança do que se passou com outros países relativamente aos quais se seguiu o mesmo modelo de acordo, era essencialmente assegurar a reciprocidade desta liberdade. Concretamente, no que respeitava aos investimentos diretos provenientes da União Europeia.

O artigo 34.° do acordo com a Tunísia, constante do Capítulo I, com a epígrafe «Pagamentos correntes e circulação de capitais», do respetivo Título IV, intitulado «Pagamentos, capitais, concorrência e outras disposições em matéria económica», dispõe:

«1. No que respeita às transações da balança de capitais, [a União] e a Tunísia assegurarão, a partir da entrada em vigor do presente acordo, a livre circulação de capitais respeitante aos investimentos diretos na Tunísia, efetuados em sociedades constituídas de acordo com a legislação em vigor, bem como a liquidação ou o repatriamento de tais investimentos e de quaisquer lucros deles resultantes.

2. As partes consultar‑se‑ão a fim de facilitar a circulação de capitais entre [a União] e a Tunísia e de a liberalizarem integralmente quando estiverem reunidas as condições necessárias.»

O preceito transcrito não se limitou, realce-se, a referir aos investimentos diretos na Tunísia, assegurando relativamente a eles a livre circulação. Veio consagrar ainda, expressamente, que «a Comunidade e a Tunísia assegurarão…a liquidação ou o repatriamento de tais investimentos [diretos] e de quaisquer lucros deles resultantes».

            Por sua vez, o artigo 31.° do acordo CE‑Líbano, constante do Capítulo 1, com a epígrafe «Pagamentos correntes e circulação de capitais», do respetivo Título IV, intitulado «Pagamentos, capitais, concorrência e outras disposições em matéria económica», dispõe:

«No âmbito do presente acordo e sob reserva do disposto nos artigos 33.° e 34.°, não serão impostas restrições à circulação de capitais entre [a União], por um lado, e o Líbano, por outro, nem efetuadas discriminações baseadas na nacionalidade ou no local de residência dos respetivos nacionais ou no local de investimento dos referidos capitais.»

Prevendo, por sua vez, o artigo 33.°, constante do mesmo Capítulo 1 desse acordo:

«1. Sob reserva de outras disposições do presente acordo e de outras obrigações internacionais da [União] e do Líbano, o disposto nos artigos 31.° e 32.° não prejudica a aplicação de qualquer restrição existente entre as partes à data de entrada em vigor do presente acordo, relativamente à circulação de capitais entre elas que envolva investimento direto, incluindo em bens imóveis, estabelecimento, prestação de serviços financeiros ou admissão de valores mobiliários aos mercados de capitais.

2. Contudo, a transferência para o estrangeiro de investimentos feitos no Líbano por residentes [na União] ou na [União] por residentes libaneses ou de lucros deles decorrentes não será afetada.»

Não obstante haver diferenças a nível da redação dos preceitos disciplinam os investimentos diretos e repatriamento dos lucros deles resultantes, a solução que propugnam é a mesma. Isto porque, apesar o artigo 31.° do Acordo CE‑Líbano assegurar a livre circulação de capitais «sob reserva [do artigo] 33.° […]», que dispõe, no seu n.° 1, que:

 «[o artigo] 31.° […] não prejudica a aplicação de qualquer restrição existente entre as partes à data de entrada em vigor do presente acordo, relativamente à circulação de capitais entre elas que envolva investimento direto, incluindo em bens imóveis, estabelecimento, prestação de serviços financeiros ou admissão de valores mobiliários aos mercados de capitais».

O n.° 2 do referido artigo acrescenta que:

 «contudo, a transferência para o estrangeiro de investimentos feitos no Líbano por residentes [na União] ou na [União] por residentes libaneses ou de lucros deles decorrentes não será afetada» [28].

Ora, tendo em conta que a solução que resulta das disposições transcritas já decorria, em abstrato, da liberdade de circulação de capitais assegurada a Estados terceiros (sem prejuízo da aplicação de legislação enquadrável na cláusula de salvaguarda ou outras restrições aceites) tem de se inferir desta referência, partindo do pressuposto que os acordos por regra não são redundantes, a conclusão seguinte. Pelo menos no que se refere à circulação de capitais referentes a investimentos diretos envolvendo a Tunísia e o Líbano, as disposições suscetíveis de ser validadas pela cláusula de salvaguarda, isto é, as que estivessem em vigor em 31 de Dezembro de 1993, deixam de ser aplicadas. Resulta claro que uma das implicações que decorre quer do artigo 34.º n.º 1 do acordo com a Tunísia, que entrou em vigor no dia 1 de Março de 1998, quer do artigo 31.º do acordo com o Líbano, que entrou em vigor no dia 1 de abril de 2006, tem de ser esta, representando estes artigos sugestivas clarificações a esse respeito. Enquanto normas subsequentes às normas vigentes em 1993, que revestem natureza superior e que além disso assumem natureza especial, sobrepõe-se necessariamente a elas, pelo que afastam uma eventual cláusula de salvaguarda que pudesse impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais relativos a investimentos diretos na Tunísia e Líbano.

O Advogado-Geral afirmou a este respeito que «[d]e facto, o artigo 64.° TFUE permite, mas não impõe, a aplicação entre Estados‑Membros e países terceiros de restrições aos movimentos de capitais em vigor em 31 de dezembro de 1993. Por conseguinte, nada impede que os Estados‑Membros renunciem a tais restrições unilateralmente ou … no âmbito de um acordo internacional, na totalidade (como no Acordo CE‑Tunísia) ou parcialmente (como no acordo CE‑Líbano)»[29]. Posicionamento integralmente confirmado pelo TJ na decisão do processo ao dizer que «um Estado‑Membro renuncia à faculdade prevista no artigo 64.°, n.° 1, TFUE, quando, sem revogar ou alterar formalmente a legislação existente, celebra um acordo internacional, como um acordo de associação, que prevê, numa disposição com efeito direto, a liberalização de uma categoria de capitais referida nesse artigo 64.°, n.° 1; por conseguinte, esta alteração do quadro jurídico deve ser equiparada, quanto aos seus efeitos na possibilidade de invocar o artigo 64.°, n.° 1, TFUE, à introdução de uma legislação nova, que assenta numa lógica diferente da legislação existente»[30].

            Aliás, outra não podia ser a consequência, sob pena de os acordos com a Tunísia e o Líbano verem totalmente frustrados os objetivos que claramente pretendem atingir no que concerne à liberdade de circulação de capitais quando estejam em causa investimentos diretos. Convém não esquecer que uma das razões para a consagração da cláusula de salvaguarda contante do artigo 64.º do TFUE foi certamente a inexistência de reciprocidade por parte dos Estados terceiros no que concerne à liberdade de circulação de capitais. Ora, estando esta assegurada relativamente à Tunísia e Líbano, deixa de fazer sentido a aplicação da cláusula de salvaguarda nas relações com estes países. Esta interpretação é, além de tudo o mais, a única consentânea com a observância do princípio da boa fé [31], incontornável na interpretação dos tratados, e que certamente impede que uma das partes no acordo o ponha em causa ao manter uma disposição com ele incompatível.

A solução veiculada pressupõe, no entanto, que o artigo 34.º, n.º 1, do acordo com Tunísia, e o artigo 31.º do acordo com o Líbano, depois de tida em atenção a sua natureza, contexto, clareza e precisão da redação de cada um deles, possam ser aplicados diretamente sem necessidade da adoção de qualquer medida subsequente [32]. Considerados todos esses requisitos, com destaque para os objetivos e contexto em que os acordos foram celebrados, somos levados a concluir que os artigos em causa podem ser aplicados diretamente. Em sintonia, aliás, com o que Advogado-Geral afirmou expressamente: ─ «considero que os artigos 34.° do Acordo CE‑Tunísia e 31.° do Acordo CE‑Líbano têm um efeito direto que pode ser invocado pela A...»[33] quer com o decidido pelo TJ[34].

            Relativamente à questão de saber se a criação de um regime de benefícios fiscais específicos para os dividendos provenientes de países africanos de língua oficial portuguesa e de Timor-Leste, nos termos do artigo 42.º EBF, implicaria a impossibilidade de invocar a cláusula de salvaguarda constante do artigo 64.º TFUE, consideramos que não. Criar uma exceção à regra, num enquadramento específico como é o das relações entre Portugal e esses países, não implica seguramente uma alteração da regra que permanece a mesma tal como consta do artigo 46.º do CIRC. Só se este artigo passasse a assumir uma lógica distinta, instituindo procedimentos novos, rompendo com o direito anterior é que poderia ser concebível a impossibilidade de invocação da cláusula de salvaguarda [35], o que manifestamente não parece ser o caso. Em sintonia, aliás, com o Advogado-Geral que afirma que «[n]ão pode concluir‑se que, ao adotar esses regimes específicos, a República portuguesa decidiu abandonar a possibilidade de invocar a cláusula de salvaguarda prevista no artigo 64.° TFUE, cujo alcance pode ser limitado»[36], tendo este posicionamento sido secundado pelo TJ[37].

 

3.1.2.1.5.      Implicações do artigo 89.º do acordo celebrado com a Tunísia e do artigo 85.º do acordo celebrado com o Líbano (Carve-out clauses)

Importa agora determinar se o artigo 89.º do acordo com a Tunísia e o artigo 85.º do acordo com o Líbano põe em causa o afastamento do regime discriminatório do artigo 46.º do CIRC, impedindo eventualmente que o artigo 34.º, n.º 1, do acordo com a Tunísia e o artigo 31.º do acordo com o Líbano sejam interpretados no sentido que acabámos de lhes dar.

              O artigo 89.° do acordo com a Tunísia, constante do Capítulo I do respetivo Título VIII, com a epígrafe «Disposições institucionais, gerais e finais», dispõe:

«Nenhuma disposição do presente acordo pode ter por efeito:

–  aumentar as vantagens concedidas por uma parte no domínio fiscal em qualquer acordo ou convénio internacional que vincula essa mesma parte,

– impedir a adoção ou a aplicação por uma parte de qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscal,

– impedir o direito de uma parte de aplicar as disposições relevantes da sua legislação fiscal aos contribuintes que não se encontram em situação idêntica no que respeita ao seu local de residência.»

O artigo 85.° do referido acordo com o Líbano, constante do Título VIII, com a epígrafe «Disposições institucionais, gerais e finais», dispõe:

«Quanto à fiscalidade direta, nada no presente acordo pode ter por efeito:

a) Aumentar as vantagens fiscais concedidas por uma das partes em qualquer acordo ou convénio internacional que a vincule;

b) Impedir a adoção ou a aplicação por uma parte de qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscais;

c) Impedir qualquer das partes de aplicar as disposições pertinentes da sua legislação fiscal aos contribuintes que não se encontrem em situação idêntica, nomeadamente no que respeita ao seu local de residência.»

Atendendo à identidade das duas disposições, faremos a análise dos seus efeitos de forma conjunta.

            O primeiro efeito que os artigos transcritos querem prevenir é tão-só que através do acordo se aumentem as vantagens fiscais concedidas por qualquer uma das partes (União Europeia, Estados-Membros, Tunísia e Líbano) no âmbito de qualquer acordo ou convénio que tenham celebrado. Isto é, o que se pretende é circunscrever as vantagens fiscais que decorram dos acordos com a Tunísia e o Líbano às relações entre as partes e não estendê-lo a outros Estados com quem tenham celebrado convénio ou acordos. Pretende-se, portanto, impedir que no plano fiscal e na decorrência de um tratado seja admitida a aplicação do princípio da nação mais favorecida [38]. Esse efeito não tem, por conseguinte, tanto em vista os convénios que vinculem as partes contratantes entre si, mas convénios com Estados terceiros, pelo que não se infere daí qualquer impedimento à não aplicação da eventual cláusula de salvaguarda às situações de investimento direto na Tunísia e no Líbano.

            Neste sentido pronunciou-se o Advogado-Geral ao dizer «a propósito do artigo 89.°, primeiro travessão, do Acordo CE‑Tunísia …considero, tal como a Comissão, que o objeto dessa disposição é evitar que uma norma prevista numa convenção preventiva da dupla tributação celebrada pela República portuguesa com outro Estado que não a República da Tunísia seja extensível a um residente tunisino cujo Estado de residência não seja parte nessa convenção. Ora, a A… não visa obter uma vantagem concedida por uma convenção em matéria de dupla tributação que a República portuguesa tenha celebrado com outro Estado que não a República da Tunísia. O mesmo se aplica ao artigo 85.°, alínea a), do Acordo CE‑Líbano»[39]. Posicionamento corroborado pelo TJ[40].

            O segundo efeito que pretende impedir que os acordos com a Tunísia e com o Líbano ponham em causa a aplicação de medidas que contrariem a fraude ou evasão fiscal, não é suscetível de quadrar com a situação de que tratamos, não tendo sido sequer levantada essa questão ou verificada a existência de indícios de qualquer situação de evasão ou fraude.

Mesmo que uma eventual situação desse tipo se verificasse, os artigos em análise jamais teriam como efeito impedir que fossem tomadas medidas de reação, transcendo o sentido último e enquadramento de cada um deles qualquer entendimento com esse conteúdo. Também o Advogado-Geral, confirmou este entendimento ao dizer que: «Os artigos 89.°, segundo travessão, do Acordo CE‑Tunísia e 85.°, alínea b), do Acordo CE‑Líbano permitem às partes nesses acordos adotar ou aplicar qualquer medida destinada a evitar a fraude ou a evasão fiscal. Contudo, como não existe nenhuma alegação de fraude ou de evasão fiscal no presente processo, as referidas disposições não se aplicam» [41]. No mesmo sentido decidiu o TJ [42].

            O terceiro efeito, finalmente, também não levanta qualquer obstáculo à leitura preconizada a propósito dos efeitos do artigo 34.º, n.º 1, do acordo com a Tunísia e do artigo 31.º do acordo com Líbano. Pois, apesar de se permitir que as partes possam distinguir os contribuintes em função da condição de residente, essa distinção não pode jamais ser arbitrária ou redundar num tratamento discriminatório de situações comparáveis em termos objetivos, sob pena de, à revelia do espírito dos próprios acordos, fazer letra morta dos referidos artigos 34.º, n.º 1 e 31.º. Para não falar da violação flagrante do próprio direito da União Europeia que proíbe tanto a discriminação direta como a indireta. A primeira é feita com base na nacionalidade e a segunda assenta normalmente num critério que leva ao mesmo resultado. Curiosamente o TJ sustentou a este propósito que quando distinções com base na residência privem os não residentes de certos benefícios que são garantidos aos residentes podem constituir uma discriminação indireta com base na nacionalidade [43], o que é especialmente relevante para o caso que se julga, na medida em que um tratamento distinto das sociedades tunisinas teria precisamente esses efeitos.

            O mesmo tipo de argumentação pode ser aplicado relativamente à A…, tal como o fez o Advogado-Geral.

            «[A] A… é uma sociedade residente em Portugal e as disposições em causa não permitem que, nessa qualidade, seja vítima de discriminação com base no local da residência das suas afiliadas. A este respeito, recordo a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça de acordo com a qual ‘a situação de uma sociedade acionista que recebe dividendos de origem estrangeira é comparável à de uma sociedade acionista que recebe dividendos de origem nacional, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de uma tributação em cadeia’ [44]. Além disso, não há qualquer dúvida de que a A… se encontra numa situação objetivamente comparável à de um contribuinte português que receba dividendos de origem portuguesa ou de um Estado‑Membro da União ou do EEE. Consequentemente, uma diferença de tratamento como a que resulta da legislação portuguesa em questão no processo principal constitui uma restrição proibida pelos artigos 34.° do Acordo CE‑Tunísia e 31.° do Acordo CE‑Líbano»[45].

            O artigo 89.º do acordo com a Tunísia e o artigo 85.º do acordo com o Líbano não põem, portanto, em causa a liberdade de circulação de capital quando estejam em causa investimentos diretos, assegurando antes reciprocidade na proteção desta liberdade, em concordância com o espírito dos próprios acordos.

            Em concordância com este entendimento o Advogado-Geral expressou a seguinte opinião: «Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça responda … que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que não permite a dedução integral ou parcial, conforme o caso, de dividendos recebidos de sociedades cuja sede ou direção efetiva se situe fora da União ou do EEE, não pode basear‑se nem no artigo 89.° do Acordo CE‑Tunísia nem no artigo 85.° do Acordo CE‑Líbano»[46].

Opinião integralmente secundada pelo TJ na decisão do processo [47].

 

3.1.3.      Outras justificações

Constatado que nem a cláusula de reserva constante do artigo 64.º do TFUE nem os artigos 89.º do acordo com a Tunísia e o 85.ºdo acordo com o Líbano têm como efeito pôr em causa a liberdade de circulação de capitais relativa a investimentos diretos feitos na Tunísia e Líbano, resta determinar se a razão invocada pela Autoridade Tributária para justificar a restrição à liberdade de circulação de capitais ao abrigo de razões de interesse geral (artigo 65.º do TFUE) – concretamente, facilitar os controlos fiscais – pode ou não ser aceite. Esta justificação já foi aceite nas relações entre Estados-Membros no célebre caso Futura participations [48]. Contudo, sempre que o argumento dos controlos fiscais tem em vista essencialmente a dificuldade em obter informações e estão em causa Estados-Membros, essa justificação não tem sucesso, pois a Diretiva sobre a troca de informações 2011/16/EU [49] obriga esses Estados a cooperar uns com os outros.

Quando estão em causa Estados terceiros a situação tem uma natureza distinta, desde logo porque estes não estão vinculados por essa diretiva, pelo que, tal como já aconteceu num caso com muitas afinidades com o que se decide, a justificação foi aceite. No acórdão Skatteverket v A o TJ decidiu «que, quando a legislação de um Estado-Membro faz depender uma vantagem fiscal [isenção do imposto sobre o rendimento de dividendos distribuídos sob a forma de ações de um filial] de requisitos cuja observância só pode ser verificada mediante a obtenção de informações junto das autoridades competentes de um país terceiro, esse Estado-Membro pode, em princípio, recusar-se a conceder essa vantagem se for impossível obter essas informações junto desse país terceiro, designadamente por não existir para esse país a obrigação convencional de fornecer informações»[50].

A este propósito o Advogado-Geral salienta que «tendo em conta que me parece altamente improvável que os redatores dos Acordos CE‑Tunísia e CE‑Líbano tenham pretendido conceder liberdade total aos movimentos de capitais entre a União e esses dois países, enquanto podiam ser impostas determinadas restrições aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros ou entre os Estados‑Membros e os países terceiros, considero que uma restrição à livre circulação de capitais não violaria os Acordos CE‑Tunísia e CE‑Líbano se fosse justificada por uma das razões imperiosas de interesse geral (54), mais precisamente aquelas a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere [eficácia dos controlos fiscais e a luta contra a fraude e a evasão fiscais]» [51].

Relativamente pelo menos à Tunísia, não se levantaria, porém, o problema da obtenção dessas informações, dado que Portugal celebrou com ela uma convenção que prevê a troca de informações [52].  O que aliás é claramente assumido pelo TJ ao dizer: «Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio analisar se as obrigações que resultam da Convenção Portugal‑Tunísia são suscetíveis de permitir às autoridades fiscais portuguesas obter junto da República da Tunísia informações que lhes permitam verificar se está preenchido o requisito relativo à sujeição da sociedade que distribui os dividendos a imposto. Em caso afirmativo, a restrição que resulta da recusa em conceder a dedução integral ou a dedução parcial, previstas, respetivamente no n.° 1 e no n.° 8 do artigo 46.° do CIRC, não pode ser justificada pela necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais» [53].

Relativamente ao Líbano, perante a ausência de comprovação daquele requisito [54] por parte do sujeito passivo, de facto, não seria possível obter essa informação diretamente junto das suas autoridades fiscais, dada a inexistência de um qualquer mecanismo que previsse a assistência mútua. Consequentemente, haveria, no plano puramente abstrato fundamento para recusar a dedução dos dividendos distribuídos pela filial libanesa.

[13] Cfr. Test Claimants in Class IV of The ACT Group Litigation, C-374/04, de 12 de dezembro de 2006; Amurta, C-379/05, de 8 de novembro de 2007; Aberdeen Property Fininvest Alpha, C-303/07, de 18 de junho de 2009.

[14] Cfr. Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de dezembro de 2007, n.º 31.

[15] Cfr. Centro Equestre da Lezíria Grande, C-345/04, de 15 de fevereiro de 2007; Hollman, C-443/06, de 11de outubro de 2007; Haribo, processos apensos C-436/08 e C437/08 de 10 de fevereiro de 2011, Arens-Sikken, C-43/07, de 11 de setembro de 2008; X e O, processos apensos, C-155/08 e C-157/08, de 1 de junho de 2009; Gaz de France, C-247/08, de 1 de outubro de 2009; Comissão Europeia v República Portuguesa, C-267/09, de 5 de maio de 2011.

[16] Cfr. Comissão Europeia v República Portuguesa, C‑171/08, de 8 de julho de 2010, n.º 49; Manfred Trummer and Peter Mayer, C-222/97, de 16 de março de 1999; Commission v. France, C-483/99, de 4 de junho de 2002; Commission v. United Kingdom, C-98/01, de 13 de maio de 2003; Commission v. Netherlands, casos apensos C-282/04 e C-283/04, de 28 de setembro de 2006.

[17] In Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro de 2012, n.º 103; Haribo, processo apensos C-436/08 e C-437/08, de 10 de fevereiro de 2011, n.º 33; Accor, C-310/09, de 15 de setembro de 2011, n.º 30.

[18] In Test Claimants in the FII Group Litigation, C-35/11, de 13 de novembro, de 2012, n.º 104.

[19]Neste sentido, ver Itelcar, C‑282/12, de 3 de outubro de 2013, n.° 22 e Kronos International, C‑47/12,  de 11 de setembro de 2014, n.° 35.

[20] Ver Sanz de Lera, C-163/94, de 14 de dezembro de 1995.

[21] In Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 51.

[22] In Secil, C-464/14, opinião do Advogado-Geral  Melchior Wathelet, de27 de janeiro de 2016, n.º 63.

[23] In Secil, C-464/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 65.

[24] In Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 41.

[25] In Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 44.

[26]  In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de dezembro de 2007, n.º 32.

[27] Haegeman v Belgium, C-181/73, de 30 de abril de 1974.

[28] Cfr. Caso Secil, C-464/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 112 e 113.

[29] In Secil, C-464/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 151.

[30] In Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 92.

[31] Artigo 31.º, n. º 1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

[32] Cfr. Simutenkov, C-265/03, de 12 de abril de 2005, n.º 21.

[33] In Secil, C-464/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 83.

[34] Cfr. Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.ºs 92 e 169.

[35] Cfr. Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, n.° 48; ver, igualmente, neste sentido, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, n.° 192, Holböck, C‑157/05, n.° 41 e A, C‑101/05, n.° 49.

[36] In Secil, C-464/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 163.

[37] Cfr Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.ºs 83 e 84.

[38] Em sintonia, alias com que se tem no domínio da União Europeia. Ver D, C-376/03, de 5 de Julho de 2005.

[39] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 86, 87 e 88.

[40] Ver, no mesmo sentido, Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 144.

[41] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 89 e 90.

[42] Ver, no mesmo sentido, Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 119.

[43] Cfr. Schumacker, C-279/93, de 14 de Fevereiro de 1995.

[44] Cfr. Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑35/11, n.° 37. Ver, igualmente, neste sentido, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, n.° 62 e Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C‑436/08 e C‑437/08, EU:C:2011:61, n.° 59.

[45] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.ºs 94, 95, 109 e 110.

[46] In Secil, C-446/14, opinião do Advogado-Geral, n.º 96.

[47] Ver Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.ºs 121 e 152.

[48] C-250/95, de 15 de Maio de 1997.

[49] Diretiva do Conselho de 15 de Fevereiro de 2011 que veio substituir a Diretiva 77/99/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977.

[50] In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 63.

[51] In Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 125.

[52] Ver artigo 25.º da convenção para eliminar a tributação celebrada entre Portugal e a Tunísia. Cfr. Skatteverket v A, C-101/05, de 18 de Dezembro de 2007, n.º 67.

[53] In Secil, C-464/14, de 24 de novembro, de 2016, n.º 68. O sublinhado é nosso.

[54] Ver sublinhado no parágrafo anterior.”

            O entendimento do acórdão arbitral transcrito, foi reiterado pelo STA, no acórdão de 31-05-2017, proferido no processo, 0738/17, onde se pode ler que:

“Se, em decorrência da interpretação de legislação nacional, é permitido a uma sociedade residente num Estado-Membro efectuar uma dedução integral ou parcial dos dividendos recebidos da sua base tributável, quando estes são distribuídos por uma sociedade residente no mesmo Estado-Membro, mas não pode proceder a esta dedução quando a sociedade distribuidora é residente num país terceiro, tal interpretação constitui uma restrição aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros e os países terceiros, que, em princípio, é proibida pelo artigo 63.° TFUE.”.

            Conclui-se, pelos fundamentos transcritos, que a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, entre o tratamento dos lucros quando estes são distribuídos por uma sociedade não residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia é incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes, pelo que, assentando em entendimento contrário, dever-se-á anular, atento o erro de direito, a decisão do pedido de reclamação graciosa.

 

*

            Aqui chegados, cumpre apreciar, então, o pedido arbitral de anulação (parcial) do acto de autoliquidação.

            Na supra-citada decisão do processo arbitral nº 577/2016-T, relativamente a esta matéria, acabou por se entender, em suma, que:

“Nos casos em que, na sequência de uma autoliquidação, foi proferida uma decisão de indeferimento expresso de um pedido de revisão oficiosa, é esta que fica a subsistir na ordem jurídica como ato que define a posição da Autoridade Tributária e Aduaneira perante o contribuinte.

Como ficou consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 628/2014-T, “a questão que se coloca ao Tribunal Arbitral num processo contencioso de mera anulação em que foi proferida uma decisão de reclamação graciosa, a qual apreciou a legalidade de um ato de autoliquidação, é a de saber se os fundamentos invocados nessa decisão asseguram ou não tal legalidade. 

“Com efeito, como é jurisprudência assente, é irrelevante a fundamentação a posteriori”.

“Num contencioso de mera anulação, como é o que vigora no processo de impugnação judicial e nos processos arbitrais, que são a sua alternativa (artigo 124.º, n.º2, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), tem de aferir-se da legalidade do acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado.

Assim, não pode o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, apreciar se ela deveria ser indeferida por outras razões, embora a Administração Tributária não fique impedida de, em novo acto, poder invocar outros fundamentos.

Por isso, é à face da fundamentação da decisão reclamação graciosa que tem de ser apreciada a questão da sua legalidade e, indirectamente, da sua autoliquidação, o que no caso em apreço se reconduz a saber se os fundamentos invocados naquela decisão justificam que a autoliquidação tivesse sido efectuada de forma que foi”.(…)

É, pois, à face da fundamentação que o acompanha que se há-de apreciar a legalidade do ato tributário impugnado, o que torna irrelevantes, para este efeito, a fundamentação a posteriori que a Autoridade Tributária e Aduaneira veio colocar em sede de Contestação.   

E mais à frente:

Relativamente ao Líbano, perante a ausência de comprovação daquele requisito por parte do sujeito passivo, de facto, não seria possível obter essa informação diretamente junto das suas autoridades fiscais, dada a inexistência de um qualquer mecanismo que previsse a assistência mútua. Consequentemente, haveria, no plano puramente abstrato fundamento para recusar a dedução dos dividendos distribuídos pela filial libanesa.

No plano concreto, porém, tal como se deu como comprovado, a AT nunca suscitou sequer a questão. Consequentemente, impõe-se que este tribunal se restrinja aos fundamentos apresentados para justificar o ato de indeferimento da revisão oficiosa, não podendo, por conseguinte, considerar fundamentação apresentada a posteriori.”

            Ressalvado o (muito) respeito devido, não se subscrevem, nesta parte, as conclusões daquele aresto.

            Como atrás, se apontou, os actos de autoliquidação e de indeferimento da reclamação graciosa são actos distintos e autónomos, praticados em momentos distintos por entidades distintas, e com fundamentos distintos.

            Com efeito, enquanto que o acto de autoliquidação é um acto praticado pelo contribuinte, fundamentado, ope legis, na sua própria declaração (que se presume, em princípio, verdadeira – cfr. artigo 75.º/1 da LGT), sendo que será ao contribuinte que a pretende impugnar que assiste o ónus da prova da respectiva ilegalidade, o acto de decisão da reclamação graciosa é um acto praticado pela AT, com os fundamentos que integram a respectiva fundamentação, sendo que “É à AT que cabe a obrigação da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável)”[5].

            Daí que não se considere que a fundamentação do acto de autoliquidação seja integrada pelos fundamentos da decisão da reclamação graciosa, nem que a contestação que a AT ofereça em sede arbitral ao ónus de demonstração da ilegalidade da autoliquidação que assiste ao contribuinte, constitua uma fundamentação – por qualquer forma, incluindo a posteriori – daquela, que, como se referiu, se fundamenta, exclusivamente e por força da lei, na declaração do contribuinte.

            Como se escreveu no Ac. do STA de 03-06-2015, proferido no processo 0793/14, “Na impugnação judicial subsequente a decisão da AT que recaia sobre reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa do acto tributário, podem, e devem, os órgãos jurisdicionais conhecer de todas as ilegalidades de substância que afectem o acto tributário em crise”.

            E, mais adiante, na mesma decisão:

“o objecto real da impugnação é o acto de liquidação e não o acto que decidiu a reclamação, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise (no mesmo sentido, entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal datado de 18/06/2014, rec. n.º 01942/13), também aqui não faz qualquer sentido que o âmbito da impugnação judicial do acto que decide o pedido de revisão oficiosa esteja limitado pela própria decisão da revisão oficiosa, antes se impondo que esta impugnação judicial possa ter como fundamento qualquer ilegalidade de substância (no presente caso apenas se trata deste tipo de ilegalidade) do acto tributário, cfr. acórdão deste STA datado de 08/07/2009, recurso n.º 0306/09 [Em causa está, pois, mediatamente, a legalidade do acto tributário de liquidação: apreciar o acto recorrido - saber se a pretensão da recorrente, de que fosse revisto aquele acto, merecia, ou não, ser indeferida (ainda que presumidamente) - implica sindicar a legalidade da liquidação].”.

            Conclui-se, deste modo, que independentemente do conteúdo e destino dos actos de segundo e terceiro grau que venham a ter a autoliquidação por objecto, a validade, em primeira linha, do acto de autoliquidação está assente na sua conformidade com a declaração do contribuinte, sendo que será a este, no caso de pretender o reconhecimento da sua ilegalidade, que assistirá, em princípio, o ónus da demonstração de tal ilegalidade, conforme decorre do artigo 74.º/1 da LGT.

            Assim, e sumariando o quanto se desenvolveu no acórdão arbitral que vem de se citar, considerando-se que a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, entre o tratamento dos lucros quando estes são distribuídos por uma sociedade não residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia é incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes, e que, portanto, se deve aplicar a estes as mesmas regras previstas para os restantes, cumpre, no sentido de apurar a legalidade da autoliquidação da Requerente, objecto da presente acção arbitral, verificar do cumprimento, ou não do estabelecido pela legislação nacional, relativamente ao tratamento dos lucros distribuídos por uma sociedade residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia.

            A este propósito, dispõe o artigo 51.º do CIRC, na redacção aplicável que:

“1 — Na determinação do lucro tributável das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, cooperativas e empresas públicas, com sede ou direcção efectiva em território português, são deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos, desde que sejam verificados os seguintes requisitos:

a) A sociedade que distribui os lucros tenha a sede ou direcção efectiva no mesmo território e esteja sujeita e não isenta de IRC ou esteja sujeita ao imposto referido no artigo 7.º;

b) A entidade beneficiária não seja abrangida pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º;

c) A entidade beneficiária detenha directamente uma participação no capital da sociedade que distribui os lucros não inferior a 10 % e esta tenha permanecido na sua titularidade, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da colocação à disposição dos lucros ou, se detida há menos tempo, desde que a participação seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período.

2 — O disposto no número anterior é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:

a) Sociedades de desenvolvimento regional;

b) Sociedades de investimento;

c) Sociedades financeiras de corretagem.

3 - Não obstante o disposto no n.º 1, o regime aí consagrado é aplicável, nos termos prescritos no número anterior, às agências gerais de seguradoras estrangeiras, bem como aos estabelecimentos estáveis de sociedades residentes noutro Estado membro da União Europeia e do espaço económico europeu que sejam equiparáveis às referidas no número anterior. (Redacção dada pela Lei n.º 3-B/2010-28/04)

4 — O disposto no n.º 1 é igualmente aplicável, verificando-se as condições nele referidas, ao valor atribuí do na associação em participação, ao associado constituído como sociedade comercial ou civil sob forma comercial, cooperativa ou empresa pública, com sede ou direcção efectiva em território português, independentemente do valor da sua contribuição relativamente aos rendimentos que tenham sido efectivamente tributados, distribuídos por associantes residentes no mesmo território.

5 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é também aplicável quando uma entidade residente em território português detenha uma participação, nos termos e condições aí referidos, em entidade residente noutro Estado membro da União Europeia, desde que ambas as entidades preencham os requisitos estabelecidos no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro. (Redacção da  Lei n.º 66-B/2012 - 31/12)

6 - O disposto nos n.ºs 1 e 5 é igualmente aplicável aos rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos que sejam imputáveis a um estabelecimento estável, situado em território português, de uma entidade residente noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, neste caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia, que detenha uma participação, nos termos e condições aí referidos, em entidade residente num Estado membro, desde que ambas essas entidades preencham os requisitos e condições estabelecidas no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou, no caso de entidades do Espaço Económico Europeu, requisitos e condições equiparáveis. (Redacção da Lei n.º 66-B/2012 - 31/12)

7 — Para efeitos do disposto nos nºs 5 e 6:

a) A definição de entidade residente é a que resulta da legislação fiscal do Estado membro em causa, sem prejuízo do que se achar estabelecido nas convenções destinadas a evitar a dupla tributação;

b) O critério de participação no capital referido no n.º 1 é substituído pelo da detenção de direitos de voto quando este estiver estabelecido em acordo bilateral.

8 — (Revogado)  

9 - Se a detenção da participação mínima referida no n.º 1 deixar de se verificar antes de completado o período de um ano, deve corrigir-se a dedução que tenha sido efectuada, sem prejuízo da consideração do crédito de imposto por dupla tributação internacional a que houver lugar, nos termos do disposto no artigo 91.º.

10 - A dedução a que se refere o n.º 1 só é aplicável quando os rendimentos provenham de lucros que tenham sido sujeitos a tributação efectiva.

11 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é igualmente aplicável quando uma entidade residente em território português detenha uma participação, nos mesmos termos e condições, em entidade residente noutro Estado membro do Espaço Económico Europeu que esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia, desde que ambas as entidades reúnam condições equiparáveis, com as necessárias adaptações, às estabelecidas no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro.

12 - Para efeitos do disposto nos n.ºs 5 e 11, o sujeito passivo deve provar que a entidade participada e, no caso do n.º 6, também a entidade beneficiária cumprem as condições estabelecidas no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou, no caso de entidades do Espaço Económico Europeu, condições equiparáveis, mediante declaração confirmada e autenticada pelas autoridades fiscais competentes do Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu de que é residente.”

            Relativamente ao regime em questão, contesta a Requerida a pretensão da Requerente, alegando, em primeiro lugar, a “falta de prova idónea que permita a validação do preenchimento de dois dos requisitos exigidos naquele artigo, quais sejam, a sujeição desta sociedade tunisina a imposto e da tributação efetiva de tais lucros”.

            Como se escreveu no Ac. do STA de 31-05-2017, proferido no processo, 0738/17, atrás citado:

“deve-se considerar que ocorre a tributação efectiva sempre que o rendimento distribuído já tenha em algum momento sido sujeito a imposto sobre o rendimento, independentemente de tal tributação se verificar na esfera jurídica da entidade que procede à distribuição dos rendimentos, quer tenha ocorrido anteriormente na esfera jurídica de qualquer outra entidade que os tenha gerado.

Por outro lado, o rendimento distribuído não deve ser decomposto nas diversas partes que o compõem de modo a determinar quais os rendimentos já tributados e quais ainda o não foram, deve ser considerado na sua totalidade e de forma agregada.

Assim, colocando-se a tónica no rendimento em si mesmo e não já na entidade geradora ou distribuidora do mesmo, para efeitos do conceito de tributação efectiva basta que uma das parcelas que compõem esse rendimento distribuído tenha de facto sido sujeita a imposto sobre o rendimento, independentemente do momento e entidade, para que se deva considerar a totalidade do rendimento distribuído abrangido pelas regras próprias do regime fiscal da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos consagrado no artigo 46º, n.º 10 do CIRC”.

            Como também se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 23-04-2015, proferido no processo 08149/14, “            A tributação efectiva exige a sujeição a IRC ou imposto equivalente do rendimento gerado em sede da entidade distribuidora do mesmo”.

            Ora, compulsados os factos provados e não provados, constata-se não existir matéria suficiente para este Tribunal concluir pela verificação do cumprimento do estabelecido pela legislação nacional, relativamente ao tratamento dos lucros distribuídos por uma sociedade residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia, designadamente do previsto no n.º 10 do artigo 46.º do CIRC aplicável.

            Com efeito, dos factos dados como provados, não obstante verificar-se que terá havido pagamento de imposto pelas sociedades libanesa e tunisina, não é possível retirar se tal imposto se refere, e em que medida, ao lucro que foi distribuído à Requerente.

            Deste modo, não poderá proceder o pedido de reembolso formulado, e ter-se-á que concluir que em face da anulação da decisão da reclamação graciosa, deve o Tribunal determinar que o processo seja devolvido à Autoridade Tributária e que esta, assente que se aplica, in casu, o regime do supra-transcrito artigo 46.º do CIRC, se pronuncie sobre a verificação, ou não, dos respectivos pressupostos.

            Efectivamente, tal decorre da obrigação da AT “Praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto objecto da decisão arbitral”, consagrada na al. a) do n.º1 do art.º 24.º do RJAT, bem como do próprio efeito anulatório da presente decisão, que, retirando da ordem jurídica o acto decisório da reclamação graciosa, e os que dele dependem, faz retornar o procedimento à fase imediatamente anterior à decisão daquele pedido, assistindo à AT o dever legal de o decidir, em respeito do caso julgado que se formar, ou seja, e no caso, do entendimento de que a diferenciação, estabelecida pela legislação nacional, entre o tratamento dos lucros quando estes são distribuídos por uma sociedade não residente ou em Portugal ou num Estado-Membro da União Europeia é incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes, e que, portanto, se deve aplicar a estes as mesmas regras previstas para os restantes.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Anular o acto de indeferimento da reclamação graciosa que teve como objecto o acto de liquidação n.º 2015…, de 14-05-2015, de IRC relativo ao exercício de 2013;
  2. Não apreciar o peticionado nas alíneas iv) e v) do pedido arbitral;
  3. Julgar improcedentes os restantes pedidos arbitrais;
  4. Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se no montante de € 3.366,00 a parte a cargo da Requerente, e no montante de € 3.366,00 a parte a cargo da Requerida.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 411.279,98, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.732,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa 30 de Setembro de 2017

 

 

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Cristina Aragão Seia)

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Fernando de Jesus Amado dos Santos)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] Como refere Carla Castelo Trindade (“RJAT Anotado”, Almedina, 2016, p. 70), os actos de indeferimento de reclamação graciosa, revisão oficiosa, ou recurso hierárquico, serão arbitráveis “na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do acto tributário”, o que é o caso.

[4] Tratando embora da mesma questão, será descabida a asserção, constante do Requerimento Inicial (ponto 91), de que haverá caso julgado material quanto à matéria em questão nos presentes autos, já que não se verificam os requisitos do artigo 580.º do Código de Processo Civil, desde logo porque estão em causa factos tributários distintos. De resto, a existir caso julgado, deveria a Requerente fazer valer aquele em sede de execução do julgado em questão.

[5] Cfr. Ac. TCA-Sul de 16-01-2007, proferido no processo 00911/03, disponível em www.dgsi.pt.