Decisão Arbitral
Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dra. Filipa Barros e Dr. Paulo Lourenço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 30 de março de 2017, acordam no seguinte:
1. Relatório
A…, pessoa coletiva nº…, com sede na Rua … e …, na …, de ora em diante abreviadamente designada por A… ou Requerente, veio, ao abrigo da al. a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), requerer a constituição do Tribunal Arbitral Coletivo tendo em vista a declaração de ilegalidade e a anulação das liquidações adicionais de IVA (2016…, 2016…, 2016…, 2016…, 2016…, 2016… e 2016…), juros compensatórios (2016… e 2016…) e moratórios (2016…, 2016…, 2016…, 2016…, 2016 … e 2016…), tudo no valor global de € 216 085,48 (duzentos e dezasseis mil e oitenta e cinco euros e quarenta e oito cêntimos). Pede ainda, em consequência da sobredita anulação, que a AT seja condenada ao reembolso à Requerente da importância de €164.342,58, com juros indemnizatórios, à taxa legal, desde 25-10-2016 (data em que efetuou o pagamento) até integral reembolso
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA no dia 31 de janeiro de 2017.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 15 de março de 2017, as Partes foram notificadas, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 30 de março de 2017.
A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu no dia 10 de maio de 2017 e, por despacho do dia 9 de julho do mesmo ano, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e decidido o prosseguimento do processo para alegações.
As Partes apresentaram alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma pessoa coletiva de Direito público que tem por atividade principal o ensino superior e como atividade secundária a prática médica de clínica geral e ambulatório, laboratório e análises clínicas, enfermagem, recolha e banco de órgãos, entre outras atividades de saúde humana não especificadas, para além de se dedicar também ao alojamento e à atividade de museus;
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A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de IVA, com periodicidade mensal e realiza, no âmbito da sua atividade, operações tributáveis e operações isentas, sendo, por essa razão, considerada um sujeito passivo misto;
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A Requerente, por ser um sujeito passivo misto, efetuava a dedução do IVA suportado na aquisição de bens e serviços com base no método da percentagem de dedução ou pro rata;
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Na sequência de uma alteração de procedimentos levada a efeito, a Requerente, com o auxílio de uma entidade externa, passou a deduzir mais imposto, por entender que o método até aí utilizado traduzia um direito à dedução inferior ao que legalmente lhe era permitido;
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A Requerente, por via das deduções suplementares efetuadas, solicitou o reembolso do IVA na declaração periódica referente ao mês de dezembro de 2015 (201512);
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A Requerente foi objeto de ação inspetiva, efetuada no ano de 2016, ao abrigo da ordem de serviço nº OI2016…, em relação aos anos de 2011, 2012, 2013, 2014 e parte de 2015, da qual resultaram as liquidações adicionais supra mencionadas, incluindo juros compensatórios e moratórios, tudo num total de € 216 085,48 (duzentos e dezasseis mil e oitenta e cinco euros e quarenta e oito cêntimos);
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A Requerente efetuou, no dia 25 de outubro de 2016, o pagamento do imposto no montante de € 164 342,58 (cento e sessenta e quatro mil trezentos e quarenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos).
2.2. Factos não provados
Não existem factos não provados.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo.
3. Matéria de direito
O regime de contencioso previsto no RJAT é de mera legalidade, visando-se apenas a declaração de ilegalidade de actos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do seu artigo 2.º.
Por isso, tem de se aferir da legalidade dos actos impugnados tal como foram praticados, com a fundamentação que neles foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo jurisdicional.
A Requerente, tal como se referiu, exerce a sua atividade no domínio do ensino superior, prestando supletivamente outros serviços, de onde resulta que alguns deles são isentos de IVA enquanto que outros estão sujeitos a tributação.
Como consequência de uma alteração legislativa, destinada a conformar o Código do IVA com a Diretiva comunitária, a Requerente efetuou deduções suplementares de imposto, por entender que tal lhe era permitido, desde sempre, pela Diretiva, a partir da alteração legislativa, pelo Código do IVA.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, no Relatório da Inspecção Tributária subjacente às liquidações impugnadas, entendeu, em suma, que os sujeitos passivos não gozam de plena liberdade na determinação do momento do exercício do seu direito à dedução, já que o nº 2 do artigo 98º do Código do IVA, alegado pela Requerente, estabelece apenas o limite até ao qual pode ser exercido o direito à dedução, não permitindo ao sujeito passivo a liberdade de determinar o momento do exercício desse direito.
Nestes termos, a questão a apreciar consiste em saber se é correcta a posição assumida pela Requerente que sustenta a possibilidade de poder, durante um período de 4 anos, exercer o direito à dedução com base na nova redação do artigo 23º do Código do IVA, tendo presente o estatuído no nº 2 do artigo 98º do mesmo diploma legal.
3.1. Regime legal aplicável
A questão objeto do presente pedido já tem vindo a ser objeto de decisão por parte dos tribunais superiores, mais concretamente do Supremo Tribunal Administrativo que, muito recentemente, no âmbito do processo 01427/14, proferiu um acórdão, datado de 28 de junho de 2017, no qual se estipulou que o prazo aplicável para reclamar do IVA entregue em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito, é de 4 anos, nos termos previstos no artigo 98º, nº 2 do Código do IVA.
No fundo, de acordo com o supra mencionado acórdão, tudo está em saber se, no caso concreto em apreço, a questão controvertida diz respeito a erros materiais ou de cálculo ou perante erros de direito.
No primeiro caso, segundo a jurisprudência firmada, é aplicável o prazo de 2 anos previsto no nº 6 do artigo 78º do Código do IVA, enquanto que, no segundo caso, o prazo é de 4 anos, em conformidade com o estatuído no nº 2 do artigo 98º do mencionado Código do IVA.
Note-se que o artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA se refere à “correção de erros materiais ou de cálculo” no registo contabilístico e nas declarações periódicas, a favor do sujeito passivo, podendo ser realizada no prazo de dois anos, contados, no caso do exercício do direito à dedução, a partir do nascimento do respectivo direito, nos termos do n.º 1 do artigo 22.º do Código do IVA.
Parece por demais evidente que a alteração legislativa produzida em relação ao artigo 23º do Código do IVA, se traduz na introdução de uma regra de imputação direta no que diz respeito ao exercício do direito à dedução, ou seja, passou a estabelecer-se de forma clara e inequívoca que os bens e serviços afetos ao exercício de uma atividade tributada conferem o direito à dedução integral, ao passo que os bens e serviços que estejam afetos ao exercício de uma atividade isenta não conferem tal direito.
A percentagem de dedução que tenha que ser apurada em relação aos bens que são utilizados indistintamente numa e noutra atividade, apenas pode ser concretizada após a realização da imputação direta anteriormente referida.
Ora, uma vez que a prática do exercício do direito à dedução era, até à alteração legislativa, efetuada sem o recurso `imputação direta, julga-se que a conformação com tal método pode evidenciar um erro de direito e não apenas um mero erro material ou de cálculo.
Vale a pena notar que o artigo 95.º-A, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário fornece um conceito de “erros materiais ou manifestos” indicando que nele se integram, “designadamente os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexactidão ou lapso”.
A associação do erro de cálculo ao erro material que se faz neste n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA, revela que os erros de cálculo a que se pretende aludir serão deste tipo, designadamente erros aritméticos nas operações de cálculo do montante a deduzir.
Esta mesma questão foi também explorada em anterior Acórdão do CAAD, considerando-se que estamos “perante um erro material no preenchimento do montante de IVA dedutível numa declaração quando se pretendia escrever um determinado montante e, por descuido ou lapso, acabou por se escrever montante diferente ou quando o erro do preenchimento da declaração resulta de um erro anterior do mesmo tipo que exista na contabilidade ou em algum documento que sirva de base ao exercício do direito à dedução. Estar-se-á perante um erro de cálculo, quando as operações aritméticas para determinar o montante do IVA dedutível foram mal efectuadas, na própria declaração ou em algum dos documentos em que ela se baseou”.[1]
Em face do referido, entendeu o mesmo Tribunal que “o erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA. Designadamente, o erro de cálculo do pro rata não é um erro de cálculo enquadrável nesta norma porque consubstancia um erro de direito sobre o regime jurídico aplicável e não um erro de natureza aritmética.”
Assim, o apuramento do IVA dedutível com base na nova interpretação dada ao disposto no artigo 23.º do Código do IVA, implica o recurso a técnicos qualificados, quer no que diz respeito ao enquadramento das operações no âmbito da sujeição ou da isenção a imposto, quer no que diz respeito à interpretação que deve ser dada relativamente ao método da imputação direta, prévio à utilização do pro rata.
Tudo visto, pode então concluir-se no sentido de que deve proceder a argumentação da Requerente, já que, tratando-se de um erro de direito, o prazo para recuperar o imposto pago em excesso é de 4 anos (prazo geral para o exercício do direito à dedução ou reembolso do imposto entregue em excesso) e não de 2 anos (prazo especial para a dedução do imposto), como sustenta a Autoridade Tributária, por aplicação do disposto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA.
A Requerente efetuou, no dia 25 de outubro de 2016 o pagamento do imposto no montante de € 164 342,58 (cento e sessenta e quatro mil trezentos e quarenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos).
Nesta conformidade, deve proceder igualmente o pedido de restituição da importância paga, acrescida dos juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até efetivo e integral reembolso.
4. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular as liquidações de IVA, dos juros compensatórios e moratórios acima identificados;
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Julgar procedente o pedido de restituição da importância paga, acrescida de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até efetivo e integral reembolso.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 225 186,06 (duzentos e vinte e cinco mil cento e oitenta e seis euros e seis cêntimos).
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros) nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 29 de setembro de 2017
Os Árbitros
(José Poças Falcão)
(Filipa Barros)
(Paulo Lourenço)
[1] Vide, Decisão Arbitral CAAD, Processo n.º 117/2013-T, de 17/05/2013.