Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 84/2017-T
Data da decisão: 2017-09-08  IRC  
Valor do pedido: € 42.194,23
Tema: IRC - prestações suplementares - capital próprio - dedutibilidade de gastos
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Carla Castelo Trindade, Árbitra designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar este tribunal arbitral toma a seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

Em 25 de Janeiro de 2017, a A…, SGPS, S.A., com sede na …-…, n.°…, …, …, distrito de Lisboa e freguesia de …, … e …, no concelho de Oeiras e com o capital social de Euro 50.000,00 (cinquenta mil euros), (doravante Requerente), apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em matéria tributária, aprovado pelo Decreto-Lei 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Mediante o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, a Requerente pretende a anulação do despacho do Chefe da Divisão de Direcção de Finanças, de 26 de Outubro de 2016, que indeferiu a reclamação graciosa da autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), referente ao exercício de 2013, interposta no dia 4 de Maio de 2016 contra os actos de autoliquidação de IRC, referentes ao período de 2013.

Com a petição juntou 4 documentos.

Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitra do tribunal arbitral singular a Dra. Carla Castelo Trindade que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram notificadas dessa designação, não tendo sido apresentado qualquer pedido de recusa da designação como árbitro pela Dra. Carla Castelo Trindade.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 30 de Março de 2017.

Em 18 de Maio de 2017, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta na qual se defendeu por impugnação, defendendo a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral e propugnando pela absolvição da Requerida dos pedidos.

Atendendo a que, no caso, não se verificava nenhuma das finalidades que legalmente estão cometidas à reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, tendo em conta a posição tomada pelas partes nos articulados, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º alínea c) e 19.º do RJAT, bem como os princípios da economia processual e da proibição de actos inúteis, dispensou-se a realização desta reunião tendo as partes sido notificadas para apresentar alegações.

Foram apresentadas alegações pela Requerente em 29 de Maio e em 6 de Junho p.p. pela Requerida.

Ao abrigo do princípio da cooperação e boa-fé processuais previstos no artigo 16.º do RJAT e bem assim do princípio da livre condução do processo previsto no artigo 19.º também do RJAT, em 28 de Junho o Tribunal notificou o Requerente para, no prazo de 10 dias, se pronunciar relativamente à forma utilizada e ao itinerário cognoscitivo, para apurar o valor do processo fixado em 42.194,23 €. Isto porque a questão decidenda no presente processo é a de saber se a perda de € 334.108,79 obtida em resultado da não restituição das prestações suplementares no âmbito da liquidação do Laboratório Análises Clínicas B... – e só desta perda - influencia (ou não) o lucro tributável relativo ao exercício de 2013 em 50% do seu valor, i.e. em € 167.054,40, por subsunção no n.° 3 do artigo 45.º do Código do IRC, como defende a Requerente. Porém, o valor do processo foi fixado em 42.194,23 € (quarenta e dois mil, cento e noventa e quatro euros e vinte e três cêntimos).

Em 7 de Julho p.p., a Requerente apresentou requerimento de resposta à solicitação deste Tribunal, defendendo que como o acto subjacente ao pedido de pronúncia arbitral corresponde a um mero acto de fixação da matéria colectável ou da matéria tributável, uma vez que a correcção proposta pelos Serviços de Inspecção Tributária não daria origem a qualquer liquidação adicional, o valor da causa seria o da liquidação “a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar”, conforme o disposto no número 3 do artigo 3.° do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. In casu o valor da liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretende obstar seria o de 42.194,23 € (quarenta e dois mil, cento e noventa e quatro euros e vinte e três cêntimos).

A entidade Requerida concordou com a argumentação deduzida pela entidade Requerente quanto a esta questão do valor da causa afirmando, em requerimento apresentado em 20 de Julho, “nada ter a obstar à fixação do valor da acção no citado montante de 42.194,23 €”.

O tribunal adere a esta fixação do valor da causa em 42.194,23 € (quarenta e dois mil, cento e noventa e quatro euros e vinte e três cêntimos).

II. SANEAMENTO

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas.

A Requerida invocou, em sede de alegações que:

As doutas alegações da Requerente, salvo o devido respeito, não acrescentam, no seu cômputo geral, à tese que havia sido desenvolvida no igualmente douto pedido de pronúncia arbitral.

Pese embora esta constatação - a qual o tribunal corrobora -, acrescenta ainda a Requerida que:

com as alegações, juntou a Requerente documentação, sem alegar qualquer superveniência. Sendo patente, aliás, que o documento não é superveniente

Conclui assim a entidade Requerida que “o requerimento apresentado não pode ser permitido por carecer de suporte legal, devendo ser o mesmo desentranhado dos autos, sob pena de violação da lei”. Acrescentando ainda a este propósito que “Não sendo deduzida pela Requerente a superveniência e/ou impossibilidade de junção de tais documentos em momento próprio, ou seja, com a apresentação do pedido arbitral, tal junção deve ser indeferida (cf. artigo 108.°, n.° 3 do CPPT, artigo 10.°, n.° 2, als. c) e d) do RJAT, bem como o artigo 423°, n° 1 e 3 do CPC e o artigo 86.°, n° 1 do CPTA”.

Quanto a esta questão cumpre antes de mais referir que, de facto, o documento junto aquando das alegações em nada acrescenta ao circunstancialismo fáctico e probatório do caso em análise e em nada influencia a decisão que se proferirá de seguida. Isto pese embora a junção do documento no ponto 31.º das alegações da Requerente venha a propósito da argumentação desenvolvida pela Administração tributária na Resposta, mais concretamente no ponto 48.

Deste modo a decisão de desentranhamento (ou não) perde relevância na medida em que a decisão do tribunal seria a mesma com ou sem o documento em causa.

Todavia entende ainda assim o presente tribunal - ao abrigo dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas; da livre apreciação dos factos e da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias previstos no artigo 16.º alíneas c) e e) do RJAT -, não ordenar o desentranhamento do documento sub judice.

Com efeito, tal só se justificaria caso houvesse violação do princípio do contraditório o que não sucede no presente caso. E não sucede não só porque a entidade Requerida teve oportunidade de se pronunciar em sede de alegações – onde propugnou pelo desentranhamento – mas também, não sucede, na medida em que o presente documento em nada altera ou prova relativamente à questão decidenda.

Em conclusão, não havendo violação do princípio do contraditório entende este tribunal não ordenar o desentranhamento do documento n.º 1 junto às alegações da Requerente, tudo ao abrigo do disposto nas alíneas c) e e) do artigo 16.º do RJAT.

III. DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e o artigo 607.º, n.º 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Ora, atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental e ao Processo Administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais que integra o grupo empresarial C… (“Grupo C…”).
  2. Este Grupo C… é composto por diversas sociedades, que operam no sector da saúde em Portugal, sendo especializado em áreas essenciais da medicina como análises clínicas, diagnóstico pela imagem, tratamentos oncológicos e acompanhamento psiquiátrico.
  3. À data dos factos a Requerente encontrava-se sujeita ao regime geral de tributação, em sede de IRC, possuindo um período de tributação coincidente com o ano civil, sendo tributada ao abrigo do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), na qualidade de sociedade dominante do Grupo.
  4. A Requerente foi sujeita a uma acção inspectiva externa levada a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária (“SIT”), por referência ao exercício de 2013.
  5. Em dia 20 de Abril de 2016, a Requerente foi notificada do respectivo Projecto de Relatório de Inspecção Tributária, o qual veio propor, entre outras, uma correcção meramente aritmética no montante de Euro 875.120,35 (oitocentos e setenta e cinco mil, cento e vinte euros e trinta e cinco cêntimos) correspondente ao montante que terá deduzido indevidamente no campo 768 do Quadro 07.
  6. A correcção proposta no valor de Euro 875.120,35 (oitocentos e setenta e cinco mil, cento e vinte mil euros e trinta e cinco cêntimos) respeita à não aceitação da dedutibilidade fiscal de perdas obtidas em resultado da alienação de prestações suplementares concedidas à sociedade D…, Lda. no montante de Euro 535.494,97 (quinhentos e trinta e cinco mil, quatrocentos e noventa e quatro euros e noventa e sete cêntimos), bem como em resultado de perdas obtidas subjacentes à liquidação das sociedades E… Lda., no montante de Euro 331.794,50 (trezentos e trinta e um mil, setecentos e noventa e quatro euros e cinquenta cêntimos), e Laboratório Análises Clínicas B…, Lda. no montante de Euro 7.830,88 (sete mil, oitocentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos).
  7. A Requerente constatou assim que não considerou por referência à sociedade Laboratório de Análises Clínicas de B…, Lda., no plano fiscal, uma perda no montante de Euro 167.054,40 (cento e sessenta e sete mil, cinquenta e quatro euros e quarenta cêntimos), apurada no contexto da respectiva liquidação, mas sim o valor de Euro 7.830,88 (sete mil, oitocentos e trinta euros e oitenta e oito cêntimos).
  8. A Requerente apresentou em 5 de Maio de 2016, uma reclamação graciosa contra os actos de autoliquidação de IRC, referentes ao período de 2013, individual e na qualidade de dominante do grupo fiscal.
  9. Nesta reclamação graciosa a Requerente peticionou a correcção da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC individual e de grupo “mediante a consideração de uma dedução fiscal no montante de Euro 1.034.343,87” por oposição ao valor por si originalmente considerado de Euros 875.120,75 (oitocentos e setenta e cinco mil, cento e vinte euros e setenta e cinco cêntimos).
  10. Peticionou ainda a correcção do resultado fiscal negativo apurado no período de tributação de 2013, numa base individual, para Euro 1.088.108,11 (um milhão, oitenta e oito mil, cento e oito euros e onze cêntimos) e, a correcção da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC submetida pela Requerente na qualidade de sociedade dominante do Grupo C… tributado ao abrigo do RETGS, referente ao período de tributação de 2013, de forma a reflectir um resultado fiscal negativo no montante de Euro 3.662.950,58 (três milhões, seiscentos e sessenta e dois mil, novecentos e cinquenta euros e cinquenta e oito cêntimos).
  11. O projecto de decisão que foi notificado para efeitos do exercício de audição prévia, conforme despacho de 5 de Setembro de 2016.
  12. Não tendo sido exercido o direito de audição foi emitido despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa datado de 24 de Outubro de 2016.
  13. A decisão de indeferimento foi notificada à Requerente em 26 de Outubro de 2016.

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispões o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.

IV. DA MATÉRIA DE DIREITO

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente tribunal arbitral consiste em apreciar a legalidade do despacho do Chefe da Divisão de Direcção de Finanças, de 26 de Outubro de 2016, que indeferiu a reclamação graciosa da autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2013, interposta no dia 4 de Maio de 2016.

Aqui uma nota preliminar para referir que como se sabe, o âmbito material da arbitragem é a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

No entanto acompanha-se a este propósito Carla Castelo Trindade (Cf. Carla Castelo Trindade (2016), em “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, p. 149-153) quando refere que:

os actos de segundo ou terceiro graus poderão sempre ser arbitráveis, na medida em que comportem, e só nesta medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa. Na base deste entendimento estará para parte da Doutrina uma interpretação teleológica, designadamente por a alínea a) do n.º 1, do artigo 10.º referir expressamente a “decisão de recurso hierárquico” e está também, ao que se julga, o facto de o acto de segundo ou de terceiro grau estar a apreciar o acto de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte ou pagamento por conta objecto da arbitragem.

Defende-se aqui, por conseguinte, uma interpretação segundo a qual não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do acto tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária. Por outras palavras, esses actos de indeferimento só poderão ser “trazidos” para a jurisdição arbitral, na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do acto tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efectivamente, pretende impugnar pela via arbitral.”

Deste modo, e como bem nota a entidade Requerida em pontos 14 a 16 da Resposta, o objecto da presente acção é aquele que tiver sido o objecto da reclamação graciosa – acto de segundo grau que ora se analisa.

Tendo a Requerente imputado um único vício ao acto impugnado: o vício de violação de lei é esse que se analisará de seguida.

Vício de violação de lei

A questão a decidir no presente processo consiste em saber se a perda de
€ 334.108,79 obtida em resultado da não restituição das prestações suplementares no âmbito da liquidação do Laboratório Análises Clínicas C…, Lda., influencia o lucro tributável relativo ao exercício de 2013 em 50% do seu valor, i.e. em € 167.054,40, por subsunção no n.° 3 do artigo 45.º do Código do IRC, como defende a Requerente. Ou se, ao invés, não contam, na sua totalidade, para a determinação do lucro tributável, por não preenchimento das condições de dedutibilidade dos gastos e perdas previstas nos números 1 e 5 do artigo 23.° e do artigo 41.° do mesmo Código como sustenta a Requerida.

A este propósito cumpre desde já fazer um breve enquadramento da posição que o tribunal irá defender e que, adiante-se, resultará no acolhimento da posição defendida pela Requerente e, consequentemente, na anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa objecto do presente processo.

Assinale-se preliminarmente que os Tribunais não têm que apreciar todos os argumentos formulados pelas partes conforme tem sido repetidamente afirmado pela Jurisprudência (vd inter alia, Acórdão do Pleno da 2ª Secção do STA, de 7 Junho de 1995, proferido no âmbito do recurso n.º 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, pgs. 36-40 e Acórdão do STA – 2.ª Séc – de 23 Abril de 1997, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094, também publicados em www.dgsi.pt).

Assinale-se ainda que a questão o entendimento propugnado por este tribunal e defendido pela Requerente é igualmente partilhado, de forma cristalina, no âmbito de outras decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral Tributário do CAAD, designadamente, nos processos n.° 570/2015, n.° 326/2015-T, n.° 734/2014, n.° 376/2014, n.° 39/2013-T, n.° 24/2013-T, n.° 12/2013-T e n.° 69/2012-T sendo despicienda a repetição dos argumentos e da temática ao caso.

Numa perspectiva histórica a posição da entidade Requerida baseada no parecer do Centro de Estudos Fiscais n.º 107/2004 que defendia a aplicação do artigo 41.º às perdas com prestações suplementares e em geral resultantes da alienação de créditos suscitava, já à data dos factos, várias reservas. Hoje a questão é inteiramente distinta como se sabe. Com efeito, com as evoluções posteriores, e em especial pós reforma do IRC, o legislador passou a estabelecer um tratamento idêntico entre as prestações suplementares e as partes sociais, encontrando-se, assim, ultrapassada a doutrina defendida no parecer do Centro de Estudos Fiscais n.º 107/2004.

E, muito embora, se afigure a este tribunal que, em teoria, seria desejável que o artigo 23.º, n.º 5 se aplicasse quer a partes sociais quer às prestações suplementares, o mesmo sucedendo relativamente ao n.º 3 do artigo 45.º do CIRC, de facto a redacção do n.º 5 do artigo 23.º do CIRC ao referir-se a “partes de capital” não era, à data dos factos, taxativa quanto à inclusão (ou não) das prestações suplementares no respectivo âmbito dificultando a defesa da sua inclusão, como o ilustra o facto de a própria entidade Requerida a dado passo se referir às prestações suplementares como não integrando o conceito de partes de capital. Na linha, aliás, da posição preconizada por toda a Doutrina que defende que as prestações suplementares não integram o conceito de partes de capital.

Por outro lado, resulta expressamente do disposto do n.º 3 que as perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a prestações suplementares tem a natureza de menos-valias, pelo que, contrariamente à posição defendida pela entidade Requerida, o disposto no artigo 41.º não será aplicável ao caso sub judice.

Em face do exposto, em face dos argumentos deduzidos pelo Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral e, bem assim, nas alegações apresentadas, entende este tribunal assistir razão à Requerente considerando que a perda de € 334.108,79 obtida em resultado da não restituição das prestações suplementares no âmbito da liquidação do Laboratório Análises Clínicas C…, Lda., influencia o lucro tributável relativo ao exercício de 2013 em 50% do seu valor, i.e. em € 167.054,40, por subsunção no n.° 3 do artigo 45.º do Código do IRC. Posto isto, e não vendo o tribunal necessidade de replicar toda a discussão técnica que se defende nos articulados na medida em que subscreve a argumentação defendida pela entidade Requerente e a jurisprudência e a Doutrina que esta cita, conclui-se, pois, que a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa é ilegal por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica sua anulação nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e 2.º, alínea c) da LGT.

Há porém uma questão a analisar na medida em que a posição do tribunal é ligeiramente distinta da defendida pela entidade Requerente e que se prende com a problemática da conversão de suprimentos em prestações suplementares.

Tudo porque um dos pontos suscitados pelos SIT é de que (...) a reclamante registou prestações suplementares nessa sociedade (...) as quais resultaram da conversão de suprimentos [sendo que] a entrada do dinheiro em suprimentos ocorreu, em geral, em data muito diferente da conversão em prestação suplementar”, e que tal facto seria suficiente para retirar a natureza de prestações suplementares.

A Requerente, não concorda com este entendimento dizendo desde logo que “o requisito previsto no número 2 do artigo 210.° do CSC, o qual dispõe que as “prestações suplementares têm sempre dinheiro como objeto”, encontra-se preenchido, atento o princípio da substância sobre a forma constante, designadamente do número 3 do artigo 11.° da LGT, num cenário de conversão de suprimentos em prestações suplementares, quando aqueles tiveram na origem dinheiro por objecto”. Acrescenta ainda a Requerente a este propósito que “a conversão de suprimentos em prestações suplementares consubstanciou uma decisão aprovada em acta de Assembleia Geral.”.

O certo é que a Administração Tributária em momento algum accionou o procedimento consagrado no artigo 63.°do CPPT que regula a aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso (CGAA) consagrada no artigo 38.º da LGT.

Ora, o artigo 75.º, n.º 1 da LGT estabelece que “as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos” presumem-se verdadeiras e de boa-fé. Estabelece-se, assim, uma presunção de veracidade das declarações dos contribuintes, apresentadas nos termos da lei, bem como dos dados que constarem da sua contabilidade e escrita, se estiverem de acordo com a legislação comercial e fiscal. Esta presunção resulta não só do artigo 75.º, n.º 1 da LGT mas também do artigo 100.º do CPPT dos quais decorre a presunção de veracidade da actuação do contribuinte.

A este propósito Serena Neto e Carla Castelo Trindade afirmam que “Daqui resulta que as dúvidas que possam surgir sobre a existência e quantificação de um facto tributário devam ser valoradas processualmente a favor do contribuinte, anulando-se o acto impugnado[1]. Esta presunção não é, no entanto, inilidível, cabendo à Administração Tributária o ónus da prova da falsidade das declarações dos contribuintes. Por outro lado, esta presunção deixa de existir, invertendo-se portanto o ónus da prova, de acordo com o artigo 100.º, n.º 2 do CPPT, quando o contribuinte não cumprir as suas obrigações de manutenção de elementos que permitem o controlo das suas declarações[2].”. (Cf. Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade (2017), em “Contencioso Tributário”, Volume I, Procedimento, Princípios e Garantias, p. 160).

Assim, olhando às regras do ónus da prova previstas no artigo 74.º da LGT e não tendo havido inversão do mesmo, não se vislumbram razões para, no caso em apreço, desconsiderar a natureza de prestações suplementares tal como decidido pela Assembleia Geral e tal como registado na contabilidade da Requerente a menos que tal resultasse da aplicação da CGAA, o que não é o caso. Para maiores desenvolvimentos sobre o ónus da prova e a sua inversão em caso de declarações que gozam de presunção de veracidade remete-se para o mesmo Manual dessa feita para as páginas 639 a 647.

Além do mais, mesmo que o mecanismo da CGAA tivesse sido accionado a verdade é que o n.º 5 do artigo 23.º não se aplicava – nem, ao que se julga, nunca foi pretendido que se aplicasse - aos suprimentos e a aplicação do artigo 41.º aos casos de alienação sempre foi matéria controvertida mesmo dentro da Administração Tributária.

Procede, assim totalmente o pedido de pronúncia arbitral.

Juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda que seja determinado o pagamento de juros indemnizatórios por considerar que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, objecto do presente pedido, resulta de erro de aplicação dos pressupostos de facto e de direito de que a lei faz depender a correcção proposta pela Administração tributária, sendo, por conseguinte, o erro em questão inteiramente imputável à Administração tributária.

Antes de mais o presente tribunal é competente para analisar a questão da eventual condenação da Administração tributária a juros indemnizatórios tal como disposto na alínea b) do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária na medida em que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária[3].

Já nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” mais não é do que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

A doutrina também tem defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou à condenação por indemnização por garantia indevida (Cf. Carla Castelo Trindade (2016), “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, 121 e Jorge Lopes de Sousa (2013), “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, 116).

Foi também esse o entendimento do tribunal arbitral constituído no âmbito do processo n.º 66/2013-T, onde estavam também em causa pedidos de reembolso e condenação no pagamento de juros indemnizatórios. Concluiu aquele tribunal que:

“Assim, à semelhança do que sucede nos tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.

No caso em apreço, é claro que estes pedidos têm de proceder, já que as liquidações são anuladas e o erro de que enfermam é imputável à Administração Tributária, pelo que o direito a juros indemnizatórios e (sic.) reconhecido pelo artigo 43.º, n.º 1 da LGT.”

A este propósito defende a Requerente que não obstante estarmos perante uma correcção meramente aritmética ao prejuízo fiscal apurado no exercício de 2013, tendo em consideração os argumentos aduzidos no pedido e tendo sido demonstrado que o pressuposto do erro imputável aos serviços se encontra preenchido - por considerar que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa resulta num erro de aplicação dos pressupostos de facto e direito por parte da Administração tributária na sequência da respectiva inspecção tributária -, deverá a entidade Requerida ser condenada ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto no artigo 43.° da LGT, sobre o pagamento de dívida tributária que, eventualmente, venha a ser exigido em montante superior ao legalmente devido em resultado do ajustamento do prejuízo fiscal do exercício de 2013.

Sobre esta temática do recorte do conceito de erro imputável aos serviços defendem Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade que:

“quando a liquidação do tributo se efectiva através da autoliquidação, há quem entenda que os erros cometidos pelo sujeito passivo devem ser equiparados aos erros dos serviços, equiparação que não é estranha ao sistema, designadamente pela regra que constava do artigo 78.º, n.º 2 da LGT (que equiparava, para efeitos de revisão, a autoliquidação à liquidação), sendo imputável à Administração o pagamento de tributo em montante superior ao devido. Na verdade, a lei parece adoptar uma concepção objectiva do dever de indemnizar, não interessando quem em concreto procedeu à liquidação. Este entendimento é discutível pois poder-se-á defender que os erros são do sujeito passivo e não dos serviços, sendo que a opinião dominante é a de que, nestes casos, não há lugar a pagamento de juros indemnizatórios. Este entendimento ganhou mais força com a revogação do referido n.º 2 do artigo 78.º da LGT pela Lei de Orçamento do Estado para 2016, deixando de se considerar como erro imputável aos serviços o erro na autoliquidação, para efeitos de revisão dos actos tributários, tema que analisaremos em momento próprio. Porém, não podemos concordar com a posição que estenda este entendimento a outros casos além dos da revisão. Com efeito, deverá haver direito a juros indemnizatórios quando a liquidação do tributo se efectiva por autoliquidação uma vez que deve ter-se como erro imputável aos serviços o erro do contribuinte na assunção de uma tarefa que inicialmente era atribuída à Administração Tributária – liquidar o imposto. Assim, caso se admita como possível a Administração Tributária não responder pelos prejuízos resultantes destes erros, o contribuinte será duplamente penalizado, pois não só é obrigado à gestão de todas as obrigações declarativas e de liquidação daquele tributo assumindo portanto um risco que originalmente não seria seu mas da própria Administração Tributária, como também tem de suportar os custos dos erros cometidos em seu desfavor que resultam em enriquecimento indevido para a Administração Tributária. O que é líquido é que se o contribuinte procedeu à autoliquidação seguindo orientações genéricas erróneas tem igualmente direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 2 da LGT.

Quando o erro não se considere imputável aos serviços, por exemplo em caso de erro na autoliquidação quando o sujeito passivo não seguiu uma orientação genérica errónea, este passa a ser imputável à Administração Tributária após o indeferimento expresso ou tácito da pretensão do contribuinte em sede de reclamação graciosa ou recurso hierárquico. A partir deste momento temos um acto da autoria da Administração Tributária no qual esta toma uma posição acerca da situação do contribuinte, pelo que o eventual erro sempre lhe será imputável. A Administração já teve oportunidade de proferir um acto legal, anulando o acto que padecia de um erro imputável ao sujeito passivo e, não o tendo feito, assumiu então a autoria do erro.” (Cf. Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade (2017), em “Contencioso Tributário”, Volume I, Procedimento, Princípios e Garantias, p. 222 e 223).

Assim, concluindo este tribunal que a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa objecto do presente processo é ilegal por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica sua anulação nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e 2.º, alínea c) da LGT, procede também o pedido da Requerente a juros indemnizatórios cujo termo inicial será a data em que ocorreu a da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.

V. DECISÃO

Termos em que se decide neste tribunal arbitral:

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b) Declarar a ilegalidade e consequente anulação do despacho do Chefe da Divisão de Direcção de Finanças, de 26 de Outubro de 2016, que indeferiu a reclamação graciosa da autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2013, interposta no dia 4 de Maio de 2016 contra os actos de autoliquidação de IRC, referentes ao período de 2013;

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT desde a data da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.

VI. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em 42.194,23 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa 8 de Setembro de 2017

 

A Árbitro

 

 

 

(Carla Castelo Trindade)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.



[1] Esta valoração das dúvidas a favor do contribuinte, ou seja, a aplicação do princípio in dubio contra fiscum, não constitui uma regra de interpretação da lei mas apenas de decisão sobre facto incerto Cf. ALBERTO XAVIER “Manual de Direito Fiscal” (1974) p. 172.

[2] DIOGO LEITE CAMPOS/BENJAMIM SILVA RODRIGUES/JORGE LOPES DE SOUSA (2012), p. 495 e RUI DUARTE MORAIS (2012), p. 32.

[3] Que estabelece, que “a Administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.