Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, LDA., pessoa colectiva nº…, com sede na Rua …, n.º…, …, …– … …, apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com vista a obter a anulação dos actos de liquidação n.º 2017… e n.º 2017…, relativos ao ano 2015, no valor total de €14.535,04.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD em 30 de Março de 2017 e automaticamente notificado à AT.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 1 de Junho de 2017.
A AT respondeu defendendo a improcedência do pedido.
Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em face do teor da matéria contida nos autos.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
Não ocorrem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento imediato do mérito da causa.
II. MATÉRIA DE FACTO
Com base nos elementos que constam do processo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:
A) A Requerente é proprietária de ½ dos terrenos para construção correspondentes aos artigos … e …, da união das freguesias de … e …, do concelho e distrito de Aveiro;
B) Os referidos terrenos para construção têm um valor patrimonial tributário (VPT) de €1.870.420,00, sendo o VPT da parte que permite a edificação de prédios habitacionais de €1.453.481,07;
C) Consta do plano de Pormenor do Centro (PPC) que regula a viabilidade de construção dos referidos lotes de terreno, a construção em cada um deles de 37 fogos em regime de propriedade horizontal (prédio com 5 pisos) – nºs 30 e 31 do Sector V com a área de 1925m2;
D) A 5 de Janeiro de 2017, a Requerente foi notificada dos actos de liquidação de IS n.º 2017 … e 2017 …, relativos à verba 28.1 da TGIS e ao ano 2015, no valor total de €14.535,04;
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III. MATÉRIA DE DIREITO
A principal questão que se coloca nos presentes autos reconduz-se a saber se a norma constante da verba 28 e 28.1 da TGIS subjacente aos actos de liquidação sub judice é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva.
A – DA POSIÇÃO DAS PARTES
A Requerente alega no seu pedido de pronúncia arbitral o seguinte:
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A verba n.º 28.1 da TGIS incide sobre a propriedade, o usufruto ou o direito de superfície de prédios habitacionais ou terrenos para construção cuja edificação prevista ou autorizada seja para habitação, cujo valor patrimonial tributário constante da matriz seja igual ou superior a €1.000.000;
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Esta norma foi introduzida pelo legislador com vista à tributação de situações de propriedade de imóveis de elevado valor e, por isso, reveladoras de uma acrescida capacidade contributiva, justificativa de um maior contributo para o esforço de consolidação financeira do Estado e equilíbrio orçamental;
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Como decorre dos trabalhos de apresentação e discussão na Assembleia da República da proposta de lei subjacente a esta alteração ao Código do IS, a mesma insere-se num quadro de “medidas que reforçam efectivamente uma justa e equitativa distribuição do esforço de ajustamento por um conjunto alargado e abrangente de sectores da sociedade portuguesa”, tendo a verba nº 28 da TGIS sido criada inicialmente sobre “os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor” e estendida, em 2014, através da lei do Orçamento de Estado para esse ano aos terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação;
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A esta luz, ser proprietário de um prédio de valor igual ou superior a €1.000.000 ou ser comproprietário do mesmo prédio são situações a valorar de modo diferente, já que a capacidade contributiva revelada em cada uma das situações é distinta;
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Por essa razão, a sujeição do comproprietário ao IS previsto na verba 28.1 da TGIS depende de a sua quota-parte ter um valor igual ou superior a €1.000.000, por ser esse o limiar de relevância tributária previsto na lei;
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Para este efeito, há que equiparar o comproprietário ao proprietário singular, de forma a observar os princípios da igualdade e da capacidade contributiva;
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A capacidade contributiva manifestada pela compropriedade de metade de um terreno para construção com o valor patrimonial de €1.000.000 é exactamente igual à da propriedade de um terreno para construção com o valor patrimonial de €500.000;
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Assim, ao sujeitar-se a tributação a primeira situação e não a segunda, quando existe identidade no que respeita à capacidade contributiva revelada, não está a ser respeitado o princípio da igualdade material;
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Na verdade, não há nada que distinga em termos de capacidade contributiva, a propriedade de um terreno para construção com um valor patrimonial tributário de €500.000 – que não é tributada – da propriedade de uma quota-parte de um prédio à qual corresponda um valor patrimonial de €500.000;
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No caso em apreço, a requerente é comproprietária, na proporção de ½, dos lotes de terreno para construção supra identificados, cujo valor patrimonial tributário é de €1.870.420,00, sendo o valor patrimonial da parte que permite a edificação de prédios habitacionais de €1.453.481,07;
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Isto significa que o seu direito de propriedade corresponde, nesta parte e em cada um deles, a uma quota ideal de €726.740,54;
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Se fosse proprietária singular de um terreno para construção, com um valor patrimonial tributário de €726.740,54 e cuja edificação prevista ou autorizada fosse para habitação, não estava sujeita a IS, porque, na óptica do legislador, não era proprietária de um prédio que traduzisse uma acrescida capacidade contributiva;
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Por esta razão e à luz do critério da capacidade contributiva e da igualdade de tratamento perante a lei, as liquidações de IS aqui em causa traduzem um tratamento desigual de situações iguais;
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Impõe-se, assim, no caso vertente, que seja efectuada uma interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa (CRP) e aos princípios supra enunciados, de forma a assegurar a sua salvaguarda e impedir que haja um tratamento desigual de situações materialmente iguais;
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Essa interpretação impõe que, no âmbito da aplicação da verba 28 da TGIS, se equipare a propriedade à compropriedade, fazendo depender a incidência do imposto, nos casos de compropriedade, do valor da quota-parte do comproprietário ser igual ou superior a €1.000.000, por ser esse o critério de tributação que é aplicável aos proprietários singulares;
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Ou seja, nos casos de compropriedade, a sujeição a IS deve atender ao valor da quota-parte e não ao valor patrimonial total do imóvel, sob pena de violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva;
Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:
1. As liquidações impugnadas tiveram como base o VPT dos terrenos para construção na parte que se destina a edificação afecta a habitação prevista ou autorizada;
2. A Verba 28.1 da TGIS, na redacção conferida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, dispõe que o IS incide sobre: “28- a Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI; 28.1- Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI - 1%”;
3. E como se sabe, nos termos do n.º 2 do art.º 67.º do Código de IS na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, às matérias não reguladas no Código, respeitantes à verba 28.1 da TGIS, aplica-se subsidiariamente o disposto no Código do IMI;
4. A determinação do VPT dos terrenos para construção tem como pressuposto a determinação do valor das edificações autorizadas ou previstas, para o que se deve, nos termos do disposto no artigo 38.º do Código do IMI, atender à afectação dessas mesmas edificações;
5. Para o efeito, impõe o n.º 3 do artigo 37.º do Código do IMI a apresentação do alvará de loteamento, ou na falta deste, do alvará de licença de construção, projecto aprovado, comunicação prévia, informação prévia favorável ou documento comprovativo de viabilidade construtiva.
6. Em suma, na avaliação do terreno para construção atende-se necessariamente à área a construir autorizada e à utilização a ser dada a essa construção, ou seja, às características do prédio urbano que nele se vai construir, mas não ao VPT do edifício ou fracção do edifício que vier a ser construído, como parece pretender a Requerente nos artigos 47, 48º e 49º da douta Petição Inicial;
7. Neste sentido, cite-se José Manuel Fernandes Pires, in Lições de Impostos sobre o Património e do Selo (Coimbra, Almedina, 3ª ed., 2015, p.110 a 112), ao referir que “O direito a construir não está ínsito no direito de propriedade, mas só nasce ex novo no património do proprietário quando um acto administrativo da entidade pública competente reconhece e autoriza o proprietário a construir ou a lotear. (…) só quando esse direito se constitui na esfera jurídica do proprietário é que o Código do IMI estabelece que estamos perante um terreno para construção. Sendo esse acto constitutivo praticado pela entidade pública a requerimento do proprietário, então a classificação de um prédio como terreno para construção depende sempre da vontade do proprietário”.
8. Na mesma linha de entendimento, António Santos Rocha e Eduardo José Martins Brás referem: “os imóveis situados em zonas urbanizadas ou incluídas em áreas abrangidas por planos de urbanização já aprovados (…) apenas devem ser considerados como terrenos para construção quando, por acção desencadeada pelo respectivo proprietário, se verifiquem, em alternativa, a emissão de qualquer daqueles documentos- concessão de licenças, autorizações de construção ou loteamento, comunicações ou informações prévias favoráveis para o mesmo desiderato.” (Tributação do Património. IMI-IMT e Imposto do Selo Anotados e Comentados (Coimbra, Almedina, 2015, p 44).
9. A incidência do IS sobre os terrenos para construção implica, em concreto, a efectiva potencialidade de edificação nos terrenos em causa, conforme resulta do artigo 45.º do Código do IMI;
10. Concluindo, os actos de liquidação em crise consubstanciam uma correcta interpretação e aplicação da verba 28.1 da TGIS, na redacção da Lei n.º 83-C/2013, que expressamente prescreve como elemento objectivo de incidência os terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista seja para habitação com um VPT igual ou superior a €1.000.000,00;
11. Do que vem de se expor, não se vê, nem a Requerente logrou demonstrar, como, e em que medida, o acto de liquidação sob impugnação violou o princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP na vertente da capacidade contributiva;
12. O legislador, com a Verba 28.1 da TGIS, introduziu um princípio de tributação sobre a riqueza exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície sobre os prédios urbanos com afectação habitacional, de mais elevado valor, ditos de luxo, e que se traduziu na fixação de um valor mensurável - o VPT igual ou superior a €1.000.000,00;
13. O critério legislativo assentaria no facto de a propriedade de imóveis afectos a habitação de valor igual ou superior a €1.000.000,00 demonstrar uma superior capacidade contributiva do respectivo proprietário na medida em que pressupõe meios financeiros susceptíveis de serem mobilizados na aquisição de um único imóvel naquele valor para sua habitação própria;
14. A norma da Verba 28.1 não pode deixar de se enquadrar no objectivo expresso do legislador de onerar adicionalmente os prédios habitacionais de valor mais elevado na consecução de repartir, para além dos titulares de rendimentos e pensões, também pelos titulares de determinado património imobiliário, os sacrifícios impostos pela austeridade numa conjuntura económica e financeira concreta do país.
15. É neste enquadramento que se pode aferir a conformidade da Verba 28.1 com o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva.
16. O conteúdo e conformação do princípio da igualdade na dimensão da capacidade contributiva tem sido abundantemente tratado pela Jurisprudência e Doutrina, concluindo-se que a norma da verba 28.1 da TGIS não afronta o princípio da capacidade contributiva e não contém definições legislativas arbitrárias e injustificadas de impostos;
17. O legislador elegeu de forma racional e objectiva um determinado pressuposto de facto como base de incidência: a fixação de um VPT de €1.000.000,00 assente em elementos majorativos e minorativos constantes das tabelas do artigo 43.º do Código do IMI;
18. No caso dos autos, uma situação de compropriedade, o VPT a ter em conta é o VPT global dos imóveis que corresponde a cada um dos comproprietários.
19. Por outro lado, como se evidenciou na Decisão Arbitral tirada no processo nº 366/2014-T, a capacidade contributiva de alguém que adquire onerosamente um prédio habitacional com um VPT de €1.000.000,00 não terá necessariamente de ser idêntica à de quem adquire dez prédios urbanos afectos a habitação com um VPT de €1.000.000,00, na medida em que a taxa a aplicar é substantivamente diferente.
20. O legislador teve em vista, ao eleger a base de incidência da Verba 28.1 da TGIS, os terrenos em construção com destino único ou predominantemente destinado a fins habitacionais, em obediência ao desiderato político expresso na Proposta de Lei traduzido na justa repartição do esforço fiscal, como acima se referiu, pelo que a Verba 28.1 da TGIS não incorre em nenhuma arbitrariedade ou de alguma forma viola o princípio da igualdade em matéria tributária na vertente da capacidade contributiva, ao contrário do alegado pela Requerente;
21. Em conclusão, atendendo à ratio da Verba 28.1 da TGIS, à natureza e estrutura do imposto, bem como a manifestação de riqueza ou rendimento que o legislador teve em vista capturar, as liquidações impugnadas nos presentes autos não incorrem em qualquer ilegalidade ou consubstanciam violação do princípio da igualdade consignado no artigo 13º da CRP em todas as suas vertentes.
Face ao exposto, relativamente à posição das Partes e aos argumentos apresentados, para determinar se os actos de liquidação de IS sub judice são ou não ilegais será necessário verificar a) qual é a interpretação que deve ser dada à verba 28 e 28.1 da TGIS, no sentido de determinar de que modo deve ser aferido o VPT de €1.000.000 e b) se a tributação dos terrenos para construção é ou não inconstitucional.
Vejamos o que deve ser entendido.
IV. DECISÃO
A. Incidência da verba 28 da TGIS
Estabelece o artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT), o princípio de que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.
Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
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É à luz dos referidos normativos que deve ser apreciada a norma constante da verba 28 e 28.1. da TGIS, que determina a incidência de IS sobre:
“Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a €1.000.000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1. – Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI…… 1%.”
Assim, do ponto vista da literalidade da norma, constata-se que o imposto incide sobre a) a “propriedade” (…) b) de prédios urbanos c) cujo VPT seja igual ou superior a €1.000.000.
Ora, no caso em análise, a Requerente é proprietária, em ½ dos terrenos para construção objecto dos actos de liquidação contestados.
Os terrenos para construção constituem prédios urbanos, para efeitos da incidência do imposto, densificando-se no ponto 1 da verba 28 que a incidência do imposto abrange os terrenos para construção “cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI.”
Resulta dos factos provados que, na sequência de reclamação apresentada, o IS liquidado incide apenas sobre a área com edificação prevista para habitação, não havendo, portanto, dúvidas actuais de que o IS liquidado incidiu sobre a área de edificação prevista no plano de pormenor do centro.
Por fim, verifica-se da análise das cadernetas prediais urbanas, juntas aos autos, que o VPT dos terrenos para construção, em discussão, é superior a €1.000.000.
Entende a Requerente que, por ser apenas proprietária em ½ do prédio ou comproprietária, o VPT deve ser reduzido, em função, da sua quota.
Da análise da verba 28.1 resulta que o valor de €1.000.000 é aferido em função do VPT do prédio, determinado para efeitos de IMI.
Na verdade, segundo uma interpretação literal da norma, a determinação do VPT relevante deve ser aferido em função do prédio e não do sujeito passivo e nos termos previstos no Código do IMI.
O Código do IMI estabelece nos seus artigos 7.º e 45.º a forma de determinação do VPT dos terrenos para construção, não resultando, em caso algum, que a compropriedade dos terrenos para construção determina a redução do VPT para efeitos da verba 28 e 28.1 da TGIS.
Na verdade, contrariamente ao que ocorre com a propriedade horizontal, em que cada uma das fracções autónomas constituem, no fundo, um prédio para efeitos de IMI, os terrenos para construção detidos em regime de compropriedade continuam a ser um único prédio, apesar de se encontrar prevista a edificação de fogos em regime de propriedade horizontal. Por essa razão, os terrenos para construção têm apenas um VPT e é sobre esse VPT que incide o IS, sendo certo que o valor do imposto apurado deve ser repartido pelos vários sujeitos passivos, em função das suas quotas.
Defende a Requerente que, atendendo ao elemento histórico e teológico da norma em análise, apenas se respeitaria o princípio da capacidade contributiva e o princípio da igualdade se a tributação em IS incidisse sobre a quota-parte de cada sujeito passivo e não sobre o VPT total dos prédios.
Entende-se, contudo, que o que resulta dos propósitos enunciados aquando da criação da vulgarmente designada “taxa de luxo” é o de se pretender tributar a riqueza exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos de luxo que, pelo seu valor bastante superior ao da generalidade dos prédios urbanos, revela maiores indicadores de riqueza, susceptível de fundar a imposição de contributo acrescido para o saneamento das contas públicas aos seus titulares, em realização do aludido “princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efectiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento.” – (Vide proposta de Lei n.º 96/XII).[1]
Em face do exposto, entende-se que, atendendo aos elementos de interpretação das normas, a incidência de IS, à luz da verba 28 e 28.1 da TGIS, sobre os terrenos para construção detidos pela Requerente, enquanto comproprietária, cujo VPT é superior a €1.000.000 não é ilegal.
Vejamos agora se haverá inconstitucionalidade da tributação.
B. Os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva
De acordo com a Requerente, os actos de liquidação de IS sub judice sofrem de vício de inconstitucionalidade, pois, nenhuma das fracções cuja construção está autorizada ou prevista tem valor superior a €1.000.000, sendo, portanto, discriminatória e arbitrária a sua tributação.
Para analisar a argumentação da Requerente importa atender ao disposto na Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece no seu artigo 13.º o princípio da igualdade, nos seguintes termos:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Por sua vez, o artigo 103.º da CRP determina o seguinte:
“1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”
E, por fim, o artigo 104.º da CRP estabelece o seguinte:
“1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.
2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.
3. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos.
4. A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo.”
Passemos, então, a apreciar o parâmetro de constitucionalidade da norma constante da verba 28 e 28.1. da TGIS, que determina a incidência de IS sobre o VPT dos terrenos para construção determinado nos termos do Código do IMI.
O princípio constitucional da igualdade tributária constitui uma expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade, “que traduz não apenas uma igualdade formal – uma igualdade perante a lei, (…), mas também e sobretudo uma igualdade material – uma igualdade da lei, que obriga, em diversos termos, também o legislador.”[2]
Assim, o princípio da igualdade fiscal desdobra-se em dois aspectos: o aspecto da generalidade dos impostos e o aspecto da uniformidade dos impostos.
Na vertente da generalidade dos impostos, o princípio da igualdade fiscal determina que o dever de pagar impostos é universal, enquanto que na vertente da uniformidade dos impostos implica o referido princípio a adopção de um mesmo critério para todos os contribuintes.
No fundo, “o princípio da igualdade fiscal exige que o que é (essencialmente) igual, seja tributado igualmente, e o que é (essencialmente) desigual, seja tributado, desigualmente na medida dessa desigualdade.”[3]
Para aferir do que é igual e do que é desigual surge, então, o critério da capacidade contributiva, que se concretiza na vertente da igualdade horizontal quando impõe que os contribuintes com a mesma capacidade contributiva paguem o mesmo imposto, e na vertente da igualdade vertical, na medida em que conduz a que os contribuintes com diferente capacidade contributiva paguem impostos diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente), sendo proibido o arbítrio.
A este propósito entende a Requerente que o IS sobre a propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos com afectação habitacional e de terrenos para construção, de valor patrimonial superior a €1.000.000, à taxa de 1%, não respeita o princípio da igualdade, na medida em que sujeita a tributação em IS a propriedade de terrenos para construção, cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a €1.000.000, relativamente aos quais a edificação, autorizada ou prevista, não inclua qualquer habitação individual de valor igual ou superior a esse.
Não assiste, no entanto, razão à Requerente.
Na verdade, do princípio da igualdade tributária não resulta a proibição da liberdade de opção por parte do Legislador de tributação de determinados factos tributários em detrimentos de outros, mas sim a proibição do arbítrio.
No caso em análise, o Legislador considerou que sobre os prédios urbanos habitacionais e (mais tarde) sobre os terrenos para construção cuja edificação seja para habitação deveria incidir a vulgarmente designada “taxa de luxo”, no âmbito do esforço de consolidação orçamental.
Pretendeu-se com a referida tributação repartir os sacrifícios exigidos aos proprietários de prédios habitacionais de elevado valor com aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho (Vide Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF), acordado entre o Governo Português e FMI, a Comissão Europeia e o BCE).
A criação deste novo facto tributário ocorreu no contexto de crise económica e de grave crise nas finanças públicas, com o propósito de aumentar as receitas fiscais do Estado, através da tributação daqueles que revelam maiores indicadores de riqueza.
Neste contexto, a tributação incide sobre o VPT dos terrenos para construção cuja edificação seja para habitação, nos termos da verba 28.1. da TGIS, não fazendo o legislador depender o VPT destes terrenos para construção do valor das futuras fracções individualmente consideradas.
Embora se entenda que ambos os factos tributários – os terrenos para construção e as fracções habitacionais que resultem de construção posterior - são potencialmente objecto de tributação, nos termos legais, essa tributação ocorre em relação a diferentes factos tributários e em diferentes momentos temporais. Não sendo possível comparar o incomparável, isto é, os prédios existentes e os prédios futuros, por ausência de termo comparativo. Não há assim discriminação positiva.
A este propósito tem sido entendido que “Só podem ser censurados com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que dela resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem (…) este princípio, na sua dimensão de proibição do arbítrio, constitui um critério essencialmente negativo (…) que, não eliminando “a liberdade de conformação legislativa” – entendida como a liberdade que ao legislador pertence de “definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” – compete aos tribunais não a faculdade de se subtraírem ao legislador, “ ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (do que seria a solução ideal do caso)”, mas sim a de “afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem racionalmente.”[4]
Tendo em conta o exposto, considera-se que os factos tributários contemplados pela verba 28.1 da TGIS não foram escolhidos de forma arbitrária, sendo a sua opção justificada pelo contexto político-económico subjacente. Tal entendimento já foi, aliás, por diversas vezes, expresso pelo Tribunal Constitucional[5] que, no Acórdão n.º 590/2015, entendeu o seguinte:
“ não se encontra na norma de incidência em apreço medida fiscal arbitrária, porque desprovida de fundamento racional. (…) a alteração legislativa teve como propósito alargar a tributação do património, fazendo-a recair de forma mais intensa sobre a propriedade que, pelo seu valor bastante superior ao da generalidade dos prédios urbanos com afectação habitacional, revela maiores indicadores de riqueza e, como tal, é suscetível de fundar a imposição de contributo acrescido para o saneamento das contas públicas aos seus titulares, em realização do aludido “princípio da equidade social na austeridade.
(…)
Assim sendo, a aferição do respeito pelo princípio da igualdade fiscal na sua dimensão material carece de ser referida à unidade prédio afeto á habitação, o que importa a conclusão de que (…) não existe discriminação arbitrária entre contribuintes na operação uniforme do critério substantivo relevante, traduzido na atribuição a cada prédio com afetação habitacional de valor patrimonial tributário igual ou superior a €1.000.0000,00.”
Não procede assim o argumento da Requerente de que a norma de incidência aqui em discussão viola o princípio da igualdade.
Pelas razões expostas acima, este Tribunal também não considera que se encontre beliscado o princípio da capacidade contributiva pela exclusão de outros prédios, para além dos contemplados na norma, que revelam igual capacidade contributiva.
Na verdade, o princípio da capacidade contributiva não vale de igual modo relativamente a todo o tipo de imposto, tendo uma expressão de 1.º grau nos impostos sobre o rendimento, uma expressão de 2.º grau nos impostos sobre o património e uma expressão de 3.º grau nos impostos sobre o consumo.
Deste modo, entende-se que quanto à tributação do património, o Legislador está essencialmente obrigado a contribuir para a igualdade entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 3 da CRP), o que não o impede de proceder à discriminação de patrimónios, tributando os mais elevados e isentando os mais baixos.
Atendendo ao princípio da capacidade contributiva, enquanto critério de determinação do respeito pelo princípio da igualdade tributária, constata-se que o facto tributário eleito pelo legislador na verba 28.1. da TGIS é revelador de capacidade contributiva, havendo também conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado pelo Legislador.
De facto, a norma em análise elegeu como pressuposto económico o direito propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos ou terrenos para construção cuja edificação seja para habitação, de valor patrimonial superior a €1.000.000,00 e a esse pressuposto económico fez corresponder uma taxa de 1%.
Em suma: tendo em conta que da caderneta predial urbana dos terrenos para construção em análise consta que o VPT é superior a €1.000.000, é aqui aplicável a taxa prevista na verba 28.1. da TGIS, não havendo violação do princípio da igualdade tributária.
V. DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação de IS, relativos ao ano 2015, referentes aos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana sob o artigo … e …, da união das freguesias de … e …, do concelho e distrito de Aveiro.
VI. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em €14.535,04.
VII. DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
A) Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação do indeferimento das reclamações graciosas apresentadas relativamente aos actos de liquidação de IS identificados;
B) Condenar a Requerente nas custas do presente processo, por ser a parte vencida.
VIII. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1 a) do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em €14.535.04.
IX. CUSTAS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de Julho de 2017
A Árbitro
Magda Feliciano
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
[1] Vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 590/2015, proferido no âmbito do processo n.º 542/2014
[2] José Casalta Nabais, in O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Teses Almedina, 2009, pp. Pag. 435.
[3] Ob. Cit. pp. pág. 442.
[4] Vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013, de 5.04, n.º s 33 e 35:
[5] Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 590/2015, n.º 83/2016, n.º 247/2016 e n.º 568/2016.