Decisão Arbitral
O árbitro, Dr. Henrique Nogueira Nunes, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 22 de Março de 2017, acorda no seguinte:
1. RELATÓRIO
1.1. A…, com o número de identificação fiscal…, com endereço fiscal no …, …, n.º…, …-… Lagoa, doravante designado por “Requerente”, requereu, no dia 13 de Janeiro de 2017, a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).
1.2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20 de Janeiro de 2017.
1.3. O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a declaração de ilegalidade dos actos tributários consubstanciados num conjunto de liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) referente aos exercícios de 2012, 2013 e 2014, a saber: (i) demonstração de liquidação de IRC n.º 2016…, de 20 de Janeiro de 2016, demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2016…, bem como pela respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2016 …, estas duas de 22 de Janeiro de 2016, (ii) pela demonstração de liquidação de IRC n.º 2016…, de 20 de Janeiro de 2016, demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2016…, bem como pela respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2016…, ambas de 25 de Janeiro de 2016, (iii) pela demonstração de liquidação de IRC n.º 2016…, de 20 de Janeiro de 2016, demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2016…, bem como pela respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2016…, as duas de 26 de Janeiro de 2016, perfazendo um valor global de € 9.080,81, e, bem assim, pela declaração da ilegalidade do acto de indeferimento de Reclamação Graciosa que o ora Requerente apresentou com vista à declaração de ilegalidade e anulação das referidas liquidações adicionais, em face do disposto no artigo 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
O Tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1 do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades, nem foi invocada matéria de excepção.
1.4. A fundamentar o seu pedido imputa o Requerente, em síntese, os seguintes vícios:
(i) As correcções promovidas pelos serviços da AT foram-no em sede de procedimento inspectivo, sendo que os serviços da AT acabaram por indeferir a pretensão do Requerente por, presume este, não concordarem com os argumentos apresentados.
(ii) O Requerente “presume” que terá sido essa a razão do indeferimento, uma vez que, diz, os serviços da Autoridade Tributária não se pronunciaram sobre os argumentos apresentados no que diz respeito ao enquadramento das despesas no conceito de despesas de manutenção e conservação nos termos do artigo 41.º do Código do IRS.
(iii) Qualifica como inaceitável a conduta dos serviços da Autoridade Tributária, porquanto, alega, não foi em momento algum chamado a pronunciar-se sobre se as facturas em causa cumpriam com o disposto no artigo 36.º do Código do IVA, nem lhe foram solicitados os elementos probatórios que os serviços da Autoridade Tributária alega não existir.
(iv) Alega que os serviços da Autoridade Tributária não se pronunciaram sobre quaisquer dos argumentos por si apresentados na Reclamação Graciosa apresentada no que diz respeito ao enquadramento das despesas no conceito de despesas de manutenção e conservação, escusando-se de apreciar o mérito da questão controvertida.
(v) No caso em análise, invoca que a Autoridade Tributária não só não se pronunciou sobre a questão em discussão – como veio alterar radicalmente a sua argumentação inicial, invocando que as despesas não são enquadráveis nos termos do Código do IVA, sem que para isso tenha solicitado quaisquer documentos.
(vi) Considera inaceitável que os serviços da Autoridade Tributária promovam uma correcção ao apuramento do imposto a pagar com base numa determinada argumentação e que, após o sujeito passivo apresentar a sua defesa com base nessa mesma argumentação, os serviços da Autoridade Tributária alterem discricionariamente a sustentação da correcção promovida, não fazendo qualquer referência à argumentação inicial.
(vii) Entende que o Relatório de Inspecção abstém-se de indicar quais são em concreto as despesas que não são dedutíveis quando o descritivo não permite enquadrar o bem/prestação de serviços suportado, daquelas que não são dedutíveis por se tratar de ‘despesas correntes’ ou, as outras despesas não dedutíveis.
(viii) Padecendo o mesmo do vício de falta de fundamentação, diz.
(ix) Porquanto, diz, a fundamentação é obscura e insuficiente, considerando que o seu conteúdo não é o bastante para explicar as verdadeiras razões por que foram praticados os actos ora reclamados.
(x) Relativamente ao caso sub judicio, entende que não se encontra no Relatório de Inspecção qualquer elemento consistente e adequado à conclusão de que a proporcionalidade invocada pela AT está legitimada pela lei.
(xi) Nestes termos, e, considerando o incumprimento, por parte da AT, do especial dever de fundamentação a que a lei a obriga, entende que todas as demonstrações de liquidação ora reclamadas se deverão ter por não fundamentadas, ao abrigo do n.º 2 do artigo 153.º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”) – aplicável por força da alínea d) do artigo 2.º do CPPT –, bem como dos supra citados artigos, e, consequentemente, por vício de forma, serem anuladas.
(xii) Adicionalmente, vem também invocar erro nos pressupostos de facto e de direito para fundamentar a sua pretensão em ver anulados os actos tributários em causa.
(xiii) No que concerne em concreto ao conceito de ‘despesas de manutenção’, entende que a AT procura restringir injustificadamente o conceito das mesmas, alegando que deverão ser consideradas ‘despesas de manutenção’ todas aquelas que sejam necessárias à manutenção dos imóveis e da sua actividade económica, ou seja, aquelas que, tendo prova suficiente, tenham uma causalidade directa com o imóvel, na acepção económica do mesmo, ou seja, a de produzir rendimento, sob pena de, não sendo assim, se estar perante uma violação do princípio da capacidade contributiva.
(xv) Entende ter ficado demonstrado que as despesas incorridas e postas em causa no relatório de inspecção tributária são despesas que se encontram documentalmente provadas, cujo descritivo das facturas e respectivos documentos de suporte são claros e são efectivamente de manutenção e/ou de conservação, nos termos do artigo 41.º do Código do IRS, razão pela qual deveriam ter sido consideradas dedutíveis por parte da AT.
(xvi) Por outro lado, sustenta que a AT ao defender a aplicação de um coeficiente de proporcionalidade de despesas de manutenção e conservação, evidencia um profundo alheamento da realidade e da lei, e que não possuí qualquer suporte legal, não passando de um mero exercício académico, demonstrativo de desconhecimento da realidade funcional de um imóvel afecto à exploração, razão pela qual não deverá ser aplicado qualquer coeficiente de proporcionalidade, no que concerne às despesas dedutíveis nos termos do artigo 41.º do Código do IRS, sob pena de incorrer em violação do princípio da legalidade.
(xvii) Por todo o exposto pugna pela anulação dos actos tributários em crise nos autos com todas as consequências legais, devendo ordenar-se a restituição do indevidamente pago em consequência, no valor de € 9.080,81, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
1.5. A Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”, respondeu, em síntese, como segue:
(i) Vem defender-se por impugnação.
(ii) Sobre a falta de fundamentação, alega que não tem qualquer sustentação a tese do Requerente relativamente à falta de fundamentação do acto tributário, porquanto, no que respeita à fundamentação dos actos administrativos, alega que o acto está fundamentado quando, pela motivação aduzida, se mostra apto a revelar a um destinatário normal as razões de facto e de direito que determinam a decisão, habilitando-o a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respectiva lesividade.
(iii) E que resulta demonstrado que o Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance da liquidação sobre a qual recai o presente pedido de pronúncia arbitral, tal como resulta do próprio exercício jurídico-argumentativo que faz no seu extensíssimo excurso.
(iv) Refere que ainda que o ato sub judice padecesse de deficiências ao nível do discurso fundamentador – o que só por mera hipótese académica se admite – tais deficiências degradar-se-iam em meras irregularidades não essenciais.
(v) E que em sede de indeferimento da Reclamação Graciosa, a AT, mais não fez, no estrito cumprimento dos seus deveres e vinculações legais, que confirmar e ratificar aquilo que já vinha expendido em sede de fundamentação do RIT e que foi, tal como se demonstrou à saciedade, plenamente compreendido pelo Requerente, diz.
(vi) No que se refere ao vício de violação de lei por violação do disposto no artigo 41.º do Código do IRS, sustenta que aos rendimentos prediais auferidos são dedutíveis as despesas documentadas, necessárias e directamente ligadas à obtenção desses mesmos rendimentos, desde que suportadas pelo próprio sujeito passivo e são essas as despesas que se entendem como necessárias para produzir os rendimentos prediais englobados e para manter íntegra a respetiva fonte produtora, ou seja, os prédios objeto de arrendamento.
(vii) Entende que uma vez que, para efeitos de tributação em sede da Categoria F do Código do IRS, se atende ao rendimento líquido obtido, i.e., às rendas recebidas deduzidas das despesas e encargos suportados para produzir os rendimentos prediais englobados e para manter íntegra a respetiva fonte produtora, ou seja, os prédios objeto de arrendamento, afigura-se deverem tais despesas ser proporcionalmente consideradas tendo por base o número de meses de arrendamento.
(viii) A correcção dos montantes dedutíveis com referência às despesas que realmente se enquadram nos encargos dedutíveis para este tipo de rendimentos, teve em consideração que o imóvel apenas esteve ocupado uma parte do ano, não podendo ser deduzidas todas as despesas, pelo que procedeu-se à contabilização das noites em que o imóvel se encontrou ocupado por clientes, pelo que, diz, não padece de nenhuma ilegalidade a interpretação e aplicação do art.º 41º do Código do IRS, constante do Relatório de Inspecção.
(ix) Para efeitos de tributação em sede de categoria F do Código do IRS, defende que haverá que se atender ao rendimento líquido obtido, isto é, ao rendimento global obtido, deduzido das despesas e encargos suportados para produzir os rendimentos prediais englobados e para manter integra a fonte produtora de rendimentos, ou seja, o imóvel em causa, o que implica a existência de uma correspondência e proporcionalidade dos encargos e despesas suportados.
(x) Nessa medida, sustenta que não faz sentido que um imóvel que gerou rendimento durante apenas uns meses seja associado a uma despesa anual.
(xi) Pelo que pugna pela total improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.
1.6. Entendeu o Tribunal, dispensar a realização da primeira reunião do Tribunal Arbitral, de acordo com o disposto no artigo 18.º do RJAT, e, bem assim, da apresentação de alegações face às posições bem estribadas de ambas as partes nos autos, suportadas através da extensa prova documental oferecida, o que não mereceu qualquer oposição das partes.
Foi fixado prazo para o efeito de prolação da decisão arbitral até ao dia 31 de Julho de 2017.
* * *
1.7. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não foram identificadas nulidades no processo.
2. QUESTÕES A DECIDIR
Na sua petição arbitral o Requerente formula as seguintes questões essenciais para as quais requer a apreciação do Tribunal:
1) Suscita a questão da fundamentação a posteriori no indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada, qualificando-a de ilegal.
2) Determinar se ocorre, in casu, o vício de falta de fundamentação quanto às correcções constantes do Relatório de Inspecção Tributária (RIT).
3) Determinar se ocorre, in casu, erro de direito nas correcções efectuadas, e, concomitantemente, nas liquidações adicionais emitidas, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por vício de violação de lei, mormente do artigo 41.º do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos tributários em causa.
3. MATÉRIA DE FACTO
Com relevo para a apreciação e decisão do mérito, dão-se por provados os seguintes factos:
A) No âmbito das Ordens de Serviço n.º OI2015…/…/…, de 17 de Setembro de 2015, foi efectuada uma acção inspectiva interna ao Requerente relativa aos exercícios de 2012, 2013 e 2014, de âmbito parcial, respeitante aos procedimentos adoptados em sede de apuramento do IRC (cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida).
B) Em resultado da referida acção inspectiva, o Requerente foi notificada, em 21 de Dezembro de 2015, do Projecto de Conclusões de Inspecção Tributária (“Projecto de Conclusões”) – cfr. Documento n.º 1 junto pela Requerente, mediante o qual a Requerida propôs as seguintes correcções em sede de IRC:
C) O Requerente não exerceu o direito de audição prévia sobre o Projecto de Conclusões.
D) O Requerente foi notificado do Relatório de Inspecção através do Ofício n.º … de 14 de Janeiro de 2016 (“Relatório de Inspecção”) – cfr. Documento n.º 2 junto pelo Requerente, notificando-o das seguintes correcções, conforme ilustra a tabela infra:
E) Em 20 de Janeiro de 2016, o Requerente foi notificado das demonstrações de liquidação de IRC, tendo posteriormente sido notificado das demonstrações de liquidação de juros compensatórios e das correspondentes demonstrações de acerto de contas, relativas aos exercícios de 2012, 2013 e 2014 – cfr. Documentos n.º 3, 4 e 5, respectivamente, juntos pelo Requerente.
F) O Requerente procedeu ao pagamento do imposto e respectivos juros compensatórios, em 2 de Março de 2016 (cfr. Documento n.º 6 junto pelo Requerente).
G) O Requerente apresentou uma Reclamação Graciosa, a qual tramitou sob o n.º …2016…, contra os referidos actos tributários, pugnado pela sua ilegalidade (cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida).
H) O Requerente foi notificado do projecto de indeferimento de Reclamação Graciosa pelo ofício …, de 06/09/2016, notificando-o para, querendo, exercer o direito de audição prévia (cfr. Documento n.º 36 junto pelo Requerente) o que não fez.
I) O Requerente foi notificado em 17 de Outubro de 2016 da decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa, pelo ofício…, de 29/09/2016.
J) Considerando os dados constantes do Anexo 2 que figura no Projecto de Correcções apenso aos autos, verifica-se que as facturas apresentadas estão devidamente fundamentadas, contendo, nomeadamente, um descritivo que permite identificar o propósito das despesas realizadas e a sua ligação à actividade exercida pelo ora Requerente.
K) A Requerida não colocou em causa a veracidade das facturas apresentadas pelo Requerente.
L) No dia 13-01-2017 o Requerente apresentou requerimento de constituição do Tribunal Arbitral junto do CAAD – cfr. requerimento electrónico no sistema do CAAD.
4. FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos com relevo para a decisão da causa que não se tenham provado.
5. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Quanto aos factos essenciais a matéria assente encontra-se conformada de forma idêntica por ambas as partes e a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais (oficiais) juntos ao processo e acima discriminados cuja autenticidade e veracidade não foi questionada por nenhuma das partes.
6. DO DIREITO
De acordo com as questões enunciadas, que constam do ponto n.º 2 da presente Decisão, e tendo em conta a matéria de facto fixada no ponto n.º 3, importa agora determinar o Direito aplicável.
Da alegada fundamentação a posteriori dos actos tributários:
Alega o Requerente que os serviços da Autoridade Tributária vieram sustentar, em resposta à Reclamação Graciosa apresentada, que “o sujeito passivo (SP) deduziu despesas suportadas por facturas que não cumprem o determinado na alínea b) do n.º 5 ao art. 36.º CIVA e, como tal, não podem ser aceites para efeitos fiscais, nomeadamente, não podem ser aceites para efeito do disposto no art.º 41.º CIRS”.
Que tal facto nunca havia sido colocado em causa no âmbito do procedimento de inspecção, nem alvo de referência no Relatório Final de Inspecção Tributária que deu origem aos actos tributários ora postos em crise.
E que no âmbito da inspecção tributária o que foi posto em causa foi, apenas, o enquadramento de determinadas despesas no conceito de despesas de manutenção e conservação nos termos do artigo 41.º do Código do IRS e a proporcionalidade das despesas.
Pois em momento algum foi suscitado dúvidas quanto à necessidade das facturas terem que cumprir os requisitos do Código do IVA, nem foram solicitados à Requerente quaisquer elementos adicionais nesse sentido.
Vejamos.
Analisado o Relatório de Inspecção Tributário constata-se, efectivamente, que a Requerida imputa ao Requerente infracção ao disposto no artigo 41.º do Código do IRS, por remissão do artigo 56.º do mesmo código. Isso mesmo pode facilmente constatar-se pelo descrito na secção VII – Infrações verificadas, constante da página 8 do RIT.
Não fazendo qualquer referência ao Código do IVA, ou à alegada falta de cumprimento das facturas com o disposto no Código do IVA.
E apenas e pela primeira vez fazendo-o em sede de apreciação à Reclamação Graciosa apresentada pelo Requerente.
Ou seja, quanto a este ponto específico, tem razão o Requerente ao invocar que, in casu, ocorreu fundamentação a posteriori dos actos tributários, fundamentação, essa, ex novo, no que se refere a esta parte do segmento decisório da AT.
Ora, é sabido que uma fundamentação a posteriori consubstancia gritante ilegalidade, em virtude de, no contencioso de mera legalidade, onde nos encontramos, o tribunal se ter de limitar a ajuizar da legalidade do acto sindicado nos estritos moldes em que este ocorreu, ou seja, apreciando a respectiva conformidade legal em face da fundamentação contextual, contemporânea e integrante do próprio acto.
Implicando o direito à fundamentação dos actos administrativos, especificamente, dos tributários, atribuir ao particular a faculdade de se defender dos pressupostos que nos mesmos são enunciados e de que resultaram os efeitos lesivos da sua pretensão, não é possível aproveitar um qualquer acto quando para tanto seja preciso valorar razões de facto e/ou de direito que não constam da fundamentação inicial, integrante dele, que não foram invocadas para conduzir ao acto impugnado.
Neste mesmo sentido pode ver-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 03716/10, 2.º Juízo, datado de 10/05/2011 e acessível em www.dgsi.pt
Na verdade, como bem se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 01436/15, 2.ª Secção, datado de 06-07-2016 e igualmente acessível em www.dgsi.pt, a AT não pode aditar fundamentação a posteriori relativamente às liquidações a que procedeu, nem pode legalmente apelar a fundamentos que antes não foram avocados.
E se apenas fosse essa a fundamentação que estivesse em causa no indeferimento da Reclamação Graciosa, tal seria fundamento bastante para dar, de imediato, provimento à pretensão do Requerente.
Sucede, no entanto, que não o é, porquanto a AT entendeu indeferir a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente fundamentando o seu indeferimento, de igual modo, com recurso a argumentação plasmada no Relatório de Inspecção Tributária e contemporânea dos actos tributários de liquidação adicional em crise nos presentes autos, designadamente a falta de enquadramento de determinadas despesas no conceito de despesas de manutenção e conservação nos termos do artigo 41.º do Código do IRS e a proporcionalidade das despesas.
Pelo que importa apreciar se lhe assiste ou não razão.
Resulta, assim, do supra exposto, que no que concerne à questão da alegada falta de cumprimento das facturas juntas pelo Requerente com o disposto no Código do IVA, não tem esta fundamentação específica, e para este Tribunal Arbitral, qualquer validade legal.
Da alegada falta de fundamentação dos actos tributários:
Alega o Requerente que as liquidações não se encontram devidamente fundamentadas, pois, no seu juízo, as mesmas são obscuras e insuficientes, porquanto o seu conteúdo não é bastante para explicar as verdadeiras razões porque foram praticados os actos postos em crise nos autos, padecendo os mesmos da falta da adequada motivação de facto e de direito.
No que foi prontamente contrariado pela Requerida.
Sustenta a jurisprudência quanto à fundamentação do acto de liquidação que: “O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487.º, n.º 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual”.
Ou, dito de outro modo, a fundamentação deve incorporar elementos de facto e de direito que permitam ao destinatário do acto perceber o iter decisório da AT.
No caso sub judice, é possível vislumbrar no relatório inspectivo, em III, factos e normas jurídicas que enquadram as correcções que foram efectuadas ao lucro tributável, ainda que se conceda não primarem pela redacção mais clara ao nível do seu discurso fundamentador, como, de resto, até parece admitir a AT na sua Resposta, mas não de intensidade suficiente para se pugnar pela invalidade – in totum – dos actos tributários em crise nos autos.
Razão pela qual entende o tribunal que o acto se encontra suficientemente fundamentado, uma vez que contém as referências mínimas à matéria de facto e de direito utilizadas pela AT para fundamentar a prática dos actos tributários em causa nos autos.
Até porque, a falta de fundamentação imputada ao mesmo, não constituiu qualquer obstáculo para o Requerente sustentar e pugnar pela sua ilegalidade e consequente anulação em articulado em que imputa às liquidações um conjunto diversificado de vícios, revelando perfeito conhecimento do quadro fáctico e legal em que se estribou a AT.
Em suma, entende o tribunal que os actos tributários em causa nos autos não padecem do vício de falta de fundamentação que o Requerente lhes imputa.
Do alegado erro de direito nas correcções efectuadas, e, concomitantemente, nas liquidações adicionais emitidas, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por vício de violação de lei, mormente do artigo 41.º do Código do IRS, com a redacção à data dos factos tributários em causa.
A AT veio considerar no Relatório de Inspecção Tributário, com referência ao anexo 2 do mesmo, que determinadas despesas não poderiam ser dedutíveis aos rendimentos prediais obtidos pelo Requerente porquanto só o podem ser as despesas de manutenção e conservação e aquelas que apresentassem um descritivo claro quanto ao bem adquirido ou serviço prestado.
E que sobre estas apenas uma parte proporcional pode ser dedutível tendo em consideração o número de dias do arrendamento no que se refere aos anos em que produziu as correcções.
Vejamos.
Quanto à questão respeitante às descrições dos serviços prestados e bens vendidos ao Requerente, verifica-se que lhe assiste razão, dado que aquelas são suficientemente completas e claras para se poder fazer (como, no presente caso, se fez) o enquadramento devido das mesmas.
As descrições apresentadas e a explicação dada pelo Requerente em sede de Reclamação Graciosa e secundadas pelo presente pedido arbitral, encerram um nível de detalhe comum, adequado e necessário para a compreensão do objectivo/propósito visado com os bens e serviços adquiridos e prestados, que contam dos documentos n.ºs 13 a 33 juntos pelo Requerente, com detalhadas explicações sobre os mesmos, em momento algum, diga-se, contrariadas pela AT.
O elenco é suficientemente esclarecedor sobre a ligação das despesas (subjacentes às facturas em causa) à actividade exercida pelo ora Requerente.
Assim, entende o tribunal que os gastos incorridos pelo Requerente, e identificados nos documentos juntos pelo Requerente nos presentes autos arbitrais, foram necessários para a obtenção dos rendimentos prediais, tratando-se de despesas de manutenção e conservação que estão documentalmente provadas e que, como tais, são passíveis de dedução à luz do disposto no artigo 41.º do Código do IRS (tanto na redacção anterior como posterior à Lei n.º 66-B/2012, de 31/12).
Contudo, a Requerida, sem colocar em causa a veracidade das facturas em causa e das despesas a elas subjacentes, afirma que a desconsideração daquelas despesas resulta do facto de, em termos gerais “só são dedutíveis as despesas de manutenção e conservação” e, bem assim que “o valor apresentado engloba várias faturas com o mesmo descritivo, emitidas pelo fornecedor identificado (…)” com referência aos exercícios de 2012, 2013 e 2014, sem mais considerações de natureza especifica quanto ao elenco das despesas apresentadas pelo Requerente.
Não se vislumbra razão no argumento apresentado pela Requerida, não apenas porque não existe razão de ordem legal (ou económica) para afirmar que as despesas ditas “correntes” não são “despesas de manutenção e conservação”, como também porque tais despesas – como se percebe facilmente pela descrição e enquadramento detalhado fornecido pelo Requerente, visam preservar o estado (e o regular funcionamento) do imóvel, garantindo que o mesmo cumpre com a sua finalidade, permitindo aos arrendatários usufruírem de todos os serviços que foram e que são colocados ao seu dispor e pelos quais pagam um determinado valor.
A este respeito, e neste mesmo sentido, existem já várias decisões arbitrais proferidas pelo CAAD, de que é um mero exemplo a seguinte, aqui reproduzida nas partes consideradas mais relevantes:
“a regra de dedutibilidade dos custos da categoria F sempre esteve associada aos custos de manutenção necessários para a obtenção dos rendimentos prediais tributáveis, que o legislador nunca, nem sequer a título exemplificativo, tipificou. [...]. [É à requerente proprietária que] incumbe, contratualmente, realizar todas as despesas inerentes à manutenção e conservação do imóvel, mantendo-o em condições normais de arrendamento” (Decisão arbitral proferida no processo n.º 294/2015-T, de 21/01/2016).
Aliás, Manuel Faustino, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 1, Número 3, páginas 100 e 101, já defendia que as despesas de manutenção deveriam ter um sentido muito mais amplo e abrangente do que aquele que habitualmente lhe era dado pela AT, sustentando, com o que se concorda, que a interpretação deste conceito se deve, também, ater à perspectivação sobre a substância económica dos factos tributários, procurando “Já não se trata de encarar o imóvel apenas do ponto de vista jurídico como uma «coisa», mas olhá-lo, do ponto de vista jurídico económico, como uma «coisa susceptível de produzir rendimento».”.
No que se refere à dedutibilidade das referidas despesas em função do número de dias do efectivo arrendamento de um imóvel, constata-se que inexiste na lei algum tipo de critério que permita concluir que pode haver a referida redução; bem pelo contrário: sabendo-se, que as despesas de conservação e manutenção são despesas (necessárias) de carácter fixo (i.e., despesas cuja realização e correspondente montante não dependem de uma ocupação efectiva do imóvel) – e que, a não serem realizadas, implicariam inevitável perda de rendimento para o seu proprietário –, conclui-se que, também aqui, não assiste qualquer razão à Requerida.
No mesmo sentido, veja-se a Decisão arbitral proferida no processo n.º 294/2015-T, de 21/01/2016:
“No que se refere à redução das despesas e encargos mediante aplicação de um «coeficiente de ocupação», não pode tal procedimento ser aceite, porquanto todas as despesas realizadas, tais como limpeza das habitações e da piscina, e respectivo tratamento de salubridade, água, luz, seguro, IMI e outros, terão sempre que ser suportadas, independentemente da taxa de ocupação. Tal «coeficiente de ocupação», como se referiu, [constitui] um fundamento «sui generis» que aparentemente não tinha até agora sido utilizado pela Inspecção, [e] não tem, no entender deste tribunal, qualquer base legal.”.
Quanto à alegada violação do princípio da igualdade e do princípio da capacidade contributiva, pugnada pela Requerida na sua Resposta, ao, alegadamente, discriminar aqueles contribuintes que arrendam um imóvel por escassos dias, deduzindo a globalidade das despesas incorridas durante o ano, daqueles que arrendam um imóvel ao longo do ano, não procede, porquanto, como se referiu supra, as despesas incorridas decorrem da disponibilidade permanente do bem para gerar rendimento, porquanto quem se dedica a esta actividade, a de arrendamento, pretende, logicamente, que os seus imóveis sejam arrendados ao longo do ano, assim se concretizando a sua actividade.
Os rendimentos (brutos) auferidos em cada ano constituem os elementos positivos que contribuem para apurar o rendimento tributável anual, havendo também que considerar os elementos negativos do mesmo período, que são as deduções e abatimentos. A regra geral prevista no Código do IRS afirma que o imposto tem natureza anual e é relativamente a cada ano civil que devem ser considerados os elementos que permitem determinar a incidência, designadamente rendimento bruto, deduções e abatimentos, não se logrando descortinar no artigo 41.º do Código do IRS, ou qualquer outro, para este efeito, que possa conduzir a um regime de excepção relativamente à citada regra geral da anualidade do IRS.
Pelo contrário, a vingar a tese defendida pela Requerida, é que se estaria perante uma flagrante violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, pois estaria a tratar-se de forma desigual o que é igual, considerando que a correspondência temporal que há-de fazer-se entre o rendimento bruto e as despesas a deduzir é-o por referência ao ano civil em que foram pagos ou colocados à disposição os rendimentos prediais, critério uno e igual para todos os contribuintes.
Quanto ao direito a juros indemnizatórios, peticionado pelo Requerente, cumpre referir que dispõe a alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º, do RJAT que a Decisão Arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.
Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100.º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Dispõe, por sua vez, o artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos é possível concluir que a Requerida tinha total e cabal conhecimento dos elementos factuais relevantes para proceder à correcta liquidação do imposto, não o tendo feito e optando por manter as liquidações inquinadas de erro sobre os pressupostos, e por isso mesmo ilegal, estando, por isso, obrigada a indemnizar.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 61.º, do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do artigo 43.º da LGT, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre a quantias já pagas no valor de € 9.080,81, a contar da data em que foi efectuado o pagamento até ao seu integral reembolso.
7. DECISÃO
Em face do exposto, acorda este Tribunal Arbitral Singular em:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a consequente anulação, por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, dos actos de liquidação de IRC em crise nos presentes autos, no valor global de € 9.080,81, e, bem assim, declarar a anulação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, determinando o reembolso do imposto indevidamente pago e juros compensatórios pelo Requerente, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios devidos desde a data do pagamento do imposto e juros compensatórios até o reembolso integral da quantia paga.
* * *
Fixa-se o valor do processo em Euro 9.080,81, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 297.º do CPC.
O montante das custas é fixado em Euro 918,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 25 de Julho de 2017.
O Árbitro,
Dr. Henrique Nogueira Nunes
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.