Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 733/2016-T
Data da decisão: 2017-07-21  IRC  
Valor do pedido: € 174.104,21
Tema: IRC – Tributações autónomas – dedutibilidade do CFEI e RFAI
Versão em PDF


 

 

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (presidente), Hugo Freire Gomes (vogal) e Raquel Franco ( vogal) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa ( CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam na seguinte

 

Decisão Arbitral

 

I.                   Relatório

 

1.No dia 12-12-2016, a sociedade “A…, S. A.”, NIPC…, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

São objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral (i) o despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente e que lhe foi notificado a 09.10.2016 e (ii) os atos de autoliquidação de IRC do Grupo Fiscal B… relativos aos exercícios de 2013 e 2014, na medida correspondente à não dedução à parte da coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma de incentivos fiscais em IRC (Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento – CFEI –, e benefício ao abrigo do Regime Especial de Apoio ao Investimento – RFAI), nos montantes de € 61.168,87 (2013) e de € 112.935,34 (2014), com a consequente anulação nestas partes, por afastamento indevido das deduções à coleta, e reembolso das quantias pagas, acrescidas de juros indemnizatórios calculados desde 30.05.2014 e desde 01.09.2015, respetivamente.

2.O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 27-12-2016.

2.1.Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os ora signatários e notificou as partes dessa designação em 08-02-2017.

2.2.Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo ficou constituído em 23-02-2017, tendo-se seguido os pertinentes trâmites legais.

3.A Requerida juntou o processo instrutor e apresentou resposta argumentando, entre o mais, que:

a)      A integração das tributações autónomas no Código do IRC (e do IRS), conferiu uma natureza dualista ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, em apuramentos separados das respetivas coletas, por força de obedecerem a regras diferentes. E isso, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do art.º 87.º do CIRC à matéria coletável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias coletáveis relativas às diferentes realidades contempladas no art.º 88.º do CIRC.

b)      Ou seja, não há uma liquidação única de IRC, mas antes dois apuramentos; isto é, dois cálculos distintos que, embora processados, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º do mesmo código, são efetuados com base em parâmetros diferentes, pois cada uma se materializa na aplicação das suas próprias taxas, previstas nos artigos 87.º ou no 88.º do CIRC, às respetivas matérias coletáveis determinadas igualmente de acordo com regras próprias.

c)      Por outro lado os regimes do RFAI e do CFEI estabelecem que os mesmos são concretizados em deduções à coleta do IRC; ao fazer essa referência expressa está o legislador a reportar-se à coleta de IRC propriamente dita para cujo apuramento não concorrem as tributações autónomas, precisamente porque não entram no apuramento nem do lucro tributável, nem da matéria coletável, e, como consequência, não concorrem para a coleta do IRC, nem mesmo do IRC liquidado ou do IRC a pagar/recuperar (cfr. CASALTA NABAIS, O Dever Geral de Pagar Impostos, p. 541), pelo contrário, há-de acrescer ao IRC liquidado para efeitos de apuramento do valor a pagar ou a recuperar.

d)      Tendo o regime das tributações autónomas uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não vê a AT por que motivo lógico esse desincentivo poderia, depois, desvanecer-se, o que sucederia se fosse possível deduzir à coleta das tributações autónomas, incentivos fiscais.

e)      Seguindo a doutrina do Acórdão Arbitral n.º 722/2015-T, seria de concluir pela ilegalidade da dedutibilidade do RFAI e do CFEI à coleta das tributações autónomas, sem necessidade de se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (OE para 2016), ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC.

f)       Quanto à alteração efetuada pela Lei do Orçamento do Estado para 2016, refere a AT que “independentemente da atribuição do espírito interpretativo [a interpretação da lei] sempre teria que ser feita com como bem se decidiu nos processos n.º 785/2015-T: “(…) aí se estabelece, no que concerne à forma de liquidação das tributações autónomas, que ela «é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores»”. Entende a AT que, se é certo que esta nova norma vem explicitar como é que se calculam os montantes das tributações autónomas e que a competência cabe ao sujeito passivo ou à Administração Tributária, é também claro que não se afasta a necessidade de utilizar o procedimento previsto no n.º 9 do artigo 90.º, designadamente nos casos previstos na sua alínea c) em que a liquidação cabe à Administração Tributária e Aduaneira, com «base os elementos de que a administração fiscal disponha», que abrangerão a possibilidade de liquidar com base em tributações autónomas, se a Autoridade Tributária e Aduaneira dispuser de elementos que comprovem os seus pressupostos. Por isso, quer antes quer depois da Lei n.º 97-A/2016, de 30 de Março, o artigo 90.º, n.º 9, do CIRC é aplicável à liquidação de tributações autónomas, ou seja, com apuramento de forma autónoma e distinta do processado nos termos do citado artigo 90.º.”

g)      A AT contesta, ainda, o direito, invocado pela Requerente, ao pagamento de juros indemnizatórios, porquanto na situação dos autos o apuramento do imposto foi efetuado pela Requerente, desconhecendo a Requerida quaisquer orientações genéricas e/ou indicações publicadas que levassem a Requerente a atuar nesse sentido.

 

4.A Requerente sustentou o pedido argumentando, em síntese, que:

a)      Entregou, no dia 30 de Maio de 2014, a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2013 do seu Grupo Fiscal, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 108.597,73 e, no dia 31 de Maio de 2015 a declaração de IRC Modelo 22 do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2014, tendo apurado um montante de tributações autónomas em IRC de € 186.970,91.

b)      O montante de CFEI disponível nos exercícios de 2013 e 2014 ascendia a um total de € 303.373,55.

c)      O montante de RFAI disponível no exercício de 2013 ascendia a um total de € 74.101,07 e no exercício de 2014 a um total de € 543.642,78.

d)      Ao entregar as referidas declarações, a Requerente foi confrontada com o facto de o sistema informático da AT não permitir que a Requerente inscrevesse o valor relativo às taxas de tributação autónoma em IRC, deduzido, quer (i) dos montantes de beneficio fiscal reconhecido às empresas do grupo fiscal ao abrigo do Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI), quer (ii) dos montantes de benefício fiscal reconhecido às empresas do grupo fiscal ao abrigo do Regime Especial de Apoio ao Investimento (RFAI), o que, em seu entender, resultou num excesso de imposto pago por referência aos exercícios fiscais de 2013 e 2014.

e)      Assim, aplicando os limites de dedução do CFEI à coleta da tributação autónoma em IRC dos exercícios de 2013 e 2014 com o duplo limite específico do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (cfr., designadamente, o artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 49/2013 e os desenvolvimentos constantes da Circular da AT n.º 6/2013) e aplicando também os limites de dedução específicos do RFAI que desde 2013 são de 50% da coleta[1], entende a Requerente que ficaram por deduzir os seguintes montantes à coleta em IRC da tributação autónoma: 2013: € 27.149,43 em RFAI e € 34.019,43 a título de CFEI, num total de € 61.168,87; 2014: € 42.860,20 em RFAI e € 70.075,14 a título de CFEI, num total de € 112.935,34[2].

f)       Em suma, o Grupo Fiscal dispunha de créditos de IRC para abate à respetiva coleta, em montante muito superior à coleta da tributação autónoma em IRC dos exercícios de 2013 e 2014, coleta esta que ascendeu a € 108.597,73 em 2013 e a € 186.970,91 em 2014, muito embora a Requerente só pretenda abater € 61.168,87 (2013) e € 112.935,34 (2014), abate esse que o sistema informático da AT não permite.

g)      O IRC não foi apurado através de métodos indiretos, mas sim a partir da apresentação da declaração modelo 22.

h)      As empresas integrantes do grupo fiscal na origem do RFAI não eram então, nem são atualmente, devedoras ao Estado e à segurança social de quaisquer impostos ou contribuições (cfr. certidões juntas como doc. n.º 9 com o pedido de pronúncia arbitral).

i)       A questão que a Requerente coloca a este Tribunal é, portanto, a de saber se tem, ou não, o Grupo Fiscal B… o direito de proceder à dedução - também, à coleta de IRC produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma - dos referidos RFAI e CFEI, tendo em conta que a programação do sistema informático da AT impede que se deduza à colecta relacionada com as taxas de tributação autónoma em IRC, inscrita no campo 365 do quadro 10 da declaração Modelo 22 (cfr. docs. n.ºs 1 a 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral), o CFEI e o RFAI ainda por deduzir à coleta de IRC, a começar pelos mais antigos.

j)       A favor da possibilidade de dedução, a Requerente apresenta os seguintes argumentos:

k)      A jurisprudência tem entendido, de modo praticamente unânime, que a coleta de IRC prevista no (em vigor até 2013) artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, compreende, sem necessidade de qualquer especificação adicional, a coleta das tributações autónomas em IRC, pelo que se deverá entender que a coleta do IRC prevista no artigo 90.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c) do CIRC, na redação em vigor em 2013, abrange também a coleta das tributações autónomas em IRC.

l)       Donde que, em seu entender, a negação da dedução do CFEI e RFAI à coleta em IRC das tributações autónomas viola a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC (anteriormente a 2014 e até 2010, alínea b), e anteriormente a 2010 artigo 83.º).

m)   A Requerente cita ainda inúmera jurisprudência no sentido de o SIFIDE ser dedutível à coleta das tributações autónomas e alega que não há razão para concluir que o raciocínio e racional da decisão no processo n.º 769/2014-T (e jurisprudência que se lhe seguiu) só se aplicaria ao SIFIDE, e não também a outros créditos por benefícios fiscais ou a outras deduções à coleta do IRC.

n)      Com efeito, mesmo que a previsão do crédito de imposto se expresse em termos de “dedução à coleta do IRC”, por oposição a “dedução ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC”, o resultado prático final é o mesmo, porquanto o montante apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC outro não é senão o IRC.

o)      Da análise das diversas decisões arbitrais proferidas a propósito desta matéria (por exemplo, processos n.º 80/2014-T e n.º 187/2013-T), a Requerente retira, sumariamente, as seguintes conclusões:

·         As tributações autónomas relativas a encargos com viaturas, despesas de representação, ajudas de custo, bónus de gestores e indemnizações a gestores por cessação de funções são IRC;

·         Essas tributações tributam ainda o rendimento, por serem um substituto da medida alternativa de aumentar o rendimento tributável via indedutibilidade da despesa ou encargo sobre que incide a tributação autónoma (cfr. em especial processos n.ºs 80/2014-T e 187/2013-T);

·         Por serem IRC, deve-se-lhes aplicar a norma dirigida à coleta (imposto apurado) do IRC constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC;

·         Extraindo uma regra mais geral, como faz a decisão proferida no processo n.º 59/2014-T, “as tributações autónomas de que são sujeitos passivos pessoas coletivas são consideradas IRC, pelo que lhes serão aplicáveis as normas do CIRC que não contendam com a sua especial forma de incidência e taxas aplicáveis.”

·         Aplica-se-lhes, pois, igualmente, a norma dirigida à coleta do IRC contante das alíneas c) e d) (até 2013, alíneas b) e c)) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, por não se vislumbrar obstáculo a tanto na “sua especial forma de incidência e taxas aplicáveis”.

 

5. Não tendo sido invocadas exceções e não havendo lugar a prova testemunhal, o Tribunal, por despacho, de 29 de março de 2017, prescindiu da reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo. Foi também fixado o dia 23 de agosto de 2017 para a prolação da decisão arbitral.

6.Tanto a Requerente como a Requerida apresentaram alegações sustentando, no essencial, os argumentos das peças anteriores.

 

 

II.                Saneamento

 

7.As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

7.1.O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

7.2.O processo não enferma de nulidades.

7.3. Assim, não existe qualquer obstáculo à apreciação da causa. 

 

III. Mérito

 

III.1. Matéria de facto

 

8.Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

a)      A Requerente era, em 2013 e 2014, a sociedade dominante de um grupo de sociedades (o Grupo B…) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS);

b)      A Requerente entregou, no dia 30-05-2014, a sua declaração agregada de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2013, tendo, nesse momento, procedido à autoliquidação de tributações autónomas em IRC desse mesmo ano de 2013, no montante de € 108.597,73 (cfr. a declaração de rendimentos junta como doc. n.º 1 com o pedido de pronúncia arbitral);

a)      A Requerente entregou, no dia 31.05. 2015, a declaração de IRC Modelo 22 do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2014, tendo nesse momento procedido à autoliquidação de tributações autónomas em IRC desse mesmo ano de 2014, no montante € 186.970,91 (cfr. a declaração de rendimentos junta como doc. n.º 4 com o pedido de pronúncia arbitral).

b)      Nos exercícios de 2013 e 2014, a Requerente dispunha de um crédito em sede de CFEI no total de € 303.373,55 (cf. doc. n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

c)      Nos exercícios de 2013 e de 2014, a Requerente dispunha de um montante de RFAI de € 74.101,07 e de € 543.642,78, respetivamente (cf. doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

d)      Aplicando os limites de dedução à coleta, quer do CFEI, quer do RFAI, ficaram por deduzir os seguintes montantes à coleta em IRC da tributação autónoma:

-        2013: € 27.149,43 em RFAI4 e € 34.019,43 a título de CFEI, num total de € 61.168,87;

-        2014: € 42.860,20 em RFAI5 e € 70.075,14 a título de CFEI, num total de € 112.935,34.

e)      O modelo de declaração de IRC que constava do sistema informático da AT à data dos factos não permitiu à Requerente abater € 61.168,87 (2013) e € 112.935,34 (2014) à coleta das tributações autónomas em IRC;

f)       A Requerente apresentou reclamação graciosa dos referidos atos de autoliquidação, a qual foi indeferida através de despacho que lhe foi notificado em 09.10.2016 (cf. doc n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

g)      O valor do IRC autoliquidado, incluindo tributações autónomas, encontra-se pago (cf. docs. 1, 4 e 16 juntos com o pedido de pronúncia arbitral);

h)      As empresas integrantes do grupo fiscal na origem do RFAI não eram, nos exercícios em questão, entidades devedoras ao Estado ou à segurança social de quaisquer impostos ou contribuições (cfr. certidões juntas como doc. n.º 9 com o pedido de pronúncia arbitral).

 

8.1.Factos dados como não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.

 

8.2.Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, no processo administrativo e nos factos enunciados pelas Partes nas respetivas peças processuais relativamente aos quais não existe controvérsia.

 

 

III.2. Matéria de Direito

 

A questão central a decidir nos autos está em saber se assiste razão à Requerente quando defende que a dedução dos benefícios fiscais, em especial, no caso, o CFEI e o RFAI deve ser feita tomando em consideração as tributações autónomas uma vez que estas são IRC.

A resposta ao problema colocado pressupõe, desde logo, que se analise a evolução da figura das tributações autónomas com vista a averiguar se o seu regime jurídico (compreendendo natureza e razão de ser) é compaginável com a pretensão da Requerente ou, se pelo contrário, assiste razão na posição defendida pela Requerida.

Vejamos.

 

III.2.1.1. Da natureza das tributações autónomas na jurisprudência e na doutrina nacional

 

Conforme posição adotada na Decisão Arbitral nº 722/2015-T, de 28 de Junho de 2016 (reiterada, entre outros, na Decisão Arbitral n.º 443/2016-T), acórdão cujo coletivo foi presidido pelo aqui também Árbitro Presidente (e para cujo teor da decisão desde já aqui remetemos), as tributações autónomas tributam a despesa e não o rendimento, posição que é assumida pelo Exmo. Senhor Conselheiro Vítor Gomes (voto de vencido aposto no Acórdão n.º 204/2010 do Tribunal Constitucional), nos termos do qual afirma, referindo-se às tributações autónomas, que “embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula (….)”.

 “Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma (…) e isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta”.[3]

E acrescenta que “deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC” (sublinhado nosso).

No mesmo sentido, foi igualmente reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) “que sob a designação de tributações autónomas se escondem realidades muito diversas, incluindo, nos termos do n.º 1 do (então) art.º 81.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas, que são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, que será elevada para 70%, nos casos de despesas efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola (n.º 2 do [então] art.º 81.º) e que não são consideradas como custo no cálculo do rendimento tributável em IRC. Refira-se, contudo, que já as despesas de representação e as relacionadas com viaturas ligeiras, nos termos do disposto no (então) art. 81.º n.º 3 do CIRC e ajudas de custo estão afectas á actividade empresarial e indispensáveis pelo que são fiscalmente aceites nalguns casos ainda que dentro de certos limites”.[4]

No que diz respeito à posição que era assumida pelo Tribunal Constitucional, cite-se o Acórdão n.º 18/11, nos termos do qual se refere queexistem factos sujeitos a tributação autónoma, que correspondem a encargos comprovadamente indispensáveis à realização dos proveitos e (…) isto significa que a tributação autónoma também recai sobre encargos que correspondem ao núcleo do conceito de rendimento real, rendimento líquido e cumprimento de obrigações contabilísticas (sublinhado nosso).

Este argumento do Tribunal Constitucional (…) interessa-nos apenas salientar que o Tribunal reconhece que este regime constitui uma limitação à tributação do rendimento real (a qual é garantida pelo art.º 104.º n.º 2 da CRP”.

Mais recentemente, o Tribunal Constitucional vem reformular a doutrina do Acórdão n.º 18/11 (acima referido), aproximando-se do então voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes e do Acórdão do STA n.º 830/11 (acima também citado), no sentido de entender que contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação. Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º,n.º 9, do CIRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo” (sublinhado nosso).

Ora, ainda segundo este Acórdão do Tribunal Constitucional “esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa” (sublinhado nosso). [5]

No que diz respeito à doutrina, constatamos que, no essencial, o conceito e a natureza das tributações autónomas não se afasta substancialmente do entendimento da jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional (acima sumariamente enunciada).

Na verdade, como refere RUI MORAIS, “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento”.[6]

No mesmo sentido, JOSÉ ALBERTO PINHEIRO PINTO afirma que “não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas colectivas e não despesa por elas efectuadas -, mas da substituição de uma tributação de rendimentos “implícitos” de pessoas singulares, que se considera não exequível directamente”.[7]

Em suma, alguma doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores nacionais e do Tribunal Constitucional consideram que as tributações autónomas são factos tributários autónomos, que incidem sobre a despesa pelo que, apesar de inseridas formalmente no Código do IRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.

Adicionalmente, refira-se que é também aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as tributações autónomas visam prevenir práticas abusivas de remuneração de trabalhadores, gerentes e sócios/accionistas da sociedade.

Com efeito, e como refere SALDANHA SANCHES, “neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida de taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal.”[8]

Nestes termos, “trata-se de uma tributação que se explica pela necessidade de prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da sociedade, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam (…)”.[9]

 

“É pacífico que as tributações autónomas radicam, como se aflorou, na necessidade de evitar abusos quanto à relevação de certos encargos ou despesas e que poderão ser facilmente objeto de desvio para consumos privados ou que, de algum modo, são suscetíveis de configurar, formalmente, um gasto de uma pessoa colectiva, mas que, substancialmente, representam ou podem configurar abusos em ordem a minimizar a medida real do imposto.

“Ciente desta dificuldade de, muitas vezes, se efetuar uma separação rigorosa destas duas realidades, foi sucessivamente “enxertado”, conforme supra descrito, no regime de tributação do lucro real e efectivo estabelecido no Código do IRC, como padrão geral, um regime autónomo de tributação de certos gastos, no todo ou em parte indesejados e indesejáveis que contaminam os termos do dever de imposto, que assim, surge configurado abaixo da real capacidade contributiva da entidade que a releva como tal.

“Nestes termos, pode afirmar-se que as tributações autónomas surgem integradas no regime do IRC, são apuradas e devidas no âmbito da relação jurídica de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas e é, neste quadro, que se efetua o seu apuramento.

“Mas não “são IRC”, tout court como a Requerente lapidar e definitivamente o afirma.

“Com efeito, para que fossem assim consideradas teriam, desde logo, que tributar o rendimento e isso, como vimos, não é o que sucede, em momento algum. Na verdade, embora exista uma instrumentalidade evidente entre o IRC e o modelo de tributação da renda em Portugal e as tributações autónomas (facto de resto bem evidenciado na jurisprudência dos Tribunais Superiores e, em especial, do Tribunal Constitucional), prevalece o entendimento de que as tributações autónomas tributam despesas.

“De facto, as tributações autónomas são um instrumento que (afastando-se e introduzindo alguma medida de entorse num sistema que declara tributar rendimentos reais e efetivos), afinal também tributa gastos, dedutíveis ou não em IRC, sem que com isso sejam violados os preceitos constitucionais já que a norma aplicável (art.º 104.º, n.º 2 da CRP) declara imperativa a tributação das empresas “fundamentalmente” sobre o seu rendimento real, sem prejuízo quer das situações de tributação segundo os lucros ou o rendimento real (quando seja apurado por métodos indiretos), quer das situações de tributação de gastos objeto de tributação autónoma (por expressa opção de lei), do estabelecimento de soluções técnicas (como é o caso do pagamento especial por conta) e das regras específicas visando a sua devolução.

“Neste âmbito, vale a pena ainda recordar que, nem os sistemas fiscais, nem os modelos de imposição concreta correspondem a modelos puros, isentos de elementos de extraneidade ao próprio sistema fundacional, de valores, ou ao próprio regime geral de um qualquer imposto abstratamente considerado. Com efeito, todos os impostos possuem caraterísticas ou soluções que, quando vistas isoladamente, podem representar objetivamente uma descaraterização do modelo tal como na pureza dos conceitos foi concebido, mas que, quando articuladas com o modelo, se verifica que concorrem para a sua efetividade, e lhe conferem ou reforçam a sua coerência.

“Essas soluções, mais pragmáticas ou específicas, não ferem tais ditames valorativos essenciais, sejam eles de proteção da receita ou de densificação dos ideais valorativos gerais (da ordem tributária) ou específicos do imposto (como é o caso da necessidade de evitamento de abusos) desde que, eles mesmos, não sejam de tal modo relevantes que abjurem o modelo de tributação-regra ou falseiem estruturalmente os valores em que radica.

“No caso em análise, embora a opção da lei fundamental e da lei ordinária, por consequência, haja sido claramente no sentido de tributar o rendimento das pessoas colectivas e, nas formas possíveis de apuramento deste, se haja escolhido a tributação do rendimento real e efetivo como manifestação do mais elevado padrão de justiça fiscal, a verdade é que o sistema sempre conheceu desvios mais ou menos relevantes, seja porque certos gastos não são considerados como tal pela lei fiscal (embora objetivamente possam ser imputáveis a uma actividade comercial), seja porque a lei fiscal, reconhecendo essa essencialidade, teme a ocorrência de abusos (como é o caso das tributações autónomas, genericamente falando).

“Em parte, este afastamento da pureza dos conceitos é uma consequência inevitável da complexidade das relações da vida, seja porque modelos de imposição fiscal puros são mais onerosos de implementar e gerir já que requerem informação relevante muito mais apurada, seja porque no campo dos impostos, como noutros campos da vida, há que temperar o ideal de justiça consagrado com soluções de razoabilidade normativa na qualificação dos factos relevantes e técnica nas soluções e exigências a estabelecer., com o objectivo de evitar que os modelos tributários sejam excessivamente complexos e onerosos deixando de atingir realidades e práticas que mitiguem a carga tributária ou concorram para uma má distribuição da mesma.

“Ora, deste balanceamento dos valores que suportam o dever de estabelecer / suportar imposto com as realidades da vida pode resultar a necessidade de estabelecer limites (fiscais ou outros) ao comportamento dos sujeitos passivos, com o objectivo de manter dentro de padrões gerais de equilíbrio, as soluções legais do sistema.

“Por outro lado, importa ter presente (porque isso releva para efeitos da decisão a tomar) que as tributações autónomas configuram normas anti-abuso dirigidas a racionalizar comportamentos específicos dos contribuintes (face ao dever de imposto) pelos quais, tradicionalmente, conseguiam alcançar uma medida de imposto inferior ao que o evidenciava a sua capacidade contributiva efetivamente revelada mas que, mercê, desses comportamentos abusivos era passível de ser mitigada ou eliminada, com evidente violação ou postergação do princípio da justiça, de justa repartição da carga fiscal por quem revela capacidade contributiva.

“Consequentemente, faz sentido admitir que se façam deduções gerais à colecta do imposto, que são permitidas por lei para dar sentido efectivo ao princípio da tributação do rendimento real e efectivo. Contudo, no que diz respeito à colecta devida por tributações autónomas, essa dedução geral deixa de fazer sentido porque, não tributando os lucros, mas despesas, não se coloca, quanto a elas, a questão da justiça na repartição do encargo geral do imposto, pelo que seria ilógico permitir a dedução de encargos quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti-abusivo que as impregna; o desincentivo de comportamentos desviantes que a sua instituição reprime ou dirime.

“Ora, as tributações autónomas, como parece claro, não têm uma finalidade marcadamente reditícia, isto é, não visam, primacialmente, a obtenção de (mais) receita fiscal, embora este possa não ser um aspeto despiciendo, verificável.

“Com efeito, elas visam dissuadir comportamentos, práticas ou opções das empresas radicadas em razões essencialmente de natureza de poupança fiscal, reditícia e, por outro lado, preservam os equilíbrios próprios do regime de tributação das pessoas colectivas, evitando distorções não apenas ao nível dos resultados tributáveis, como ondas de comportamentos desviantes, afetadores da expetativa jurídica da receita, em cada ano económico.

“E, através destas cláusulas gerais anti abuso, forçam a manutenção de uma correlação saudável entre os volumes de negócios, os lucros tributáveis e o imposto devido a final pelas entidades sujeitas a IRC, em linha com os níveis médios de carga fiscal efectiva que recai sobre os diferentes grupos de contribuintes, dentro do sistema fiscal português e, até, comparativamente com a dos estados membros da OCDE ou fora dela.

Assim, as tributações autónomas, incluindo as previstas na alínea b), do n.º 13, do art.º 88.º do Código do IRC têm, pois, uma função disciplinadora geral que não é alheia às finalidades sistémicas do imposto, até porque, como mecanismo anti abuso, as tributações autónomas não são alheias aos fins gerais do sistema fiscal.

“Nestes termos, a adopção de regimes legais que limitem os efeitos nefastos que resultem de comportamentos afetadores da equilibrada repartição da carga fiscal sobre os diferentes grupos de contribuintes não constitui apenas uma opção do legislador mas, é antes, uma obrigação estrita, em resultado na obrigatoriedade de gizar e fazer funcionar o sistema como um todo de forma equilibrada.

“Com efeito, as tributações autónomas introduzem mecanismos de tributação que, naturalmente, desagradarão aos seus destinatários, mas impedem ou limitam os efeitos nefastos de práticas abusivas que prejudicariam outros e são, por isso, necessárias à preservação dos equilíbrios do sistema.

“Ora, as empresas, tal como as pessoas singulares, também estão sujeitas e com a mesma intensidade ao dever geral de pagar impostos e, nesta medida, a lei fiscal não pode deixar de consagrar mecanismos que limitem procedimentos desviantes porquanto cada um deve suportar imposto segundo pode, isto é, segundo são as suas capacidades contributivas reveladas.

“Importa ainda notar que, nos nossos dias, se adoptou, como regra geral, o regime da tributação segundo o rendimento real e efectivo para as pessoas colectivas, não constituindo este uma mera opção de funcionamento do sistema fiscal de entre várias outras possíveis.

“Na verdade, ela é, antes, uma manifestação concreta da modernidade e da maturidade de um sistema fiscal que exige dos seus destinatários/beneficiários uma madureza da mesma estatura pois representa também uma nova forma de responsabilização ética e social perante o fenómeno do imposto. [10]

“Como referiu, oportunamente, SALDANHA SANCHES (citado na Decisão arbitral 187/2013-T, pp. 28), as tributações autónomas constituem uma forma de obstar a actuações abusivas: “(...) que o normal funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir, sendo que outras, incluindo formas mais gravosas para o contribuinte, eram possíveis. Este caráter anti abuso das tributações autónomas, será não só coerente com a sua natureza “anti sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Prof. Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que o cita. Elas terão então materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular)”. [11]

“Todas estas considerações convocam o que nos parece ser a verdadeira sententia legis, posto que a descoberta do verdadeiro sentido da lei constitui um imperativo, pois que importa assegurar que a actividade do intérprete atinja um sentido interpretativo pelo qual a lei exteriorize o seu sentido mais benéfico, mais profícuo e mais salutar, no dizer de FRANCESCO FERRARA.[12]

“Por outro lado, o sentido lógico da interpretação não nos conduz senão no sentido de que as tributações autónomas assentam numa lógica segundo a qual a lei pretende evitar ou desincentivar tais pessoas colectivas de relevar (abusivamente) como gastos valores relativos a bónus ou remunerações variáveis. Assim, é a relevação como gasto para efeitos de IRC, na sua inteireza, que se pretende desincentivar.

“Fazendo apelo à ratio legis fica claro que as tributações autónomas são cobradas no âmbito do processo de liquidação do IRC de acordo com uma raiz e uma dogmática próprias que levam a que a colecta total do imposto não seja uma realidade unitária mas composta.[13]

Assim, é nela possível descortinar a colecta de imposto propriamente dita, resultante da mecânica geral de apuramento do IRC, que é devida com fundamento constitucional assente no dever geral de cada um (neste se englobando as pessoas colectivas) de contribuir para as despesas públicas segundo os seus haveres (art.º 103.º, n.º 1 da CRP). Tudo no respeito e em cumprimento dos princípios da justiça, da igualdade e do dever de pagar imposto segundo a capacidade contributiva revelada. E a que se deduzem as importâncias referidas no artigo 90.º do Código do IRC e nos termos e modos ali referenciados.

“A esta colecta geral, radicada neste fundamento de ordem fundacional, adiciona-se a colecta específica, devida por tributações autónomas, que tem, como se deixou claro, uma raiz, um sentido e um fundamento próprios, qual seja o de desincentivar a adopção dos comportamentos por elas tributados, elencados no art.º 88.º do código, que configura uma norma anti abuso, o que nos permite convocar aqui toda a dogmática própria em que se fundamenta.

“Neste caso, por se tratar de cumprir finalidades que extravasam os fins puramente reditícios do imposto, para se situar no campo dos comportamentos que a lei considera abusivos e/ou não desejados, parece claro que não faz sentido que se lhe efetuem deduções, sob pena de se esvaziar, na prática, de qualquer sentido o regime anti abusivo criado.”

Aqui chegados, estamos em condições de analisar o pedido da Requerente, quanto à legalidade da dedução do CFEI e do RFAI à parte da coleta de IRC dos exercícios de 2013 e de 2014 do Grupo, na parte relativa às tributações autónomas.

 

III.2.1.2. Da eventual dedutibilidade do CFEI e do RFAI à coleta das tributações autónomas

 

A Lei n.º 49/2013 de 16 de Julho aprovou o Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI) com o intuito de promover o investimento e internacionalização das empresas nacionais por intermédio da concessão de um crédito fiscal, na forma de dedução à coleta, pela realização de certos investimentos. O CFEI correspondeu a uma dedução à coleta de IRC no montante de 20% das despesas de investimento em ativos afetos à exploração realizadas, até à concorrência de 70% daquela coleta. O investimento elegível para a obtenção deste crédito fiscal tinha que ser realizado entre 1 de Junho de 2013 e 31 de Dezembro de 2013, sendo que o montante máximo das despesas de investimento elegíveis era de € 5 000 000,00 por sujeito passivo. O CFEI não é cumulável, relativamente às mesmas despesas de investimentos elegíveis, com quaisquer outros benefícios fiscais da mesma natureza.

Por sua vez, em relação ao RFAI, o Código Fiscal do Investimento (originalmente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro), procurou sintetizar um conjunto de apoios de índole fiscal ao investimento produtivo e também à investigação e desenvolvimento, pretendendo contribuir para a promoção da competitividade da economia nacional e para a manutenção de um contexto fiscal favorável ao investimento, à criação de emprego e ao reforço dos capitais próprios das empresas. No âmbito daquele Código foram estabelecidos diversos regimes de incentivos / benefícios fiscais, nomeadamente o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI). Este regime instituiu um benefício fiscal ao investimento em ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis, consubstanciado em deduções à coleta de IRC (do período de tributação em que sejam realizadas as aplicações relevantes e, quando não possa ser efetuada na totalidade, por insuficiência de coleta, pode sê-lo nas liquidações relativas aos dez períodos seguintes, com determinados limites), isenção de Imposto de Selo e isenção ou redução de IMI e IMT relativamente a imóveis adquiridos ou construídos neste âmbito, sendo aplicável aos sujeitos passivos de IRC, que exerçam a título principal uma atividade em determinados sectores [classificados conforme a Classificação Portuguesa de Actividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), de acordo com o definido na Portaria n.º 282/2014 de 30 de Dezembro].O RFAI não é cumulável com outros benefícios da mesma natureza, para as mesmas aplicações relevantes, salvo os previstos no regime da DLRR (dedução por lucros retidos e reinvestidos), com os limites máximos aplicáveis aos auxílios com finalidade regional.

Concluímos supra, seguindo a jurisprudência mencionada, que a coleta das tributações autónomas tem uma raiz diferente, que não pode, sob pena de subversão da ordem de valores, permitir a dedução de benefícios fiscais, sob pena de descaraterização dos princípios que especificamente se pretendem prosseguir.

Com efeito, tendo o regime das tributações autónomas uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não se vê por que motivo lógico esse desincentivo poderia, depois, desvanecer-se, o que sucederia se fosse possível deduzir à coleta das tributações autónomas, incentivos fiscais, como a Requerente pretende, porquanto essa possibilidade resultaria num duplo efeito estranho, ou seja, de um lado poderia, no limite, eliminar a coleta resultante das tributações autónomas e, de outro, propiciaria a dedução de certo benefício fiscal (no caso em concreto, estão em causa o “CFEI” e o RFAI pelo cumprimento dos objetivos ou adoção das condutas fixadas na norma consagradora do direito ao benefício fiscal) a imposto que tem uma função especifcamente anti abuso, de mitigação de comportamentos fiscal e socialmente indesejados.

Da conjugação destas possibilidades resultaria um resultado contraditório, ilegal e antiético, justamente porque a mesma lei fiscal permitiria, no quadro do mesmo sistema fiscal, desonerar o contribuinte do encargo do pagamento de um imposto que é justamente devido pela adoção de condutas abusivas, indesejadas e desincentivadas (relevação como gastos das despesas previstas no art.º 88.º do Código do IRC).

Acresce que, tal como consignado no voto de vencido, junto à Decisão Arbitral n.º 5/2016-T, embora referindo-se aos regimes do SIFIDE e RFAI, também não subsiste “qualquer erro conceptual nem tão pouco qualquer contradição entre o acabado de expor e o facto de os regimes do SIFIDE e do RFAI estabelecerem que os mesmos são concretizados em deduções à colecta do IRC. Ao fazer essa referência expressa está o legislador a reportar-se à colecta de IRC propriamente dita para cujo apuramento não concorrem as tributações autónomas, precisamente porque não entram no apuramento nem do lucro tributável, nem da matéria colectável, e, como consequência, não concorrem para a colecta do IRC, nem mesmo do IRC liquidado ou do IRC a pagar/recuperar (cfr. CASALTA NABAIS, Idem p. 541). O resultado das tributações autónomas, repete-se, apurado de forma autónoma, não concorre para a colecta do IRC, pelo contrário, há-de acrescer ao IRC liquidado para efeitos de apuramento do valor a pagar ou a recuperar, o que consubstancia um resultado bem diferente.”

O entendimento arbitral ora sufragado, no sentido da orientação seguida nos Acórdãos Arbitrais n.ºs 722/2015-T e 443/2016-T, encontra-se em sintonia com o novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao estabelecer que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efetuadas quaisquer deduções».

Também neste caso, o legislador se limitou a acolher, clarificando-o, uma solução que os tribunais, com recurso às regras vigentes e por aplicação dos critérios de hermenêutica jurídica estavam em condições de extrair do regime a aplicar, o que se limitou a fazer este coletivo, no caso dos autos.

Atento o acima exposto, conclui-se, desta forma, pela ilegalidade da dedutibilidade do CFEI e do RFAI à coleta das tributações autónomas, sem necessidade de se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (OE para 2016), ao artigo 21.º do artigo 88.º do Código do IRC, nos termos do qual “a liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.

Assim sendo, deixa de fazer sentido a invocada inconstitucionalidade do nº 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7.º-A/2016, de 30 de março, por violação do princípio da retroatividade da lei, proibida pelo artigo 103.º, nº3, da CRP, na medida em que tal normativo não é convocado sequer na resolução do caso em apreço. O mesmo se diga quanto às demais inconstitucionalidades alegadas pela Requerente.

Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que não assiste razão à Requerente, pelos fundamentos acima invocados, no que respeita à possibilidade de dedução dos benefícios fiscais em causa (relativos ao CFEI e ao RFAI) à coleta das tributações autónomas relativas ao IRC dos exercícios de 2013 e 2014.

            Termos em que, improcede o pedido da Requerente, sendo de manter o indeferimento da reclamação graciosa ora impugnada.

 

III. 2.2. Dos outros pedidos

 

Improcedendo o pedido de declaração de ilegalidade das autoliquidações  impugnadas respeitantes aos exercícios de 2013 e de 2014  ficam igualmente prejudicados os pedidos feitos pela Requerente de devolução das quantias pagas e de respetivos juros.

 

 

IV. Decisão

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral de declaração de ilegalidade das autoliquidações de IRC relativas a 2013 e 2014, objeto de impugnação, absolvendo-se a Requerida deste pedido;

b)      Manter a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa;

c)      Absolver a Requerida dos demais pedidos.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 174.104,21 (cento e setenta e quatro mil, cento e quatro euros e vinte e um cêntimo) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.

 

VI. Custas

 O montante das custas é fixado em € 3 672.00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 21 de julho de 2017.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo

 

Fernanda Maçãs

(Árbitro Presidente)

 

 

 

Hugo Freire Gomes

(Árbitro Vogal)

 

 

Raquel Franco, vencida conforme declaração de voto anexa.

 

 

Raquel Franco

(Árbitro vogal)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

 

Discordo da tese que fez vencimento pelos seguintes fundamentos:

Para dar resposta às questões colocadas a este Tribunal Arbitral entendo, desde logo, ser fundamental saber se, independentemente da natureza do imposto a que se referem as tributações autónomas, o respetivo montante é “apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC”. Se o for, entendo que se deverá concluir que, para se determinar o limite das deduções atendíveis em sede deste imposto, se deve atender à coleta proveniente das tributações autónomas.

O artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela AT, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações previstas no Código. Assim, ele aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, uma vez que não existe qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação. A sua autonomia restringe-se, aliás, às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável – o que não justifica, a nosso ver, que se deva efetuar uma distinção entre a coleta proveniente das tributações autónomas e a restante coleta de IRC.

 

O argumento de que a natureza anti-abuso das tributações autónomas justifica a não dedutibilidade à respetiva coleta não vale, em meu entender, pelo simples, mas decisivo facto de que tal argumento não encontra suporte em qualquer norma do sistema jurídico-tributário português.

Parece-nos, a partir da análise do Código do IRC, que, independentemente do entendimento que se tenha quanto à natureza das tributações autónomas em sede de IRC – discussão que não tem que ser suscitada para se dar resposta à questão concreta que aqui se suscita – não se duvida que a quantia arrecadada por via daquelas tributações autónomas o é a título de IRC. Recorrendo ao que se diz, a este propósito, no Acórdão proferido no processo 775/2015-T, “(…) as tributações autónomas são indissociáveis dos sujeitos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, da atividade económica por eles levada a cabo, o que é ainda mais evidente quando se pensa na ligação que, embora tenha variado nas sucessivas alterações legislativas, as tributações autónomas tinham e ainda têm alguma ligação com a dedutibilidade – e a efetiva dedução – das despesas tributadas. Esta circunstância, crê-se, é elucidativa da imbricação existente entre aquelas e o IRC (no caso), e justificativa não só da sua inclusão no CIRC, mas, igualmente, da sua integração, de pleno direito, como parte do regime jurídico do IRC.”

Considerando-se – como se considera - que as tributações autónomas integram o regime do IRC, importa, então, saber o que é dedutível à respetiva coleta. Ora, quanto a este aspeto, de novo se recorre às palavras utilizadas no Acórdão Arbitral proferido no processo 775-2015-T:

“Entendido que é serem as tributações autónomas (parte do) IRC, compreende-se que seja única a liquidação de IRC, incluindo a parte que provém das tributações autónomas.

Há uma liquidação de IRC única que comporta duas partes: a liquidação das tributações autónomas e a do restante IRC, cada uma com matéria coletável determinada de modo próprio e com taxas de tributação próprias, mas ambas liquidadas nos termos do art.º 90.º do CIRC. Havendo uma liquidação única, conclui-se que a parte da coleta que provém das tributações autónomas é parte integrante da coleta de IRC.

Ao contrário, não se encontra em qualquer outro artigo do CIRC a referência à liquidação das tributações autónomas como processo distinto. Aceitar que não se inclui a coleta das tributações autónomas no art.º 90.º do CIRC, seria aceitar que existe uma lacuna na lei e, sendo esta uma lei fiscal, não permite a integração. E assim, a Autoridade Tributária e Aduaneira terá porventura errado, ao não permitir a dedução dos montantes relativos ao PEC que a Requerente tinha o direito de deduzir à coleta.

Aceitar que a liquidação das tributações autónomas está fora do art.º 90.º n.º 1 do CIRC e, portanto, afastar da sua coleta a dedutibilidade do PEC prevista na alínea c) do n.º 2, seria obrigar o contribuinte a pagar um imposto cuja liquidação se não faz nos termos da lei, contrariando o n.º 3 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da legalidade tributária que a Lei Geral Tributária, no seu art.º 8º, n.º 2, alínea a), estabelece.”

De onde se segue idêntica conclusão: a de que, não havendo norma sobre liquidação das tributações autónomas distinta daquela que regula a liquidação em geral do IRC, tem que se aceitar que a coleta de IRC a engloba, incluindo-se no artigo 90.º, n.º 1 do CIRC e sendo, portanto, dedutíveis, nomeadamente, os incentivos fiscais em causa no presente processo. No mesmo sentido aponta a inexistência de limites à dedutibilidade destas realidades à coleta resultante das tributações autónomas – o que o legislador poderia ter feito, tal como fez ao enunciar várias exceções e limites às regras da dedutibilidade do número 2 do artigo 90.º do CIRC.

Quanto à alteração introduzida pela Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2016 (Lei 7-A/2016, de 30 de Março), em concreto no que respeita à introdução do n.º 21 do artigo 88º do CIRC: foram aditados por esta Lei vários números ao artigo 88.º do CIRC, que se refere às tributações autónomas, entre eles o número 21, segundo o qual “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.” No artigo 135.º dispõe o legislador que “a redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos números 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”

O artigo 90.º não foi alterado, continua a referir-se à coleta de IRC e, por tudo o que atrás se deixa dito, a coleta que resulta da aplicação das normas do artigo 88.º é coleta de IRC. O que o número 21 do artigo 88.º proíbe agora é que, a esta coleta, se efetuem quaisquer deduções até ao momento em que, apurada a coleta global de IRC, se efetuam as deduções do artigo 90.º. Note-se que, se o legislador quisesse, de facto, proibir que as deduções previstas no artigo 90.º fossem efetuadas à parte da coleta de IRC que resulta das tributações autónomas, o poderia ter feito diretamente em vez de alterar o artigo 88.º - mas não o fez.

No presente caso, estando em causa o período de tributação correspondente ao ano de 2014, importa analisar qual o efeito da alteração introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2016 e, sobretudo, do caráter interpretativo que lhe foi atribuído.

Nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil (CC), “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza.”

O efeito mais relevante que o legislador retira da caraterização de uma norma como interpretativa é, pois, o da sua aplicação no tempo, em concreto, o da não aplicação, nesses casos, do princípio da não retroatividade da lei. Sendo esse um efeito, é necessário, porém, que primeiro se proceda à identificação das caraterísticas que fazem de uma determinada norma uma norma interpretativa e que, desse prisma, as diferenciam das normas inovadoras.

Para que uma lei nova – como é, no caso em apreço, o número 21 do artigo 88.º do CIRC - possa ser realmente interpretativa, são necessários dois requisitos: (i) por um lado, que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; (ii) por outro lado, que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Assim, se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.

Norma interpretativa, portanto, é aquela que não altera qualquer conteúdo ou elemento da norma interpretada, vem tão só traduzir o seu significado – estando, por conseguinte, obrigada a respeitar os direitos adquiridos sob a vigência da norma interpretada, particularmente em questões relativamente às quais a proibição de retroatividade está especialmente prevista, como é o caso da matéria do princípio da não retroatividade fiscal, prevista no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição.

 

Voltando ao caso concreto, já se disse que se entende que o texto da lei antes desta alteração não permitia que se concluísse que estava vedada a dedução do RFAI e do CFEI à parte da coleta de IRC resultante das tributações autónomas. Por outro lado, essa solução não resulta ainda de forma clara do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC. Assim, quanto à amplitude das deduções previstas no artigo 90.º, continua a não existir razão para se considerar excluída a coleta das tributações autónomas.

Em suma, quanto ao efeito da alteração operada pela Lei do Orçamento do Estado para 2016, entendo que o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC não tem caráter interpretativo no que respeita à questão em discussão, não se aplicando a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, nomeadamente, ao período de tributação e factos relevantes no presente processo,

Por estes motivos, julgaria procedente o pedido de declaração de ilegalidade das autoliquidações em causa no presente processo, na parte referente à não dedução dos montantes do RFAI e do CFEI à coleta das tributações autónomas.

 

Lisboa, 21 de julho de 2017

 

Raquel Franco

 



[1] Nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, alínea a) do CFI na versão resultante do Decreto-Lei n.º 82/2013 de 17 de Junho, e artigo 23.º, n.º 2, alínea b), do CFI, na versão resultante do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro.

[2] Tudo de acordo com o processo de cálculo constante dos artigos 21.º e ss. Do pedido de pronúncia arbitral, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

[3] No mesmo sentido vide também voto vencido do mesmo Árbitro Presidente, aposto na Decisão Arbitral nº 5/2106-T, de 27 de Julho de 2016 (e para cujo teor da decisão desde já aqui também remetemos).

[4] Vide processo nº 830/11, de 21-03-2012 (2ª secção).

[5] Neste sentido, vide Acórdão n.º 310/12, de 20 de Junho (Relator Conselheiro João Cura Mariano), jurisprudência reiterada pelo Acórdão do Plenário, no Acórdão n.º 617/2012 (processo n.º 150/12, de 31 de Janeiro de 2013) e no Acórdão n.º 197/2016 (processo n.º 465/2015, de 23 de Maio de 2016).

[6] Vide RUI DUARTE MORAIS, inApontamentos ao IRC”, Almedina, 2009, pp. 202-203.

[7] Também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (inDireito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614) e, no mesmo sentido, cfr. ANA PAULA DOURADO (inDireito Fiscal, Lições”, 2015, p. 237).

[8] Vide SALDANHA SANCHES, in “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, p. 406.

[9] Vide CASALTA NABAIS, Idem, p. 614.

[10] A propósito das questões sobre os limites da moral face ao imposto vejam-se SUSANNE LANDREY, STEF VAN WEEGHEL e FRANK EMMERINK). No que diz respeito à interligação profunda e indiscutível entre o direito e a moral, vide JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 9.ª Reimp. pp. 50 e segs.

[11] A Decisão Arbitral do CAAD nº 210/13-T refere que as “despesas (…) partilham entre si um risco de não empresarialidade, isto é, um risco de não serem realizadas com fins empresariais, mas sim extra-empresariais ou privados”.

[12] In “Interpretação e Aplicação das Leis”, Arménio Amado, editores, 1978, p. 137 e segs.

[13] Vide MANUEL DE ANDRADE, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis.