ACÓRDÃO
Os árbitros José Poças Falcão (presidente), João Taborda da Gama e João Gonçalves da Silva (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 19 de janeiro de 2016, acordam no seguinte:
I – RELATÓRIO
1. Em 3 de novembro de 2016, a contribuinte e ora Requerente, A… S.A., com sede na …–…, …-… …–…, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do colectivo de três árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto na al. a), n.º 2 do artigo 6.º do referido diploma, tendo em vista a apreciação da legalidade da liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC"), por referência ao período de tributação de 2013, sob o número 2016…, documento junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido.
2. A Requerente formula os seguintes pedidos:
a) Declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação n° 2016…, referente ao período de tributação de 2013, de modo a proceder-se a imediata e plena reconstituição da legalidade;
b) O pagamento dos custos em que a Requerente incorreu e vai incorrer com a prestação da garantia bancária para suspensão do processo executivo instaurado na sequência do não pagamento pela Requerente da liquidação contestada.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 18 de novembro de 2016.
4. A Requerente não procedeu à nomeação dos árbitros, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a) e artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
5. Em 4 de novembro de 2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
6. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 19 de janeiro de 2017.
7. A AT apresentou a sua resposta em 23 de Fevereiro de 2017, em que defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente.
8. Por despacho de 13 de março de 2017, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.
9. As partes produziram alegações reiterando os argumentos esgrimidos nos articulados anteriores.
10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.
11. As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
12. Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
13. O processo não enferma de nulidades.
14. As posições das partes
15. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
i. O artigo 44.º do Código do IRC estabelecia que as mais-valias não eram tributadas se o valor de venda fosse reinvestido na aquisição de outros bens, mais estabelecendo o seu n.º 6 o seguinte: quando o objeto do reinvestimento – no caso em análise, as “ações B…” – fosse alienado, “o valor da diferença entre as mais-valias e as menos-valias não tributadas nos termos do n.º 1 será deduzido ao custo de aquisição dos bens em que se concretizou o reinvestimento para efeitos de determinação de qualquer resultado tributável de IRC relativamente aos mesmos.”
ii. Este regime era estendido às SGPS por força do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 31 de dezembro.
iii. O n.º 6 do artigo 44.º do Código do IRC não era, pois, uma norma de incidência, estatuindo a tributação de mais-valias, mas apenas uma disposição legal sobre a quantificação fiscal do ganho.
iv. Em razão da fusão da B… SGPS na C…-SGPS, as ações da B… deixaram de fazer parte do seu ativo, pelo que, para o cálculo do resultado tributável, se devia deduzir ao custo de aquisição de tais ações a mais-valia anteriormente não tributada.
v. E, desde modo, seria apurado o resultado decorrente de tais ações terem deixado de estar na titularidade da C…-SGPS.
vi. A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, veio alterar o regime fiscal, até aí vigente, das mais-valias, estabelecendo na sua alínea b) do n.º 7 do artigo 7.º que “a parte da diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias relativas a bens não reintegráveis, correspondente ao valor deduzido ao custo de aquisição dos bens em que se concretizou o reinvestimento nos termos do n.º 6 do art.º 44.º do CIRC na redação anterior, será incluída no lucro tributável, em frações iguais, durante 10 anos”);
vii. Porém, a referida Lei manteve em vigor o artigo 44.º do Código do IRC quanto a mais-valias já realizadas em que já tivesse havido, ou ainda fosse possível, o reinvestimento.
viii. A referida Lei estabeleceu também que quando houvesse lugar a tributação de mais-valias, se no cálculo entrava a mais-valia anterior não tributada, haveria um diferimento da sua tributação por 10 anos.
ix. Assim, a Lei n.º 30-G/2000 não é uma norma de incidência, que determine a tributação de mais-valias, mas sim e apenas uma norma sobre o cálculo da mais-valia e do período da sua tributação.
x. Calculada a mais-valia, importa determinar se a mesma é ou não tributada de acordo com o regime próprio da C… e da operação em causa que a gerou, no caso, a fusão.
xi. O Código do IRC estabelecia regras próprias quanto ao regime fiscal aplicável às operações de fusão, nos termos do qual (n.º 6 do artigo 68.º do Código do IRC), quando a sociedade beneficiária (a C… SGPS, S.A.) detém uma participação no capital da sociedade fundida (a B…) “não concorre para a formação do lucro a mais-valia ou a menos-valia eventualmente resultante da anulação das partes de capital detidas” na sociedade fundida “em consequência da fusão ou cisão”.
xii. Não se pode invocar qualquer prevalência do regime consagrado na Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, sobre o regime fiscal das fusões, em concreto, sobre o n.º 6 do artigo 68.º do Código do IRC.
xiii. Com efeito, com base no artigo 44.º n.º 6 do Código do IRC, sem a Lei n.º 30-G/2000, calculava-se a mais-valia da C…, SGPS, resultante da anulação da participação na B…, abatendo ao preço de aquisição dessa participação a mais-valia não tributada.
xiv. Após o cálculo dessa mais-valia, ela não é, no entanto, tributada, porque a tanto o impede o n.º 6 do artigo 68.ºdo Código do IRC.
xv. Sendo que a Lei n.º 30-G/2000 não estabelece uma regra de incidência tributária, mas apenas e só que a mais-valia calculada de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 44.ºdo Código do IRC, a ser tributada (é necessário averiguar previamente se tal mais-valia é ou não tributável e se há ou não algum regime que a exclua), sê-lo-à de forma especial e mais “benevolente” para o contribuinte, isto é, em 10 anos.
xvi. O n.º 6 do artigo 68.º do Código do IRC é uma clara e inequívoca norma de exclusão: sempre que haja, em resultado de fusão, a anulação da participação na sociedade fundida, o resultado dessa anulação – seja mais-valia, seja menos-valia – não concorre para a formação do lucro tributável.
xvii. Sobre este tema, já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo do Sul nos Acórdãos de 12/6/2014, Processo n.º 07437/14, de 5/2/2015, Processo n.º 06585/13 e de 21/5/2015, Processo n.º 08650/15.
xviii. No primeiro dos arrestos diz-se que “a distinção feita pela Recorrente Fazenda Pública de que as mais-valias em causa não são derivadas da fusão, mas verifica-se em momento anterior por estarem suspensos face ao regime jurídico das mais-valias, não colhe, porquanto, é no momento da operação de fusão que as mais-valias que estavam suspensas de tributação passam a poder ser tributadas, considerando o disposto no art.º 44.º, n.º 6 do CIRC, pois é nesse momento que (…) as acções representativas (…) extinguem-se, anulam-se, por incorporação (…). Assim sendo, é no momento em que se verifica a fusão das sociedades que pode haver tributação das mais-valias, não fora o disposto no n.º 6 do art.º 68.º do CIRC, que a isso obsta”.
xix. Na liquidação impugnada a Autoridade Tributária veio tributar a mais-valia que resultou da anulação das partes de capital detidas pela C… SGPS na sociedade fundida, isto é, a B..., violando assim o disposto no n.º 6 do artigo 68.º do Código do IRC e o n.º 1 do artigo 7.º da Diretiva 90/434/CEE.
xx. Por não ter sido paga a liquidação ora impugnada, a AT instaurou a respetiva acção executiva.
xxi. Para obter a suspensão dos termos da sobredita ação executiva a Requerente, nos termos do artigo 169º, do CPPT, prestou garantia bancária
16. Na sua Resposta a Autoridade Tributária e Aduaneira, alegou o seguinte:
i) O sistema roll-over das mais-valias traduzia-se, em termos práticos, no diferimento da tributação destes ganhos, o qual só terminaria em caso de alienação onerosa dos elementos do ativo em que se tivesse concretizado o reinvestimento ou da ocorrência de qualquer facto que determinasse o apuramento de qualquer resultado tributável em IRC relativamente a esses elementos (cfr. n.º 6 do art.º 44.º do Código do IRC) sem que fosse declarada a intenção de reinvestimento do valor de realização.
ii) Pois bem, a revogação, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29.12, do art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 495/88, a par da alteração do regime do reinvestimento previsto no art.º 44.º do Código do IRC, ditou o fim do sistema roll-over das mais-valias e do concomitante diferimento da sua tributação, todavia, para evitar que, de imediato, fossem sujeitas a tributação todas as mais-valias cuja tributação se encontrava suspensa, o legislador criou um regime transitório no n.º 7 do art.º 7.º da referida Lei.
iii) Nos termos da alínea b) do n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-B/2000, nos períodos de tributação iniciados a partir de 1 de Janeiro de 2001, “ A parte da diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias relativa a bens não reintegráveis, correspondente ao valor deduzido ao custo de aquisição dos bens em que se concretizou o reinvestimento nos termos do n.º 6 do artigo 44.º do Código do IRC, na redacção anterior, será incluída no lucro tributável, em fracções iguais, durante 10 anos, a contar do da realização, caso se concretize, nos termos da lei, o reinvestimento da parte do valor de realização que proporcionalmente lhe corresponder;”.
iv) Atentando na configuração e teor do regime transitório, facilmente se depreende que, ao contrário do entendimento exposto pela Requerente no art.º 37.º da pi, não pode ser-lhe atribuído um “único sentido”, desde logo, porque o normativo da alínea b) do n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-G/2000, habilita o intérprete a extrair as seguintes ilações:
v) A primeira é de que o diferimento da tributação das mais-valias realizadas antes de 1 de Janeiro de 2001, terminaria com a alienação ou a ocorrência de qualquer facto que determinasse o apuramento de um resultado tributável relativamente às participações sociais a que se encontrassem associadas;
vi) A segunda, de que a inclusão no lucro tributável seria concretizada em fracções iguais ao longo de dez anos, em caso de reinvestimento do valor de realização; e
vii) A terceira consiste em que o tratamento especial preconizado exigiria a identificação e autonomização daquelas mais-valias relativamente a outras mais-valias (ou menos-valias) resultantes de operações subsequentes que tivessem por objeto os elementos do activo (e.g., participações sociais) a que se encontrassem associadas.
viii) A operação de fusão no âmbito da qual a C… SGPS SA incorporou a B… SGPS, S.A., implicou a extinção das acções representativas do capital da sociedade incorporada e o consequente apuramento de uma mais-valia, a qual, nos termos do n.º 6 do art.º 68.º do Código do IRC “não concorre para a formação do lucro tributável” .
xxii. O regime transitório, criado pela alínea b) do n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-G/2000, impõe um cálculo autónomo das mais-fiscais, tendo em vista a sua quantificação na data da fusão e eventual inclusão no lucro tributável, que não se confunde com o apuramento da mais-valia ou da menos-valia a que se refere o n.º 6 do art.º 68.ºdo Código do IRC.
xxiii. Esta mais-valia já tinha sido realizada pela sociedade incorporante/beneficiária numa alienação de partes sociais efectuada em 2000, encontrando-se suspensa a sua inclusão no lucro tributável em razão do regime do reinvestimento, não podendo assim ser considerada como um resultado gerado pela operação de fusão.
xxiv. Na realidade, a fusão e a consequente transferência dos elementos patrimoniais da sociedade fundida para a sociedade beneficiária permitiu apenas a ocorrência do facto que, nos termos do disposto no regime transitório, desencadeou o termo da suspensão e a inclusão no lucro tributável.
xxv. Nem na Lei n.º 30-G/2000, nem em diplomas posteriores, o legislador expressou intenção de estender o tratamento previsto no n.º 6 do art.º 68.º às mais-valias abrangidas pelo regime transitório, o que evidencia que as suas consequências continuariam a manifestar-se logo que ocorresse um facto que determinasse a sua inclusão no lucro tributável.
xxvi. O cálculo da mais-valia a que se refere aquele normativo não leva em conta o disposto no regime transitório da alínea b) do n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-G/2000 que impõe a recaptura das mais-valias que se encontravam suspensas de tributação.
xxvii. A AT actuou em plena conformidade com os normativos legais aplicáveis, ao considerar que a anulação, em consequência da fusão, das acções da B… SGPS, SA a que se encontrava associada a mais-valia cuja tributação se encontrava suspensa desencadeou a realização do facto que determina a inclusão dessa mais-valia no lucro tributável, tal como previsto no regime transitório,
xxviii. E que tal inclusão deveria ser efectuada em fracções iguais, durante 10 anos (cfr., cálculos evidenciados no ponto III.C.2 do RIT);
xxix. Por ter sido concretizado o reinvestimento da parte do valor de realização correspondente, através da substituição das acções extintas pelos elementos patrimoniais da sociedade incorporada transferidos pela sociedade fundida para a sociedade beneficiária/ incorporante.
xxx. Aliás, a AT adoptou um entendimento consistente nesta matéria, firmado em Informação da Direcção de Serviços do IRC[1]: “… as mais-valias imputadas aos títulos em que se concretizou o reinvestimento ficarão sujeitas a tributação no momento da extinção dos títulos, pois (…) deverão ser separadas da parcela das mais-valias que se obteriam na ausência dessas mais-valias imputadas (as efectivamente resultantes da operação de fusão), sujeitando cada uma dessas parcelas ao regime fiscal respectivo, de acordo com o regime transitório previsto no n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-G/2000 (…). Assim, apenas a ‘nova mais-valia’, ou seja, a resultante da anulação da participação em virtude da fusão, estará excluída da tributação, nos termos do n.º 6 do art.º 68.º do CIRC”.
xxxi. A Requerente faz uma errada interpretação deste normativo ao pretender atribuir-lhe um âmbito diferente do que decorre das finalidades próprias do regime especial aplicável às fusões que, naturalmente se atém às mais-valias e menos-valias apuradas na operação de transferência dos elementos patrimoniais para a sociedade beneficiária.
xxxii. Não tem, portanto, enquadramento no regime especial das fusões, uma mais-valia cuja formação é anterior à realização da operação de fusão.
xxxiii. Sendo que é verdade que a alínea b) do n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-G/2000 não estabelece qualquer regra de incidência tributária, pois, limita-se a fixar de que forma e em que momento é que as mais-valias realizadas até 31.12.2000, devem ser incluídas no lucro tributável;
xxxiv. Também é inegável que não prescreve o afastamento do regime transitório, em caso de extinção das participações sociais em que se concretizou o reinvestimento, designadamente em consequência de uma fusão.
xxxv. Igualmente não se invoque que a tributação das mais-valias abrangidas pelo regime transitório estabelecido pela alínea b) do n.º 7 do art.º 7.º da Lei n.º 30-G/2000, viola o disposto no n.º 1 do art.º 7.º da Directiva 90/434/CCE, de 23.07.1990, pois,
xxxvi. Essa disposição foi transposta para o n.º 6 do art.º 68.º do Código do IRC e, tal como já reiterado, a mais-valia em causa já tinha sido obtida em 2000, não resultou da anulação das partes sociais em consequência da fusão, por isso, está fora do alcance deste normativo.
xxxvii. O chamamento da aplicação da cláusula anti-abuso prevista no n.º 10 do art.º 67.º, não tem qualquer sentido útil, neste contexto, na medida em que não é mais do que uma referência en passant no RIT, da qual não retiram consequências, pois, como se torna evidente não constituiu fundamento legal da correcção efectuada ao lucro tributável.
xxxviii. Deve manter-se a liquidação impugnada, por corresponder à correcta aplicação do Direito aos factos apurados e não contestados pela Requerente.
Tudo visto, cumpre decidir o litígio.
II. FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
Factos provados
Por não terem sido expressamente impugnados e ainda com base nos elementos documentais que constam dos autos e da cópia do processo administrativo instrutor junta, consideram-se provados os seguintes factos:
a) No exercício de 2000, uma sociedade denominada “C…– SGPS, S.A.”, obteve mais-valias resultantes da alienação de participações sociais de que era titular.
b) Estas mais-valias não foram tributadas em sede de IRC, nos termos do disposto à época no artigo 44.º do Código do IRC e no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 31 de dezembro, uma vez que a referida sociedade “C…– SGPS, S.A.” manifestou a intenção de proceder ao reinvestimento do respetivo valor de realização, o que veio a verificar-se através da aquisição de participações sociais numa sociedade denominada “B… SGPS, S.A.”, na sequência da qual a “C…– SGPS, S.A.” passou a deter 100% da B… SGPS, S.A..
c) Em 2004, foi efetuada uma operação de fusão por incorporação, nos termos do artigo 116.º do Código das Sociedades Comerciais, através da qual a B… SGPS, S.A. se incorporou na C…, SGPS, S.A., tendo o ativo e passivo da B… SGPS, S.A. sido assim transferido para a C…, SGPS, S.A..
d) A referida fusão foi efetuada de acordo com o regime fiscal estabelecido nos então em vigor, artigos 67.º e seguintes do Código do IRC, como resulta do ponto 5 do projeto de fusão, anexo ao Relatório da Fiscalização Tributária.
e) Em resultado da fusão, extinguiram-se as ações representativas do capital social da B…, SGPS, S.A., de que era titular a C…, SGPS, S.A., adquiridas como reinvestimento nos termos do artigo 44.º do Código do IRC, não tendo as mais-valias cujo valor de realização foi reinvestido na aquisição das ações da B… SGPS, S.A. sido sujeitas a tributação em sede de IRC.
f) Posteriormente, a C…– SGPS, S.A. foi incorporada num processo de fusão na A…, S.A. (a Requerente).
g) A C…– SGPS, S.A. foi objeto de uma ação inspetiva relativamente ao exercício de 2013.
h) Conforme mencionado no respetivo relatório de inspeção tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que “o regime transitório não exclui a tributação das mais-valias realizadas em 2000, suspende-as, apenas, até à extinção do ativo que lhe estava subjacente (partes de capital na sociedade B…), que no presente caso ocorreu em 2004, com a fusão da sociedade B… na C… SGPS, S.A. – momento em que são autonomizadas e tratadas as operações que resultam desse mesmo processo. Por essa razão, não poderá o processo de fusão impelir a não tributação da mais-valia que ocorreu em momento anterior (2000) e que em nada se relaciona com o próprio processo (de fusão)”.
i) No mesmo relatório, a Autoridade Tributária e Aduaneira conclui que “(…) as mais-valias suspensas, associadas às partes de capital da sociedade B… SGPS, S.A., em que se concretizou o reinvestimento do valor de realização, são tributáveis nos termos do n.º 7 do art.º 7.º da Lei 30-G/2007, de 29 de dezembro, conjugado com o disposto nas informações n.ºs 1488/2007 e 1594/2007 e na Circular n.º 7/2002, todas da Direção de Serviços de IRC, razão pela qual se acresce, em cada um dos períodos de 2004 a 2013, para efeitos de determinação do resultado tributável, o montante de € 5.190.564,00 (€ 3.003.850,00 + € 2.186.714,00)”.
j) Na sequência da referida correção ao lucro tributável efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, foi efetuada a liquidação nº 2016…, de 9.6.2016 e emitida a consequente demonstração de liquidação nº 2016…, de 14.6.2016 e de que veio a resultar o apuramento do saldo a pagar pela Requerente, até 10-8-2016, na importância de €1.138.936,59 [Doc 1, junto dom o requerimento inicial].
k) A Requerente não efetuou voluntariamente o pagamento e, em consequência, foi instaurada a acção executiva nº …2016…, no Serviço de Finanças de …-… .
l) Para suspender os termos dessa execução a Requerente apresentou a garantia bancária nº…, até ao valor de €1.442.209,76, emitida em 21-9-2016, pelo Banco “D…”.
Factos não provados
Não existem quaisquer outros factos essenciais para a decisão do litígio, provados ou não provados.
Saneamento do processo
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, estão devidamente representadas e são legítimas.
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões, prévias, incidentais ou subsequentes e/ou exceções, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final quanto ao mérito.
III Fundamentação (cont)
O Direito
A questão jurídica objeto do presente caso pode ser enunciada da seguinte forma: qual o tratamento fiscal das mais-valias suspensas de tributação quando as partes sociais nas quais foram reinvestidas são anuladas em virtude da extinção da sociedade cujo capital representam por incorporação através de fusão? Visto de outro ângulo, o que aqui está em causa é a relação entre as normas que previram um regime transitório para as mais-valias realizadas em 2000, e o regime jurídico da neutralidade das fusões. Em abstrato, podemos chegar aqui a três conclusões distintas:
(i) uma delas, que é aquela que é defendida pela Requerente, é a de que os dois regimes são de aplicação sucessiva. Para a requerente, o regime transitório de tributação das mais-valias reinvestidas aplica-se às mais-valias suspensas de tributação quando as partes sociais em que foram reinvestidas são realizadas por anulação da participação social por fusão. Em consequência, a aplicação do regime transitório de tributação das mais-valias reinvestidas tem como efeito que essa mais-valia (suspensa) é relevante no apuramento do valor da mais-valia fiscal decorrente da realização das participações objeto de reinvestimento do valor de realização. Esta relevância fiscal cinge-se, sustenta a Requerente, ao cômputo da mais-valia aí gerada e não permite, por si, retirar efeitos quanto à tributação dessa mais-valia. Para se saber então a relevância fiscal da mais-valia fiscal assim calculada, é necessário aplicar o regime normativo que se aplique em concreto à tributação daquela mais-valia fiscal já calculada. Ora, sendo aquela mais-valia fiscal realizada no âmbito de uma operação de fusão, deve considerar-se que está isenta de tributação tendo em conta o regime da neutralidade das fusões.
(ii) A outra posição é a defendida pelo Requerida. Segundo a Administração fiscal, a aplicação do regime transitório de tributação das mais-valias reinvestidas tem um âmbito diferente do regime da neutralidade das fusões. Tendo um contribuinte optado por reinvestir mais-valias realizadas, diferindo assim a tributação, aquando da realização do ativo em que foi feito o reinvestimento haverá lugar a duas consequências fiscais relativas, por assim dizer, a duas mais-valias diferentes: por um lado, o espoletar da tributação da mais-valia suspensa, neste caso, por dez anos, tendo em conta o regime transitório; por outro, a tributação da (restante) mais-valia eventualmente gerada pela realização dos títulos que seguirá o regime que lhe seja de aplicar no momento da realização.
(iii) Haveria em tese ainda uma terceira conclusão abstratamente possível de alcançar que seria a de que a mais-valia suspensa, nos casos de extinção da participação social em que tinha sido reinvestida continuaria suspensa, agora nos títulos correspondentes da sociedade beneficiária até um momento de realização que não fosse gerado por extinção da parte social, ou no âmbito de neutralidade fiscal. Esta hipótese não a vamos seguir porque, embora equacionável, em rigor não pode ser extraída do quadro legal por interpretação e apenas poderia ter sido tomada como opção pelo legislador, e nunca pelos intérpretes-aplicadores.
Vejamos então qual era o regime vigente em 2000 quando a C…-SGPS, S.A., realizou as mais-valias cujo tratamento se discute. No ano de 2000[2] - exercício em que se verificou a mais-valia com a alienação de partes sociais - vigorava um regime[3] que se pode sintetizar nos seguintes aspetos[4]:
i) A diferença positiva entre mais e menos-valias realizadas não era tributada desde que houvesse reinvestimento do valor de realização até ao terceiro exercício seguinte ao da realização[5];
ii) A não tributação seria diretamente proporcional à percentagem de reinvestimento dos valores realizados;
iii) O sujeito passivo devia declarar a intenção de reinvestimento no exercício da alienação[6];
iv) O sujeito passivo devia declarar o(s) reinvestimento(s) no(s) exercício(s) correspondente(s) à sua realização[7];
v) A diferença positiva entre mais e menos-valias não tributada por efeito do reinvestimento era subtraída ao custo de aquisição do ativo objeto do reinvestimento (rollover[8])[9];
vi) Devido a esta dedução, quando o ativo em que tinha sido feito o reinvestimento fosse alienado - e não havendo novo reinvestimento -, surgiria a tributação. Esta incidia sobre uma diferença entre mais e menos-valias calculada com base num custo fiscal de aquisição dos ativos agora alienados que era inferior ao custo real de aquisição na medida da dedução referida no ponto anterior (ou seja, a mais-valia seria maior ou a menos-valia menor)[10];
vii) Além disso, a dedução implicava que, no caso dos ativos reintegráveis, as amortizações fiscais fossem reduzidas;
viii) Caso o reinvestimento não fosse realizado nos três exercícios subsequentes, o imposto não cobrado seria liquidado (com referência ao ano da alienação) no terceiro exercício, acrescido de juros compensatórios[11];
ix) Nas mesmas circunstâncias (não havendo reinvestimento) e caso, considerando a diferença entre mais e menos-valias, não houvesse lugar ao pagamento de IRC no ano da realização, o valor dos prejuízos fiscais relativo a esse ano seria corrigido no terceiro exercício posterior[12].
Este regime foi alterado pela lei da reforma de 2000.[13]
Assim, no caso de mais-valias realizadas após 1 de janeiro de 2001, a lei passou a determinar que a diferença entre mais e menos-valias deveria ser considerada em um quinto por ano durante cinco anos, sendo o primeiro desses exercícios o ano de realização[14]. A condição para a aplicação deste regime também mudou: o reinvestimento teria de ser feito entre o exercício anterior ao da realização e o segundo exercício seguinte à realização[15]. Se não houvesse reinvestimento, a totalidade da diferença entre mais e menos-valias seria tributada no ano da realização.
Mas para as mais-valias realizadas antes de 2001 e não tributadas, como aquelas de cuja tributação nos ocupamos, foi criado um regime transitório, previsto no artigo 7.º, n.º 7, da referida Lei n.º 30-G/2000:
“Artigo 7.º
Normas avulsas e transitórias
(…)
7 - O disposto na nova redação do artigo 44.º do Código do IRC aplica-se nos períodos de tributação iniciados a partir de 1 de Janeiro de 2001 sem prejuízo do seguinte:
a) O disposto na anterior redação do artigo 44.º do Código do IRC continua a aplicar-se às mais-valias e menos-valias realizadas antes de 1 de Janeiro de 2001 até à realização, inclusive, de mais-valias ou menos-valias relativas a bens em que se tenha concretizado o reinvestimento dos respectivos valores de realização;
b) A parte da diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias relativa a bens não reintegráveis, correspondente ao valor deduzido ao custo de aquisição dos bens em que se concretizou o reinvestimento nos termos do n.º 6 do artigo 44.º do Código do IRC, na redação anterior, será incluída no lucro tributável, em fracções iguais, durante 10 anos, a contar do da realização, caso se concretize, nos termos da lei, o reinvestimento da parte do valor de realização que proporcionalmente lhe corresponder;
c) Relativamente às mais-valias e menos-valias realizadas nos períodos de tributação iniciados em 2001, aplica-se o regime do artigo 44.º do Código do IRC quando o reinvestimento a que se refere o n.º 1 deste artigo se verifique até ao fim do terceiro período de tributação seguinte ao da realização.”
Ou seja, o artigo 7.º, n.º 7, alínea a) da Lei n.º 30-G/2000 estabelece que a estes casos se aplica ainda o disposto no anterior artigo 44.º do Código do IRC, isto é, o regime que acima descrevemos. A norma transitória inclui expressamente aspetos do regime das mais e menos-valias relativas aos bens nos quais o valor de realização foi reinvestido. Assim, segundo o disposto neste preceito, o regime de 2000 “continua a aplicar-se às mais-valias e menos-valias realizadas antes de 1 de Janeiro de 2001 até à realização, inclusive, de mais-valias ou menos-valias relativas a bens em que se tenha concretizado o reinvestimento dos respectivos valores de realização”.
O regime de 2000 aplica-se ainda às mais-valias realizadas em 2001 (ou nos exercícios iniciados em 2001), desde que o reinvestimento seja realizado até ao fim do terceiro exercício seguinte ao da realização. É o que determina a alínea c) do mesmo artigo 7.º, n.º 7 da lei da reforma de 2000.
No que toca aos bens não reintegráveis, o regime transitório acrescenta uma norma. Quanto às mais-valias realizadas com a alienação de bens em que tivesse sido feito o reinvestimento das mais-valias realizadas até 1 de janeiro de 2001, haveria lugar a uma tributação do saldo positivo entre mais e menos valias apenas na parte correspondente àquele valor que tinha sido deduzido ao custo de aquisição dos ativos do reinvestimento, faseadamente em 10 anos, desde que o valor de realização fosse novamente reinvestido[16].
Recordemos: no regime em vigor em 2001 (e que depois veio ainda a ser alterado), a diferença entre mais e menos-valias passou a ser relevante, em cinco exercícios, mas na totalidade. Assim, o rollover que acima descrevemos deixou de vigorar e deixou de ser possível adiar a tributação com novos reinvestimentos. Aplicando sem mais este regime, uma sociedade que alienasse (na vigência do novo regime) os ativos em que havia reinvestido (segundo o regime anterior) seria tributada, em cinco exercícios, pela totalidade das mais-valias fiscais realizadas, i.e. as mais-valias comerciais realizadas com a venda dos ativos em que reinvestiu mais o valor deduzido ao custo de aquisição, de acordo com o artigo 44.º, n.º 6 do Código do IRC, na versão em vigor em 2000[17].
Ora, o regime transitório vem precisamente atenuar este efeito. Assim, segundo o artigo 7.º, n.º 7, alínea a) da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, a parte correspondente ao valor deduzido ao custo de aquisição não é relevante em cinco exercícios, mas em dez, a partir do exercício de realização dos ativos em que a sociedade reinvestiu.
Subsumindo:
No caso em apreço isto quer dizer que em 2004, ano em que se deu a fusão, se considera ter havido realização para efeitos da aplicação do disposto no artigo 44.º do Código do IRC, por via do artigo 7.º, n.º 7, al. a) da Lei n.º 30-G/2000, ou seja, a diferença positiva entre mais e menos-valias não tributada por efeito do reinvestimento foi subtraída ao custo de aquisição do ativo objeto do reinvestimento, o que permite calcular-se a mais-valia gerada na esfera da C… em 2004.
A questão que se coloca agora é então a de saber se, e como, é esta mais-valia tributada.
Vejamos:
A mais-valia em questão, calculada nos termos das disposições conjugadas do artigo 7.º, n.º 7 da Lei n.º 30-G/2000 e do artigo 44.º do Código do IRC, ocorre no âmbito de uma fusão.
Será então que o regime da neutralidade fiscal das fusões se aplica às mais-valias suspensas de tributação por via da aplicação do regime previsto em 2000?
Sobre esta matéria já se pronunciaram os nossos tribunais superiores. Com efeito, o Tribunal Central Administrativo Sul já decidiu em pelo menos três casos que o regime da neutralidade das fusões obsta a que as mais-valias suspensas concorram para a formação do lucro tributável em caso de fusão. Com efeito, no Proc nº 7437/14, de 12 de Junho de 2014 decidiu-se que, citando, “face ao já citado art. 68.º, n.º 6 do CIRC, que regula o regime de neutralidade fiscal das fusões e cisões, ’[q]uando a sociedade beneficiária detém uma participação no capital das sociedades fundidas ou cindidas, não concorre para a formação do lucro tributável a mais-valia ou a menos-valia eventualmente resultante da anulação das partes de capital detidas naquelas sociedades em consequência da fusão ou cisão’.
Ou seja, em resultado da fusão operada nos autos, houve uma anulação das partes de capital detidas na sociedade fundida, e, in casu, é esse o facto jurídico que determina a tributação das mais-valias (n.º 6 do art. 43.º do CIRC), mas simultaneamente, também esse é o facto jurídico que conduz a que essas mais-valias não concorram para a formação do lucro tributável (art. 74.º, n.º 6 do CIRC), e por conseguinte, não fiquem sujeitas a tributação.
A distinção [feita pela Recorrente Fazenda Pública] de que as mais-valias em causa não são derivadas da fusão, mas verificam-se em momento anterior por estarem suspensas face ao regime jurídico das mais-valias não colhe, porquanto, é no momento da operação de fusão que as mais-valias que estavam suspensas de tributação passam a poder ser tributadas considerando o disposto no art. 44.º, n.º 6 do CIRC, pois é nesse momento que, conforme já referimos, as acções representativas da ... extinguem-se, anulam-se, por incorporação na sociedade “... -SGPS, S.A.”. Assim, sendo, é no momento que se verifica a fusão das sociedades que poderia haver tributação das mais-valias, não fora o disposto no n.º 6 do art. 68.º do CIRC que a isso obsta.
Repare-se que, tal como já referimos, o legislador estabeleceu um regime jurídico próprio para afastar o regime de neutralidade fiscal das fusões e cisões, quando se conclua que as operações abrangidas pelo mesmo tiveram como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal, dotando a AT de um meio legal para intervir, corrigindo a matéria colectável, nas situações que caiam no âmbito de previsão da norma.
Estabelece-se no artigo 67.º, n.º 10 do CIRC quando se pode considerar verificado que as operações abrangidas pelo regime de neutralidade fiscal das fusões e cisões tiveram como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a evasão fiscal, o que pode considerar-se verificado, nomeadamente, nos casos em que as sociedades intervenientes não tenham a totalidade dos seus rendimentos sujeitos ao mesmo regime de tributação em IRC ou quando as operações não tenham sido realizadas por razões económicas válidas, tais como a reestruturação ou a racionalização das atividades das sociedades que nelas participam, procedendo-se então, se for caso disso, às correspondentes liquidações adicionais de imposto.
Sucede que, o disposto no artigo 67.º, n.º 10 do CIRC, em momento algum, constituiu fundamento da correção em causa nos autos, pelo que não pode ser considerado pelo tribunal para aferir da legalidade da correção, tal como se decidiu na sentença recorrida.
A AT dispunha dos meios legais (artigo 67.º, n.º 10 do CIRC) para poder obviar, eventualmente, a que o regime da neutralidade fiscal das fusões operasse in casu, tributando, deste modo, as mais-valias que se encontravam suspensas, mas o que não pode pretender é tributar com um fundamento que não tem respaldo na lei, sobretudo quando o legislador dota um determinado regime jurídico, como sucede neste caso em particular, com normativos que acautelam de forma adequada e suficiente os créditos tributários, permitindo a AT intervir com plena cobertura legal”.
Esta fundamentação foi acolhida em dois outros acórdãos do mesmo Tribunal: no Proc nº 6585/13, de 5 de fevereiro de 2015 e no Proc. nº 8650/15, de 21 de maio de 2015 (Cfr Acórdãos juntos pela Requerente). Estes processos dizem respeito à mesma entidade, a também ora Requerente, e, por assim dizer, à mesma mais-valia que aqui se discute, embora relativa a exercícios diferentes.
Concorda-se com a conclusão a que chegou o TCA, que é também a da Requerente. Com efeito, tem também razão a tese central da Requerente – que o regime transitório de tributação das mais-valias reinvestidas se aplica ao cálculo da mais-valia, mas que a resposta sobre se deve ou não ser tributada nos é dada pelo regime da neutralidade das fusões (sublinhado nosso), e nunca pelo artigo o artigo 7.º, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 30-G/2000 que apenas contém uma regra de especialização de inclusão no lucro tributável a qual logicamente apenas pode operar quando essa inclusão seja legalmente possível tendo em conta as normas que rejam quer o ato de realização quer a entidade a tributar.
Este raciocínio, coerente do ponto de vista formal, é amplamente fortalecido pela teleologia imanente ao sobredito regime da neutralidade das fusões. Dizia a este respeito o artigo 68.º, n.º 1 do Código do IRC que “na determinação do lucro tributável das sociedades fundidas (…) não é considerado qualquer resultado derivado da transferência dos elementos patrimoniais em consequência da fusão” esclarecendo no n.º 6 especificamente para os casos em que haja anulação da participação social por incorporação vertical ou invertida que “quando a sociedade beneficiária detém uma participação no capital das sociedades fundidas ou cindidas, não concorre para a formação do lucro tributável a mais-valia ou a menos-valia eventualmente resultante da anulação das partes de capital detidas naquelas sociedades em consequência da fusão ou cisão”.
Este regime, comum um pouco por todo o mundo, pretende que o encargo fiscal não seja um obstáculo a que as empresas encontrem a forma mais economicamente eficiente de se organizarem. Como afirmou Saldanha Sanches[18] “a fusão de duas ou mais sociedades comerciais com a criação de uma nova sociedade ou a integração de uma ou mais sociedades numa sociedade já existente, tal como a cisão (em que uma sociedade se transforma em outras sociedades), são formas correntes de readaptação das sociedades a novas realidades; estas operações constituem soluções optimizadoras que procuram aumentar a eficiência das formas de organização empresarial[19].
No entanto, as sociedades poderiam estar a sujeitas a imposto, apesar de não haver qualquer lucro como resultado destas operações. Por esta razão, a análise das consequências fiscais destas operações e das possíveis vantagens e desvantagens que delas podem resultar está sempre presente - quer na perspectiva do sujeito passivo, que procura maximizar essas vantagens, quer na perspectiva do legislador, que vai criar limites para as suas consequências fiscais. (…)
A ausência de qualquer resultado direto da operação – a fusão ou cisão justificam-se apenas porque vão aumentar a perspectiva de lucros futuros ou estancar os prejuízos presentes – faz com que a tributação destas operações seja um importante desincentivo, em especial quando se trate de uma operação de fusão ou cisão sem que haja pagamentos em dinheiro. Estas operações distinguem-se da mera compra de uma sociedade, porque não são feitas mediante um pagamento em dinheiro dos direitos alienados (…)
Ora, é justamente essa possibilidade de transações sem liquidez – que são as que mais frequentemente são realizadas em sede de reestruturação - que torna mais problemática a tributação destas operações. E isto acontece quer a reestruturação tenha lugar dentro de um grupo de sociedades, quer a expansão ou retração seja feita entre sociedades que se encontram à normal distância do mercado: em muitos casos, a operação só vai ser feita porque não constitui um investimento no sentido de exigir a mobilização de recursos financeiros, ainda que estejam em causa valores muito elevados.
Assim, se esta operação for acompanhada de um imposto a pagar (e já veremos quais os impostos que poderão resultar destas operações), na maior parte dos casos ela não irá ser feita. A reestruturação tem vantagens porque vai (no futuro) aumentar a eficiência económica da estrutura empresarial, mas teriam de ser vantagens muito elevadas - e bem certas - para compensarem a existência do imposto. Existindo imposto, em vez da operação que iria optimizar a organização das empresas, vai procurar-se uma qualquer outra forma, ainda que menos eficiente, para compensar a desvantagem organizativa existente: as duas empresas, em vez de se fundirem (pagando elevados impostos por uma reestruturação que se destina a aumentar os lucros no futuro, mas que, em si mesma considerada, não produz qualquer lucro), vão fazer um acordo de cooperação ou um consórcio. A ausência de neutralidade fiscal do sistema[20] faz com que se procurem soluções que proporcionem algumas das vantagens da actuação em conjunto, sem que haja o custo fiscal da fusão.
Temos aqui, por isso, um caso de “excess burden”: o imposto vai retirar o incentivo que as partes têm para realizar a transação, uma vez que o montante do imposto é mais elevado que o benefício líquido que as partes retirariam (aumento da eficiência económica) da sua realização. Nem o Estado vai cobrar o imposto, nem as partes vão obter a vantagem económica que pretendiam[21].
Como todos os intervenientes ficam a perder no caso de operações de reestruturação que deixem de se realizar por motivos fiscais, a solução habitual do ordenamento jurídico é a não tributação destas operações, ou seja, a sua neutralidade fiscal - uma não tributação que nem sequer implica uma perda de receitas fiscais, uma vez que se trata de um imposto que, como se disse, na maioria dos casos, não seria cobrado, porque a operação não teria lugar.”
É precisamente esta ideia de obstaculizar a que atos jurídicos de reorganização desencadeiem efeitos fiscais que presidiu também ao regime de Direito Europeu constante da “Directiva 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de ativos e permutas de acções entre sociedades de Estados-Membros diferentes”, que continha especificamente nos seus considerandos que “as fusões, as cisões, as entradas de ativos e as permutas de acções entre sociedades de Estados-membros diferentes podem ser necessárias para criar, na Comunidade, condições análogas às de um mercado interno e assegurar deste modo a realização e o bom funcionamento do mercado comum; que essas operações não devem ser entravadas por restrições, desvantagens ou distorções especiais resultantes das disposições fiscais dos Estados-membros; que importa, por conseguinte, instaurar, para essas operações, regras fiscais neutras relativamente à concorrência, a fim de permitir que as empresas se adaptem às exigências do mercado comum, aumentem a sua produtividade e reforcem a sua posição concorrencial no plano internacional”, ”e que as “disposições de ordem fiscal penalizam atualmente essas operações em relação às realizadas entre sociedades do mesmo Estado-membro; que é necessário eliminar essa penalização”.
Quer isto dizer, que também pela força valorativa e interpretativa do Direito Fiscal Europeu, a conjugação das normas em apreço (artigo 44.º do Código do IRC, artigo 7.º da Lei n.º 30-G/2000 e o artigo 68.º do Código do IRC) tem de ser entendida num sentido que afasta a possibilidade interpretativa de, em virtude de uma operação de fusão, a anulação de uma participação social espoletar a verificação de efeitos fiscais indesejados. Seja porque estamos a falar de uma mais-valia gerada em 2000 e suspensa em 2004, como sustenta a Requerida, seja porque estamos a falar de uma mais-valia verificada em 2004 com a fusão, como sustenta a Requerente, o que é certo é que, em ambos os casos, não há dúvida de que aquilo que a Administração Fiscal pretende e que é tributar os valores não tributados em 2000, apenas e só se verifica porque houve uma operação de fusão. Ora, entendemos que o regime da neutralidade procura obviar a quaisquer efeitos tributários, sobretudo aqueles decorrentes de mais-valias (então geradas, ou anos antes, questão com menor importância do que aquela que as partes lhes atribuem) que resultam do valor das partes transmitidas ou extintas. Ou seja, o regime da neutralidade das fusões constante do artigo 68.º do Código do IRC impede, in casu, a relevância fiscal da mais-valia suspensa que, por ter sido realizada no contexto de uma fusão neutral, não deverá ser tributada.
Este Tribunal Arbitral subscreve também, inteira e igualmente, o sobredito entendimento jurisprudencial no sentido de que a operação de fusão em causa não é suscetível de gerar qualquer tributação, com incidência nas mais-valias geradas.
Daí a ilegalidade do ato tributário ora impugnado e a consequente procedência do pedido.
Garantia bancária
Estando alegado e demonstrado que a Requerente prestou garantia bancária para suspender a execução do crédito tributário ora objeto desta impugnação, os custos incorridos e a incorrer decorrentes dessa garantia são reembolsáveis.
Com efeito, dispôe o artigo 53º, da LGT:
Garantia em caso de prestação indevida
1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4 - A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.
Tem entendido a doutrina, a propósito do citado preceito legal, que «a razão que justifica a atribuição do direito a indemnização é o presumível prejuízo provocado ao particular por uma actuação ilegal da administração tributária, ao efectuar erradamente uma liquidação» (Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada, 3.ª Edição, Vislis Editores, p. 230).
No caso, a liquidação, no entendimento do Tribunal, enferma de erro imputável aos Serviços da Administração Tributária.
Ora sendo público e notório que pelo serviço de prestação de garantia bancária são pagos encargos/comissões aos Bancos em função, designadamente do risco, valor e prazo da garantia, há que concluir que, pese embora não ter sido alegado, a requerente suportou [e certamente continua a suportar] encargos pela manutenção das garantias.
Tendo prestado a garantias pelo valor total da liquidação (e ainda, como resulta da Lei, juros, custas e acréscimos, no total de 1.442.209,76 - Cfr artigo 199º-6, do CPPT) e tendo obtido, como se verá infra, vencimento total neste pedido de pronúncia arbitral, a Requerente reúne os pressupostos que conferem direito a indemnização nos termos do citado artigo 53º, da LGT.
Certo que não foi concretizado o quantum indemnizatório.
Tal, porém, não teria obrigatoriamente de ser alegado porquanto quem exige indemnização não necessita de indicar a importância exata dos danos – Cfr artigo 569º, do C. Civil.
A liquidação da indemnização terá assim de se processar em sede de execução de julgado e tendo presente as limitações do seu quantum previstas no artigo 53º-3, da LGT.
III – DECISÃO
Termos em que se acorda neste Tribunal Arbitral Coletivo em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e
b) Anular o ato tributário de liquidação de IRC ora sob impugnação
c) Julgar procedente o pedido de indemnização por prestação de garantia bancária indevida e, em consequência,
d) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à demandante, A…, SA, a legal indemnização, nos termos e fundamentos supra, com liquidação em sede de execução de julgado.
Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 1.138.936,59, nos termos do disposto no art. 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas
Custas, na importância de € 15.606,00 a cargo da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, dado que o presente pedido foi julgado procedente na totalidade, nos termos da Tabela I do RCPAT e dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Lisboa, 15-7-2017
O Tribunal Arbitral Coletivo
José Poças Falcão
(Árbitro Presidente)
João Taborda da Gama
(Árbitro Adjunto)
João Gonçalves da Silva
(Árbitro Adjunto)
[1] Informação n.º 1008/2002, sancionada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, n.º 904/2002-XV, de 2002.08.08.
[2] Tratamos do regime em vigor no ano 2000, i.e. antes da alteração provocada pelo Orçamento do Estado para 2001 (Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro).
[3] Artigo 44.º do Código do IRC em conjugação com o artigo 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro.
[4] Ver descrição mais pormenorizada, por exemplo, no Manual de IRC da DGCI (Lisboa: 2006), 121 ss.
[5] Artigo 44.º, n.º 6 do Código do IRC, na redação vigente em 2000.
[6] Artigo 44.º, n.º 4 do Código do IRC, na redação vigente em 2000.
[7] Artigo 44.º, n.º 4 do Código do IRC, na redação vigente em 2000.
[8] Sobre o rollover relief, v. John Tiley, Revenue Law4 (Oxford-Portland: 2000), 714 ss.
[9] Artigo 44.º, n.º 6 do Código do IRC, na redação vigente em 2000.
[10] Por exemplo: a empresa Y alienou o ativo A por 10. Reinvestiu esse valor no ativo B. Na venda do A, tinha tido uma mais-valia de 2 (não tributada), logo o custo fiscal do ativo B é de 8 (e não 10). Se o ativo B for vendido por 12, a mais-valia fiscal é de 4 (12-8) e não de 2 (12-10). Da mesma forma, se o produto da alienação do ativo B (12) for de novo reinvestido, agora na compra do ativo C por 12, a mais-valia de 4 também não é tributada, mas o custo fiscal de aquisição deste ativo C é de apenas 8 (12-4). Note-se que o peso da dedução vai aumentando em cadeia.
[11] Artigo 44.º, n.º 5 do Código do IRC, na redação vigente em 2000, primeira parte.
[12] Artigo 44.º, n.º 5 do Código do IRC na redação vigente em 2000, segunda parte.
[13] Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
[14] Resultava da redação do artigo 44.º do Código do IRC dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
[15] Artigo 45.º, n.º 1 do Código do IRC, na redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
[16] Artigo 7.º, n.º 7, al. b).
[17] De acordo com o exemplo que demos na nota 13.
[18] J. L. Saldanha Sanches, “Fusão inversa e neutralidade (da Administração) fiscal”, Fiscalidade, 34, 2008, 9 ss.
[19] A doutrina sobre a necessidade e a justificação económica das reorganizações é vastíssima. Veja-se, por exemplo, António Martins, “A Influência da Lei Fiscal nas Decisões de Reestruturação: uma Perspectiva Financeira”, in J. L. Saldanha Sanches / João Taborda da Gama / Francisco de Sousa da Câmara (org.), Reestruturação de Empresas e Limites do Planeamento Fiscal (Coimbra: 2009), no prelo; P. Olavo Cunha - Direito das Sociedades Comerciais, Coimbra: Almedina, 2006, 636.
[20] A neutralidade fiscal, reduzindo os efeitos distorcedores do imposto, aumenta a sua eficiência económica. M. Freitas Pereira, Fiscalidade2 (Coimbra: 2008), 60.
[21] Sobre este fenómeno que os economistas designam como “perda absoluta de bem estar”, Fernando Araújo, Introdução à Economia3 (Coimbra: 2005), 524.