Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 737/2016-T
Data da decisão: 2017-06-23  IRS  
Valor do pedido: € 11.427,73
Tema: IRS – Requisitos da união de facto e domicílio fiscal
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Decisão Arbitral

 

 

 

1. Relatório

Em 13-12-2016, os Requerentes A…, contribuinte n.º…, e B…, contribuinte n.º…, ambos residentes na Rua da …, …, lote…, …, …-… Quarteira, doravante designados por Requerentes, submeteram ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) o pedido de constituição de tribunal arbitral com vista à anulação das liquidações de IRS dos anos de 2011, 2012 e 2013.

Posição da Requerente:

Os Requerentes começam por referir que as liquidações impugnadas decorrem de uma interpretação e aplicação errónea e inconstitucional da lei.

Os Requerentes alegam que vivem maritalmente, em comunhão de teto, mesa e habitação, desde 1997, e apenas começaram a enviar a declaração modelo 3 de IRS como unidos de facto a partir do ano de 2002, na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 7/2011 de 11 de maio (Lei da União de Facto).

Referem ainda que em abril de 2003 nasceu C…, filho de ambos, e em Dezembro desse ano adquiriram um imóvel em comum, com constituição de mútuo com hipoteca, de responsabilidade partilhada em partes iguais. E em 2003, os Requerentes fixaram a sua residência fiscal na morada do referido imóvel, sito em …, …, …, …, …, Quarteira.

Em 2008, os Requerentes adquiriram novo imóvel, nas mesmas condições do anteriormente adquirido - com constituição de mútuo com hipoteca, de responsabilidade partilhada em partes iguais. E alteraram a residência fiscal para a morada deste imóvel, sita no …, …, Boliqueime, uma vez que era intenção proceder à venda do primeiro imóvel. No entanto, a venda não veio a acontecer, motivo pelo qual voltaram a residir no primeiro imóvel, tendo dado de arrendamento o imóvel sito em Boliqueime.

Em 12-2008, o Requerente B… renovou o seu cartão do cidadão, tendo declarado a sua residência em …, …, …, …, Vilamoura. No entanto, no sistema da AT a sua residência continuou a ser …, …, Boliqueime. E no final do ano de 2009, a Requerente renovou também o seu cartão do cidadão, e atualizou a sua morada para …, …, …, …, Vilamoura.

Os Requerentes alegam que a residência fiscal do Requerente só viria a passar para Vilamoura em julho de 2011, ou seja, dois anos depois da renovação do cartão do cidadão, e a da Requerente só aconteceu em agosto de 2012, ou seja, três anos após a renovação do seu cartão do cidadão.

Alegam os Requerentes que se terá verificado uma falha em termos de consistência entre os dados fornecidos por eles aquando da renovação do cartão do cidadão e os dados constantes do sistema da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

E referem que se encontra demonstrado documentalmente que a partir de 2009, os Requerentes e o filho fixaram a sua residência na Rua da …, …, …, …, Vilamoura, afirmando que o imóvel sito em …, …, …, …, Vilamoura, é o mesmo a que corresponde a morada Rua da…, …, …, …, Vilamoura.

Quantos aos anos de 2011, 2012 e 2013, os Requerentes alegam que submeteram a declaração de rendimentos modelo 3 conjuntamente. E foram posteriormente notificados da existência de irregularidades por não cumprimento de requisitos legais da união de facto.

Em 15-07-2013, os Requerentes afirmam que enviaram um requerimento à AT informando que viviam em união de facto e que apenas por lapso não foi efetuada a comunicação de alteração de domicílio fiscal.

Em resposta, referem os Requerentes que a AT concluiu pela falta de verificação dos requisitos para se considerarem em união de facto, e notificou os Requerentes para apresentarem novas declarações de rendimentos, e emitiu liquidações oficiosas de imposto e juros compensatórios relativas aos anos de 2011, 2012 e 2013.

Os Requerentes expõem que procederam ao pagamento do imposto liquidado oficiosamente para os anos de 2011, 2012 e 2013, no valor de 7.699,73 €, 14.098,46 € e 15.966,90 €.

Não concordando com as liquidações, os Requerentes relatam que apresentaram reclamação graciosa, assim como uma queixa junto do Provedor de Justiça. A referida reclamação graciosa apresentada foi indeferida.

Com efeito, entendem os Requerentes que tendo sido feita prova que viviam já em condições análogas às dos cônjuges há mais de 14, 15 e 16 anos quando apresentaram as declaração de rendimentos, não pode deixar de julgar-se como verificados os requisitos plasmados no artigo 14º n.º 1 e 2 do Código do IRS, e consequentemente, defendem que as liquidações devem ser anuladas por vício de violação da lei.

Por outro lado, referem os Requerentes que a AT interpreta a presunção que consta dos artigos 14º do Código do IRS e 19º da LGT como uma presunção juris et de jure, no sentido em que não admite prova da residência fiscal por qualquer meio legalmente admissível. E assim sendo, os Requerentes alegam que tais normas seriam inconstitucionais por ofensa do princípio da capacidade contributiva previsto nos artigos 104º, 12º, 13º e 1º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Por fim, pedem os Requerentes que a AT seja condenada no reembolso do imposto indevidamente pago, assim como no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43º e 100º da LGT.

Requerem ainda os Requerentes a coligação de autores e a cumulação de pedidos, por se verificar a identidade dos fundamentos de facto, a identidade dos fundamentos de direito e a identidade do Tribunal competente para a decisão.

Posição da Requerida:

A AT, na sua resposta, refere que o estatuto das uniões de facto para efeitos tributários é uma faculdade e não uma obrigação. E a diferença essencial face ao regime fiscal aplicado aos casados é que, para poderem optar, exige-se o cumprimento de alguns pressupostos de facto para o seu reconhecimento legal, sendo estes a identidade de domicílio fiscal e a assinatura comum da declaração.

A AT fundamenta o seu entendimento no artigo 14º n.º 2 do Código do IRS, afirmando que os requisitos acima referidos são a identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respetiva declaração de rendimentos.

A AT refere que está em causa o dever fundamental de atualizar o domicílio no Sistema de Gestão de Registo de Contribuintes, de acordo com o disposto no artigo 19º da LGT.

A Requerida alega que, uma vez que o estatuto tributário da união de facto tem subjacente quer a conformidade dos factos materiais com a lei que protege as uniões de facto (nº 1 do artº 14º CIRS), quer o ónus de declarar em tempo o domicílio para efeitos fiscais (nº 2 do artº 14º CIRS), os dados comunicados à AT para constarem do SGRC adquirem, por esta via, um valor qualificado em sede de pressupostos aquisitivos daquele estatuto. E o nº 2 do referido artigo 14º do CIRS pressupõe que seja idêntico o domicílio dos sujeitos passivos, em união de facto nos termos da lei respetiva, comunicado à AT, para constar no SGRC há mais de dois anos a contar do dia 31 de Dezembro do ano de tributação em causa, uma vez que, para efeitos de IRS, importa a situação pessoal dos sujeitos passivos “que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite”, como determina o nº 7 do artigo 13º do CIRS.

Entende a Requerida que, ao abrigo do princípio da igualdade tributária, assente na capacidade contributiva, a medida legislativa, ínsita no artigo 14º do CIRS, aditado com a Lei nº 30-G/2000, revela-se uma medida adequada e não excessiva, destinada a combater a criação artificiosa de uniões de facto, fazendo corresponder à invocabilidade de um direito, o cumprimento imprescindível no seio das políticas fiscais. Assim, para a AT quando não exista comunicação atempada ou não tenha mesmo existido comunicação, por parte de ambos ou de um dos membros da união de facto, da alteração do domicílio, para efeitos de registo no número de contribuinte, deixa de se verificar o pressuposto formal aquisitivo do estatuto tributário das uniões de facto, previsto no artigo 14º do CIRS.

A Requerida refere que a Lei n.º 7/2010 de 11 de maio, que adota medidas de proteção das uniões de facto, estabeleceu que as pessoas que vivem em união de facto há mais de dois anos têm direito a beneficiar do regime fiscal aplicável aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens. Assim, o requisito essencial para que os contribuintes que vivam em união de facto pudessem beneficiar do regime fiscal idêntico ao regime dos contribuintes casados (tributação conjunta) é o facto de viverem em união de facto há mais de dois anos, o que se afere pela identidade do domicílio fiscal.

A Requerida fundamenta-se com base no acórdão n.º 0761/15 do STA, que refere que: “IV. Provando-se a existência de identidade do local de residência habitual dos sujeitos passivos por um período superior a dois anos, tem-se por verificada a primeira das condições estabelecidas no n.º 2 do artigo 14.º do CIRS; V. Embora o artigo 19.º, n.º 3, da LGT estabeleça a obrigatoriedade de comunicação do domicilio do sujeito passivo à Administração Tributária, estatuindo que, na eventualidade de haver mudança de domicílio sem que tal seja comunicado à Administração Tributária, a consequência é a respectiva ineficácia, enquanto tal comunicação não for feita (artigo 19.º, n.º 4 LGT), aqui tem-se em vista a ineficácia em sentido estrito que não se confunde com a invalidade. VI. Esta ineficácia a que se refere o legislador ocorre apenas no âmbito da relação entre os sujeitos passivos e a Administração Tributária.”

A AT alega que a lei estabelece que “o domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário, “para as pessoas singulares o local da residência habitual” (artigo 19º, nº 1, alínea a) da LGT), sendo “obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária” e “ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária” (nºs 3 e 4 da LGT).

E conclui que, perante a obrigação da comunicação de mudança de domicílio, sob pena de ineficácia da mesma, enquanto tal não for comunicado, não é aplicável para efeitos de regime de tributação em sede de IRS, o estatuído no artigo 1º, nº 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio “pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.

Ou seja, a comunicação do domicílio fiscal é obrigatória e só com esta o domicílio fiscal declarado pelo sujeito passivo goza de eficácia perante a AT.

Ora, no caso em apreço, a AT considera que só em agosto de 2012 é que houve identidade de domicílio fiscal dos Requerentes, pelo que só após essa data se inicia a contagem dos dois anos para que pudessem beneficiar do regime fiscal das uniões de facto.

Quanto à falha em termos de consistência entre os dados fornecidos pelos Requerentes aquando da renovação dos Cartões de Cidadão e os dados constantes do sistema da AT, falha essa alegada pelos Requerentes, a AT invoca a sua ilegitimidade passiva numa eventual demanda cuja legitimidade é do Instituto dos Registos e Notariado.

Já quanto aos documentos juntos pelos Requerentes ao pedido arbitral, a Requerida afirma que os mesmos não demonstram de uma forma clara, óbvia, evidente e credível, que os mesmos tinham identidade de domicílio entre 2009 a 2011.

E conclui afirmando que o pedido arbitral deve ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se a Requerida do pedido.

 

Foi designada como árbitro único, em 08-02-2017, Suzana Fernandes da Costa.

Em conformidade com o previsto no artigo 11º n.º 1, alínea c) do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 23-02-2017.

Em 31-03-2017, foi ordenada a notificação da Requerente para exercer o contraditório quanto à questão prévia de ilegitimidade passiva contida na resposta da AT.

Em 03-04-2017, os Requerentes vieram informar que entendem que invocação que fizeram no pedido arbitral relativa à falha de consistência entre os dados constantes do cartão do cidadão e os dados constantes das bases de dados cadastrais da AT, destinou-se apenas a demonstrar que a mesma não é imputável aos Requerentes, mas não a imputam à Requerida nem ao Instituto dos Registos e do Notariado.

Foi proferido despacho, em 04-04-2017, a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT e a notificar as partes para apresentarem, querendo, alegações escritas. No mesmo despacho designou-se o dia 23-06-2017 para a prolação da decisão arbitral, e advertiu-.se a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente e comprovar o pagamento junto do CAAD.

Em 12-04-2017, os Requerentes apresentaram as suas alegações. E a Requerida juntou as suas em 26-04-2017.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).

O presente pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro.

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias, com exceção da coligação e da cumulação de pedidos e da ilegitimidade passiva, que a seguir se decidirá.

Os Requerentes pedem a coligação de autores e a cumulação de pedidos, por se verificar a identidade dos fundamentos de facto, a identidade dos fundamentos de direito e a identidade do Tribunal competente para a decisão.

A cumulação de pedidos e a coligação de autores são admissíveis, nos termos do artigo 3º n.º 1 do RJAT, quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

No presente caso, a cumulação de pedidos e a coligação de autores são admissíveis, pelo que se admitem.

 

2. Questão prévia: ilegitimidade passiva da Autoridade Tributária e Aduaneira

Na sua resposta, a AT invoca, embora não a configurando como exceção, a sua ilegitimidade passiva numa eventual demanda cuja legitimidade é do Instituto dos Registos e Notariado.

Os Requerentes, depois de notificados para se pronunciarem sobre esta matéria de exceção, vieram informar os autos que entendem que invocação que fizeram no pedido arbitral relativa à falha de consistência entre os dados constantes do cartão do cidadão e os dados constantes das bases de dados cadastrais da AT, destinou-se apenas a demonstrar que a mesma não é imputável aos Requerentes, mas não a imputam à Requerida nem ao Instituto dos Registos e do Notariado.

Ora, a legitimidade processual é o pressuposto processual através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal. Tal pressuposto deverá ser aferido nos estritos termos em que o Autor no articulado inicial delineou ou configurou a relação material controvertida, gozando de legitimidade passiva a outra parte nesta relação, conforme dispõe o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28-02-2014 do processo n.º 01788/09.9BEBRG.

Uma vez que o objeto do pedido são as liquidações de IRS dos anos de 2011, 2012 e 2013, entende-se que não se encontra verificada a exceção de ilegitimidade passiva da AT.

 

3. Matéria de facto

3. 1. Factos provados:

Analisada a prova documental produzida, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:

1.    Os Requerentes submeteram as declarações de rendimentos modelo 3 de IRS, dos anos de 2011, 2012 e 2013, indicando como estado civil “unidos de facto”.

2.    Os Requerentes foram notificados das liquidações oficiosas de IRS dos anos de 2011, 2012 e 2013, nos valores de 7.699,73 €, 14.098,46 € e 15.966,90 €, juntas ao pedido arbitral como documento 21.

3.    Os Requerentes viveram, de dezembro de 2003 ao início do ano de 2008, no imóvel adquirido nessa data, sito na Rua …, …, …, …, Vilamoura, tendo os Requerentes declarado na escritura que o imóvel se destinava a habitação própria e permanente, conforme cópia da escritura junta com o pedido arbitral como documento 4.

4.    No início do ano de 2008, os Requerentes arrendaram o imóvel referido no ponto anterior, e adquiriram outro imóvel no qual passaram a residir, sito no…, …, em Boliqueime.

5.    E no final de 2008, os Requerentes voltaram a residir no imóvel sito na Rua …, …, …, …, Vilamoura, em virtude de não terem conseguido alienar esse imóvel, tal como era o seu objetivo, conforme diversos documentos juntos com o pedido arbitral.

6.    A residência fiscal do Requerente passou a ser na Rua …, …, …, …, Vilamoura, apenas em agosto de 2012.

7.    A residência fiscal da Requerente passou a ser na Rua…, …, …, …, Vilamoura, apenas em julho de 2011.

8.    Os Requerentes optaram por proceder ao pagamento das liquidações de IRS dos anos de 2011, 2012 e 2013, conforme comprovativos juntos ao pedido arbitral como documento 21.

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3.2. Fundamentação da matéria de facto provada:

No tocante aos factos provados, a convicção do árbitro fundou-se na prova documental junta aos autos.

 

4. Matéria de direito:

4.1.Objeto e âmbito do presente processo

Constitui questão decidenda nos presentes autos a de saber em que medida a falta de domicílio fiscal comum constitui presunção da não existência de união de facto, quando exercida pelos seus membros a opção de tributação pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados.

Dito de outra forma, a questão a dirimir consiste em saber se os Requerentes poderiam, nas declarações modelo 3 de IRS dos anos de 2011, 2012 e 2013, ter indicado como estado civil “unidos de facto” e ser tributados em sede desse imposto pelo regime aplicável aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, de acordo com o artigo 14º do Código do IRS, apesar deles não se encontrarem registados no cadastro de contribuintes da AT com o mesmo domicílio fiscal, nos dois anos anteriores.

Sobre esta mesma questão já se pronunciaram as decisões do CAAD dos processos n.º 547/2016-T, 773/2015-T, 564/2015-T, 413/2016-T, 304/2015-T e n.º 497/2014-T.

 

4.2. O pedido de declaração de ilegalidade e anulação das liquidações controvertidas

De acordo com Casalta Nabais[1], a consideração fiscal da família, em sede de tributação do rendimento, é imposta não só pelo n.º 1 do artigo 104.º, da Constituição da República Portuguesa, mas também pelo seu artigo 67.º, n.º 2, alínea f), que consagra o dever estadual de “Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares”, implicando a proibição de discriminações desfavoráveis aos contribuintes casados ou com filhos, face aos contribuintes solteiros ou sem filhos e não a imposição ao legislador da utilização de benefícios fiscais para o favorecimento da constituição e desenvolvimento da família.

A formulação da proteção constitucional da família, em termos de tributação do rendimento, poderia legitimar a opção pela sua “personalização”, solução que não foi acolhida pelo legislador, apesar das referências a “agregado familiar” e à responsabilidade conjunta das pessoas a quem incumbe a sua direção.

O conceito de família inicialmente aceite pelo Código do IRS (artigo 14.º - Sujeito passivo – atual artigo 13.º) é o da família nuclear, constituída pelos progenitores e dependentes a cargo, mas foi, também, predominantemente, o da família fundada no casamento, como decorre da referência a “cônjuges” e a “filhos” ou “enteados”, conceito que se foi alargando, no que respeita aos dependentes, pela inclusão de adoptados e menores sob tutela e, ainda o da família monoparental, pela referência a “o pai ou a mãe solteiros”, apesar de, neste caso, não ter sido consagrado o “quociente familiar” como existe, por exemplo, em França (entre nós, o artigo 79.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, estabeleceu uma majoração à dedução específica a atribuir ao sujeito passivo, nas famílias monoparentais, majoração que foi mantida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, embora com referência ao valor do IAS).

Contudo, o conceito de família acolhido pela versão inicial do Código do IRS, deixava de fora outras “modalidades” de família, como a constituída através da união de facto, abrangida quer pelo artigo 36.º, n.º 1, quer pelo artigo 67.º, da Constituição da República, realidade social reveladora de capacidade contributiva em condições semelhantes às do agregado familiar a que se referia o seu artigo 14.º (atual artigo 13.º), o que viria a ser suprido pelo aditamento do artigo 14.º - A (atual artigo 14.º), pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.

Vejamos a redação do artigo 14º do Código do IRS, à data dos factos:

“1 - As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.

2 - A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos.

3 - No caso de exercício da opção prevista no n.º 1, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 13.º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias.”

Assim, para beneficiar do regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, impunha-se o cumprimento dos seguintes três requisitos:

a)      Existência de união de facto;

b)      Identidade de domicílio fiscal durante dois anos;

c)      Assinatura da declaração de rendimentos, por ambos os sujeitos passivos.

Ora, nos termos do artigo 1º n.º 2 da Lei n.º 7/2001 de 11 de maio, a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivem em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

Dispõe o artigo 3º alínea d) da referida Lei n.º 7/2001 de 11 de maio, cita que as pessoas que vivam em união de facto nas condições previstas na mesma lei, têm direito à aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens.

Por outro lado, o artigo 19º n.º 1 da LGT, referia, à data dos factos, o seguinte:

“1 - O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;”

 

Já o n.º 3 do artigo 19º da LGT dispõe que é obrigatória a comunicação do domicílio do sujeito passivo à AT. E o n.º 4 do mesmo preceito legal refere que é ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à AT.

Assim, a não comunicação da mudança de domicílio é sancionada como uma mera ineficácia, ou não produção de efeitos perante a AT, e não de qualquer invalidade da mudança de domicílio.

Caso seja efetuada a comunicação prevista no artigo 19º n.º 3 da LGT, os sujeitos passivos têm a seu favor uma presunção de que o seu domicílio fiscal corresponde ao domicílio constante do Sistema de Gestão de Registo de Contribuintes. E pelo contrário, no caso dos sujeitos passivos não cumprirem esta obrigação, incumbe-lhes o ónus de provar o respetivo domicílio fiscal, tal como afirma a decisão mais recente do CAAD, do processo n.º 547/2016-T.

Com efeito, o artigo 74º n.º 1 da LGT impõe que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da AT ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

O que a lei (artigo 14º do Código do IRS) exige é a identidade de domicílio fiscal e não a identidade do domicílio constante do Sistema de Gestão e de Registo de Contribuintes.

A comunicação de qualquer alteração do domicílio fiscal reporta-se exclusivamente ao âmbito formal da relação jurídico-tributária, de acordo com o n.º 2 do artigo 43º do CPPT. Pelo que não poderá a falta daquela comunicação ter efeitos materiais sobre a situação dos sujeitos passivos, como sejam os de impedir a aplicação de um determinado regime legal de tributação.

Assente doutrinária e jurisprudencialmente que a comunicação de qualquer alteração do domicílio fiscal se reporta exclusivamente ao âmbito formal da relação jurídico-tributária, impor-se-á a conclusão de que não poderá a falta daquela comunicação ter efeitos materiais sobre a situação dos sujeitos passivos, como sejam os de impedir a aplicação de um determinado regime legal de tributação, tal como expõe o Senhor Provedor de Justiça da Recomendação n.º 1/A/2013.

A referida Recomendação n.º1/A/2013 do Provedor de Justiça, refere ainda que “a concretização do princípio da legalidade pela administração tributária determina uma interpretação principialista das normas, ou seja, uma interpretação das normas, em especial das normas de incidência, segundo os princípios básicos da Constituição Fiscal, o que implica, quanto à situação de que se vem a tratar, a harmonização das disposições legais contidas nos artigos 14.º, n.º 2, do Código do IRS, 19.º, da LGT, 43.º, do CPPT e 117.º, n.º 4, do RGIT, o que terá necessariamente que passar pela aceitação de prova da coabitação dos unidos de facto durante mais de dois anos, por outros meios, que não apenas pela identidade de domicílio fiscal. Embora o domicílio fiscal comum possa prefigurar meio de prova qualificada, esta, no entanto, não poderá ser a exclusiva, pelos motivos já apontados.

Tal como refere a decisão do CAAD do processo n.º 773/2015-T, “a falta de comunicação e alteração de domicílio fiscal apenas produz efeitos ao nível da sua eficácia, que não afeta a substância, e ao nível contra-ordenacional – (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no âmbito do processo n.º 8313/14, de 19.02.2015, processo n.º 4550/11, de 7.04.2011 e 5655/12 de 5.03.2015)”.

O referido acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul do processo n.º 8313/14 de 19-02-2015, refere que “há que concluir que o incumprimento daquela comunicação não obsta a que os Impugnantes optem pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens previsto no n.º 1 do art. 14º do CIRS”.

Com efeito, vivendo duas pessoas em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, na mesma residência habitual (prova que cabo aos sujeitos passivos), verifica-se a identidade do domicílio fiscal prevista no disposto no n.º 2 do artigo 14º do Código do IRS.

No caso concreto, os Requerentes provaram que vivem em união de facto há mais de dois anos.

Com efeito, consta dos factos provados que os Requerentes viveram, desde dezembro de 2003 ao início do ano de 2008, no imóvel adquirido nessa data, sito na Rua …, …, …, …, Vilamoura, tendo os Requerentes declarado na escritura que o imóvel se destinava a habitação própria e permanente. No início do ano de 2008, os Requerentes arrendaram o imóvel atrás identificado, e adquiriram outro imóvel no qual passaram a residir, sito no…, …, em Boliqueime. E no final de 2008, os Requerentes voltaram a residir no imóvel sito na Rua …, …, …, …, Vilamoura, em virtude de não terem conseguido alienar esse imóvel, tal como era o seu objetivo, tendo arrendado o imóvel de Boliqueime.

Porém, a residência fiscal do Requerente passou a ser na Rua …, …, …, …, Vilamoura, apenas em julho de 2011, e a residência fiscal da Requerente passou a ser esta apenas em agosto de 2012.

Os Requerentes teriam que provar que viviam em união de facto há mais de dois anos.

O artigo 13º n.º 2 do Código do IRS dispõe que a situação pessoal e familiar do sujeito passivo relevante para efeitos de tributação é aquela que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite.

Assim, estando perante as liquidações de IRS de 2011, 2012 e 2013, era necessário a prova da união de facto desde 01-01-2009 até 31-12-2013. Prova essa que entendemos que foi feita, uma vez que os Requerentes lograram demonstrar que vivem em união de facto, de forma ininterrupta, desde o ano de 2003. Com efeito, não restam dúvidas de que ambos tinham, desde essa data, o mesmo domicílio fiscal.

Tal como se refere na decisão do CAAD do processo n.º 547/2016-T, a união de facto não exige qualquer formalidade especial, podendo a sua prova ser efetuada por qualquer meio legalmente admissível, conforme resulta expressamente do artigo 2º-A n.º 1 da Lei n.º 7/2001 de 11 de maio.

Assim, concluímos como na referida decisão do CAAD: uma vez feita a prova da identidade do domicílio fiscal e não sendo a exigência de identidade de domicílio fiscal junto Sistema de Gestão e de Registo de Contribuintes constitutiva do direito do sujeito passivo, há que concluir que o incumprimento da obrigação prevista no artigo 19º nº 3 da Lei Geral Tributária não obsta a que os sujeitos passivos optem pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados pessoalmente de pessoas e bens previsto no artigo 14º nº 2 do Código do IRS, quando lograram, por outros meios, fazer a prova, que lhes incumbia, da identidade de domicílio fiscal e da união de facto – nesse sentido, vide acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 19-02-2015, processo nº 08313/14.

Conforme defendido no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 05-03-2015, processo número 05655/12, “vivendo duas pessoas, independentemente do sexo, em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, na mesma residência habitual (prova que cabe aos sujeitos passivos, no caso de incumprimento da obrigação de comunicação revisto no n.º 3 do art. 19.º da LGT) verifica-se a identidade de domicílio fiscal prevista no disposto no n.º 2 do art. 14.º do CIRS”.

Veja-se a Recomendação nº 1/A/2013 da Provedoria da Justiça, nos termos da qual se entendeu que “os contribuintes que, vivendo em união de facto, tal como definida pela lei respetiva e que não tenham atempadamente procedido à alteração do seu domicílio fiscal, não poderão deixar de beneficiar do regime de tributação conjunta por que tenham optado, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber, nos termos do n.º 4 do artigo 117.º, do RGIT”.

Aliás, outra interpretação do artigo 14º do Código do IRS violaria de forma ostensiva os princípios constitucionais de proteção da família, da capacidade contributiva e da igualdade.

Verifica-se, assim, estarem preenchidos os dois primeiros pressupostos previstos no artigo 14º do Código do IRS para opção pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens, isto é, existência de união de facto e identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante mais de dois anos e durante o período de tributação.

Quanto ao terceiro requisito exigido pelo artigo 14º do Código do IRS, assinatura da declaração de rendimentos por ambos os sujeitos passivos, não tendo a mesma sido colocada em causa pela AT, terá necessariamente de se concluir estar o mesmo verificado.

Em face de tudo quanto ficou exposto, verificando-se que se encontravam verificados todos os pressupostos previstos no artigo 14º do Código do IRS, poderiam os Requerente optar, como fizeram, na declaração de rendimentos entregues respeitantes aos anos de 2011, 2012 e 2013, pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens.

Assim, resulta clara a inexistência de fundamento legal para o ato de liquidação impugnado, impondo-se, por isso, a sua anulação.

 

4.3. Dos juros indemnizatórios

 

A Requerente refere que procedeu ao pagamento das liquidações em causa nos presentes autos, e requer o reembolso da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

O artigo 43º n.º 1 da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

No presente caso, o erro que afeta as liquidações é imputável à AT, que liquidou o imposto sem qualquer suporte factual ou legal, pelo que dúvidas não existem de que há direito a juros indemnizatórios.

Resta saber desde que data serão os mesmos devidos.

Em face da falta de identidade de domicílio fiscal registado no Sistema de Gestão e de Registo de Contribuintes, apenas poderia a AT tomar conhecimento do erro quando devidamente alertada pelos Requerentes.

Entendemos que tal alerta só surgiu com a reclamação graciosa, na qual os Requerentes juntaram documentos de prova da identidade de domicílio fiscal e da efetiva união de facto.

Assim, concluímos tal como na decisão do CAAD do processo n.º 547/2016-T, deveria a AT alterar a decisão e corrigir o erro aquando da emissão da decisão da reclamação graciosa apresentada, decisão essa datada de 13-09-2016.

Com efeito, deverá ser a Requerida condenada no pagamento de juros indemnizatórios desde 13-09-2016, até à data do efetivo reembolso do imposto indevidamente pago.

 

5. Decisão

Em face do exposto, determina-se:

a)    julgar totalmente procedente o pedido formulado pelos Requerentes, no presente processo arbitral tributário, quanto à ilegalidade das liquidações de IIRS dos anos de 2011, 2012 e 2013, objeto do presente pedido arbitral;

b) julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar à Requerente, o valor do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios nos termos legais, desde 13-09-2016 até à data do integral reembolso do mesmo.

 

6. Valor do processo:

De acordo com o disposto no artigo 315º, n.º 2, do CPC e 97º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor da ação em 11.427,73 €.

 

7. Custas:

Nos termos do artigo 22º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00, devidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Notifique.

 

Lisboa, 23 de junho de 2017.

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, por mim revisto.

 

A juiz arbitro

Suzana Fernandes da Costa



[1] Cfr. NABAIS, José Casalta, “Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 158-160.