Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO:
A…, S.A., sociedade com sede na Rua …, n.º…, …-… Lisboa, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva…, doravante simplesmente designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a revogação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico apresentado e consequente declaração de ilegalidade e anulação de 162 (cento e sessenta e dois) atos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos exercícios de 2010, 2011 e 2012, no valor total de € 10.853,21 e respetivos juros compensatórios, no montante de € 854,89, bem como a condenação da Requerida no reembolso de igual montante, peticionando ainda o pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
a) A Requerente é uma instituição de crédito, sendo que, no âmbito da sua actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel;
b) À data da liquidação do imposto, relativamente a cada um dos veículos encontravam-se em vigor contratos de locação financeira dos ditos veículos;
c) Apesar de ser proprietária dos referidos veículos, a Requerente jamais usufruiu dos mesmos, encontrando-se estes, durante todo o período de vigência do contrato, no gozo exclusivo do locatário;
d) Nunca a Requerente poderia ser havida como sujeito passivo do IUC, porquanto sobre os veículos em questão incidiam contratos de locação financeira, o que implica ser o locatário o sujeito passivo e, consequentemente, o responsável pelo pagamento do imposto;
e) A AT sabia – ou devia saber, porquanto a locação financeira é objecto de registo – que sobre os veículos automóveis em causa incidiam contratos de locação financeira, conhecendo a identidade dos locatários;
f) A AT considera que a Requerente, enquanto entidade locadora dos veículos, é a responsável pelo pagamento do IUC;
g) Nos termos do artigo 3º do CIUC, o locatário é equiparado ao proprietário do veículo;
h) O legislador optou por privilegiar o critério da propriedade económica, em detrimento da propriedade jurídica;
i) No caso das 162 liquidações em crise, a Requerente não é sujeito passivo de IUC.
A Requerente juntou 4 anexos (A, B, C e D) e 184 documentos, tendo arrolado duas testemunhas.
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o signatário.
Pese embora a Requerida tenha pedido a “exoneração” pelo Conselho Deontológico do CAAD do árbitro nomeado nos presentes autos, tal pedido foi julgado improcedente, tendo a designação do signatário sido mantida pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
O tribunal arbitral foi constituído em 15 de Março de 2017.
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, invocou ser a Requerente parte ilegítima para impugnar as liquidações emitidas em nome das sociedades “B…, S.A. – Sucursal em Portugal” (doravante, abreviadamente, B…), juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 1 a 34, e “C…, S.A.” (doravante, abreviadamente, C…), juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 80 a 92.
Por impugnação, alegou em síntese o seguinte:
a) O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que são sujeitos passivos do IUC os proprietários, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
b) O artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários, mas que se consideram proprietários;
c) Dos documentos juntos pela Requerente não resulta demonstrado que os veículos em causa se encontrassem dados em locação financeira à data do facto gerador do imposto;
d) A falta de inscrição no registo dos contratos de locação tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;
e) O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos;
f) A falta de cumprimento da obrigação prevista no artigo 19º do CIUC faz impender sobre a Requerente a responsabilidade pelo pagamento do IUC e das custas arbitrais;
g) A interpretação do artigo 3º do CIUC propugnada pela Requerente viola os princípios constitucionais da confiança, da segurança jurídica, da eficiência do sistema tributário e da proporcionalidade.
A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.
Devidamente notificada para tal, a Requerente respondeu à exceção invocada pela Requerida, tendo junto 4 documentos, sobre os quais a AT se pronunciou.
Em síntese, invocou a Requerente, quanto às liquidações emitidas em nome da sociedade B…, sucursal em Portugal da sociedade anteriormente denominada “D…, S.A.”, que o conjunto de ativos e passivos detidos por esta sociedade, atualmente já extinta, foi incorporado na Requerente, a título de realização em espécie de um aumento de capital social, tendo a Requerente assumido a posição anteriormente assumida por esta sociedade nos contratos de locação financeira por si celebrados.
No que diz respeito à C…, alegou a Requerente que, em 31/12/2008, na qualidade de única acionista, deliberou proceder à dissolução e liquidação imediata da C…, tendo a Requerente, na qualidade de sociedade dominante da C… e responsável pela sua dissolução e liquidação, assumido a posição anteriormente assumida por esta sociedade nos contratos de locação financeira por si celebrados.
Invocou ainda a Requerente que, no âmbito do processo administrativo, a Requerida não suscitou qualquer ilegitimidade da Requerente quanto às liquidações remetidas à C… e à B…, pelo que a conduta da AT, ao vir invocar a ilegitimidade da Requerente nesta sede constitui abuso de direito.
Mais invocou que a posição defendida pela AT contraria os seus comportamentos anteriores, já que, sempre que a Requerente necessita de uma certidão de inexistência de dívidas, a mesma é-lhe negada quando existam dívidas das indicadas C… e B… .
Atenta a posição assumida pelas partes e não existindo necessidade de produção adicional de prova, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, escritas ou orais.
II. APRECIAÇÃO DAS EXCEPÇÕES INVOCADAS:
A Requerida deduziu exceções que, por poderem obstar ao conhecimento do mérito de parte do pedido, importa conhecer previamente.
Invoca a AT não ter a Requerente legitimidade para impugnar as liquidações emitidas em nome das sociedades B… e C… .
Por seu turno, a Requerente defende a sua ilegitimidade para impugnar as ditas liquidações, invocando para tanto que a posição de locadora nos contratos de locação financeira relativos aos veículos cujo IUC está aqui em causa passou a ser por si assumida.
Cumpre apreciar:
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Das liquidações emitidas em nome da B…:
Quanto às liquidações emitidas em nome da B…, juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 1 a 34, alega a Requerente que o conjunto de ativos e passivos detidos por esta sociedade, atualmente já extinta, foi incorporado na Requerente, a título de realização em espécie de um aumento de capital social, tendo a Requerente assumido a posição anteriormente assumida por esta sociedade nos contratos de locação financeira por si celebrados.
Para prova do alegado, juntou cópia de certidão emitida em 30/09/2011, do teor da matrícula e de todas as inscrições em vigor e não em vigor da sociedade B… (documento 2 junto com a resposta às exceções) e cópia de escritura de aumento de capital e alteração parcial do contrato da sociedade E…, S.A.”, anterior denominação da Requerente (documento 3 junto com a resposta às exceções).
Do documento junto sob o número 2 com a resposta às exceções apenas resulta, com interesse para os autos, que a matrícula da indicada sociedade se encontra cancelada.
Por seu turno, do documento junto sob o número 3 com a resposta às exceções resulta, com interesse para os autos, que em 02/01/2007 a Requerente, então denominada “E…, S.A.”, deliberou aumentar o seu capital social, tendo parte desse aumento sido subscrito em espécie pela sociedade “B…, S.A., através da transferência para a Requerente dos bens relativos à unidade de negócio da B… .
Não resulta, porém, deste documento, que os contratos de locação financeira relativos aos veículos automóveis cujas liquidações se encontram em causa nos presentes autos fizesse parte da unidade de negócio da B… e, em consequência, que tais contratos tivessem sido transferidos, na sequência da dita subscrição de capital, para a Requerente.
Note-se que, pese embora não se coloque em causa que a indicada sociedade tenha celebrado os contratos juntos com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 1 a 34, a verdade é que, esses contratos poderiam, pelas mais diversas ordens de razões, já não se encontrar em vigor à data da referida transmissão.
O ónus da prova de tal facto recaía sobre a Requerente, por se tratar de facto por si alegado e constitutivo do seu direito, sendo certo que a Requerente teve oportunidade para juntar prova bastante de tal facto.
Não tendo a Requerente logrado cumprir esse ónus, não pode este tribunal julgar provado que os contratos de locação financeira celebrados pela B… e em causa nos presentes autos foram transmitidos para a Requerente.
Procede, assim, a exceção de ilegitimidade ativa em relação aos atos de liquidação de IUC juntos com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 1 a 34.
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Das liquidações emitidas em nome da C…:
No que diz respeito às liquidações remetidas à C…, juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 80 a 92, alega a Requerente que, em 31/12/2008, na qualidade de única acionista, deliberou proceder à dissolução e liquidação imediata da C…, tendo a Requerente, na qualidade de sociedade dominante da C… e responsável pela sua dissolução e liquidação, assumido a posição anteriormente assumida por esta sociedade nos contratos de locação financeira por si celebrados.
Pese embora o alegado pela Requerente, a verdade é que, não obstante ter tido oportunidade para tal, não foi junta qualquer prova documental da invocada transmissão para a Requerente da posição contratual assumida pela C… nos indicados contratos de locação financeira.
Com efeito, a Requerente apenas juntou aos autos um print do Portal da Justiça, de onde resulta que, pela AP. … de 09/01/2009, foi registada a dissolução e encerramento da liquidação da C…, sendo a Requerente depositária.
Nada mais resulta dos documentos juntos pela Requerente.
Mais uma vez, tratando-se de facto constitutivo do direito alegado pela Requerente, seria sobre si que impenderia o ónus da prova de tal facto, ónus esse que não logrou cumprir.
Assim, não pode este tribunal dar como provado que os contratos de locação financeira celebrados pela C… e em causa nos presentes autos foram transmitidos para a Requerente, conforme alegado.
Donde a ilegitimidade da Requerente para impugnar os atos de liquidação de IUC emitidos em nome da C… e juntos com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 80 a 92.
Procede, assim, a exceção de ilegitimidade ativa em relação aos atos de liquidação de IUC juntos com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 80 a 92.
Nem se diga, como faz a Requerente, que não tendo a Requerida, no âmbito do processo administrativo, colocado em causa a legitimidade da Requerente para pedir a revisão oficiosa e subsequente recurso hierárquico das liquidações emitidas em nome da B… e C…, não o poderá fazer nesta sede, consubstanciando tal conduta abuso de direito.
Isto porque, a ilegitimidade ativa é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso (577º e) e 578º, ambos do CPC), pelo que, ainda que a AT não tivesse invocada tal exceção, sempre se imporia a este tribunal o seu conhecimento.
E, pela mesma ordem de ideias, não se verifica qualquer comportamento contraditório por parte da AT ao arguir tal exceção, tanto mais que, apesar do alegado pela Requerente, não foi junta qualquer prova demonstrativa de que a AT recuse a emissão de certidões negativas de dívida requeridas pela Requerente quando existam dívidas das sociedades B… e C… .
Ademais, ao contrário do alegado pela Requerente, não corresponde à verdade que as liquidações em causa tenham sido remetidas para a sua sede, o que resulta sem qualquer margem para dúvida da análise das ditas liquidações.
Posto isto, este Tribunal irá apenas conhecer do pedido formulado em relação às liquidações juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 35 a 79.
III) SANEAMENTO:
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.
Não existem outras nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.
IV) QUESTÕES A DECIDIR:
Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:
a. Determinar se a norma de incidência subjetiva prevista no artigo 3º nº 1 do CIUC prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal;
b. Apurar quem é sujeito passivo de IUC se, na data da verificação do facto gerador do imposto, vigorar contrato de locação financeira que tenha por objeto veículo automóvel;
c. Apurar qual o valor jurídico do registo automóvel em sede de IUC, maxime para efeitos da incidência subjetiva do imposto;
d. Determinar se a não atualização do registo automóvel permite considerar, como sujeitos passivos de IUC, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;
e. Apurar quais as consequências do incumprimento do disposto no artigo 19.º do CIUC.
V) MATÉRIA DE FACTO:
a. Factos provados:
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Requerente é uma instituição de crédito;
2. No âmbito da sua atividade, assume especial relevância o financiamento ao setor automóvel;
3. O sobredito financiamento é, as mais das vezes, formalizado através da celebração de contratos de locação;
4. Durante o período de execução daqueles contratos, a Requerente mantém a posição jurídica de locadora;
5. A Requerente foi notificada dos atos de liquidação de IUC juntos com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 35 a 79, relativos aos anos de 2010, 2011 e 2012, no valor global de € 10.853,21 e respetivos juros compensatórios, no montante de € 854,89;
6. A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações a que se alude em 5) anterior, o qual veio a ser objeto de despacho de indeferimento;
7. A Requerente interpôs recurso hierárquico do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa;
8. Por ofício datado de 20/09/2016, foi a Requerente notificada do despacho de indeferimento do recurso hierárquico apresentado;
9. As liquidações em crise referem-se a veículos em relação aos quais haviam sido celebrados pela Requerente contratos de locação financeira;
10. A Requerente pagou o imposto liquidado pela Requerida e espelhado nas liquidações ora impugnadas, bem como os respetivos juros compensatórios.
b. Factos não provados:
1. As liquidações juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 35 a 79 reportam-se a veículos que se encontrassem dados em locação financeira à data do facto gerador do imposto;
2. As locações financeiras e a identificação dos locatários encontravam-se inscritas no Registo Automóvel.
c. Fundamentação da matéria de facto:
A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pelas partes, indicada relativamente a cada um dos pontos e cuja adesão à realidade não foi questionada.
No que diz respeito à matéria de facto não provada, a mesma teve por base a total ausência de prova nesse sentido efetuada.
VI) DO DIREITO:
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.
A primeira das questões a analisar prende-se com a interpretação da norma contida no n.º 1 do artigo 3º do CIUC e, mais concretamente, em saber se aquela contém ou não uma presunção legal.
Dispunha o número 1 do artigo 3º do CIUC em vigor à data dos factos:
“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
Da simples leitura do número um do indicado preceito verifica-se, sem grandes dificuldades, que a pedra de toque está na expressão “considerando-se”, utilizada pelo legislador.
Atenta a terminologia utilizada, deverá entender-se que o legislador pretendeu estabelecer uma presunção implícita ou uma verdadeira ficção legal?
Para a apreciação desta questão, importa, antes de mais, trazer aqui à colação alguns conceitos jurídicos e definições legais.
Assim,
Nos termos do disposto no artigo 349º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Relativamente às presunções legais, prescreve o número 2 do artigo 350º do mesmo Código que estas podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.
Já no que diz respeito, em concreto, às presunções de incidência tributária, estabelece o artigo 73º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.
Para além de presunções, o legislador recorre também às chamadas “ficções legais”, as quais se traduzem “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”[1].
De acordo com a tese avançada pela Requerida, o facto de o artigo 3º nº 1 do CIUC estabelecer que se “consideram” como proprietários, ao invés de “presumem-se” como proprietários, revela que o legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, pretendeu expressamente determinar que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados se consideram, sem admissibilidade de qualquer prova em contrário, proprietários dos mesmos.
Ainda de acordo com a Requerida, se o legislador pretendesse criar uma presunção e não uma ficção legal, teria escrito, como faz em diversos outros diplomas, que se presumem proprietários e não que se consideram proprietários.
Desde já poderemos adiantar não sufragar este tribunal do entendimento defendido pela Requerida.
Isto porque, pela análise dos elementos histórico e teleológico, para além, naturalmente, do elemento literal, de interpretação legislativa, chegaremos, inevitavelmente, à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária.
Senão vejamos:
Quanto ao elemento histórico, importa referir que o atual IUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos.
Este imposto sobre veículos, que se manteve em vigor até à criação do atual IUC, consagrava expressamente que o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados – vd. artigo 3º do Regulamento do Imposto sobre Veículos, anexo ao indicado DL 599/72, de 30 de Dezembro.
Aquando da aprovação do novo CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se como tais” pela expressão “considerando-se como tais”, mas nem por isso se poderá defender que tal alteração signifique uma verdadeira substituição de uma presunção (ilidível) por uma ficção legal (inilidível).
É que, conforme nos ensina JORGE LOPES DE SOUSA[2], em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, avança o autor que no artigo 40º nº 1 do CIRS se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46º nº 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.
O mesmo se passou com o CIUC em que, não obstante ter sido alterada, em relação à redação original, a expressão “presume-se” pela expressão “considera-se”, nenhuma alteração de fundo se produziu, tendo as diferentes expressões exatamente o mesmo significado.
À mesmíssima conclusão chegamos pela análise do elemento teleológico.
De facto, importa ter presente a exposição de motivos da Proposta de Lei nº 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.
Analisada esta exposição de motivos, verifica-se que o que se pretendeu foi empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Continuando, explica a referida exposição de motivos que “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.”
O que levou, inclusive, à consagração do princípio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CIUC, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respetiva propriedade e até ao momento do abate”.
O IUC, enquanto verdadeiro imposto ambiental, tem, pois, por sujeito passivo o poluidor, mais não passando, afinal, da consagração do princípio do poluidor-pagador.
Por onde se verifica que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente a incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1º do CIUC.
De tudo quanto ficou exposto resulta que os elementos literal, histórico e teleológico de interpretação da lei conduzem necessariamente à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3º nº 1 do CIUC consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível.
Nos termos do disposto no número 1 do artigo 3º do CIUC, sujeito passivo do imposto é, em princípio, o proprietário, já que a lei presume que é este quem utiliza o bem. Mas se se provar que, afinal, não é o proprietário quem faz uso do veículo, mas um terceiro, então será este, fatalmente, o sujeito passivo do imposto.
É esta, salvo melhor opinião, a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11º nº 3 da Lei Geral Tributária, segundo o qual, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias “deve atender-se à substância económica dos factos tributários” e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários[3].
Aliás, qualquer outra interpretação violaria, desde logo, o princípio da equivalência consagrado no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual se estabelece que o IUC procura “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão da incidência subjectiva do imposto durante o período de vigência de um contrato de locação financeira.
Antes, porém, e para melhor dilucidar a questão que ora nos ocupa, deve sublinhar-se que, na vigência de um contrato de locação financeira, não obstante o locador manter na sua esfera jurídica a propriedade do bem locado, apenas ao locatário assiste o direito de gozar, de forma exclusiva, o bem locado; o que resulta da leitura conjugada do artigo 1.º, da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º, todos do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho.
Ora, uma vez que é ao locatário que assiste o potencial de utilização do veículo, e atento o princípio informador do IUC – consagrado no artigo 1.º do respectivo Código –, facilmente se compreende que seja o locatário o onerado com a obrigação de imposto por via da sua qualificação como sujeito passivo, através da sua equiparação a proprietário. É este, ao que ora nos importa, o sentido a retirar dos números 1 e 2 do artigo 3.º do CIUC.
Deste modo, sendo o locatário o potencial responsável pelos custos viários e ambientais, bem se compreende que seja ele, e apenas ele, o responsável pelo pagamento do imposto.
Em face do que antecede e à luz do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, dúvidas não subsistem: se à data da verificação do facto gerador do imposto vigorar um contrato de locação financeira, cujo objecto seja um veículo automóvel, o sujeito passivo é o locatário; nunca o locador.
E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel.
Perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial.
Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7.º, e conjugando esta norma com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.
Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa.
Pelo que, o facto de não se encontrar inscrito no registo qualquer contrato de locação financeira respeitante aos veículos em causa, não tem como consequência inelutável que tal contrato não exista, podendo a prova da existência desse contrato ser feita por qualquer forma em direito permitida.
Ora, pese embora à data das liquidações de imposto não se encontrar inscrita no registo qualquer locação financeira, alega a Requerente não ser sujeito passivo do imposto, pelo facto de os veículos se encontrarem dados em locação financeira.
Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pela Requerente são aptos a cumprir tal desiderato.
Com vista a provar que os veículos referidos nos presentes autos foram por si dados em locação financeira em data anterior à da ocorrência do facto gerador do imposto, a Requerente juntou contratos de locação financeira tendo por objeto cada um dos veículos cujas liquidações se encontram aqui em causa.
A Requerida impugnou os contratos de locação financeira juntos, invocando expressamente não resultar dos documentos juntos que os contratos se encontrassem em vigor à data da ocorrência do facto gerador do imposto.
Pese embora a Requerida tenha impugnado os contratos juntos pela Requerente, a verdade é que, tratando-se de documento particular, impunha-se à Requerida impugnar a veracidade da letra ou da assinatura.
Não o tendo feito e não tendo arguido a falsidade dos ditos documentos, têm os documentos juntos pela Requerente força probatória plena, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 376º do Código Civil, razão pela qual julgou este tribunal provado que as liquidações em crise se referem a veículos em relação aos quais havia sido celebrado pela Requerente contratos de locação financeira – cfr. facto provado 9.
Mas daí não resulta a prova, que se impunha, de que tais contratos se encontrassem em vigor à data da ocorrência do facto gerador do imposto.
Isto porque os referidos contratos poderiam ter cessado antes daquela data pelas mais variadas razões, sendo certo que a Requerente, apesar de alegar que todos os contratos se encontravam em vigor à data da ocorrência do facto gerador do imposto, não o logrou demonstrar.
Tratando-se de facto constitutivo do direito invocado pela Requerente, seria sobre esta que impenderia o respetivo ónus da prova, que não logrou fazer.
Não tendo a Requerente logrado demonstrar que os contratos de locação financeira celebrados se encontravam em vigor à data da ocorrência do facto gerador do imposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões.
Em face do exposto, tem de improceder a impugnação das liquidações juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 35 a 79.
De tudo quanto se expendeu resulta clara a inexistência de qualquer fundamento para anulação das liquidações impugnadas, as quais terão, assim, de manter-se na ordem jurídica.
VII) DISPOSITIVO:
Em face do exposto, decide-se:
a. Julgar procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Requerente para impugnar as liquidações juntas com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 1 a 34 e 80 a 92;
b. Julgar improcedente o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC juntos com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 35 a 79.
***
Fixa-se o valor do processo em € 11.530,36, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
***
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerente por ser a parte vencida.
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Registe e notifique.
Lisboa, 21 de Junho de 2017.
O Árbitro,
Alberto Amorim Pereira
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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
[1] FRANCISCO RODRIGUES PARDAL, “O uso de presunções no direito tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 325-327, página 20.
[2] In “Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado”, Volume I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.
[3] JORGE LOPES DE SOUSA, op. cit, pp. 590 e ss.