Decisão Arbitral
Os árbitros Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Presidente), Doutor Rui Duarte Morais (Vogal) e Doutor Manuel Pires (Vogal), acordam o seguinte:
I. RELATÓRIO
A) Constituição do tribunal arbitral
1. A…– SGPS SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., contribuinte fiscal n.º…, com sede na …, n.º…, …, …-… Lisboa (doravante designada por “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral e de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo do disposto no artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 Janeiro [Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT)], em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também designada por “Requerida”).
2.O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 18-07-2016.
2.1.No exercício da opção de designação de árbitro prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT e em cumprimento do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 10.º e no n.º 2 do artigo 11.º, do mesmo diploma, a Requerente designou como Árbitro o Prof. Doutor Rui Duarte Morais.
2.2.Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) designou como Árbitro o Prof. Doutor Manuel Pires.
2.3.De acordo com o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD notificou a Requerente da designação do Árbitro pelo dirigente máximo do serviço da Administração Tributária em 31-08-2016 e notificou os árbitros designados pelas partes para designarem o terceiro árbitro que assume a qualidade de Árbitro presidente, tendo os Exmos. Árbitros designados pelas partes acordado, em 15-09-2016, na designação da Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs como Árbitro Presidente.
2.4.Em 15-09-2016, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT.
2.5.Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 30-09-2016.
2.6. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
B) Pedido de pronúncia arbitral
3. O pedido de pronúncia arbitral é a apreciação da legalidade da liquidação de IRC n.º 2016…, relativa ao exercício de 2012, da qual resultou um valor total de IRC a pagar de € 8.942.701,12.
4. Peticiona ainda a Requerente que a AT seja condenada no pagamento de indemnização pelas despesas incorridas pela Requerente com a constituição, prestação e manutenção de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal n.º …2016… .
5. A liquidação impugnada foi emitida pela AT na sequência de um procedimento de inspeção, no âmbito do qual foram feitas correções relacionadas com o tratamento fiscal a conferir às variações do justo valor das participações sociais detidas pela Requerente no B…, S.A. (“B…”) mensuradas através de resultados.
C) Posição das partes
6. A Requerente alega, em resumo, que:
- tratando-se de uma Sociedade Gestora de Participações Sociais (“SGPS”), tais ganhos e perdas sempre estariam no âmbito do regime especial do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, não concorrendo para o resultado fiscal;
- assim não se entendendo, haverá que concluir que o justo valor de investimentos financeiros, i.e., instrumentos financeiros disponíveis para venda, correspondentes a participações ou ativos detidos de forma estável e duradoura, é, em qualquer caso – independentemente da opção contabilística efetivamente tomada pelo sujeito passivo entre NCRF 27 ou IAS 39 -, irrelevante para efeitos fiscais, por interpretação restritiva da al. a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, a qual se deve aplicar unicamente aos ajustamentos de justo valor através de resultados apurados relativamente a instrumentos financeiros detidos para trading;
- a desconformidade do resultado da interpretação literal da al. a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC face à sua ratio é induzida pela imprecisão contabilística introduzida pela NCRF 27, que não distingue, para efeitos de mensuração, instrumentos financeiros detidos para trading de investimentos financeiros, sujeitando ambos indiscriminadamente ao justo valor por contrapartida de resultados, imprecisão esta que não foi corrigida pela norma fiscal;
- procedeu à correção, para efeitos fiscais, de todos os ajustamentos positivos e negativos de justo valor apurados, nomeadamente os registados nos exercícios de 2011, 2012 e 2013, acrescendo as perdas de justo valor e deduzindo os ganhos de justo valor apurados, por entender que o justo valor relativamente a investimentos financeiros não releva fiscalmente;
- a AT validou o tratamento fiscal conferido pela Requerente à perda de € 107.992.499,49 apurada no exercício de 2011;
- porém, relativamente ao exercício de 2012, a AT entende que as variações positivas de justo valor das participações sociais detidas pela Requerente no B… eram relevantes para efeitos fiscais (integrando o lucro tributável da Requerente), nos termos do artigo 18.º, n.º 9, al. a), do Código do IRC, e lhes não era aplicável o art.º 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), pelo que procedeu à liquidação ora impugnada;
- a participação detida pela Requerente no B… perdeu integralmente o seu valor em virtude das vicissitudes verificadas em 2014, pelo que a Requerente apurou, relativamente a esta participação, uma perda que ascendeu a € 228.679.068,09 (correspondente ao custo de aquisição acumulado da referida participação social);
- ao considerar uns ajustamentos de justo valor irrelevantes e outros relevantes para efeitos fiscais, a AT introduz uma disrupção no regime fiscal da tributação do justo valor e pretende liquidar aproximadamente € 19 M de imposto por justo valor negativo de € 50.202.396,08 apurado nos exercícios de 2011, 2012 e 2013, sobre participações financeiras relativamente às quais a Requerente registou uma perda total de € 228.679.068,09 que não virá a recuperar em virtude das vicissitudes do B…;
- a fundamentação da liquidação impugnada assenta numa leitura literal, limitada e claramente contrária ao seu espírito e ao sistema, o que conduz a um resultado manifestamente absurdo do ponto de vista fiscal, das al. a) do n.º 9 do artigo 18.º e al. b) do n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRC (e, também, do já referido n.º 2 do artigo 32.º do EBF), que conduz à desconsideração da variação de valor negativa e à consideração das variações positivas para efeitos fiscais;
- a liquidação impugnada é inconstitucional, por violação do princípio da tributação do rendimento real e do princípio da capacidade contributiva, na sua vertente da tributação pelo lucro real, nos termos do n.º 2 do art. 104.º da Constituição, ao sujeitar a tributação ganhos e perdas sem qualquer aderência aos ganhos e perdas realmente apurados pelo sujeito passivo; e por violação do princípio da igualdade;
- a liquidação impugnada viola também o princípio da justiça;
- a liquidação impugnada viola ainda o princípio da boa fé, o qual deve presidir à atividade administrativa;
- a AT classificou o procedimento de inspeção como de inspeção de natureza interna, nos termos do artigo 13.º do RCPIT, mas, na realidade, houve lugar a um procedimento de inspeção de natureza externa, pelo que a AT não deu cumprimento a qualquer das formalidades que regulam esta forma de procedimento, nomeadamente os n.ºs 1 e 2 do artigo 46.º, o artigo 49.º do RCPIT.
7. A AT apresentou resposta e juntou processo instrutor, alegando, no sentido da improcedência do pedido, em síntese, que:
- o procedimento inspetivo que conduziu à liquidação impugnada foi corretamente qualificado como interno, porquanto as correções se basearam apenas em documentos facultados pela Requerente após solicitação da AT, o que não altera a natureza do procedimento, atenta a noção constante da nova redação, dada pelo DL n.º 36/2016, de 1 de Julho, da al. a) do art. 13.º do RCPIT;
- a qualificação do procedimento como interno ou externo não tem, no caso concreto, qualquer relevância;
- não houve qualquer violação do princípio da justiça pois AT, atuando em obediência ao princípio da legalidade a que está vinculada, limitou-se a exigir o imposto devido face a determinadas realidades que o legislador, por razões de ordem política económica e financeira, entendeu estarem sujeitas a tributação;
- tendo o pedido de pronúncia arbitral por objeto a declaração da ilegalidade da liquidação de IRC relativa ao exercício de 2012, sendo, portanto a situação tributária desse exercício que está sob escrutínio e não a de 2014, o elemento gerador da alegada injustiça não se prende propriamente com a aplicação dos critérios de mensuração baseados no justo valor, tanto no plano contabilístico como fiscal, nem com a interpretação que a AT faz dos preceitos aplicáveis, reside, antes e somente, na resolução do B… ocorrida em Agosto de 2014;
- foi a Requerente quem optou pela contabilização das ações segundo a NCRF 27, quando bastaria ter optado pelo normativo da IASB, para afastar a aplicabilidade da al. a) do nº 9 do art. 18º do CIRC, caso em que seria tributada segundo o critério da “realização”;
- a sua (da AT) atuação não foi desconforme com o princípio da boa-fé não tem sustentação alguma no plano legal, porquanto, uma vez que [relativamente ao exercício de 2011] a própria Requerente tinha efectuado a correcção no Quadro 07 da Declaração modelo 22, só restava à AT concluir, como fez, que “não se verifica qualquer incumprimento em matéria fiscal”;
- o regime de imputação temporal associado à adopção do justo valor como critério de mensuração não surgiu, no contexto do IRC, com a criação do art.º 18.º, n.º 9, alínea a), - pelo que não pode considerar-se esta norma como uma inovação - pois tem como antecedentes o art.º 57.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 53.-A/2006, de 29 de Dezembro, que estabeleceu normas transitórias para as entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal obrigadas a elaborar as suas contas individuais em conformidade com as normas de contabilidade ajustadas (NCA); posteriormente, foi criada uma norma com uma redacção idêntica - o art.º 2.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 237/2008, de 15 de Dezembro, o qual estabeleceu um regime transitório de adaptação das regras de determinação do lucro tributável em sede de IRC à nova regulamentação contabilística aplicável ao sector segurador decorrente da adopção das Normas Internacionais de Contabilidade (NIC); desde a introdução do o art.º 68.º-B, aditado pelo art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 257-B/96, de 31 de Dezembro, que passou a ser admitida uma regra de periodização similar para os rendimentos e gastos resultantes da aplicação do valor de mercado (que corresponde neste contexto, ao que, agora se designa por justo valor) a instrumentos financeiros derivados quando se tratava de operações efectuadas em bolsas de valores, em curso no fecho de um exercício;
- a qualificação do normativo do art. 18.º, n.º 9, aliena a) como uma norma excecional será descabida, pois, para aquele tipo de ativos com cotação em mercado regulamentado, o Código do IRC não contempla uma regra geral e uma regra especial de imputação temporal para os rendimentos e gastos. Ou seja, o art. 18.º, n.º 9, alínea a) fornece a única regra aplicável para as realidades aí previstas, por isso, quando muito poderia ser considerado como um regime particular de imputação temporal de rendimentos/ganhos e gastos/perdas que resulta da mensuração pelo critério do justo valor em determinadas situações precisas;
- sendo certo que a alínea a) do n.º 9 do art.º 18.º do CIRC se limita a regular a mera imputação temporal dos rendimentos, i.e., de periodização dos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor e não a tributação ou não tributação de tais rendimentos, também é verdade que a alínea f) do n.º 1 do art.º 20.º do mesmo Código, considera como rendimentos que concorrem para a formação do lucro tributável os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” e foi precisamente essa a base legal que a AT utilizou para promover a correção ao lucro tributável;
- não cabe à AT formular um juízo sobre o méritos das normas legais mas, antes, aplicá-las em conformidade com o sentido que delas emana;
- a AT divulgou, através da Ficha Doutrinária relativa ao proc.º39/2011 – Despacho de 24/2/2011 do Diretor-geral (assunto: Tratamento fiscal da perda apurada por SGPS em resultado da aplicação do modelo do justo valor), a interpretação e articulação dos artigos 18.º, n.º 9, alínea a) e 46.º, n.º1, alínea b), do Código do IRC e artigo 32.º, n.º 2 do EBF, cuja parte relevante refere o seguinte: «1. O artigo 18º, nº 9, alínea a) do Código do IRC (CIRC) estabelece que os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, sendo instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social. 2. Contabilisticamente e fiscalmente estes ajustamentos resultantes da aplicação do justo valor são considerados ganhos por aumentos de justo valor ou perdas por redução do justo valor. 3. O artigo 46º, nº 1, alínea b) do CIRC refere expressamente que não se consideram mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos ou perdas sofridas mediante transmissão onerosa de instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor nos termos da alínea a) do nº 9 do artigo 18º do Código do IRC. 4. Não sendo aplicável o regime das mais-valias ou menos-valias, não será também consequentemente aplicável o regime do reinvestimento dos valores de realização previsto no artigo 48º do CIRC, pelo que no caso de ser apurado um ganho por aumento do justo valor, este concorre na íntegra para a formação do lucro tributável. (…) 7. Tratando-se de uma SGPS, não é aplicável o regime estabelecido no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, uma vez que o mesmo só se aplica às mais-valias ou menos-valias por elas realizadas. 8. Assim, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor relevam fiscalmente nos termos atrás indicados quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, sendo, instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social.», donde resulta que a tese alternativa que a Requerente desenvolve, que assenta na interpretação “extensiva do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, por forma a abranger os ajustamentos de justo valor apurados por uma SGPS.” (cfr., art.º 511.º p.p.a), também não tem qualquer sustentáculo na lei. Tanto mais que o legislador fiscal, na sequência da introdução da alínea a) do n.º 9 do art.º 18.º não adaptou a redação daquela disposição do EBF e, ao manter os termos mais-valias e menos-valias, cuja definição é dada pelo art.º 46.º do Código do IRC, claramente assumiu que os ajustamentos decorrentes da mensuração dos instrumentos financeiros ao justo valor estavam excluídos do âmbito do benefício fiscal;
- Relativamente ao pedido de indemnização por prestação indevida de garantia (em caso de procedência da impugnação) não foram provados os encargos suportados com a referida garantia, não podendo o Tribunal condenar a indemnizar um prejuízo que desconhece.
8. Por despacho de 17 de Novembro de 2016 foi dispensada a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, tendo sido fixada como data limite da prolação da Decisão Arbitral o dia 30 de Março de 2017. Por despacho, de 27 de Março, aquela data foi prorrogada para o dia 30 de Maio de 2017.
9. Por despacho, de 4 de Dezembro de 2016, foi deferido o pedido de junção aos autos de documentos que a Requerente protestara juntar com o pedido de Constituição do Tribunal Arbitral, o que se traduziu na junção de três pareceres.
10.As partes ofereceram alegações pugnando, no essencial, pelo sustentado em sede de articulados.
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II. SANEAMENTO
1.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo porque apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
2.As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
3.O Tribunal é competente quanto à apreciação do pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.
4.Não foram suscitadas quaisquer exceções de que cumpra conhecer.
5.Não se verificam nulidades que obstem ao conhecimento do mérito.
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III. MÉRITO
III. 1. MATÉRIA DE FACTO
§1. Factos provados
Julgam-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas constituída sob a forma de SGPS que tem por objeto social a “gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas (cf. doc. n.º 4, junto à p. i.) e é detida exclusivamente (porque titular único de participação social) pelo C…, S.A. (“C…”), sociedade de direito brasileiro, contribuinte fiscal n.º…, que desenvolve atividade bancária (cf. doc. n.º 4 e pág. 10 do doc. n.º 5, juntos à p.i.);
b) Em 31 de dezembro de 2010, a Requerente detinha 70.583.333 ações, representativas de 6,05% do capital social do B…, com um custo de aquisição acumulado de € 282.761.656,02 (cf. doc. n.º 6 junto à p.i.), participação que se manteve inalterada desde aquela data até meados de novembro de 2011;
c) Em 11 de novembro de 2011, foi deliberado em assembleia geral extraordinária do B… o aumento do capital social até € 786.946.959,99 (cf. pág. 21 do relatório e contas do B… de 2011 doc. n.º 7, junto à p.i.), na sequência do que foram emitidas 294.573.418 novas ações, passando o capital social do B… a ser € 4.030.232.150,40, representado por um total de 1.461.240.084 ações (cf. doc. n.º 7 junto à p.i.);
d) Após a subscrição das 123.520.832 novas ações do B…, a Requerente manteve a sua participação social, agora representativa de 4,83% do capital social do B…, com um custo de aquisição acumulado de € 331.552.384,66, como decorre do quadro infra:
Data da Operação
|
Nr. de ações adquiridas
|
Nr. total de ações após aquisição
|
Custo de Aquisição Acumulado
|
Percentagem de capital
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14 de abril de 2009
|
55.333.333
|
70.583.333
|
€ 282.761.656,02
|
6,05%
|
Data da Operação
|
Nr. de ações adquiridas
|
Nr. total de ações após aquisição
|
Custo de Aquisição Acumulado
|
Percentagem de capital
|
11 de novembro de 2011
|
0
|
70.583.333
|
€ 282.761.656,02
|
4,83%
|
11 de maio de 2012
|
123.520.832
|
194.104.165
|
€ 331.552.384,66
|
4,83%
|
31 de dezembro de 2013
|
0
|
194.104.165
|
€ 331.552.384,66
|
4,83%
|
e) Em 3 de agosto de 2014, o Banco de Portugal aprovou uma medida de resolução do B…, nos termos da qual a totalidade da atividade, ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do B… foram transferidos para uma nova entidade, o D…, S.A., mais tendo sido deliberado que “o Fundo de Resolução” ficaria detentor único do capital social da nova instituição, com o objetivo de permitir a entrada posterior de novos capitais e de reconstituir uma base acionista para este banco” (cf. pontos 11 e 13 do doc. n.º 12, junto à p.i.);
f) Tal medida de resolução foi acompanhada por comunicado da CMVM, no mesmo sentido, em 5 de agosto de 2014 (cf. doc. n.º 13, junto à p.i.);
g) A Requerente ficou com uma participação social na entidade que ficou com todos os ativos tóxicos do B… que não foram alvo de transferência para o D… (cf. doc. n.º 14, junto à p.i.);
h) Após a introdução do SNC em 2009 (pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho), a Requerente passou a adotar a NCRF 27 para a mensuração das participações sociais do B… (cf. demonstrações financeiras, relatório de gestão, certificação legal de contas, balancetes, extratos de conta e informação empresarial simplificada (“IES”) da Requerente para os exercícios de 2010, 2011, 2012 e 2013;
i) A Requerente procedeu a ajustamentos de transição de POC para SNC., após o que iniciou, em 2010 (no primeiro exercício de aplicação do SNC), a mensuração ao justo valor por contrapartida de resultados;
j) Em 2011 foi contabilizada, pela Requerente, variação de justo valor (perda eventual e não realizada) no valor de € 107.992.499,49 referente às 70.583.333 ações do B… que deteve ao longo desse ano (cf. doc. n.º 19, junto à p.i.);
k) Em 2012, com a subscrição de ações no aumento de capital, a totalidade das participações detidas pela Requerente (cuja cotação a 31 de dezembro de 2012 era de € 0,89 (cf. doc. n.º 25, junto à p.i.), conheceu uma valorização de € 30.615.520,31 (cf. doc. n.º 20, junto à p.i.);
l) A Requerente foi objeto de procedimentos de inspeção que tiveram por objeto o exercício de 2011, por um lado, e os exercícios de 2012 e 2013, por outro;
m) Na inspecção relativa ao exercício de 2011, a AT concluiu (Ofício n.º…, de 13 de maio de 2014) que “não resultam quaisquer atos tributários ou em matéria tributária que lhe sejam desfavoráveis” (cf. doc. n.º 31, junto à p.i.);
n) No programa de trabalho sobre “IRC – Controlo de outros custos reconhecidos no exercício” lê-se que “Os custos registados pela A… em 2011 consistem na sua quase totalidade no reconhecimento de imparidade no valor da sua participação financeira no capital do B… . A imparidade assim reconhecida ascende em 2011 a 107.992.499,49. O custo reconhecido no exercício foi integralmente neutralizado por acréscimo inscrito no campo 721 da declaração modelo 22.” (cf. doc. n.º 32, junto à p.i.);
o) No âmbito da ação de inspeção relativa aos exercícios de IRC de 2012 e 2013, a Requerente notificada, através do Ofício n.º…, de 2015.07.30 e, posteriormente, na pessoa do seu representante, no sentido de, ao abrigo do princípio da colaboração, facultar ao procedimento, entre outros, os seguintes elementos contabilísticos e fiscais de suporte e com relevância ao apuramento do lucro tributável, em síntese:
− Cópia dos balancetes analíticos, reportados a 31 de dezembro (antes e depois do apuramento dos resultados);
− Extratos das contas relativas às imparidades registadas, bem como as perdas e ganhos resultantes do tratamento da participação ao justo valor, de 2012;
− Mapa resumo do n.º acções detidas e das cotações usadas para fazer os registos contabilísticos durante os anos de 2012 e 2013;
− Extrato de conta 569 – com os ajustamentos de transição, de 2012 e 2013, bem como demonstração da decomposição do valor contabilizado e do respectivo tratamento fiscal;
− Relatório e contas do exercício de 2012 e 2013, incluindo das certificações legais de contas” (artigo 59.º da (cf. docs. n.sº 33 e 35, juntos à p.i.);
p) Mais “foram realizados vários contactos telefónicos e via e-mail, com o TOC, assente na troca de elucidamentos a algumas dúvidas e ou questões nascidas da análise da documentação contabilística-financeira por este facultada ao processo” (cf. pág. 11 do Relatório Final adiante junto à p.i. doc. n.º 35);
q) A AT notificou a Requerente do projeto de relatório através do Ofício n.º…, de 10 de dezembro de 2015, no âmbito do qual propõem correções ao lucro tributável declarado dos dois exercícios sob inspeção, nos montantes de € 30.615.520,31 e de € 27.174.583,10, respetivamente, nos termos do artigo 18.º, n.º 9 do Código do IRC (cf. doc. n.º 33, junto à p.i.);
r) As correções correspondem a variações positivas de justo valor registadas contabilisticamente e não relevadas para efeitos fiscais (cf. docs. n.ºs 20 e 21, juntos à p.i.);
s) A AT aceitou o valor dos ganhos contabilisticamente apurados pela Requerente (cf. pág. 19 do doc. n.º 33, junto à p.i.);
t) Na audiência prévia, a Requerente invocou que, querendo a AT manter tais correções propostas com referência aos exercícios de 2012 e 2013, sempre deveria proceder a correção simétrica para o exercício de 2011, no qual foi apurada uma perda de justo valor de € 107.992.499,49 que a Requerente desconsiderou para efeitos fiscais e acresceu em sede de Modelo 22 de IRC (cf. docs. n.ºs 19 e 27, juntos à p.i.);
u) A AT manteve integralmente as correções propostas em sede de relatório final de inspeção, o que deu origem à liquidação ora impugnada;
v) A Requerente não procedeu ao pagamento das liquidações supramencionadas, tendo apresentado requerimento oferecendo em garantia à AT as participações sociais que ainda possui no B…, solicitando dispensa quanto ao remanescente do valor da garantia a prestar, caso necessário (cf. doc. n.º 46, junto à p.i.).
§2.Factos não provados
Não existem quaisquer outros factos, com relevância para a decisão arbitral, a julgar como não provados.
§3. Motivação quanto à matéria de facto
No tocante ao julgamento da matéria de facto, a convicção do Tribunal fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas partes em sede de facto, do teor dos documentos juntos aos autos (designadamente do processo administrativo).
III.2. Matéria de direito
As questões a decidir são as seguintes:
a) Se, em 2012, as mais-valias obtidas por uma SGPS, relativas a investimentos financeiros contabilizados ao justo valor através de resultados, estariam isentas de IRC por força do disposto no art.º 32.º, n.º 2, do EBF;
b) Se foi feita uma correta aplicação do disposto nos art. 18.º, n.º 9, al. a) e na al. b) do n.º 5 do artigo 46.º do Código do IRC;
c) Se a liquidação impugnada é inconstitucional por violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação do rendimento real e da justiça;
d) Se a atuação da AT foi violadora do princípio da boa fé.
e) Se o procedimento inspectivo que conduziu à liquidação impugnada e deveria ter sido qualificado como externo.
Em obediência ao disposto no art.º 124.º do CPPT, os vícios invocados pela Requerente serão apreciados pela ordem atrás indicada.
III.2.1. Aplicação do disposto no art.º 32.º, n.º 2, do EBF
Em 2011, o art.º 32.º, n.º 2, do EBF dispunha o seguinte: as mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS, pelas SCR e pelos ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.
Esta solução legal, abandonada com efeitos a partir do ano de 2014, era antiga[1].
Como é sabido, o CIRC, na sua versão originária, consagrava, sem exceções, o princípio da realização, ou seja, no que aqui releva, os proveitos (mais-valias) decorrentes da transmissão de um bem só eram fiscalmente considerados no momento da sua transmissão.
Relativamente às mais-valias (e, também, às menos-valias), a afirmação do princípio da realização era feita de forma que poderemos considerar não só expressa como repetitiva[2].
Esta situação manteve-se, no essencial[3], inalterada até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13/07, o qual, «adaptou as regras de determinação do lucro tributável às normas internacionais de contabilidade tal como adoptadas pela União Europeia, bem como aos normativos contabilísticos nacionais que visam adaptar a contabilidade a essas normas».
Uma dessas adaptações foi o n.º 9 do art.º 18.º do CIRC, o qual, no que aqui interessa, dispõe: Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social;
Temos, assim, que, considerando apenas o seu elemento literal, o art.º 32.º, n.º 2, do EBF apenas isenta as mais-valias realizadas obtidas pelas SGPS, enquanto o art.º 18.º consagra a relevância fiscal de mais-valias potenciais (ganhos contabilizados ao justo valor em resultados) para algumas situações, nomeadamente a prevista na sua al. a), à qual a situação de facto da Requerente é subsumível.
A AT fundamenta a liquidação em apreciação numa interpretação estritamente literal destes preceitos.
A Requerente pugna por uma interpretação atualista do art.º 32.º, n.º 2, do EBF, a qual conduziria à isenção de tributação das mais-valias inseríveis no referido art.º 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC.
Apreciando:
Não oferece dúvidas que o art. 32.º, n.º 2, do EBF consagra uma isenção - um benefício fiscal - i. e., uma medida de carácter excepcional instituída para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem (cfr. art. 2º, n.º 1, do EBF).
Ou seja, o legislador considerou que o interesse público ligado ao desenvolvimento das SGPS justificava a não tributação das mais-valias obtidas por estas sociedades com a alienação de partes de capital, preenchidos que fossem determinados requisitos. Requisitos que se verificam no caso concreto.
A pergunta que consideramos ser de fazer é simples: o superior interesse público que conduziu à isenção destas mais-valias é diferente consoante estejamos perante mais-valias realizadas ou mais-valias contabilizadas ao justo valor através de resultados?
Afigura-se-nos claro que o critério relevante será sempre a natureza do ganho e não o momento da sua tributação.
Assim, quando o contribuinte[4] opta pela contabilização segundo o princípio da realização ou segundo o princípio do justo valor, não se altera a natureza do rendimento (está sempre em causa uma mais-valia), nem o seu montante.
Na realidade, numa perspetiva da continuidade da atividade empresarial, a mais-valia que é tributada corresponde sempre à mais-valia realizada, porquanto, no exercício em que ocorrer a transmissão da participação social, será registado um ganho ou uma perda consoante o valor de realização seja inferior ou superior àquele pelo qual tal participação se encontrava contabilizada à luz dos critérios do justo valor. O “referencial” da tributação é, pois, sempre o “valor de realização”.
Nestes termos, a opção por um ou outro critério contabilístico apenas altera o momento em que ocorre a tributação, a qual, no sistema do justo valor, em lugar de acontecer apenas aquando da alienação das participações em causa (como sucede no sistema da realização), vai ocorrendo ao longo dos vários exercícios pelos quais se prolonga a detenção das participações sociais, pela consideração dos aumentos ou diminuições potenciais (aferidas segundo o justo valor - valor de mercado) do valor de tais participações no fim de cada exercício.
Acresce que a isenção é um elemento essencial de um imposto: é o resultado de uma opção (que cabe ao legislador) valorativa dos interesses fiscais e extra-fiscais contemplados em determinada situação, pelo que não a sua existência e aplicabilidade não poderá ser resultado de uma opção contabilística. Nestes termos, afigura-se-nos insustentável o entendimento segundo o qual uma isenção “deixa de existir” quando se opte por determinada técnica de registo contabilístico (contabilização ao justo valor), sendo que, além do mais, tanto significaria colocar a concretização dos interesses extra-fiscais subjacentes à isenção” nas “mãos” de cada sujeito passivo.
É, por outro lado, claro para o tribunal que existe uma manifesta e incompreensível dessintonia entre o disposto nos art.º 32.º, n.º 2 do EBF e o previsto no art. 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC, bem como que a coerência e a racionalidade do sistema de tributação das SGPS parecem impor que todas as mais-valias por elas obtidas com a alienação de partes sociais estejam isentas (desde que verificados os demais pressupostos legais), pois que foi ao interesse extra fiscal que o legislador quis dar primazia ao prever a isenção constante da primeira das referidas normas.
Aqui chegados, cumpre averiguar se assiste razão à Requerente quando defende a necessidade de uma interpretação actualista do teor do art.º 32.º, n.º 2, do EBF, considerando o que passou a dispor o art.º 18.º, n.º 9, al. a), do CIRC, mediada pelo princípio da interpretação em conformidade com a CRP.
Vejamos.
Segundo o n.º 1 do art. 9.º do Código Civil, “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Para apreender o sentido da lei, o intérprete socorre-se, como refere FRANCESCO FERRARA (Interpretação e Aplicação das leis, tradução de Manuel de Andrade, 3ª ed., Coimbra, 1978, pp. 127 ss. e 138 ss.), de vários meios: “Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecerem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteúdo possível da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.”
E prossegue: “Ora, nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica”.
Explicita ainda o significado de cada um destes elementos:
“O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico”; “O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios”; “Por sua vez, o elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.”
A propósito deste critério realça o mesmo Autor que «É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para com o fim: quem quer o fim quer também os meios. Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências económicas que brotam das relações (natureza das coisas). E, portanto, ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa» (Idem, p. 141).
Assumimos uma orientação objetivista na interpretação das normas legais, pois que «favorece mais a rectidão e a justeza do direito, já que permite extrair dos textos o sentido mais razoável que estes comportam e ao mesmo tempo que (na vertente actualista) confere à lei maior maleabilidade, pois, além de facilitar a sua aplicação directa a situações que o legislador não previu, aproveita a virtualidade, contida no texto, de constante adaptação aos critérios de justiça e de oportunidade próprios de cada época em que a lei é aplicada» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1982, reimp., 2016, pág. 179 ss).
No sentido de um “objectivismo actualista”, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO (O Direito Introdução e Teoria Geral, 10ª. ed., Revista, Almedina, Coimbra, 1997, p. 397) pondera: “Dada a orientação que defendemos, o actualismo surge-nos forçoso. Se afirmamos o primado da ordem social, se indicamos que a lei só tem sentido quando integrada nessa ordem, fazemos uma afirmação actualista”. Interpretação que, segundo o Autor, encontra no texto do art. 9.º, n.º 1, do Código Civil português a sua consagração.
Com efeito, refere que “Entre os elementos a que se deve atender na interpretação da lei estão as condições específicas do tempo em que é aplicada. Esta referência é totalmente incompreensível fora de um entendimento actualista. Um actualista pode explicar que entre os elementos auxiliares da interpretação figurem elementos históricos (…).Mas para um historicista é inteiramente aberrante que o sentido de uma fonte possa variar por efeito de circunstâncias posteriores: ele estaria imutavelmente fixado desde o início”.
“A justificação que damos é permanente, e não válida apenas no momento da formação da lei. A lei, uma vez criada, situa-se numa ordem social, que é necessariamente viva, aberta a todos os estímulos que nela provocam as alterações históricas. A fórmula em que a lei se consubstancia está fixada: mas o sentido dessa fórmula pode variar, consoante as incidências do circunstancialismo donde arrancam as suas significações.”
Também FRANCESCO FERRARA (ob. cit., p. 137) considera: “Visto o carácter objectivo do sentido da lei, conclui-se que esta pode ter um valor diferente do que foi pensado pelos seus autores, que pode produzir consequências e resultados imprevisíveis ou, pelo menos, inesperados no momento em que foi feita, e por último que com o andar dos tempos o princípio ganha mais amplo horizonte de aplicação, estendendo-se a relações diversas das originariamente contempladas, mas que, por serem de estrutura igual, se subordinam ao seu domínio (fenómeno de projecção)”.
Na jurisprudência realça-se, com relevância, para o caso em apreço, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de outubro de 2007, no processo n.º 07B1710, por se tratar de decisão que, rompendo com uma interpretação estritamente literal do artigo 505.º do Código Civil (que consagrava como circunstância exoneratória da responsabilidade a culpa exclusiva do lesado, defendida pela doutrina tradicional), deu prevalência a uma “interpretação progressiva ou actualista” do mencionado preceito, de modo a acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.
No sumário desse acórdão pode ler-se, entre o mais, que:
“2. De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, na verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505.º do CC- maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado - exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.
3.Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505.º e tratando da mesma forma, situações as mais díspares - nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e do inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distração momentânea, etc., - e uniformizando as ausências de condutas, as condutas não culposas, as poucas culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.
4. (…)
5. O texto do art. 505.º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo
6.(…)
7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505.º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.”
Aplicando a visão interpretativa exposta ao caso em análise importa considerar que o equilíbrio encontrado pelo legislador na tributação das SGPS, em sede do art. 32.º, n.º 2 EBF, se traduzia em não dar relevo fiscal às mais e menos valias, não tributando, em contrapartida, os encargos financeiros. A racionalidade teleológica subjacente a este regime assentava no princípio da realização, de acordo e em consonância com os princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da justiça.
De referir, porém, que, entretanto, com a evolução da técnica contabilística se instituiu a teoria do justo valor, passando-se a dar relevo também às mais valias latentes, como resulta do previsto no artigo 18.º, n.º 9, alínea c), do CIRC.
Verificou-se, assim, uma mudança de paradigma que impõe que estas alterações devam merecer ser consideradas no âmbito da interpretação a realizar atendendo à unidade do sistema jurídico-fiscal e ao sentido em que este evoluiu.
Nestes termos, deve o intérprete, no caso concreto, encontrar uma solução de modo a aplicar o mesmo benefício quer às mais valias realizadas, quer às latentes, sob pena de realidades idênticas serem tributadas de maneira diferente.
Na verdade, a interpretação estritamente literal do n. 2 do art.º 32.º do EFB, sustentada pela AT, resultaria num tratamento diferenciado injustificado de sociedades que se encontrem em situações materialmente idênticas, por evidenciarem igual capacidade contributiva. Capacidade contributiva que não resulta alterada pelo diferente momento em que deva ocorrer a tributação dela resultante. Seria uma frontal violação do princípio da igualdade, cuja dimensão maior é, precisamente, a da “tributação segundo a capacidade contributiva” (neste sentido, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 2016, pág. 151 e ss), tratar diferentemente realidades iguais apenas por ser diferente o momento em que deve ocorrer a sua tributação.
Na verdade, como já salientámos, a capacidade contributiva (o rendimento tributável) resultante da obtenção de uma mais-valia é o mesmo, quer a sua contabilização se faça segundo o princípio da realização, quer ao justo valor. O que é diferente – como também já deixámos assinalado - é apenas a periodização, para efeitos fiscais, de tal rendimento (os exercícios em que os ganhos ou perdas devem ser fiscalmente relevados).
Temos, assim, por um lado, uma interpretação estritamente literal e centrada no elemento histórico que restringe a aplicação do art. 32.º, n.º 2, do EBF, às mais –valias realizadas, conduzindo a um resultado de manifesta incoerência sistémica e à violação dos princípios constitucionais da tributação do rendimento real e da igualdade.
Porém, uma interpretação que atenda, para além do sentido literal (atual) do preceito, também aos elementos sistemático e teleológico e às exigências dos princípios constitucionais mencionados, admite aplicação do art. 32.º, n.º2, do EBF, às mais –valias e menos-valias latentes (potenciais).
Assim se revela indispensável alargar o campo de aplicação da norma, definida pelo texto, com fundamento também na sua imanente teleologia, a casos que por esse texto não estariam formalmente abrangidos, o que “implica o abandono de um sentido puramente hermenêutico (hermenêutico-exegético) e a assunção de um sentido verdadeiramente normativo (prático-normativo) na interpretação jurídica, por forma a evitar antinomias ou incongruências no sistema, com a consequente insegurança jurídica.” (CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, Stydia Iyridica, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra Editora p. 108).
As vias da interpretação atualista e da extensão teleológica, que aqui se convocam, permitem, como decorre do exposto, assegurar que realidades idênticas sejam tratadas de maneira igual, assim se harmonizando as soluções jurídicas.
É, na verdade, este o critério metodológico que se afigura devido no contexto em presença.
Nestes termos, tendo o sistema evoluído no sentido de se dar relevância fiscal também às mais e menos valias potenciais ou latentes, a interpretação do art. 32.º, n.º 2, do EBF, de acordo com os enunciados parâmetros, conduz a concluir que no correspondente regime se deve refletir essa evolução, considerando-se este tipo de mais e menos valias também incluídas no preceito em causa.
Se, como refere KARL ENGISH, “a linha limítrofe entre a interpretação (especialmente a interpretação extensiva) por um lado, e a analogia, por outro, é fluída” (ob. cit., p. 239), o caso em presença situa-se ainda no âmbito da interpretação, sendo coberto pela “capacidade de expansão lógica e teleológica da lei” (ob. cit., p. 243).
Com efeito, as lacunas só aparecem “quando nem a lei nem o direito consuetudinário dão uma resposta imediata a uma questão jurídica”, sendo que “a lei fornece uma resposta quando esta dela é retirada por interpretação, mesmo quando seja uma interpretação extensiva “. Na medida em que a interpretação baste para responder a questões jurídicas, o Direito não será, pois, lacunoso. Pelo contrário, a «analogia» possui já uma função integradora” (KARL ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, Tradução e prefácio de J. BAPTISTA MACHADO, 5ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 226).
Impõe-se, pois, no presente caso, considerar os elementos inovadores, de natureza contabilística que foram, entretanto, absorvidos pelo sistema jurídico-fiscal, não cedendo à tentação do imobilismo e da cristalização do sentido literal dos preceitos.
Como refere JOÃO DE CASTRO MENDES (Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1994, p. 221) a interpretação histórica contrapõe-se a interpretação actualista. “A primeira tem como finalidade reconstruir o sentido que a lei tinha no momento da sua elaboração e entrada em vigor; a segunda, determinar o sentido que a lei tem no momento da sua interpretação. Por alteração das circunstâncias e até dos sentidos das palavras, podem ser diferentes os dois sentidos”. A importância da interpretação actualista reside, pois, essencialmente no facto de a lei assumir “valor como instrumento social, não como peça de tradição”.
A interpretação que admite a aplicação do artigo 32.º, n.º 2, às mais-valias ou menos valias latentes (potenciais) é, por outro lado, a que se apresenta mais conforme aos princípios constitucionais da tributação do rendimento real (previsto no artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e da igualdade.
Ora, um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” é o da interpretação conforme à Constituição (cfr. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª.ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 480). Segundo este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.
No caso concreto, tal regra hermenêutica, mediada por uma interpretação atualista, aponta decisivamente para a interpretação do n.º 2 do art.º 32.º do EBF que deixámos sufragada.
Assim, numa perspetiva atual, à luz da evolução dos conceitos técnico contabilísticos operados, só uma interpretação assente num critério teleológico-objetivo, e em conformidade com a Constituição evita uma contradição de valoração insanável, que não encontra qualquer fundamento razoável e é contrária à unidade do sistema jurídico.
Tudo o que tendo direta aplicação no caso concreto, conduz, necessariamente, a uma interpretação atualística do art. 32.º, n.º 2, do EBF, de que decorre que se retire do preceito o sentido interpretativo de que o mesmo acolhe a isenção das mais-valias obtidas pelas SGPS, nas condições aí previstas, independentemente de a sua relevância fiscal acontecer apenas no momento da sua transmissão (princípio da realização) ou ao longo dos diferentes exercícios pelos quais se prolongue a sua detenção (justo valor).
Fazemos nosso o entendimento de GOMES CANOTILHO em parecer junto aos presentes autos, segundo o qual quando no texto do artigo 32.º/2 do EBF o legislador se refere a mais-valias e menos-valias realizadas, isso deriva do facto de apenas essas concorrerem para a formação de um lucro tributável em IRC.
“A partir do momento em que o CIRC sofre uma alteração que se traduz na possibilidade de tributação de mais-valias e de menos-valias potenciais, então, a norma do artigo 32.º/2 deve ser objeto de uma interpretação atualista.
“As razões que levaram o legislador a criar o regime especial de tributação para as SGPS, refletido no artigo 32.º/2 do EBF, e que são invocadas no acórdão do STA citado supra” [Processo n.º 0314/12, de 05/09/2012], são válidas quer para as mais-valias e menos-valias realizadas quer para as mais-valias e menos-valias potenciais”.
“Não se compreenderia que o legislador, preocupado com a importância das SGPS para a economia nacional e reconhecendo a sua especificidade previsse um regime especial determinando que as mais-valias e menos-valias realizadas não concorrem para a formação do lucro tributável e, simultaneamente, as sujeitasse a um regime geral que admite, em certos casos (os do artigo 18.º, n.º 9, al. a) do CIRC) a tributação de mais-valias potenciais por via de ajustamentos de justo valor».
No mesmo sentido, que o Tribunal identicamente subscreve, concluem PAULO DA MOTA PINTO e ANTÓNIO MARTINS, em parecer junto aos autos (pág. 35), quando referem: «Dir-se-á que a resposta é evidente, tendo em conta a razão de ser e a finalidade da norma do art.º 32.º, n.º 2, do EBF, o contexto em que foi editada e a sua alteração, tudo a impôr uma interpretação atualista: não faria sentido que o legislador tivesse querido atribuir um benefício fiscal às SGPS como meio de fomentar a sua atividade em benefício da economia, quando aquelas realizam mais-valias transformando-as em meios monetários, e que, diversamente, pretenda a tributação de mais-valias meramente potenciais obtidas pelas mesmas SGPS, num contexto em que estas passaram a ser fiscalmente relevantes. Dir-se-á, pois, que parece claro que, pela sua razão de ser, o benefício fiscal previsto no art. 32.º, n.º 2, do EBF, deve, por igualdade ou mesmo por maioria de razão, incluir igualmente os ajustamentos de justo valor (mais-valias potenciais) que tenham passado a concorrer, a partir de 2010, para a formação do lucro tributável».
Comungamos também do que, a este propósito, salienta GUSTAVO COURINHA, igualmente em parecer junto aos autos: (i) «o benefício fiscal constante do art.º 32.º, n.º 2, do EBF é um regime fiscal indiscutivelmente de base subjetiva [sublinhado nosso], estruturado por referência à forma societária (SGPS)» (pág. 60); (ii) “o art.º 32/n.2 do EBF não pode ser interpretado como uma norma que decide em favor ou contra um determinado método de periodização – realização ou Justo Valor. Ao invés, este artigo carece de ser interpretado em termos neutrais. É esta interpretação neutral que se revela mais adequada à sua própria natureza, enquanto simples norma de determinação de eventos tributários (neste caso, por isenção). O art.º 32º/n.º2 não poderá ter pretendido promover a utilização de um método de periodização (realização) com prejuízo de outro (Justo Valor). Não é essa a sua função, nem se percebe que interesse extra-fiscal justificaria um tal tratamento. Com efeito, é impossível imaginar que interesse poderia explicar um benefício fiscal que se traduza pela preferência na realização de mais-valias, quando é precisamente oposta a função prosseguida pelas SGPS nos grupos societários (…)» (págs. 65 e 66).
Termos em que se conclui que o rendimento (mais-valia) obtido pela Requerente goza da isenção prevista no art. 32.º, n.º 2, do EBF, devendo proceder o pedido da Requerente.
Ao decidir em sentido contrário, a AT incorreu em ilegalidade devendo, nesta sequência, a liquidação ser anulada, com as legais consequências.
III.2.2. Causas de pedir prejudicadas
Fica, assim, necessariamente prejudicada a apreciação das demais causas de pedir (vícios da liquidação impugnada) invocadas pela Requerente, com exceção do pedido de condenação da AT no pagamento de uma indemnização por prestação indevida de garantia para lograr a suspensão da cobrança coerciva do imposto liquidado.
III.2.3. Da indemnização por prestação indevida de garantia
Peticiona a Requerente que a AT seja condenada no pagamento de indemnização pelas despesas incorridas pela Requerente com a constituição, prestação e manutenção de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal n.º …2016… .
Dispõe o art.º 53º, n.º 1 a 3, da LGT:
“1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”
Estando em causa uma liquidação adicional (portanto, da exclusiva iniciativa dos serviços), agora integralmente anulada, verifica-se que houve “erro imputável aos serviços”, o que confere aos Requerentes o direito a serem totalmente indemnizados, dentro do limite legal, pelos custos suportados com as garantias que hajam oferecido para suspender a execução fiscal.
Porém, uma vez que a Requerente não alega ter efetivamente prestado garantia e, portanto, que sofreu prejuízos, o tribunal arbitral não tem elementos para apreciar deste pedido, o qual, como prevê a lei, pode ser formulado autonomamente, nomeadamente em execução de sentença.
IV- DECISÃO
a) Anula-se, na sua totalidade, por ilegal, a liquidação de IRC n.º 2016 …, relativa ao exercício de 2012, processada em nome de A…– SGPS SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., NIF n.º … qual resultou um valor total de IRC a pagar de € 8.942.701,12;
b) Não se conhece do pedido de indemnização por prestação indevida de garantia, o qual deve ser formulado autonomamente.
V. Valor do processo
Tendo em consideração o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor do processo em € 8.942.701,12.
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Notifique-se.
Lisboa, 30 de Maio de 2017.
O Árbitro-Presidente
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O Árbitro Vogal
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O Árbitro Vogal
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Maria Fernanda dos Santos Maças
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Rui Duarte Morais
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Manuel Pires, vencido conforme declaração em anexo
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DECLARAÇÃO DE VOTO
Limitando-me ao Direito, não posso concordar com o escrito e decidido no Acórdão a que se junta esta Declaração, sendo os seguintes os fundamentos do dissentimento, fundamentos expostos de modo e dimensão não usuais, o que, porém, reputo justificado face ao caso
1. O QUADRO GERAL
1.1. Segundo o artigo 11.º n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), são aplicáveis "na determinação do sentido das normas fiscais" "as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis", acrescentando-se no correspondente n.º 4: “As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República [cfr. artigos 103.º n.º 2 e artigo 165.º n.º 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa (CRP)] não são susceptíveis de integração analógica”. Também, no Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), o respectivo artigo 10.º preceitua não serem susceptíveis de integração analógica, mas admitirem interpretação extensiva, "as normas que estabeleçam benefícios fiscais". Por seu turno, o artigo 10.º n.º 1 do Código Civil (CC) – disciplinador, em geral. da matéria – consagra o objectivo de interpretação, não se cingindo à letra da lei, “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, mas consagrando no respectivo n.º 2 a teoria da alusão (“Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”). Passando à regulação das lacunas da lei, estabelece o C.C. no seu artigo 10.º n.º 1, serem os casos não previstos na lei “regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos", existindo analogia, por força do n.º 2 do mesmo artigo, "sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei”.
1.2. Com referência às citadas normas do C.C. foi elaborada doutrina, na qual, para o que ora interessa, ressaltam a interpretação actualista e a interpretação extensiva vs. analogia, tendo a primeira merecido menor atenção do que estas.
1.2.1. No sentido de disciplinar juridicamente a realidade evolutiva gera-se a escola histórico-evolutiva e fala-se da interpretação actualista, visando o que se poderia escrever encher odres velhos com vinho novo. As interpretações poderiam, assim, ser variáveis de modo a acompanhar os novos tempos. Da visão estática passa-se para a visão dinâmica ou ambulatória, atribuindo às normas a potencialidade de expansão que passa a acto quando circunstâncias novas surgem.
Escreveu Inocêncio Galvão Telles: “Não queremos deixar de vincar a seguinte nota: seria inexacto supor que a interpretação actualista é qualquer coisa de inevitável, que ela se opera sempre, em relação a todas as normas, e até de forma continuada ou constante. A verdade é que a grande maioria das normas conserva no momento de cessar a sua vigência a mesma significação que tinha quando nasceu Percorre-se por exemplo o Código Civil, que já ultrapassou os trinta anos, e dificilmente se encontrará um preceito ainda em vigor cuja significação tenha mudado só porque mudaram os tempos Isto não exclui, claro, a legitimidade da aplicação do princípio actualista quando ocorram os apertados requisitos atrás apresentados” (Introdução ao Estudo do Direito, volume I, 11ª edição ( reimpressão), p. 268). Muito importante o que escreveu Manuel de Andrade, segundo transcrição aí feita: “na incerteza é de presumir que a lei conserva a significação que tinha quando entrou em vigor". José Oliveira Ascensão dá exemplos de orientação actualista: a disciplina do contrato de transporte para abranger o transporte automóvel ou a responsabilidade civil do Código Brasileiro para a resultante da energia nuclear. (O Direito – Introdução e Teoria Geral,10ª edição, p. 396). Ainda, Miguel Teixeira de Sousa escreveu: “A necessidade de integrar a lei no ambiente social é particularmente importante. Perante uma modificação no significado da palavra - que, naturalmente, não podia ter sido prevista pelo legislador - não pode deixar de se atender ao seu significado actual. Esta modificação é especialmente frequente em alguns conceitos indeterminados, como os de alteração das circunstâncias, de boa fé, de bons costumes, de censurabilidade ou de gravidade da violação, mas ela pode igualmente ocorrer em relação a conceitos determinados. Basta atender aos seguintes exemplos: (i) o art. 34º, nº4, CRP proíbe toda a ingerência nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, quaisquer que fossem os meios de comunicação que existissem no momento da elaboração do preceito, é claro que essa proibição abrange os meios de comunicação que entretanto se tornaram possíveis, como o telemóvel ou o correio electrónico; (ii) o artigo 362º 2ª parte CC define o documento como qualquer objecto elaborado com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto; é evidente que esta noção abrange realidades desconhecidas no momento da sua redacção, como, entre outras, os documentos informáticos e as fotografias digitais" (Introdução ao Direito, 2ª reimpressão, pp. 341/342).
O entendimento actualista não pode, pois, significar não revestir esta interpretação perigos e, mais, que possa ser feita sem subordinação a regras em que a verticalidade e não a horizontalidade tem lugar, como resulta do que se escreveu, nomeadamente dos exemplos dados, porque concluir algo, mesmo no sentido da norma, tem de se revestir de disciplina e cuidado e não ser fruto de vontade de se atingir à outrance objectivo pretendido. É criadora, portanto, de acentuados riscos, sendo um deles a possibilidade do efeito boomerang, designadamente a modificação reactiva de preceitos legais.
1.2.2. Geradora de outras dificuldades apresenta-se a distinção na prática entre interpretação extensiva e analogia, embora exista unanimidade quanto à respectiva distinção abstracta ou conceptual.
1.2.2.1. Iniciando-se a interpretação pelo elemento literal, revelando um possível sentido da lei, passa-se à chamada interpretação lógica. No entanto, conforme Galvão Telles, “Isto não exclui que o elemento linguístico possa por si só, embora não muito frequentemente, revelar o conteúdo espiritual da lei. Assim acontece naqueles casos em que as palavras da lei são tão explícitas e categóricas que apenas comportam determinado sentido. O intérprete tem então de aceitar esse sentido, não lhe competindo entrar no exame doutros elementos hermenêuticos. Poderá porventura admitir que o recurso a estes outros elementos conduzisse a resultado mais justo ou razoável; mas tem de aceitar o sentido literal, pela razão exposta”. E continua: “É mesmo um lugar comum afirmar que não se pode fugir à interpretação literal quando a lei está redigida em termos que só se compadecem com uma única significação, por muito que esta se mostre injusta ou inadequada às exigências da vida. Daí o sentimento da imperiosidade da observância da lei, apesar dessa injustiça ou inadequação, em conformidade com o velho aforismo romano “dura lex sed lex”. (ob. cit., pp. 245/246).
1.2.2.2. Uma das primeiras questões que se coloca na temática da interpretação é se o subjectivismo ou o objectivismo foi o consagrado na lei. A. Pires de Lima e Antunes Varela escreveram: “Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição [artigo 9º CC], pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3” (Código Civil Anotado I, p. 16). E a mesma orientação é seguida por Galvão Telles (ob. cit., p. 266). Outros perfilham o objectivismo que hoje é prevalecente, o que não impediu Manuel de Andrade, defensor desta última corrente, ter escrito: "Deve reconhecer-se todavia que, embora como tendência algum tanto confusa, parece preponderar na Escola, e até querer extravasar-se para a prática, a directriz objectivista. A tal ponto que já me tem acontecido, a mim que em tempos tomei posição pelo objectivismo-actualista - embora deitando muita água no vinho e tendo hoje em dia certa inclinação para cantar a palinódia...- ver defendidas interpretações em que me parece notar objectivismo a mais" (Sobre a Recente Evolução do Direito Privado Português in Boletim da Faculdade de Direito, volume XXII (1946), pp, 289/290).
1.2.2.3. As dificuldades, na prática, em distinguir entre interpretação extensiva, que Marcelo Rebelo de Sousa considerou “talvez a mais problemática das formas da interpretação” (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª edição, pg. 64), e analogia são comprovadas por João Castro Mendes: "É muitas vezes difícil traçar a fronteira entre a analogia e a interpretação extensiva (...). A diferença é fácil de estabelecer em teoria, muito difícil de aplicar na prática" (Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, p. 263).
Também Galvão Telles reconhece: “Por vezes, há dificuldade em saber onde acaba uma [interpretação extensiva] e começa outra [a analogia]” ( ob. cit., p. 262), o que se compagina com o cuidado revelado quando escreve " O julgador deve, contudo, ser particularmente cuidadoso neste domínio [criminal] evitando fazer analogia sob a aparência de interpretação extensiva, porque em homenagem à liberdade e segurança dos cidadãos, é categoricamente vedado considerar criminoso determinado facto por simples analogia com outro que a lei qualifique como tal” (ob. cit., p. 255), o que, acrescentamos nós, importa aplicar no Direito Fiscal, não só quanto à sujeição a imposto mas também quanto ao afastamento da tributação-regra. Ainda Ascensão: “O critério [de distinção da interpretação extensiva face à analogia] pode ser delineado com precisão, o que não quer dizer que na prática não surjam problemas da maior complexidade” (ob. cit., p. 436).
Sobre a interpretação extensiva escreve Teixeira de Sousa que “a interpretação extensiva também não deve ser confundida com a situação em que a previsão da lei é uma tipologia ou uma enumeração não taxativa em que a lei é aplicada a um subtipo ou a uma situação que não está prevista. Nesta hipótese cabem na previsão legal não só os casos tipificados ou enumerados, como também os casos análogos a esses casos” (ob. cit., p. 377).
Lê-se em Galvão Telles ser a analogia “a aplicação de um preceito jurídico estabelecido para certo facto a outro facto juridicamente relevante mas sem directa ou implícita regulação (caso omisso) e semelhante ao primeiro”, constituindo seu “princípio imanente” “ubi eadem legis ratio ubi eadem legis dispositio“, “Se a razão é a mesma nos dois casos, a mesma deve ser também a disposição" (ob. cit. pp. 261 e 262).
Mais escreveu Baptista Machado sobre casos analógicos: " quando neles se verifique um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante – de modo a que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou por maioria da razão aplicável ao outro (cfr. o n.º 2 do artigo 10.º) “ (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18ª. Reimpressão, p. 202).
Como exemplo da analogia, exemplo repetido por Germano Marques da Silva (Introdução ao Estudo do Direito, 3ª ed., p. 280), apresenta Castro Mendes, a aplicação da regulamentação do transporte marítimo ao transporte aéreo que surgiu posteriormente, dadas as “muitas similitudes” entre eles, ocorrendo a analogia “quando a razão de se decidir no caso omisso e no caso previsto é a mesma, ubi eadem est ratio legis eadem est legis dispositio” (ob. cit., p. 261, cfr. p. 262). E mais adiante: “Há analogia sempre que a diferença entre o caso omisso e o caso previsto reside em pontos irrelevantes para a regulamentação jurídica” (ob. cit., pp. 261/262). Ainda Marcelo Rebelo de Sousa, defensor do objectivismo actualista, depois de escrever “só se houver uma identidade de razões é que é legítimo estabelecer-se uma relação de analogia” (ob. cit., pp. 69/70), acrescentou: “Um exemplo de analogia legis é o de recurso a lei, dispondo sobre a televisão sem cabo para reger matérias de televisão por cabo, relativamente às quais existe lacuna legal” (ob. cit., pp. 55 e 71), exemplo de "analogia juris é o que pode respeitar à regulamentação da recepção e transmissão de televisão por satélite se for patente a inaplicabilidade das regras sobre televisão meramente nacional” (ob. cit., pp 71 e. 72).
Por seu turno, Teixeira de Sousa apresenta como exemplo de factos originando lacunas “a evolução social ou tecnológica”, “só a aquisição civilizacional da igualdade entre os sexos criou as lacunas relativas à posição das mulheres na família” (ob. cit., p. 386) e considera o tipo de caso como lacuna subsequente ou secundária (“sobrevêm, por razões de evolução social, técnica económica ou outra, ao inicio da vigência de um regime jurídico”) (ob. cit., p. 394). Ainda, frente à importação de avestruzes (animais bípedes) desconhecidos até então em Roma e conforme pensamento de então, apresentado agora como exemplo de lacuna "auto-integrável", “o que vale para os animais “quadrúpedes” vale igualmente para os animais “bípedes”, pois que ambos são concretizações do tipo “animal”, pelo que a integração da lacuna é obtida através da aplicação analógica do regime estabelecido para os animais “quadrúpedes” aos animais “bípedes” (ob. cit., p. 404). Por último escreve: “A interpretação da fonte pressupõe a subsunção de casos (reais ou imaginários) a essa fonte, o que requer que estes casos sejam análogos ao caso típico nele previsto. Convém esclarecer, no entanto, que a analogia que se utiliza na integração da lacuna, não é a analogia entre um caso concreto e o caso típico (isto é, a analogia que possibilita a subsunção), mas a analogia entre um caso típico e o caso omisso” (ob. cit., p. 406).
1.3. De tudo o que foi escrito anteriormente resulta a necessidade de não descurar do elemento literal, de a interpretação actualista não poder ser aplicada apenas em virtude da mudança do contexto e a analogia não poder ser obnubilada ou mesmo opacificada por uma pretensa interpretação, como referido preventivamente por Galvão Telles.
2. QUADRO FISCAL
2.1. Ultrapassada a concepção montesquieuna, segundo a qual “os juízes são unicamente a boca que pronuncia a palavra da lei, seres inanimados que não podem debilitar nem a sua vigência nem o seu rigor” (transcrito por Bravo Arteaga, Juan Rafael, Nociones Fundamentales de Derecho Tributario, 2ª ed, p. 167)[5], os ensinamentos recolhidos no Quadro Geral têm aplicação no Direito Fiscal, conforme resulta dos normativos elencados no início. No entanto, "a tese da assimilação pura e simples pelo Direito Tributário dos institutos jusprivatistas na forma cunhada para eles pelos seus respectivos ramos de origem, coloca delicados problemas em matéria de interpretação das normas tributárias" (González, Eusebio e González, Teresa, citando vários autores, Derecho Tributario, I, p 130).
A interpretação no Direito Fiscal é, pois, uma operação idêntica à interpretação que ocorre nos diversos ramos do Direito, não podendo, porém, deixar de ter em consideração especificidades, nomeadamente os correspondentes princípios ordenadores. Escreveu Calvo Ortega; "A peculiaridade do Direito tributário enquanto se refere à interpretação das suas normas consiste na utilização dos princípios que presidiram a toda a sua produção normativa para conhecer em caso de dúvida tudo o que estabeleceu a norma que se interpreta. O ordenamento tributário não se rege pelo princípio mais ou menos abstracto do interesse geral (ainda que o não exclua), mas sim por outros concretos (…): generalidade tributaria, capacidade económica, progressividade, igualdade, justiça, etc. Uns, os que têm um conteúdo material (p. ex. a capacidade económica) serão mais adequados do que outros cuja essência é a atribuição do poder (reserva da lei), mas todos podem e devem constituir métodos de interpretação. Esta metodologia principialista será fecunda face às dúvidas que com frequência apresentam as normas tributárias desde os factos que dão lugar ao nascimento da obrigação até aos que determinam a sua extinção. Mais ainda contribuirá para que a aplicação dos tributos se faça mais conforme com os princípios que presidiram à sua criação. Noutra ordem de ideias, a metodologia principialista termina com colocações e soluções de outros métodos de interpretação que foram objecto de debate nas últimas décadas (interpretação funcional, evolutiva e adaptação à realidade social). Com efeito, os princípios da generalidade e igualdade tributárias são de uma formulação categórica e de um carácter formal que os tornam aptos para a interpretação em todo o tempo (qualquer que seja a realidade social). De outro ângulo, o princípio da capacidade económica tem a flexibilidade suficiente para permitir a adaptação e evolução automática de situações à evolução da riqueza (rendimento, património e consumo), única que interessa à tributação. Em resumo, o principialismo é uma ferramenta suficiente para resolver grande parte das dúvidas que podem apresentar-se na aplicação das normas tributárias. A metodologia principialista não utiliza unicamente os princípios estritamente tributários já estudados. Também recorre àqueles que têm uma especial incidência nas situações subjectivas. Refiro-me concretamente à segurança jurídica. Várias são as razões que justificam a utilização deste método: a complexidade das normas tributárias e as suas constantes modificações, a importância dos poderes de organização e inspecção atribuídos às Administrações Tributárias e a extensão continuada das situações subjectivas possíveis distintas das de contribuintes em obrigações de fazer específicas" [Derecho Tributario (Parte Geral), 2ª ed., p. 120].
Na mesma orientação, Túlio Rosembuj escreveu: “A supremacia da Constituição sobre todas as normas e o seu carácter central na construção e validade do ordenamento no seu conjunto obrigam a interpretar este, em qualquer momento da sua aplicação, no sentido que resulta dos princípios e regras constitucionais (Garcia, Enterría). A Constituição então é o texto e o marco que preservando a continuidade do ordenamento jurídico garante os valores materiais da criação interpretativa e, ao mesmo tempo, oferece a garantia da renovação do ordenamento na sua dimensão temporal. A inovação interpretativa na actuação das disposições legais, tem um fundamento e um limite no seu alcance, os princípios constitucionais gerais e particulares do direito tributário” (Elementos de Derecho Tributario, I, p. 122). Ainda Nicolò Polari: “Hoje, parece admitir-se, de facto, pacificamente que o Direito Tributário, (…), caracterizado por próprios princípios gerais de nível constitucional aos quais ocorre fazer sempre referência em sede de interpretação da lei, não é qualquer coisa de estranho ao ordenamento jurídico considerado na sua totalidade” (Diritto Tributario, p. 140).
No mesmo sentido, doutrina nacional: "A interpretação conforme à Constituição não nasceu dentro do Direito Fiscal, mas mostra-se sobretudo adequada aos problemas específicos desta ramo do Direito, particularmente no caso do nosso ordenamento jurídico" e adiante:" O princípio da interpretação das leis conforme à Constituição nada mais é do que a consequência do princípio que afirma ser a constitucionalidade a expressão principal da legalidade" ( J.L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal,3ª.ed., p. 148).
No Direito Fiscal, terão, assim, de estar sempre presentes as respectivas exigências patentes nos princípios que constituem uma dupla garantia: na sujeição ao imposto, os subprincípios da legalidade, da tipicidade e da segurança (subprincípios do princípio do Estado de Direito, a par do subprincípio da proporcionalidade), consagrando-se a rule of law e não a rule by law, bem como, nos desvios ao regime-regra, ainda o princípio da igualdade, desdobrando-se este princípio numa vertente jurídica, subprincípio da generalidade ou da universalidade, segundo o qual todos devem pagar impostos, e numa vertente económica, por força da qual o imposto deve ser pago de acordo com a capacidade contributiva, impedindo que a tributação não se opere quando tal deva verificar-se, de modo a evitar-se a violação da justa repartição dos encargos públicos, dos rendimentos e da riqueza (artigo 106.º n.º 1 CRP). Estabelecida essa repartição, operado o que na terminologia usual se denomina o fair sharing, qualquer modificação criaria desequilíbrio, totalmente de afastar, quer captando mais realidades do que as previstas quer criando desvios, para além dos casos indubitavelmente justificados, às regras da tributação, em virtude de, no primeiro caso, se ferir a certeza legal, hoje objecto de redobrada atenção, derivada da sua crescente acuidade, e daí a protecção da confiança, e, no segundo, a fair share que incumbe a cada um, não podendo a igualdade ser ferida. Em ambos os casos, o estabelecido constitui um limite. A excepcionalidade do que se afaste da tributação-regra e não acolhendo outras concepções sobre a natureza dos benefícios fiscais, claramente é estabelecida no artigo 2.º n.º 1 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), visto o seu carácter não igualitário, o que, aliás, é bem patente na jurisprudência comunitária com a interpretação estrita ou declarativa no quadro das isenções do IVA. Daí que estes cuidados, evitando também a correspondente perda de receita, sejam bem patentes quer na C.R.P. [artigo 106.º n.º 3, alínea g)] quer na Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), anexa à Lei n.º 151/2015, de 11 de Setembro (artigos 12.º n.º 3, alínea b), 31.º n.º 3, alínea j), 42.º, alínea j) e 45.º n.º 11). Este cuidado impõe o respectivo não esquecimento aquando da interpretação e aplicação das disposições estabelecendo desvios ao regime-regra de tributação. Compreende-se, pois, a razão do texto de Alain Steichen: “É lógico, com efeito, limitar estritamente o âmbito das derrogações à regra geral e, pois, designadamente, as exclusões do campo de aplicação de um imposto ou as isenções de um imposto, tanto por razões relativas ao respeito do princípio da igualdade face ao imposto como por cuidado de respeitar o sistema fiscal existente” (Manuel de Droit Fiscal, p. 419).
2.2. Atento o que se escreve no Quadro Geral sobre a interpretação, nomeadamente a actualista, assim como sobre a interpretação extensiva e a analogia, importa observar os respectivos cuidados, agora reforçados, no âmbito fiscal.
2.2.1. Quanto à interpretação actualista, tal interpretação integrar-se-ia no que se denominou análise vertical e não horizontal das leis: " O princípio vertical consiste em estudar a lei particular, não somente em vista da sua existência actual, mas também tendo presente a evolução das instituições, no passado, e da mesma forma projectando esta evolução no futuro, frente à possibilidade de uma evolução dos factos da vida económica e social e que devem ser enquadrados também na lei, apesar de a lei ser antiga e ter somente a sua origem histórica na circunstância particular da época em que foi editada; porém, a lei tem sempre uma virtualidade de aplicação, não apenas pelo que diz, como pela evolução dos factos que, no futuro, irão acontecer e que também deverão ser enquadrados no mesmo conjunto, de conceitos normativos” (Jarach, Dino, Hermenêutica no Direito Tributário in Interpretação no Direito Tributário, p. 93). Regina Helena Costa também escreveu: “Outro método interpretativo que merece referência é o evolutivo, específico das normas constitucionais”, citando doutrina que o define " como um processo informal de reforma do texto constitucional consistente na ‘atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de factores políticos e sociais que não estavam presentes nas mentes dos constituintes’. Tal método é aplicável a normas constitucionais que contenham conceitos indeterminados, cuja elasticidade permita comportar mais de um significado, podendo com o decorrer do tempo, sofrer mutação no seu sentido e alcance. É o caso, por exemplo, do direito de livro, para efeito da imunidade integrada no artigo 150, VI,d,CR” ( Curso de Direito Tributário, pp. 159/160).
“Por outro lado, não se pode menosprezar o risco que se liga à orientação aqui considerada [objectiva, evolutiva, ampliação da interpretação e a tendência de valor crescente da prática interpretativa] que é o de atingir enormemente o fundamental princípio da certeza de direito: o qual exige um mínimo de respeito pelas escolhas codificadas pelo legislador no seu papel institucional, sem que o mesmo venha a ser substituído pelo arbítrio mais ou menos ocasional e isolado do intérprete, o que se acompanha de ulterior e inevitável consequência de aumentar as probabilidades de soluções diversificadas para casos idênticos ou pelo menos similares. O perigo apenas temido revela-se ainda mais grave num sector, como o nosso, no qual estão em jogo direitos do cidadão e interesses públicos considerados fundamentais de tal modo a serem elevados a objecto de garantia a nível constitucional; e verificamos a sua importância quando tratamos de algumas questões velhas e novas debatidas no âmbito de tal sector" (Russo, Pasquale, Manuale di Diritto Tributario, I, p. 82).
Em especial, a perspectiva dos desvios do regime-regra foi objecto de menção: "Deve reiterar-se que o princípio da segurança jurídica há-de se aplicar por igual aos contribuintes e à comunidade nacional, enquanto os membros desta última também podem resultar afectados na sua “segurança jurídica” com acordos ou resoluções vantajosas para determinado ou determinados contribuintes” [Albiñana Garcia – Quintana, Cesar, Derecho Financiero y Tributario p. 374 nota (1)] e acrescenta"…, importa advertir já como a interpretação das normas tributárias está condicionada pelos princípios tributários e, em particular, pelos da legalidade e segurança jurídica. Portanto, o intérprete das normas tributárias não poderá actuar com a flexibilidade que conforme o artigo 3.º do Código Civil, pelo menos em toda a sua extensão sobre o interesse privado” (ob. cit., p. 374). Acrescenta ainda: “Entendo que a interpretação da norma tributária segundo a realidade social do tempo em que se aplique deve ser utilizada com grandes restrições ou cautelas apesar de poucos fenómenos sociais, como o tributário, terem de estar mais atentos à realidade social sobre que incide. Mas o princípio da legalidade tributária impede realizar este critério interpretativo. A própria expansão de motivos do texto articulado do título preliminar do Código Civil já se mostrava preocupada quando advertia' introduz um factor com cujo emprego, certamente muito delicado, é possível em alguma medida acomodar os preceitos jurídicos a circunstâncias surgidas com posteridade à formação daqueles'. Por tudo isso se opina que este critério interpretativo só em casos – limite e com grande prudência deve ser aplicado, além de que se o sistema tributário está submerso no princípio da capacidade contributiva e cada tributo responde às suas exigências é indubitável que a 'realidade social' do nosso tempo estará sempre presente na própria lei tributária" (ob. cit., pp. 377 e 378)
Sobre a limitação escreve Alain Steichen: "É [a segurança] o primeiro valor a atingir porque condiciona todos os outros valores sociais: justiça, progresso. Sem ela não há vida social possível, haverá apenas desordem, guerra e afrontamento de paixões. Tendo o direito por finalidade organizar a vida em sociedade, assegurar a paz social, ausência da segurança constitui de facto a negação do direito” e requer a previsibilidade da consequência dos actos praticados e " isso exige não somente a estabilidade jurídica, mas igualmente a certeza no conhecimento das leis”, citando, entre outros, Hauriou que acrescentou à frase de Celso " ius est ars aequi et boni", “stabilis et securi” (Manuel de Droit Fiscal. pp. 423 e 424).
Ainda Augusto Fantozzi."Por outro lado tal tipo de interpretação [evolutiva, para ter conta do intervalo de tempo e de ambiente socioeconómico, exigência particularmente sentida no direito tributário onde a realidade socioeconómica é particularmente mutável] não deve exorbitar do âmbito do procedimento hermenêutico: a adequação não pode certamente consistir na substituição da fórmula legislativa" (Corso di Diritto Tributario, p. 107).
Acrescenta-se ainda: "No campo tributário, no actual momento histórico, recebeu escassíssima utilização o esquema evolutivo, seja naturalístico, seja equitativo, seja histórico. No passado pode não ter sido assim [ relativo a um texto de 1877 e que durou oitenta anos e daí a necessidade do carácter evolutivo ] " e adiante: " Isto [ multiplicidade de disposições, muitas vezes ditadas por exigências totalmente contingentes e de brevíssima duração ] comporta, de cada vez , além da importância do argumento psicológico ['ou recurso à vontade do legislador concreto'], a prática não possibilidade de utilização no campo tributário das técnicas hermenêuticas respectivamente denominadas " interpretação histórica" e " interpretação evolutiva", as quais pressupõem uma longa vigência da norma" ( Falsitta,Gaspare, Manuale di Diritto Tributario,2ª ed., pp. 175 e 176 e nota 11 e 177).
No sentido da impossibilidade dessa interpretação, também: "Em matéria tributária, o princípio da legalidade é uma cerca para este método [método evolutivo]. Não se pode, por exemplo, por uma via interpretativa da lei, modificar a integração do facto tributável” (Villegas, Hectór B., Curso de Finanzas, Derecho Financiero y Tributario, 3ª ed.,I, p, 164).
Apesar de a preocupação dominante ser a sujeição, é indubitável, no mesmo espírito e de acordo com o que já se deixou escrito, que, quanto aos desvios da tributação-regra, o limite também existe ditado nomeadamente pelo princípio da igualdade e pela "segurança jurídica " mencionada por Albiñana Garcia -Quintana.
2.2.2. Merecedor de atenção no âmbito da interpretação é o que Ricardo Lobo Torres escreveu sobre textos, ao menos aparentemente claros, a propósito dos quais se rejeita in claris non fit interpretatio: "Procura-se hoje o meio termo [entre a sua validade e a sua rejeição], reconhecendo-se que a zona de clareza existente na lei enfraquece a actividade do intérprete, o que, todavia, não significa reduzir a interpretação ao só método literal”, citando numerosos autores e transcrevendo de Perelman, “os juristas sabem que existe uma relação inversa e complementar entre a clareza (clarité) e a precisão das normas e o poder de apreciação dos juízes que as devem aplicar” e acrescentando “O brocardo in claris cessat interpretatio, embora não constitua um princípio de interpretação, coincide com o mandamento de clareza das normas jurídicas, a ser observado especialmente na criação do Direito Tributário, em virtude da necessidade de plena determinação dos factos imponíveis” (Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, pp. 58 e 59) e acrescentamos nós, pelas razões já indicadas, das situações que constituem desvios à tributação-regra.
Já Pessoa Jorge escrevera que, admitir-se a aplicação das normas de tributação " a casos que a letra da lei, mesmo interpretada no seu mais amplo sentido, não comporta, constitui mais um grave golpe” no princípio da legalidade (Curso de Direito Fiscal, Lisboa, p. 119) e, no caso de desvios à tributação, importa repetir, no princípio da igualdade.
Ainda Klaus-Dieter Drüen Heinrich escreveu que a interpretação não pode ser contraditória com a vontade do legislador claramente expressa, citando sentença do Tribunal Fiscal Federal e acrescenta " No fim a interpretação contra a linguagem será muitas vezes qualificada como modificando o desenvolvimento da lei" (Interpretation of Tax Law in From Public Finance Law to Tax Law, vol. 1, p, 98, citando Huber).
Uma questão é colocada e que é fundamental: "Até que ponto o intérprete pode afastar-se da letra da lei ao procurar encontrar o fim e o sentido da lei" e mais, “pensar numa interpretação no sentido e finalidade de uma norma que não se apoia na letra do prescrito carece de justificação” (González e Lejeune, ob. cit., p. 116). Ainda deve evitar-se o apelo ao "espírito da lei para justificar soluções contrárias ao sentido aparente dos textos, e outras vezes, sem o invocar, interpretar os textos com vista a adoptar certas soluções de equidade, da maneira mais liberal” (com base em comportamento da Cour de Cassation, Albert Wahl, cit. por Guez Julien, L’interprétation en Droit Fiscal, p. 99).
2.2.3. Alberto Xavier considera haver “risco, na delimitação das fronteiras entre interpretação extensiva e aplicação analógica”, embora a "distinção seja conceitualmente unívoca" e não pareça o ajustamento da letra com o seu espírito " brigar contra os princípios da legalidade e segurança” (Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, pg. 173). Pronunciaram-se no mesmo sentido da dificuldade da distinção e sem propósito exaustivo, Coelho de Amaral (Direito Fiscal, p. 88 nota 2), Pessoa Jorge, que acrescentou “ Se a letra da lei - interpretada no mais amplo sentido - não comportar determinado caso, fazê-lo tributar ou por o espírito da lei o abranger, ou por se verificar uma analogia essencial com o caso previsto, é dum ponto de vista prático quase a mesma coisa" ( ob. citada, p. 120), e Soares Martinez referindo "Aliás, como se sabe, parte da doutrina jurídica tem posto em dúvida a destrinça entre a interpretação e integração de lacunas porque todo o processo interpretativo seria de natureza analógica" (Manual de Direito Fiscal, p. 139). Doutrina estrangeira corrobora: “a dificuldade de traçar uma linha precisa entre ambas classes de interpretação [procedimento analógico e interpretação extensiva] é um lugar comum na doutrina mais autorizada" (Perez de Ayala e González, Eusebio, Curso de Derecho Tributario – vol. I, 4ª edição, p. 102 e ainda p. 103). Coerentemente, repetiu Eusebio González: “atormentada distinção”, “a dificuldade de traçar uma linha precisa entre ambas classes de interpretação é um lugar comum na doutrina mais autorizada”, citando vários autores (González, Eusébio e Lejeune, Ernesto, Derecho Tributario I, pp. 121 e 122). No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres: “Inexiste fronteira clara entre a extensão dos sentidos possíveis da letra e a complementação para além daqueles sentidos. Ninguém sabe dizer com segurança, onde termina a expressividade dos conceitos jurídicos utilizados pelo legislador e onde começa o vácuo normativo susceptível de preenchimento”. E, mais adiante, “a analogia torna-se ainda problemática pela dificuldade de distinção entre a lacuna intra legem que ocorre nas enumerações exemplificativas e admite a interpretação extensiva, e a lacuna praeter legem susceptível de interpretação analógica” e acrescentando ainda “O raciocínio analógico é muitas vezes encoberto ou mascarado por outro argumento ou método de interpretação, tornando inconsistente a proibição de analogia. Como vimos antes, inexiste fronteira definida e segura entre analogia e interpretação extensiva, sendo mesmo encontradiça a confusão entre analogia por extensão (integração) e analogia por compreensão (interpretação), bem como lacunas intra legem e praeter legem, donde resulta a possibilidade de o juiz recorrer ao argumento analógico apelidando-o de interpretação extensiva” e ainda “Até mesmo a interpretação teleológica e a pesquisa do conteúdo económico dos factos podem escamotear o emprego da analogia” [citando vária literatura germânica], tanto mais que a interpretação teleológica não constitui um método específico, senão que informa todos os métodos de interpretação (literal, sistemática e histórico)"(Ricardo Lobo Torres, ob. cit., respectivamente, pp. 106, 108, 126 e 127, citando Tipke).
Antes Ezio Vanoni escrevera:" As duas actividades [analogia e interpretação extensiva] são tão vizinhas, que já Windscheid notava como, não obstante a diversidade conceptual que ocorre entre elas, seja muitas vezes impossível distinguir praticamente a interpretação extensiva da aplicação analógica" (Natura ed Interpretazione delle Leggi Tributarie in Opere Giuridiche, I, p. 292). Steichen não constitui excepção quando escreve:" As fronteiras entre a interpretação extensiva e o raciocínio por analogia são mais fáceis de estabelecer em teoria do que na prática" (ob. cit., p. 417 nota 4). Conforme o mesmo autor, no raciocínio analógico “trata-se de uma aplicação do argumento a pari segundo o qual as mesmas causas devem produzir os mesmos efeitos" (Steichen, ob. cit., pg. 417). Foi também escrito: “a distinção entre interpretação (extensiva) e “integração” analógica é discutida em abstracto e oponível em concreto...” (Fedele,Andrea, Appunti dalle Lezioni di Diritto Tributario., pg. 108). Acrescenta: "a lábil fronteira entre interpretação extensiva e analógica fornece à jurisprudência oportunas margens decisórias também em matéria de isenções fiscais ou de regimes de favor” (ob. cit., p. 109). Ainda escreve Salvatore La Rosa: “na teoria geral da interpretação jurídica de hoje enfim exclui-se a configuralidade de limites nítidos de fronteira entre a interpretação e a chamada extensão analógica e coloca-se em discussão a própria juridicidade das regras interpretativas (enquanto também elas necessitantes de interpretação)” (Principii di Diritto Tributario, p. 2).
2.2.4. Três requisitos são exigidos para a analogia, "1) a ausência de uma norma específica reguladora da relação jurídica de que se trate; 2) a existência de uma norma positiva que regule expressamente supostos semelhantes; 3) a possibilidade de extensão da ratio iuris que constitui o fundamento da norma que deve estender-se analogicamente ao suposto não regulado por existir entre ambas as hipóteses uma afinidade que impõe a sua regulamentação segundo o mesmo princípio e por não se verificar uma expressa proibição legal" (Lasarte, Javier (coordenador), Derecho Tributario, 2ª ed, p. 157)." Esta ausência de norma é, precisamente, a característica fundamental que diferencia a integração, à qual pode aplicar-se a conhecida reflexão de CARNELUTTI para distinguir entre integração e interpretação: ' esta (a interpretação) serve para conhecer o que o legislador pensou; aquela o que teria pensado'“ (Bayona de Perogardo, Juan José e Soler Roch, Maria Ferreira, Derecho Financiero, 2ª ed., I, p. 361; cfr. nos mesmos termos,Abad Mariano e al.,Notas de Introdución al Derecho Financiero, p. 184), sendo a analogia apresentada como “capacidade 'expansiva' da ratio legis” (Fedele, Andrea, ob. cit., p. 104).
Escreveu Herrera Molina “O procedimento analógico busca, precisamente, adivinhar o que o legislador teria dito se tivesse previsto o caso carente de regulação. Ainda que num momento histórico se considerar que um preceito tem um pressuposto de facto exclusivo, sempre poderão surgir hipóteses novas que apresentam identidade de razão com o caso previsto pelo legislador” (La Exencion Tributaria. p. 214).
Como já também se escreveu, "a analogia tem o seu limite e ao mesmo tempo o seu fundamento no princípio da igualdade, é este precisamente o que permite que casos não expressamente caracterizados mas basicamente afins sejam reconduzidos à normativa reguladora do suposto expressamente previsto” (Velarde Aramayo, Maria Silvia, Beneficios y Minoraciones en Derecho Tributario, p. 163). O argumento de o raciocínio analógico estar ao serviço da igualdade face à lei de imposto é contrabalançado por Hegelau “pelo princípio da necessidade da previsibilidade do direito, princípio que será de uma importância capital nos ramos de direito que tenham ligação, como é o caso do direito fiscal, com as liberdades públicas” (Steichen, ob. cit., p. 420 nota 2).
Alias, sobre a proibição da analogia, escreveu Sá Gomes ser o princípio da igualdade dirigido ao legislador e não ao intérprete (Manual de Direito Fiscal, vol. 2, p. 375).
Sobre o princípio da igualdade escreve também Alberto Xavier, “tal princípio, todavia, dada a existência do principio da legalidade, não encerra directamente um comando ao intérprete antes representa um comando ao legislador, que o obriga ao seu respeito na actividade que este desenvolve de configuração dos tipos tributários. Por outras palavras, o princípio da igualdade tributária constitui um limite constitucional à soberania fiscal, não uma máxima de hermenêutica do direito constituído” (ob. cit., p. 178) ou “o principio da igualdade tributária contém exclusivamente um comando ao legislador ordinário, esgotando neste plano a sua eficácia" (ob. cit., p 188), actuando na configuração da sujeição e das excepções à tributação-regra.
Para Albiñana Garcia Quintana, “(…) a excepção à aplicação analógica (…) está no regime jurídico que corresponde aplicar ao tributo pelos princípios da reserva da lei e/ou da legalidade (Derecho Financiero y Tributario. 382), embora "a recusa da analogia parece, em muitos respeitos, como um acto de resignação face a uma actividade legislativa que se deplora" (Steichen, ob. cit. p. 421, nota 2).
Relativamente à evolução, à novidade e à analogia escreveu Coelho de Amaral, a propósito da analogia: “A previsão do legislador é sempre limitada e as leis fiscais envelhecem depressa, dada a evolução rápida a que estão sujeitas as estruturas económicas, e daí que surjam com frequência actos e situações que, em confronto com outros que o legislador sujeita a imposto, também deveriam ser tributados, mas o que o não serão por ele os não ter previsto. A proibição da analogia gera desigualdades gritantes entre os contribuintes...” (ob. cit., p. 84/85), discurso aplicável, mutatis mutandis, dado o já escrito, às situações de desvio da tributação-regra.
2.3. Do que se escreveu resulta ser indispensável a análise da possibilidade da interpretação actualista quanto a elementos essenciais do imposto e, no caso da possibilidade, da respectiva necessidade e, no caso afirmativo, a verificação dos correspondentes requisitos (nomeadamente verticalidade, não oposição ao “teor literal”). Ainda resulta a indispensabilidade de não desconsiderar a interpretação literal face ao espírito da lei e de a analogia, cuja proibição pode conduzir a injustiça, não ser afastada por pretensa interpretação, incluindo a teleológica.
3. TRIBUTAÇĀO DAS MAIS-VALIAS NÃO REALIZADAS
3.1. As mais-valias, que não resultem da inflação ou de mera expectativa de rendimento, no começo mais as ligadas ao capital imobiliário, são compreendidas no conceito ampliado de rendimento segundo a orientação do incremento patrimonial ou do acréscimo líquido da riqueza, orientação acolhida pela legislação fiscal portuguesa (artigo 3°n.3 do Código do IRC). Assim, o conceito de rendimento resultante do Código do IRC é mais amplo do que o conceito económico - com a perspectiva periódica de produção económica entre dois pontos- visto atender- se não apenas ao resultado do exercício da actividade, mas ao enriquecimento, à variação líquida patrimonial reveladora da capacidade de contribuir, capacidade contributiva que não significa capacidade financeira no sentido de possibilidade imediata de pagamento. Todavia, no quadro desta tributação, pode suscitar-se a oposição que constituiria a tributação das mais-valias não realizadas face à necessidade de consideração da capacidade contributiva (exigência indirecta, visto tratar-se de um subprincípio do princípio da igualdade requerido directamente pelo artigo 13º da CRP) e à indispensabilidade também constitucional da tributação do rendimento real da empresa (exigência directa, ainda que temperada pelo advérbio “fundamentalmente “-artigo 104° n.2 da CRP).
3.2. Distinguindo entre capacidade absoluta, referida a um ente concreto, e relativa, visando os outros, no concernente à repartição do imposto de modo a satisfazer a igualdade tributária, surge como fundamental a existência de rendimento, de recursos económicos que habilitem a pagar impostos e dai que o aumento de património revele capacidade contributiva, Juan Linau Martin de Rosales escreve peremptoriamente: "Fica claro, pois, que os G.de C. [a distinção entre ganhos de capital e mais-valias "é mais idiomática do que estritamente conceptual"] são índice directo da capacidade contributiva absoluta ...." ( Las Ganancias de Capital y la Capacidad Contributiva in XXIII Semana de Estudios de Derecho Financiero pp. 124 e 131) e acrescenta “Não se trata agora de insistir no que acima ficou suficientemente demonstrado (a inter-relação da capacidade contributiva com os ganhos de capital), só queremos destacar como as motivações político-sociais e de estrita justiça tributária determinaram os teóricos a colocar um singular acento na ideia que os ganhos de capital aumentam a capacidade económica dos sujeitos. O carácter das receitas "não autenticamente ganhas", o carácter de inesperadas, a sua relação com a equitativa distribuição da carga fiscal são os argumentos esgrimidos. Com esta base e partindo da ideia de discriminação de rendimentos por sua origem, chega-se a pensar que os G. de C. que se obtêm sem esforço são um elemento mais apto para o tributo do que os próprios rendimentos ordinários " (ob. cit., p. 132). Transcreve também Palao Taboada: " é evidente que se os incrementos de valor dos bens aumentam em termos reais a riqueza dos contribuintes, também a capacidade destes para pagar impostos cresce. Nenhum dos adversários do imposto pôde negar isto, em princípio, e até alguns o reconhecem explicitamente. Só demonstrando que isto não ocorre, quer dizer, que a posição económica do contribuinte não melhorou pela obtenção das mais-valias, poderia excluir-se de modo absoluto a tributação, salvo, claro está, que se afaste por razões distintas da ausência de capacidade contributiva"
Também como escreveu José Perez de Ayala: " Porque um imposto que pretenda tributar o rendimento, definindo-o como diferença entre valores do património no princípio e no fim do período, tem de submeter a tributação todos os aumentos de valor do património no mesmo período em que se originam, quer dizer, os aumentos "acrescidos" e não tão somente os aumentos "contabilizados" e " realizados" (Tributacion de las Plusvalias Patrimoniales nel Impuesto General sobre la Renta de Sociedades y Demás Entidades Jurídicas, in Revista de Derecho y Hacienda Publica, vol. XXI, n. 88, pp. 144-145). Mais adiante indica três razões para o asserto, baseando-se em Simons, um dos corifeus da teoria consagrada no nosso código do IRC: " 1° Porque 'pode ganhar-se sem que exista realização e há realização sem ganho; e se uma delas (o ganho) é essencial para existir rendimento, é preciso excluir a outra (a realização)'. O sentido comum e a prática inveterada dizem-nos que a condição "sine qua non" é o ganho. 2° Porque o conceito de acessão patrimonial é o mais adequado (para definir o ganho) em relação com os activos e os passivos e deve reconhecer-se em consequência os incrementos ou acrescentamentos patrimoniais como um resultado imputado aos períodos particulares em que a acessão teve lugar. 3°Enfim, o considerar que só há incremento de valor do património, a incluir no rendimento, quando se realiza mediante a alienação do activo, corresponde a um conceito de rendimento claramente distinto: o de "ganhos derivados de transações" ou proveitos operacionais. É essencialmente distinto, entre outras coisas, porque “o rasgo distintivo de esta acepção está em que não pressupõe uma atribuição de rendimentos a uns períodos concretos de tempo, ou seja, em que não coloca o problema, frequentemente crucial, de determinar quando tem lugar a acessão ou o acrescentamento de rendimento" (que, como vimos, é o princípio de imputação temporal que rege, para a tributação dos incrementos do património, na teoria que temos vindo a examinar). Demonstra- se assim que o critério de realização não é coerente com esta primeira tese [de Davidson-Schanz-Haig-Simons, isto é, rendimento como acréscimo líquido da riqueza] nem com a filosofia que a inspira. Já que ele propugna gravar o incremento de património enquanto denota ‘um poder económico’, ‘uns direitos de utilização dos recursos escassos’, ‘poder’ e ‘direitos’ que se têm desde o momento em que se verifica a acessão, que se origina o acrescentamento, e não depois, em que se realiza mediante alienação do activo aumentado de valor, ou se põe de manifesto mediante o seu rendimento em contas, etc.” (ob. cit. pp. 174-175).
Embora mencionando dificuldades abaixo referidas, também Leif Muten escreveu: “O coerente tratamento sob o amplo conceito de rendimento - tal como proposto por Davidson (1889) e Georg von Schanz (1896) na Europa e mais tarde por Robert M. Haig (1922) e Henry C.Simons (1938) nos Estados Unidos - obviamente é um imposto sobre todos os ganhos, realizados e não realizados, com a correspondente dedução por perdas não realizadas" (Treatment of Capital Gains and Losses - a Response, in The Notion of Income from Capital, p. 218).
Ainda Peter Essers e Arie Rijkers escreveram: " (...) em termos de capacidade contributiva, uma mais-valia oferece, em geral, um mesmo poder de gastar de salário ou outros tipos tradicionais de rendimento tributável” e adiante, ”Quando a teoria é designada como teoria do acréscimo líquido, segue-se que este conceito de rendimento indica um conceito de rendimento sobre a base do acrescido" (General Report in The Notion of Income from Capital, p. 311) e mais adiante:" Capacidade contributiva - vista como verdadeiros acréscimos ao poder económico- não depende da forma deste poder. Poder não depende da sua aplicação. A fortuna não depende da sua visibilidade. Rendimento não é caracterizado por cash”, "Embora possam haver razões, em certos casos, para diferir a tributação para o momento da realização, quando respeite a acréscimo no valor da propriedade” e conclui: "Portanto pensamos, um imposto sobre mais-valias deve ser considerado como uma aplicação do conceito de rendimento SHS (ob. cit., p. 312).
Face ao escrito, inexiste necessidade de acrescentar algo sobre o índice da capacidade contributiva que constituem as mais-valias não realizadas e sobre o carácter real do rendimento nelas presente.
3.3. Quanto à inconstitucionalidade da tributação das mais-valias não realizadas face à tributação do rendimento real das empresas, exigida pelo artigo 104º n. 2. da CRP, e para além do que ficou escrito, importa determinar o sentido desta disposição. A doutrina tem interpretado rendimento real como contraposto a rendimento normal. Assim escreveram Joaquim Canotilho e Vital Moreira: “ No que respeita á tributação das empresas ( n. 2) [do artigo 104 ]entre as duas soluções típicas possíveis - ou seja, por um lado, a tributação dos lucros reais (que incide sobre os lucros realmente verificados, os quais são naturalmente variáveis de ano para ano) e, por outro lado, a tributação dos lucros normais (que incide sobre os lucros que se obteriam em condições normais e que, por isso,, podem exceder ou ficar aquém dos efectivamente obtidos, assim se premiando as gestões mais lucrativas e castigando as menos lucrativas))- , a Constituição optou pela primeira” (Constituição da Republica Portuguesa Anotada vol., I, 4a edição, p. 1100) Também incisivamente escreveu Saldanha Sanches: "Considerando o específico ambiente em que foi elaborada a Constituição de 1976, parece incontroverso que o legislador referiu o rendimento real como medida da tributação, para excluir a tributação de acordo com o rendimento normal, com tão fundas tradições na história fiscal portuguesa. E por isso a intenção do legislador era claramente proscrever em termos gerais (e tal é o sentido da expressão "fundamentalmente") as práticas de avaliação do rendimento com base em mera apreciação de indícios: ... "," tributação de lucro real ou tributação segundo a contabilidade " e "o lucro que elas [as empresas] possam ter obtido é o mais exacto índice da sua capacidade contributiva. Se for, como é óbvio, o seu lucro real, determinado através da sua contabilidade "(Acerca da Hipótese de um Imposto sobre o Património das Empresas in Estudos de Homenagem à Dra. Maria de Lurdes Órfão de Matos Correia e Vale, pp 192,194 e 196 respectivamente)". A referida contraposição é repetida pelo autor alguns anos depois: “[A tributação fundamentalmente por meio do rendimento real, aquele que é obtido através da sua contabilidade] É o modo mais exacto de criar uma medida para sua [das empresas] oneração fiscal, em contraposição à tributação segundo o rendimento normal” (Manual cit.,230). Também afirma Casalta Nabais: "Com efeito, parece não restar qualquer dúvida que se pretendeu introduzir e impor como regra de tributação de empresas a sua tributação pelo rendimento real, excluindo por conseguinte, a regra da sua tributação pelo rendimento normal um modelo com grande tradição no direito fiscal português" (Ainda fará sentido o artigo 104° da Constituição? In Estudos de Direito Fiscal, volume IV, p. 146, cfr. pp. 144 e147).
Afirma ainda Casalta Nabais, contrapondo rendimento real a rendimento normal :"... o próprio rendimento real [qualifica-se como mito] não deixa de ser, em alguma medida um rendimento normal na medida em que o integram componentes apuradas mais em termos de normalidade resultado do recurso a diversas variadas padronizações ou standardizações do que em termos de exacta e rigorosa realidade"" É que a contabilidade, em que o dito rendimento real assenta,(...), tem, na sua base múltiplos pressupostos mais construídos ou ficcionados do que efectivamente verificados". (Introdução ao Direito Fiscal das Empresas, pp. 38 e 39), sublinhando caber ao preceito em causa "o cariz dirigente”. No sentido da referida oposição também João Sérgio Ribeiro escreve" O conceito de rendimento real opõe-se normalmente ao conceito de rendimento normal", também denominando aquele de "mítico", a par de "falacioso", atentas as dificuldades de o alcançar (O mito da tributação do rendimento real, in I Congresso de Direito Fiscal, pp 141,142 e 145).
Como já se escreveu a propósito dos Estados Unidos, "realização assim não se torna um mandato constitucional mas uma exigência suscitada como um resultado da decisão legislativa de não tributar mudanças anuais no valor, por causa de dificuldades práticas envolvidas e por razões de política (policy) (Taxation in the United States, citado por Tilbery Henry, Tributação dos Ganhos de Capital, p. 26). Foi a posição do nosso Código do IRC em cujo relatório (n. 5) pode ler-se: "entre as consequências que este conceito alargado de lucro [de acordo com a chamada teoria do incremente patrimonial] implica, está a inclusão no mesmo das mais-valias e menos-valias ainda que, por motivos de índole económica, limitada, às que tiverem sido realizadas”. Sobre este aspecto escreveu Saldanha Sanches: “Mesmo assim [possibilidade de nas empresas “a tributação poder assentar num conceito que compara a situação patrimonial do sujeito passivo em dois momentos diferentes”], porém, as dificuldades e incertezas de determinação exacta do valor do activo levam à não tributação dos acréscimos patrimoniais (ou variações patrimoniais na linguagem do Código do IRC) latentes ou não realizadas” (Manual cit., p. 223)
A favor da não realização, isto é, a favor do simples acréscimo (accrual basis) face à realização, são indicados diversos argumentos: a impossibilidade de manipulação, manipulação que o critério da realização permite, atento o efeito de ferrolho ( lock-in-effect), através da escolha do momento da tributação, de modo a moldar o respectivo montante e até a sua existência, conjugadamente com a ocorrência ou não de prejuízos; a não necessidade de roll over, vista a compensação imediata das menos-valias; a eliminação do efeito ramalhete (bunching effect), dado não conduzir à acumulação de rendimento face a taxas progressivas, acumulação que implicaria regras de averaging, muitas vezes complexas, ou de taxas especiais; não necessidade dos impostos de saída (exit taxes), bem como da possível conjugação com a tributação das sucessões, fusões e cisões, a que pode aditar-se a possível menos difícil obtenção de crédito, considerando o capital realizável; ao invés, a não realização tem como inconvenientes dificuldades técnicas e administrativas (critérios de valoração - inexistentes no caso de preços formados num mercado regulamentado - e de controlo) e a possível falta de liquidez, falta que pode ser contornada com facilidades de pagamento.
Aliás, a tributação das mais-valias não realizadas não é o único caso de tributação de rendimento não realizado. Atenta a concepção de rendimento adoptada no CIRC, o rédito dos juros deve ser reconhecido utilizando o método do juro efectivo , isto é, reconhecido no período a que respeitem, independentemente do período em que se vencem [ NCRF 20.parágrafo 30 alínea a)] e, bem assim, " os itens monetários em moeda estrangeira devem ser transpostos pelo uso da taxa de fecho", isto é, as diferenças de câmbio em itens monetários são tributadas no período em que são reconhecidas, independentemente da realização.[NCRF 23 parágrafo 23 alínea a)].
3.4. Do que se escreveu resulta a não violação, pela tributação das mais-valias não realizadas, do subprincípio da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real das empresas.
4. O CASO SUB JUDICE
4.1.Tendo sempre em atenção o que anteriormente foi escrito e fundamentado amplamente por renomados académicos, bem como face à modificação operada quanto ao critério para a tributação das mais-valias (da realização para a base do acrescido ) e ao “silêncio” que se seguiu, isto é, à não modificação da norma relativa à desconsideração das mais-valias e das menos-valias, norma limitada às realizadas (artigo 32.º n.º 2 do EBF), por ocasião da mudança do aludido critério ou a seguir, tendo, pelo contrário, ocorrido, a revogação do preceito algum tempo depois, há razões para se concluir objectivamente que o circunstancialismo não conduz à ampliação da norma que afasta o regime–regra. Poderia ser ou pode ter sido ou foi solução errada não se ter ampliado o citado artigo 32.º n.º 2, mas o intérprete, apesar não ser robot, não deve nem pode substituir-se ao legislador. Não obstante, apelou-se à interpretação actualista, só que essa interpretação requer, para a sua aplicação em Direito Fiscal, que ora interessa, a consideração e a resolução de várias questões, nomeadamente a sua possibilidade (cfr. 2.1.1. e 2.2.1, designadamente Albiñana Garcia Quintana, face às implicações dos desvios da tributação-regra do princípio da igualdade, considerando a generalidade dos contribuintes, e paralelamente, no respeitante às regras da tributação, do princípio da legalidade, designadamente) e, no caso de afastamento da impossibilidade, a sua necessidade (cfr. 2.1., por paralelismo, mormente Calvo Ortega) e, se aceite esta, a verificação de requisitos da interpretação sob referência (cfr, 1.2.l., e 2.2.1. e bem patenteados nos exemplos naquele dados e, a contrario. em 1.2.2.3), requisitos em que é relevada a verticalidade e a não modificação do " teor literal" do preceito em causa e que, no caso sob apreciação, não permitem a sua aplicação. Estas questões não mereceram consideração ou mesmo referência na decisão que apenas menciona aspecto muito geral sobre tal tipo de interpretação (relativamente a Castro Mendes e José Ascensão, teria importado terem sido considerados os exemplos por eles dados, no caso do primeiro quanto à analogia e que, a contrario, são bem elucidativos para a análise), não tendo sido, pois, abordada a coloração fiscal da problemática ( sobre a assimilação, sem mais, pelo Direito Tributário, dos institutos jusprivatistas, cfr.2.1. González, Eusebio e González, Teresa), sendo desviante a múltipla invocação da identidade de razão para a aplicação do regime especial estabelecido para as mais-valias e menos-valias realizadas (no respeitante à terminologia - isenção ou regime especial -, cfr. Reavaliação dos Benefícios Fiscais-Relatório do Grupo de Trabalho Criado por Despacho de 1 de Maio de 2005 do Ministro do Estado e das Finanças), base, aliás, da invocação da igualdade. Daí não poder ser acompanhada, como sendo suficiente para decidir aplicar a interpretação actualista. a ocorrência da mudança de contexto, mesmo que aliada ao propósito de justiça e, porventura, ao desígnio de evitar invocadas inconstitucionalidades. Além do mais e não exclusivamente, o julgamento por equidade está vedado (artigo 2° n.°2 do Decreto-lei nº.10/2011, de 20 de Janeiro). Aliás, aceitar-se-ia o emprego da interpretação actualista na fase da sujeição à tributação ou em matéria de taxa, sem verificação da ocorrência dos respectivos requisitos ou até com essa ocorrência? É que se se recusa a aplicação nesses casos, então qual a razão para a admitir quanto a desvios do regime-regra? Ainda persiste odiosa restringenda favorabilia amplianda? Mas, se se aceita, onde se encontra a certeza, a garantia do contribuinte? Invoca-se ainda o método principialista, embora sem utilizar a designação, mas omite-se o princípio da igualdade afastado pelo desvio da tributação-regra (cfr. 2.1. e 2.2.1.). Todavia, repete-se, mesmo que consideremos a possibilidade e a necessidade desse tipo de interpretação, o escrito anteriormente nesta Declaração, seja no Quadro Geral seja no Quadro Fiscal, conduz à conclusão da inexistência dos requisitos para a aplicação de tal tipo de interpretação no caso sub judice. Atenta a clara impossibilidade de actualização do normativo em causa, visto o objectivo pretendido de dar o tratamento das mais-valias realizadas às mais-valias não realizadas, mais-valias não idênticas por serem afins, e dada a invocada identidade de razão, a analogia seria a via (artigo 10.º do C.C), visto ubi eadem legis ratio ubi eadem legis dispositio, analogia rejeitada na decisão, por, segundo se afirma, ser possível operar a interpretação, opinião que também não pode ser partilhada, em virtude de inexistir, como se demonstrou, tal possibilidade, ainda que se invoque a interpretação teleológica ( sobre esta, no quadro da problemática em causa, cfr., as judiciosas considerações de Lobo Torres em 2.2.3.). Aliás, a interpretação literal foi liminarmente rejeitada na decisão, não merecendo qualquer consideração os ensinamentos como os de nomeadamente Galvão Telles (cfr. 1.2.2.1.), Lobo Torres, com a opinião de Perelman, Pessoa Jorge, González e Lejeune e Albert Wahl (cfr. 2.2.2.), de entre outros e nalguns dos quais releva a relação apropriadamente estabelecida e bem importante entre o elemento literal e a finalidade, o espírito da norma De qualquer modo, este voto, devidamente compreendido, não pode ser entendido como sustentando, sem mais, a interpretação literal. No sentido claro da justeza da analogia no caso, a ser pretendida a identidade de tratamento, é o escrito no 1.2.2.3., 2.2.3.e 2.2.4., sendo mais que evidentes os exemplos similares à questão sob exame, importando evitar confusão entre aquela e qualquer outra forma de interpretação (cfr. 2.2.3.). No entanto, para se atingir o desideratum é impossível o emprego da analogia, não pela razão invocada na decisão, mas pela sua proibição (artigos 11.º n. 4 da LGT. e 10.º do EBF), como consequência de subprincípios do Estado de Direito (.2.2.1. e 2.2.4.) e de se dever limitar o afastamento do princípio da igualdade que resulta de qualquer desvio do regime da tributação-regra (cfr. 2.1). Não deve, por conseguinte, tentar-se adaptar, de qualquer modo, isto é, sem obediência às devidas regras, as normas à realidade nova e, no caso de se suscitar dúvida, isto é, no caso de se não estar perante solução não indubitável, o que aqui não se concede, deve optar--se pelo entendimento que não implique mudança (cfr. 1.2.1.), tendo em mente o carácter de risco que pode ter a adaptação das leis a novas realidades. E estes particulares cuidados revestem-se de acentuada importância no Direito Fiscal, como ficou demonstrado exuberantemente (cfr. 2.2.1.). Aliás, a regra a aplicar no caso sub judice resultou, exercendo a economia de escolha, de uma opção do contribuinte, opção que conduz, como opção clara e expressamente permitida, à aceitação das respectivas consequências. face ao Direito na ocasião vigente. A lei, com a sua não ampliação de eventuais efeitos, deu origem a regimes diversos e o intérprete não pode substituir-se ao legislador. Neste caso bem pode escrever-se, relativamente ao sujeito passivo, sibi imputat. Aliás, utiliza-se, na decisão, argumentação não entendível, como "Na realidade, numa perspectiva da continuidade da atividade empresarial a mais-valia que é tributada corresponde sempre à mais-valia realizada”, e não entendível, visto, nesse caso, poder haver tributações a título diverso e não a um só título.: não realizadas e realizadas. Utiliza ainda a decisão o argumento de que, a não ser aplicada a disposição desconsiderando as mais-valias e menos-valias, seriam violados os princípios da capacidade contributiva, da tributação do rendimento real das empresas. da igualdade e a justiça. Tal não merece também a nossa adesão. Para o efeito, contribui designadamente o que consta e amplamente se fundamentou no 3.não só sobre a tributação das mais-valias não realizadas, isto é, nas consequências de a lei ter adoptado para a definição de rendimento a orientação do acréscimo líquido de riqueza (cfr.3.1.e 3.2.), mas também no sentido de lucro real contraposto a lucro normal (cfr. 3.3.) e nos casos mencionados de rendimentos não realizados tributados (cfr. 3.3.) e, que se saiba, não foram consideradas as correspondentes regras como feridas de inconstitucionalidade. Quanto à igualdade, já se escreveu amplamente, incluindo aspectos relativos à analogia, não se desejando chegar ao argumento ad nauseam, e sobre a justiça também já foi escrito que deve ser alcançada com obediência a regras e a razão de ser do asserto.
4.2. Decidindo-se como se decidiu, lembra, o que escreveu , com o mesmo espírito que não caso idêntico, Gian Antonio Micheli: “(…), a jurisprudência entende frequentemente o tratamento de isenção, ou de redução do tributo, recorrendo (declaradamente) à interpretação extensiva, fazendo dizer à fórmula empregue pelo legislador demasiado mais do que esta comporta, mas em substância aplicando analogicamente a norma de isenção, considerada como expressão de um princípio mais geral e, portanto, como tal aplicável também a casos não previstos pela norma positiva, mas mais próximas da fattispecie regulada por esta última” (Corso di Diritto Tributario, p. 87), podendo a mesma ideia poder ser lida em Galvão Telles ( cfr.1.2.2.3.), Lobo Torres e Fedele (cfr 2.2.3.).
Não se diga constituir a orientação indicada impeditiva do progresso, de a actividade dela decorrente ser contrastante com a impossibilidade de previsão total legislativa, porque não só a criação de normas jurídicas é uma tarefa constante, visto o legislador – e não o intérprete – dispor dos instrumentos adequados à respectiva acção inovadora mas também o intérprete tem instrumentos ao seu dispor que, não ultrapassando as fronteiras da sua correcta actuação, lhe permitem mais do que ser a já recordada “boca que pronuncia a palavra da lei”, não lhe tendo, porém , sido disponibilizado o imperium legibus solutum, sendo, aliás, a interpretação correctiva vedada em Portugal (cfr. Ascensão, ob.. cit., p. 423 e Teixeira de Sousa, ob. cit., pp. 382 a 384). Deixar a interpretação ser invadida, ainda que com mero perigo, pelo subjectivismo do intérprete é algo que constitui atitude assaz perigosa e inaceitável. A justiça não pode justificar tudo. Há também outras exigências já assinaladas e que impõem acatamento, não podendo merecer concordância a não menção de qualquer obstáculo. O contexto social, económico e/ou financeiro e as suas necessidades deverão ser apreciados pelo legislador, cabendo ao intérprete actualização eventual segundo regras e não com desvios, como já se mencionou, por se desejar nomeadamente a consecução à outrance de qualquer objectivo, ainda que seja a justiça. Como escreveu F. Gény, “as questões fiscais ficam no domínio exclusivo da legislação no sentido de que pelo menos o juiz não pode estabelecer, impostos nem os aumentar" (cit. por Guez, Julien, ob. cit., p. 93 nota 50) ou, acrescentamos nós, no mesmo espírito de obediência, diminui-los. Deve evitar-se, pois, o judge-made law ou a interpretação que se poderia chamar normativista. ou o mero pragmatismo, embora a margem de apreciação seja de maior dimensão face a noções-quadro ou standards, não rígidos, que fornecem indicações gerais e visam a variabilidade das circunstâncias sociais (Steichen, Alain, ob. cit., pp. 427 e 428), o que não ocorre no caso sub judice. Deve a regra ser obedecida, guardada e não ser o intérprete a regra (sobre a regra e nós e como foi lembrado: Notre Règle n’est pas un refuge. Ce n’est pas la Règle qui nous garde (…), c’est nous qui gardons la Règle - Bernanos, Diálogo das Carmelitas, 2º quadro e 1ª cena). E também não se diga que se está a impossibilitar enriquecer a lei através da interpretação, extraindo todas as suas virtualidades, porque, pelo contrário, assim desconsiderar-se-iam dificuldades na interpretação mormente actualista e na distinção na prática entre interpretação extensiva e analogia, distinção que não é bizantina e que deve revestir-se de todo o cuidado, visto tocar os subprincípios da legalidade, da tipicidade e da segurança, atenta a incerteza que poderia gerar, bem como, no caso de desvios da tributação-regra, ainda o princípio da igualdade, relevando-se aqui as lições de doutrina amplamente exposta e que são bem valiosas para quem tem de julgar.
Face a argumentos, no âmbito tributário, como a imperfeição legística e a dificuldade de determinar o sentido da lei, o que ocorre não bastas vezes, aliado à vertiginosa vida actual criando até realidades imprevisíveis e não só, até de difícil conformação, o que pode conduzir ou conduz a intensificar imperfeições, como a imprecisão ou a injustiça das soluções, a tudo isto se contrapõe a necessidade de segurança, de certeza legal que implica a protecção da confiança, protecção que exige saber-se não ex post os respectivos direitos e deveres, não esquecendo a satisfação da igualdade em todas as suas vertentes: na, face a e pela lei. Com esta posição não se defende a fossilização do imposto nem a cristalização da lei, mas a completa e perfeita obediência aos cânones da hermenêutica, evitando-se decisões que consagrem a tributação ou o desvio das regras desta para além do estabelecido. A decisão, ao não se conformar com este espírito, provocou mais uma razão para o meu dissentimento. Deste modo, não foi aproveitada uma propiciada oportunidade para se aprofundar complexo problema, aprofundamento de que resultaria diferente solução, não merecendo os outros fundamentos invocados pela Requerente também procedência.
(Manuel Pires)
[1] Pelo menos desde 2003 (cf. redação do então art.º 31º do EBF dada pela LOE para 2003).
[2] Veja-se a redação inicial das seguintes normas do CIRC: art.º 20.º (proveitos ou ganhos), n.º 1: Consideram-se proveitos ou ganhos (…) f) Mais-valias realizadas; art.º Artigo 21.º (variações patrimoniais positivas): Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação legalmente autorizadas;
[3] A AT, em passo que deixámos resumido supra, em texto, relembra algumas normas que, anteriormente ao Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13/07, vieram dar relevância fiscal a determinados ganhos e perdas contabilizados ao justo valor.
Estão em causa normas especiais, com um campo de aplicação muito específico, que em nada relevam para a situação em apreço, mormente por não se referirem ou contenderem com o regime fiscal das SGPS.
[4] Como assinala a AT, em passo que deixámos transcrito supra, em texto: «foi a Requerente quem optou pela contabilização das acções segundo a NCRF 27, quando bastaria ter optado pelo normativo da IASB, para afastar a aplicabilidade da al. a) do nº 9 do art. 18º do CIRC, caso em que seria tributada segundo o critério da “realização”».
[5] É do signatatário a autoria da tradução dos textos em língua estrangeira