DECISÃO ARBITRAL
1. RELATÓRIO
1.1 A…, LDA., pessoa colectiva número …, com sede na Rua …, …, em Lisboa, veio, aos 19.01.2017, requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (adiante RJAT).
1.2. É Requerida nos autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
1.3 O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou a ora signatária para formar o Tribunal Arbitral Singular, notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 28 de Março de 2017.
1.4 O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto a anulação do ato de liquidação de imposto de selo constante do documento n.º…, no valor de 3.108,80€, com data de 17 de Novembro de 2016 e limite de pagamento no dia seguinte, relativo à aquisição de fracção autónoma, designada pelas letras DS, do prédio urbano, destinado a habitação, inscrito sob o artigo … na matriz predial da freguesia da … do concelho de Cascais, que realizou no âmbito de processo de insolvência de B… e mulher, C…, a correr termos no … Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Cascais sob o nº …/09… TBCSC, liquidação, prédio e processos que estão melhor identificados no pedido da Requerente e nos documentos a ele juntos, para os quais aqui se remete.
A Requerente sustenta a ilegalidade das liquidações com base no disposto no artigo 269.º do CIRE, alínea e), que concede uma isenção que, na interpretação que considera ser a boa, abrange também os imóveis transmitidos no âmbito de plano de insolvência ou de operações de liquidação da massa insolvente, por venda ou permuta, quando não integrados na venda, permuta ou cessão da empresa ou estabelecimento.
Sustenta a requerente que os insolventes, apesar de pessoas singulares, actuaram comerciantes em nome individual e que, portanto, a eles se aplica também o conceito de “empresa” numa interpretação ampla.
Pelo que a liquidação é, no seu entender, ilegal e peticiona, consequentemente, a sua anulação.
Mais peticiona a Requerente a condenação da Requerida ao reembolso das quantias pagas por força das liquidações em crise, acrescidas dos juros indemnizatórios sobre todas as quantias pagas vencidos contados até à data do reembolso.
1.5 A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA respondeu aos 08 de Maio de 2017 e veio, na mesma data, juntar aos autos o processo administrativo.
Na resposta apresentada, a Requerida defendeu-se por impugnação, sustentando que a interpretação que a Requerente faz da citada norma do CIRE é errada.
Designadamente, diz, porque “No caso em apreço, estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, mas que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de qualquer actividade empresarial, mas que era propriedade de pessoas singulares com destino a habitação”.
Continua a sua argumentação no sentido de que “Tem vindo a ser uniformemente entendido pela Jurisprudência Judicial e Arbitral que a isenção prevista na al e) do artigo 269º do CIRE abrange os bens imóveis que integrem o património de uma empresa e não os bens imóveis de pessoas singulares, com a única justificação de fazerem parte de um processo de insolvência”
Ora, continua, “o sujeito passivo B… inscreveu-se como trabalhador independente em 23.01.1991 (CIRS 0702, Advogado) tendo ficado enquadrado no regime especial de isenção (art. 53º do CIVA), regime este que manteve até 01.02.2002, data a partir da qual passou para o regime normal, de periodicidade trimestral; A data de cessação de actividade é 31.12.2015. Por seu turno, no registo cadastral da contribuinte C… consta como trabalhadora dependente sujeita à entrega da declaração modelo 3 de IRS”, e, consequentemente, que “À data da transmissão do imóvel (16.01.2013), os sujeitos passivos não tinham nenhuma actividade industrial, comercial ou agrícola, ou sequer estavam inscritos como empresários em nome individual, encontrando-se inscritos como sujeitos passivos singulares”.
Pelo que a Requerida conclui que deve ser julgado improcedente o pedido.
1.6 Notificadas do despacho proferido pelo Tribunal em 08 de Maio de 2017 no sentido de ser sua intenção dispensar a reunião do tribunal arbitral prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como as alegações, as partes não vieram opor-se.
2. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.9 do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.
O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.
3. MATÉRIA DE FACTO
Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:
1) A Requerente é uma sociedade que tem por objecto a compra e venda de bens imobiliários;
2) No exercício da sua actividade e na qualidade de credora, a Requerente adquiriu a fracção autónoma, designada pelas letras DS, do prédio urbano, destinado a habitação, inscrito sob o artigo … na matriz predial da freguesia da … do concelho de Cascais, que realizou no âmbito de processo de insolvência de B… e mulher, C…, a correr termos no … Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Cascais sob o nº …/09… TBCSC;
3) O sujeito passivo B… inscreveu-se como trabalhador independente em 23.01.1991 (CIRS 0702, Advogado) tendo ficado enquadrado no regime especial de isenção (art. 53º do CIVA), regime este que manteve até 01.02.2002, data a partir da qual passou para o regime normal, de periodicidade trimestral; A data de cessação de actividade é 31.12.2015;
4) No registo cadastral da contribuinte C… consta como trabalhadora dependente sujeita à entrega da declaração modelo 3 de IRS;
5) À data da transmissão do imóvel (16.01.2013), os sujeitos passivos não tinham nenhuma actividade industrial, comercial ou agrícola, ou sequer estavam inscritos como empresários em nome individual, encontrando-se inscritos como sujeitos passivos singulares;
6) A Requerida notificou a Requerente da sua intenção de proceder à correção da liquidação de imposto de selo que precedeu a adjudicação;
7) Em consequência, foi emitida a liquidação e imposto de selo n.º …, no valor de 3.108,80€, com data de 17 de Novembro de 2016 e limite de pagamento no dia seguinte;
8) A Requerente pagou o imposto liquidado no dia 17 de Novembro de 2016.
Factos não provados
Não se provou que a fracção adquirida estivesse afecta a qualquer actividade comercial que os insolventes tivessem exercido, facto cuja prova cabia à Requerente, por ser matéria constitutiva do direito a que se arroga, designadamente, à isenção prevista no artigo 269.º do CIRE.
Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
A convicção sobre os factos fundou-se nos factos alegados pela própria Requerente e, bem assim, na prova documental junta pela Requerente e no processo administrativo junto pela Requerida, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionados.
4. QUESTÃO DECIDENDA: DA APLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ARTIGO 269.º DO CIRE ÀS AQUISIÇÕES DE IMÓVEIS DESTINADOS A HABITAÇÃO EM INSOLVÊNCIA DE PESSOAS SINGULARES
Cumpre então decidir quanto ao mérito do pedido de decisão arbitral sobre a legalidade da liquidação de Imposto de Selo sub judice.
Vejamos:
Está em causa apreciar a legalidade do ato de liquidação que não aplicou a isenção prevista no artigo 269.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas à aquisição de imóvel efetuada pela Requerente no âmbito do processo de insolvência de duas pessoas singulares sem atividade comercial.
Este artigo 269.º deste Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece o seguinte:
Artigo 269.º - Benefício relativo ao imposto do selo
Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes actos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
a) As modificações dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos sobre a insolvência;
b) Os aumentos de capital, as conversões de créditos em capital e as alienações de capital;
c) A constituição de nova sociedade ou sociedades;
d) A dação em cumprimento de bens da empresa e a cessão de bens aos credores;
e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como a locação de bens;
f) A emissão de letras ou livranças.
As dúvidas interpretativas que advinham da falta de clareza deste artigo, bem como do n.º 2 do artigo 270.º, no que respeita à conexa isenção de IMT, nomeadamente, a questão de saber se a referência a venda se reporta apenas à venda da empresa ou de estabelecimentos nela integrados ou abrange quaisquer imóveis, matéria sobre a qual existe já vasta jurisprudência quer do CAAD quer dos Tribunais Judiciais em especial ao que poderíamos denominar de amplitude da isenção de imposto aí prevista.
O entendimento da Administração Tributária nesta matéria consta agora da recente Circular 4/2017, que altera o entendimento constante dos dois primeiros parágrafos do ponto III do “Guia Para o Cumprimento das Obrigações Fiscais de Pessoas Colectivas em Situação de Insolvência”, anexo à Circular n.º 10/2015, de 9 de Setembro, adoptando o seguinte: «A aplicação dos benefícios fiscais previstos no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não depende da coisa vendida, permutada ou cedida abranger a universalidade da empresa insolvente ou um seu estabelecimento. Assim, os actos de venda, permuta ou cessão, de forma isolada, de imóveis da empresa ou de estabelecimentos desta estão isentos de IMT, desde que integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.».
O entendimento agora adoptado, em linha com a jurisprudência, em sede de IMT está, sem dúvida, conexo com aquele que está em causa nos autos, que é o do artigo 269.º, em sede de Imposto de Selo, e que nos levaria, caso se tratasse de processos de insolvência de pessoa colectiva, a igual entendimento.
Porém, o facto é que se trata de processo de insolvência de pessoas singulares, que se provou não terem, à data da aquisição do imóvel pela Requerente, qualquer actividade, que se trata de fracção autónoma destinada a habitação e que a Requerente não alegou nem provou tivesse estado ou estivesse afecta a qualquer actividade que os insolventes exercessem ou tivessem exercido antes da insolvência.
Pelo que a questão - que continua em aberto, mesmo após à alteração de entendimento da Fazenda quanto às aquisições de imóveis no âmbito de processos de insolvência - é a de saber se a isenção se estende às aquisições de imóveis efetuadas em processo de insolvência de pessoas singulares, designadamente, quando estas não têm atividade comercial ou quando, tendo-a, o imóvel adquirido não está afeto a essa atividade.
Sobre essa questão, pronunciou-se já o Supremo Tribunal Administrativo, designadamente no Acórdão de 25.06.2013, proferido no processo 0866/13, na qual foi Relator o Conselheiro Francisco Rothes, cujo sumário se transcreve:
«I – De acordo com o disposto no art. 269.º, alínea e), do CIRE, ficam isentas de IS as vendas de «elementos do ativo da empresa. II – Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de atos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o ativo de uma empresa.» [1].
Também este CAAD, no Tribunal constituído no processo 13/2016, se pronunciou no sentido de que a isenção [de IS prevista na alínea e) do artigo 269.º do CIRE] só se aplica relativamente a bens imóveis que integrem o património de uma empresa e não a bens imóveis de pessoas singulares.
É este o entendimento que nos parece corresponder à melhor interpretação da norma do artigo 269.º do CIRE: sendo o insolvente pessoa singular sem atividade comercial ou quando, tendo-a, o imóvel adquirido não ter sido afectado àquela actividade, não se aplica a isenção lá prevista, designadamente, a da alínea e) invocada pela requerente.
Isto, porque se trata de uma norma que consagra um benefício fiscal, de natureza excecional, que não permite a aplicação analógica (não a mera interpretação extensiva) que, neste caso, se teria de fazer para que a isenção pudesse ser aplicada ao caso sub judice.
6. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o pedido da Requerente.
* * *
Fixa-se o valor do processo em 3.108,80€ (três mil, cento e oito euros e oitenta cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.
O montante das custas é fixado em 612,00€ (seiscentos e doze euros= ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 13 de Junho de 2017
O Árbitro
(Eva Dias Costa)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.