DECISÃO ARBITRAL
Acórdão
Os árbitros José Poças Falcão (árbitro presidente), Nuno Oliveira Garcia e António Martins (árbitros adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem este Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. No dia 26-10-2016, A… SGPS, S.A. (adiante designada por “Requerente”), com sede social na Rua…, n.º…, …-… …, Concelho da Amadora, com o número de identificação de pessoa coletiva (NIPC) …, matriculada na … Conservatória do Registo Predial e Comercial da Amadora sob o mesmo número, alegando ser sociedade dominante e responsável pela autoliquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) do Grupo ao qual, no período de tributação de 2011, era [e é atualmente] aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (adiante designado por RJAT, aprovado pelo Decreto Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), apresentando pedido de pronúncia arbitral, tendo por objeto a decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) – Direção Geral de Finanças – que indeferiu tacitamente o pedido de revisão oficiosa, apresentado pela Requerente.
2. Alegou, em síntese, a fundamentar o pedido:
Atendendo ao disposto no artigo 90.º do Código do IRC e das normas tributárias que regulam cada uma das deduções previstas no n.º 2 daquele artigo, a Requerente sustenta que o montante relativo ao crédito fiscal decorrente do SIFIDE I 2010, disponível para utilização, deverá ser deduzido à coleta de imposto, a qual inclui, para além da coleta de IRC, a coleta de derrama estadual (sempre que aplicável) e a coleta de tributação autónoma.
Alega ainda a requerente que, sobre a matéria em causa, estabelecia a alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, na redação em vigor à data a que se reportam os factos, que a liquidação daquele imposto “tem por base a matéria colectável” apurada na Declaração Modelo 22 de IRC a que se refere o artigo 120.º do mesmo Código. Adicionalmente, dispunha o n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC que “ao montante apurado” nos termos do n.º 1 “são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) a correspondente à dupla tributação internacional;
b) a relativa a benefícios fiscais;
c) a relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;
d) a relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.”
A Requerente defende que o montante de imposto apurado na demonstração de liquidação em análise não se apresenta correto, devendo o montante de SIFIDE disponível ser deduzido até ao preenchimento da coleta total do IRC formada pela tributação autónoma referente ao mesmo período (já que inexistia coleta de derrama estadual no período de tributação em apreço).
Considerando que não só efetuou um pagamento indevido, como deveria ter-lhe sido reembolsado o valor resultante das deduções disponíveis, a Requerente entende ter direito a um reembolso por parte da AT no valor de € 278.067,73 (duzentos e setenta e oito mil, sessenta e sete euros e setenta e três cêntimos).
Entende a requerente que a decisão do CAAD no processo n.º 749/2015-T, onde se refere que que “(…) na atual redação do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, o legislador não só esclarece que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário, como também que as mesmas devem ter o mesmo tratamento para efeitos do cômputo do lucro tributável.”, não obstante este aditamento tenha contribuído para dissipar as dúvidas sobre a (não) dedutibilidade das tributações autónomas em IRC, interessará revisitar a discussão levantada e desenvolvida pela jurisprudência e doutrina portuguesas, sobre a natureza da tributação autónoma, para aclarar a equiparação que, no entender da Requerente, é hoje inquestionável.
Nos termos do atual artigo 88.º do Código do IRC, apenas são delimitadas a matéria coletável sujeita a tributação autónoma – as diversas realidades sobre que impende aquela tributação –, bem como as taxas aplicáveis. Inclusivamente, as taxas de tributação autónoma variam consoante o resultado tributável: uma taxa mais elevada na verificação de prejuízo fiscal ou de uma taxa mais baixa em situações de lucro tributável.
Nos termos da decisão do CAAD no processo n.º 749/2015-T, é concluído que “ (…) não só o legislador expressa que o IRC inclui as tributações autónomas, como não existem no CIRC, designadamente, nos capítulos que tratam da incidência (Capítulo I), liquidação (Capítulo V) e pagamento (Capítulo VI) quaisquer outras referências expressas a tributações autónomas…”
Se o legislador optou por não definir em que moldes se processa a liquidação do imposto relacionado com a tributação autónoma, nem obrigações de pagamento, nem tampouco se importou com a definição da incidência subjetiva daquela tributação, e se a integrou no Código do IRC, para o que ao caso em apreço concerne, torna-se claro para a Requerente que deixou a cargo das regras gerais daquele código a previsão e estatuição sobre aqueles assuntos. Previsão e estatuição essas, referentes à liquidação do imposto, que são feitas à luz das regras gerais do Código do IRC, nomeadamente à luz do seu artigo 90.º
A tributação autónoma encontra-se formal e procedimentalmente integrada no IRC, sendo apurada nos mesmos termos que aquele imposto prevê, participando da liquidação de imposto apurado anualmente e dele fazendo parte integrante. Apesar do processo evolutivo que o regime das tributações autónomas tem vindo a sofrer, englobando atualmente um conjunto diversificado de realidades, desde cedo foi integrado no Código do IRC e, crê a Requerente, passou a compor o conceito aí vertido de “coleta do imposto”.
É o que, para a requerente, transparece da jurisprudência, quer ao nível do STA, quer ao nível do CAAD, dos quais são exemplo, respetivamente, o Acórdão 0964/2014, de 25 de fevereiro de 2015, bem como as Decisões nos processos 209/2013-T, de 24 de fevereiro de 2014, e 6/2014-T, de 27 de junho de 2014.
É entendimento generalizado das referidas decisões do CAAD que “(…) as tributações autónomas integram o regime do, e são devidas a título de, IRC (…)” e que, como tal, “(…) pertencem sistematicamente ao IRC (…)”, por fim concluindo que “(…) na perspetiva do legislador, as tributações autónomas integrarão, efetiva e inequivocamente o regime do IRC, sendo devidas a título deste imposto, como resulta do artigo 12.º do CIRC (…)”.
A própria AT teria vindo considerar a tributação autónoma enquanto elemento integrante do IRC, na medida que considera esta realidade como imposto, que, como tal, não poderá ser considerado como um gasto fiscalmente dedutível para efeitos do próprio IRC, mesmo antes da alteração à redação da alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.
Adicionalmente, e para o que aqui interessa, a requerente alega que a Lei n.º 40/2005, de 3 de Agosto (“Lei 40/2005”), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 10/2009, de 10 de Março e pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, criou o SIFIDE I com o objetivo de aumentar a competitividade nas empresas através da aposta na investigação e desenvolvimento empresarial.
De acordo com o n.º 3 do artigo 4.º do diploma que criou o SIFIDE I, as despesas que, por insuficiência de coleta, não possam ser deduzidas no período de tributação em que foram realizadas podiam ser deduzidas até ao 6.º período de tributação imediato.
Tal como indicado naquela decisão (e como é evidenciado no acórdão do STA, de 15 de novembro de 2000, no processo n.º 025446, naquela referido), as normas que criam benefícios fiscais são eminentemente excecionais (cfr. artigo 2.º do EBF), não lhes podendo ser aplicada uma interpretação restritiva, devendo ser interpretadas nos seus exatos termos.
Como ensina Batista Machado, a interpretação restritiva apenas é permitida quando “(…) [o] intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer”, não sendo de todo o que se verifica no caso em apreço.
Neste contexto, entende a Requerente que a coleta resultante da mesma deve ser igualmente considerada, para além da coleta de IRC e derrama estadual, para efeitos da dedução do SIFIDE I. Neste sentido, conforme refere o CAAD nos acórdãos acima mencionados, o artigo 90.º do Código do IRC “aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, (…) não havendo qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação”.
Mais ainda, afirma-se em decisões do CAAD que a autonomia inerente às tributações autónomas “restringe-se às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efetuado nos termos do artigo 90.º”, ou seja que “as diferenças entre a determinação do montante resultante de tributações autónomas e o resultante do lucro tributável, assenta na determinação da matéria tributável e nas taxas, previstas nos Capítulos III e IV do CIRC, mas não nas formas de liquidação, que se prevêem no Capítulo V do mesmo Código e são de aplicação comum às tributações autónomas e à restante matéria tributável de IRC”.
Por fim concluindo que “sendo para o artigo 90.º (…) que remete no artigo 4.º, n.º1, do SIFIDE, não se vê suporte legal para efetuar uma distinção entre a colecta proveniente das tributações autónomas e a restante colecta de IRC, pelo facto de serem distintas as taxas e as formas de determinação da matéria tributável”, considerando assim que pode existir coleta de IRC “mesmo sem lucro tributável, designadamente por força das tributações autónomas”.
A requerente menciona o desenvolvimento recente do tema, nos termos do n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC (introduzido com a LOE de 2016): “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”
Conforme resulta do disposto no art.º 135.º, da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (LOE), a redação dada pelo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC tem natureza interpretativa.
No entender da requerente, o art.º 90.º do CIRC não foi alterado e continua a referir-se à coleta do IRC. Atendendo ao elemento literal da alínea c) do n.º 2 do art.º 90.º do CIRC, entende-se, que ao montante da coleta de IRC apurado, são dedutíveis os benefícios fiscais. Ora, para a Requerente, na leitura das regras aplicáveis à data dos factos, não encontraria respaldo uma qualquer interpretação semelhante àquela que o legislador pretende agora fazer passar como meramente interpretativa.
Esta lei deverá considerar-se inovadora, por pretender aplicar a uma situação passada uma interpretação que não poderia ser retirada do texto da lei vigente na altura, violando restrições de retroatividade que ultrapassam a mera interpretação e concretização legislativas. O n.º 21.º do art.º 88.º do CIRC será, por inteiro, um novo preceito, que não existia previamente à LOE de 2016 e cuja aplicação terá de se limitar aos novos casos - cfr. neste sentido a decisão arbitral proferida no âmbito do Proc.º n.º 775/2015.
Assim, ao conferir-se o eventual alcance de norma interpretativa ao n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, coloca-se em causa a proibição de retroatividade que está consagrada no n.º 3 do art.º 103.º da Constituição da República Portuguesa.
Pedido
Formula, na sequência e em consequência do alegado, o seguinte concreto pedido de pronúncia:
a) Anulação da “(...)decisão da Autoridade Tributária, de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa do ato tributário, supra identificado em virtude de tal decisão se fundar em violação do disposto no art.º 90.º do Código do IRC e em consequência determinar a anulação das autoliquidações referentes ao exercício de 2011 com a consequente restituição do montante de € 278.067,73 (duzentos e setenta e oito mil, sessenta e sete euros e setenta e três cêntimos) respetivamente, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, previstos no art.º 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT (...)”;
b) “(...)Requer que, qualquer aplicação da norma - n.º 21 do artigo 88.º do CIRC – que implique uma interpretação da mesma no sentido da não dedutibilidade dos benefícios fiscais, nomeadamente a título de SIFIDE, por conta nas tributações autónomas, seja considerada inconstitucional, por violação do princípio da não retroatividade previsto no n.º 3 do artigo 103º da Constituição da República Portuguesa, que expressamente se vem desde já alegar(...)”.
Incompetência material do Tribunal Arbitral
Ulteriormente, em resposta à exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral alegada pela AT, entende a requerente que a melhor leitura da alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT é a de que se se permite ao tribunal arbitral apreciar a eventual ilegalidade da própria liquidação, essa competência abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir. A via arbitral, na questão da apreciação de legalidade de atos tributários, terá o mesmo âmbito que está estabelecido para a via judicial, pelo que, sendo os tribunais competentes para a apreciação da legalidade de uma decisão de um pedido de revisão também o tribunal arbitral o será, por força do disposto no art.º 2º do RJAT, quando o pedido envolva a apreciação da legalidade do ato tributário.
3. A Requerente juntou 6 (seis) documentos e arrolou testemunhas.
4. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
5. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 11 de novembro de 2016.
6. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
7. Em 28 de dezembro de 2016, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
8. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 12 de janeiro de 2017.
9. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta em 24 de fevereiro de 2017 na qual, para além de deduzir matéria de exceção [incompetência material do Tribunal Arbitral], impugna, susbsidiária e especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente, concluindo pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
10. A Requerida considerou as questões objeto dos autos, meramente de direito ou jurídicas, não tendo requerido quaisquer outros meios de prova para além da cópia do processo administrativo instrutor, que juntou aos autos em 1-3-2017.
11. No essencial e também de forma breve, alegou a AT na resposta:
Exceção: Incompetência material
A AT começa por invocar uma exceção de incompetência material do tribunal arbitral.
No seu entender, dispõe-se no artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011 que a vinculação da AT à jurisdição referida tem por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, «com excepção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário»
Pelo que será constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa mesma medida ao recurso jurisdicional pleno [cf. artigo 124.º, n.º 4, alínea h) da Lei n.º 3-B/2010 e artigos 25.º e 27.º do RJAT, que impõe uma restrição dos recursos da decisão arbitral].
Impugnação
Quanto à questão central suscita pela requerente, entende a AT que os números 3 e 4 do artigo 4º do diploma que rege o SIFDE, onde se explicita que:
«2 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior.
3 - As despesas que, por insuficiência de colecta, não possam ser deduzidas no exercício em que foram realizadas poderão ser deduzidas até ao 6.º exercício imediato»,
em conjugação com o artigo 5º-a), da sobredita lei reguladora do SIFIDE, não permite sufragar a tese da Requerente.
Resulta, em síntese, no que ao caso interessa, que os montantes em que se traduz o SIFIDE são deduzidos “aos montantes apurados nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência” e na liquidação respeitante ao período de tributação em que se realizem as despesas para o efeito elegíveis.
Para a AT, a colecta a que se refere o artigo 90º quando a liquidação deva ser feita pelo contribuinte (situação que ocorre nos autos), é apurada com base na matéria colectável que conste nessa liquidação/autoliquidação. (cf. artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do CIRC. Elucidativo da circunstância de que o crédito em que se traduz o SIFIDE é deduzido, e apenas, à coleta assim apurada, ou seja, à coleta apurada com base na matéria coletável, seria o disposto no artigo 5º, alínea a), da lei reguladora do SIFIDE, que impede que os créditos dele decorrente sejam deduzidos quando o lucro tributável seja determinado por métodos indiretos.
E muito menos no que respeita à consideração das tributações autónomas, que, como é sabido, são determinadas de forma autónoma e distinta do apuramento levado a efeito nos termos que decorrem do artigo 90 ° do CIRC. As tributações autónomas, de acordo com a sua regulamentação inicial, constituiriam como que um sucedâneo do regime da não dedutibilidade anteriormente previsto no CIRC.
Com efeito, alega a AT, que na sua génese estava a não-aceitação fiscal de uma percentagem de certas despesas, constituindo as tributações autónomas uma forma alternativa e mais eficaz de correção dos custos sempre que se trate de áreas mais propícias à evasão fiscal (ajudas de custo, despesas de representação, viaturas, etc.). Tributações essas, que penalizam determinados encargos incorridos pelas empresas e apuram-se de forma totalmente independente do IRC.
É a própria designação das mesmas (tributação autónoma) que evidenciaria a autonomia que as mesmas possuem em relação ao IRC. Por isso, não obstante revestirem a mesma natureza do IRC, as regras aplicáveis às tributações autónomas não devem ser contrárias ao espírito que as determinou. E, por forma a respeitar esse desígnio que as consagrou, é necessário avaliar a intenção do legislador tendo em consideração todos os factores.
Contrariamente ao disposto no artigo 12.° e na alínea a) do n.º 1 do artigo 23.°- A do CIRC, nos n.º 1 e 2 do artigo 90.° inexiste qualquer referência a tributações autónomas, o que, desde logo, face à natureza dual do sistema, levanta fundadas objeções quanto à consideração do valor das tributações autónomas para efeitos das deduções previstas no n.º 2 do citado artigo 90.°.
Nesse sentido, seria contrário ao espírito do sistema, permitir que, por força das deduções a que se refere o n.º 2 do artigo 90.° do CIRC, fosse retirado, ou pelo menos desvirtuado, às tributações autónomas esse carácter anti-abusivo que presidiu à sua implementação no sistema do IRC.
Isto posto, resulta claro que não devem as tributações autónomas ser consideradas para efeitos das deduções referidas no n.º 2 do artigo 90.° do CIRC, como pretende a Requerente.
12. Por despacho de 13-3-2017, foi dispensada, por inútil, a reunião prevista no artigo 18º, do RJAT e igualmente dispensada, pelo mesmo motivo, a produção de prova testemunhal, tendo sido fixado prazo para alegações finais escritas das partes.
13. Ambas as partes apresentaram as suas alegações no prazo fixado, alegações que, no essencial, mantêm as posições assumidas nos respetivos articulados.
14. Por despacho de 23-4-2017, foi fixada data para a decisão final, em cumprimento do que dispõe o artigo 18º-2, do RJAT e tendo em vista o cumprimento, pela demandante, do disposto no artigo 4º-3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente, relativamente ao período de tributação de 2011, era a sociedade dominante de um grupo de sociedades tributado ao abrigo do RETGS (“Grupo”), nos termos do artigo 69.º e seguintes do Código do IRC, sendo o Grupo composto pelas seguintes entidades:
-
A Requerente, enquanto sociedade dominante do Grupo;
-
B…, S.A., com o NIPC…;
-
C…, S.A., com o NIPC…;
-
D…, S.A., com o NIPC…;
-
E…, Lda., com o NIPC…;
-
F… Unipessoal, Lda., com o NIPC…;
-
G…, Lda., com o NIPC… .
b) A Requerente assumia e assume a forma jurídica de uma sociedade anónima, de direito português, com sede e direção efetiva em Portugal e qualificada, em sede de IRC, como sujeito passivo residente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRC.
c) A Requerente tem como atividade principal a gestão de participações sociais em outras sociedades, como forma indireta do exercício de atividades económicas, de acordo com a Código de Atividade Económica – Revisão 3 (“CAE”), n.º 64202 e encontra-se sujeita ao regime geral de tributação de IRC, adotando um período de tributação coincidente com o ano civil. [Nos termos do artigo 70.º do Código do IRC, incumbe pois à Requerente apurar o lucro tributável do grupo fiscal através da soma algébrica dos lucros tributáveis e prejuízos fiscais decorrentes das declarações periódicas individuais das sociedades pertencentes ao Grupo].
d) No cumprimento tempestivo das obrigações declarativas legalmente impostas a Requerente submeteu a Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC (“Declaração Modelo 22”) do Grupo no dia 24 de maio de 2012, com referência ao período de tributação de 2011, resultando desta Declaração o apuramento do montante de imposto a pagar de €166.907,44 (cento e sessenta e seis mil, novecentos e sete euros e quarenta e quatro cêntimos).
e) No dia 16 de abril de 2013, a Requerente procedeu à substituição da Declaração Modelo 22 de IRC do Grupo referente àquele período (1-1-2011 a 31-12-2011), ao abrigo do n.º 2 do artigo 122.º do Código do IRC, e cujo detalhe se reproduz em seguida de forma simplificada:
f) Na demonstração simplificada da liquidação de imposto acima, o montante de imposto a pagar pela Requerente ascendeu a € 166.907,44 (cento e sessenta e seis mil, novecentos e sete euros e quarenta e quatro cêntimos), montante que foi integralmente pago;
g) A invariabilidade no valor total de imposto a pagar entre Declarações Modelo 22 justifica-se pelo facto de a alteração ter sido registada no valor do pagamento especial por conta, o qual aumentou de € 266.065,37 (duzentos e sessenta e seis mil, sessenta e cinco euros e trinta e sete cêntimos) para € 319.180,00 (trezentos e dezanove mil, cento e oitenta euros) mas que, sem valor de coleta ao qual pudesse ser abatido, não chegou a deduzir-se.
h) No anexo D da Declaração Modelo 22 de substituição, relativa ao período de tributação de 2011, o montante de crédito fiscal decorrente do “SIFIDE I 2010” que transitou para 2011, atribuído pela Comissão Certificadora para os Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial, ascendeu a € 665.993,89 (seiscentos e sessenta e cinco mil, novecentos e noventa e três euros e oitenta e nove cêntimos), [no caso de ser deferido pedido de revisão oficiosa apresentado no SF Amadora-…, em 29-5-2015].
i) Com referência ao período de tributação de 2010, a Requerente utilizou parte do crédito fiscal disponível, no montante de € 53.114,63 (cinquenta e três mil, cento e catorze euros e sessenta e três cêntimos), como dedução à coleta (contudo, considerando esta apenas composta pela coleta do IRC propriamente dito, após dedução do crédito por dupla tributação internacional), tendo o remanescente transitado para 2011.
j) Em 30-3-2016, a Requerente apresentou um pedido de revisão (oficiosa) da autoliquidação de IRC relativo ao período de tributação de 2011, nos termos do artigo 78º-1 e 2 e 54º - 1/c) ,da LGT, [semelhante àquele que ora serve de base ao presente Pedido de Pronúncia Arbitral], no sentido de que fossem deduzidos à coleta total de IRC do período de tributação de 2010 (na qual a requerente incluiu a derrama estadual e tributação autónoma) o valor disponível de SIFIDE, que se encontrava disponível naquele período;
k) Sobre este este pedido não havia incidido qualquer despacho à data de 26-10-2016 [data da entrada deste pedido de pronúncia arbitral no CAAD];
l) O sistema informático da AT não permite a dedução no “Campo 365 da declaração mod. 22”de créditos fiscais decorrentes do “SIFIDE – I” ao montante pago a título de tributações autónomas [no caso, €278.067,73];
l) A B… S.A., empresa integrante do grupo da Requerente que originou o benefício fiscal do SIFIDE I 2010, não era devedora ao Estado e à Segurança Social de quaisquer impostos ou contribuições, conforme resulta das certidões em anexo aos autos;
2. Não há outros factos essenciais para o objeto do litígio, provados ou não provados.
3. Para formar a sua convicção relativamente ao sobredito quadro factual, fundou-se o Tribunal na análise crítica dos documentos juntos aos autos e na cópia do processo administrativo instrutor junto pela AT, em articulação com a posição não dissonante das partes no respeitante a esses factos.
II. FUNDAMENTAÇÃO (cont)
O Direito
4. Questão prévia/exceção: A competência material do Tribunal Arbitral
Tendo em conta que o âmbito de competência material do tribunal é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (art. 13.º do CPTA aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT) e que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é de conhecimento oficioso [art. 16.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT], importa apreciar, primacialmente, a exceção dilatória suscitada pela Requerida sobre a incompetência do tribunal arbitral.
Alega a AT ser o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para conhecer do pedido.
E os fundamentos que, no essencial, invoca resultam da interpretação que faz da Portaria nº 112-A/2011, que define, no artigo 2º- o âmbito e termos da vinculação da AT à jurisdição arbitral tributária e, mais concretamente, quando exceciona desse âmbito as pretensões dos contribuintes relativas à declaração de ilegalidade de”(...) atos de autoliquidação, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º, do CPPT (...)” [sublinhado e grifado do Tribunal].
Assim é que, segundo a AT, só por força de interpretação, ainda que extensiva, inadmissível à luz dos princípios constitucionais, maxime, da legalidade (arts 3º-2 e 266º, da Constituição), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários (artigo 30º-2, da LGT), poderia resultar ampliada a vinculação legal da AT, com renúncia ao recurso jurisdicional pleno (artigos 124º-4/h), da Lei nº 3-B/2010 e 25º e 27º, do RJAT).
Ou seja e no essencial: a posição da AT reconduz-se à consideração de que só o recurso à via administrativa prévia necessária para a impugnação por via arbitral de atos de autoliquidação, cumpre o requisito previsto na portaria de vinculação [Portaria nº 112-A/2011], se tal recurso revestir a forma de reclamação graciosa
E estriba esta sua conclusão após ponderar que o disposto no artigo 2.º, alínea a) da Portaria 112-A/2011 visa a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração esteja cometida à AT e referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, «com excepção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário»
A essa luz seria constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que ampliasse ou estendesse a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa mesma medida ao recurso jurisdicional pleno [cf. artigo 124.º, n.º 4, alínea h) da Lei n.º 3-B/2010 e artigos 25.º e 27.º do RJAT, que impõe uma restrição dos recursos da decisão arbitral].
Vejamos:
É efetivamente objeto dos autos um pedido de pronúncia arbitral relativo a ato de autoliquidação - a que a requerente imputa o vício de ilegalidade - sem que previamente houvesse recurso à via administrativa nos termos dos artigos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, recurso esse exigível pelos termos da vinculação da AT à jurisdição arbitral pela Portaria citada, nº 112-A/2011.
O âmbito da jurisdição arbitral tributária resulta, em primeira linha, do disposto no art. 2.º, n.º 1 do RJAT, que enuncia os critérios de determinação material da competência dos tribunais arbitrais nos seguintes termos:
“A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.
Em face deste dispositivo, deve-se entender que a competência dos tribunais arbitrais “restringe-se à atividade conexionada com atos de liquidação de tributos, ficando fora da sua competência a apreciação da legalidade de atos administrativos de indeferimento total ou parcial ou de revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da Administração Tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação do ato de liquidação, a que se refere a alínea p) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT” (Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária in Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, p. 105).
A apreciação da competência do tribunal arbitral envolve um juízo sobre a adequação ao caso sub juditio do meio processual da ação administrativa especial ou do processo de impugnação judicial, em atenção ao disposto no art. 97.º do CPPT, que procede à definição dos respetivos campos de aplicação distinguindo a “impugnação dos atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação” (al. d) do n.º 1) e o “recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, bem como de outros atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação” (al. p) do n.º 1), sendo que, nos termos do n.º 2 do art. 97.º, o “recurso contencioso dos atos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação, da autoria da administração tributária, compreendendo o governo central, os governos regionais e os seus membros, mesmo quando praticados por delegação, é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos”.
Para concretizar tal distinção entre o âmbito de aplicação destes meios processuais, que, por força da al. a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT, possui relevo na definição da competência dos tribunais arbitrais tributários, constitui orientação jurisprudencial consolidada que “a utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (atualmente ação administrativa especial, por força do disposto no art. 191.º do CPTA) depende do conteúdo do ato impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial e se não comporta uma apreciação desse tipo é aplicável o recurso contencioso/ação administrativa especial” (cfr. o acórdão do STA de 25.6.2009, proc. n.º 0194/09).
Desta forma, tendo presentes estes princípios básicos, para apurar a competência do tribunal arbitral cabe averiguar o conteúdo do ato impugnado, de modo a verificar se comportou a apreciação de um ato de liquidação.
Para o efeito, como resulta da expressão “apreciação” utilizada na alínea d) do n.º 1 do art. 97.º do CPPT, basta que, no ato em apreço, se tenha avaliado ou examinado, direta (ato primário) ou indiretamente (atos de segundo ou terceiro grau) a “legalidade do ato de liquidação”, mesmo que essa apreciação não seja o fundamento da decisão administrativa (Cfr., neste sentido, v. g., o acórdão arbitral de 06/12/2013, proferido no processo n.º 117/2013-T).
Todavia, a questão essencial aqui não será essa mas antes a de saber se o recurso prévio à via administrativa como requisito essencial para impugnar por via arbitral o ato tributário sindicado, tem de revestir obrigatoriamente e sempre a forma de reclamação graciosa ou, pelo contrário, se a pronúncia administrativa prévia pode concretizar-se em sede, v. g., de pedido de revisão de autoliquidação à luz dos artigos 78º-1 e 2 e 54º, da LGT.
Ou seja e em termos gerais a questão gira à volta do seguinte: o contribuinte pode impugnar administrativamente, por meio de reclamação graciosa os atos de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, tudo à luz do disposto nos artigos 68º e seguintes e 131º a 133º, do CPPT, sendo que do indeferimento expresso ou tácito, pode ainda ser apresentado recurso hierárquico, nos termos dos artigos 66º, 67º e 76º, do CPPT.
A par destes meios graciosos, encontra-se o pedido de revisão de ato tributário nos termos do artigo 78º, da LGT, tudo integrando aquilo que comummente se denomina atos de segundo e terceiro grau na medida em que comportam ou poderão comportar a apreciação da legalidade dos atos de primeiro grau, ou seja, as liquidações, autoliquidações, retenções na fonte e pagamentos por conta.
O objeto do processo arbitral tributário é o ato de primeiro grau, ou seja e duma forma geral e no âmbito da competência material dos Tribunais constituídos no âmbito do CAAD, os atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e pagamento por conta (cfr artigo 2º, do RJAT).
Já quanto aos atos de segundo e terceiro grau, sempre poderão ser arbitráveis na medida apenas em que comportem eles próprios a ilegalidade dos atos de liquidação em causa.
Tal como já foi entendido em diversas decisões de tribunais arbitrais deste CAAD (cfr., entre outras mais recentes, por exemplo, os acórdãos de 06/12/2013, proferido no proc. n.º 117/2013-T e de 23/10/2012, proc. n.º 73/2012-T, onde se convoca outra jurisprudência), e não se desconhecendo, muito embora, a existência de entendimento em contrário (vd. o acórdão de 09/11/2012, proc. n.º 51/2012-T), este tribunal também entende que deve considerar-se incluída nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais a apreciação de atos de indeferimento, expresso ou tácito, de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação na medida em que, por um lado, a fórmula “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT, compreende quer os casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos, quer os casos em que é impugnado um ato de segundo ou terceiro grau, que mantenha um ato de liquidação, não declarando a sua ilegalidade, e, por outro lado, o teor da al. a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, para que remete o n.º 1 do art. 4.º do RJAT, não deve ser interpretado, em atenção à sua ratio legis, no sentido de excluir o indeferimento de pedido de revisão oficiosa, dado que na revisão oficiosa é proporcionada à Administração Tributária a oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, não sendo razoável que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa, pelo que não se justifica afastar a jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa sem prévia reclamação graciosa, com o que se criaria, sem fundamento bastante, uma nova situação de reclamação graciosa necessária privativa da jurisdição arbitral.
Todavia, insiste-se, não basta ser comprovado o recurso prévio à via administrativa por quaisquer dos meios mencionados, é também absolutamente necessário comprovar que houve efetiva ou presumida (no indeferimento tácito) apreciação pela Administração, do mérito dos pedidos. Requisito que, para efeitos de competência do Tribunal Arbitral, não é preenchido quando e se essa apreciação de legalidade foi liminarmente denegada por, v. g., extemporaneidade.
Se o preenchimento desse pressuposto de pronúncia administrativa prévia nas suas diversas formas, pudesse ser considerado independentemente duma apreciação de mérito e, designadamente, quando fosse rejeitado ou indeferido liminarmente por intempestividade, estaria desse modo encontrada a forma de abertura da via arbitral: bastaria a apresentação dum pedido de reclamação ou revisão manifestamente extemporâneo e, denegado o pedido, apresentar o requerimento de pronúncia arbitral sem risco de inadmissibilidade por incompetência material do Tribunal Arbitral.
Não foi, naturalmente, esse o objetivo do legislador da citada portaria quando redigiu a norma em causa, mas antes, e manifestamente, o que pretendeu excluir da jurisdição arbitral foi a apreciação e decisão sobre, designadamente e para o caso ora em análise, a ilegalidade da autoliquidação de impostos sem antes ter sido apreciado o mérito dessa pretensão pela Administração Fiscal através dos mecanismos de recurso designadamente os previstos nos artigos 131º a 133º, do CPPT.
Destarte e em conclusão: é este Tribunal Arbitral materialmente competente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub juditio, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011 dos artigos 576º, n.º2 e 577º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29º, nº1, alíneas a) e e) do RJAT.
II FUNDAMENTAÇÃO
O Direito (cont.)
5. O mérito do pedido
À data dos factos, rezava assim o artigo 88º do CIRC:
“Artigo 88.º
Taxas de tributação autónoma
1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos do artigo 23.º
2 — A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.
3 - São tributados autonomamente à taxa de 10 % os encargos efectuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjectivamente e que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja igual ou inferior ao montante fixado nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica.
4 - São tributados autonomamente à taxa de 20 % os encargos efectuados ou suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior ao montante fixado nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º.
5 — Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.
6 — Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afectos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo, bem como as depreciações relacionadas com viaturas relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.
7 - São tributados autonomamente à taxa de 10 % os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação, considerando-se como tal, nomeadamente, as despesas suportadas com recepções, refeições, viagens, passeios e espectáculos oferecidos no País ou no estrangeiro a clientes ou fornecedores ou ainda a quaisquer outras pessoas ou entidades.
8 — São sujeitas ao regime do n.º 1 ou do n.º 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respectivamente, 35% ou 55%, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, tal como definido nos termos do Código, salvo se o sujeito passivo puder provar que correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado.
9 — São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturados a clientes, escriturados a qualquer título, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 45.º suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que os mesmos respeitam.
10 — (Revogado)
11 — São tributados autonomamente, à taxa de 20%, os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.
12 — Ao montante do imposto determinado, de acordo com o disposto no número anterior, é deduzido o imposto que eventualmente tenha sido retido na fonte, não podendo nesse caso o imposto retido ser deduzido ao abrigo do n.º 2 do artigo 90.º
13 — São tributados autonomamente, à taxa de 35 %:
a) Os gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a concretização de objectivos de produtividade previamente definidos na relação contratual, quando se verifique a cessação de funções de gestor, administrador ou gerente, bem como os gastos relativos à parte que exceda o valor das remunerações que seriam auferidas pelo exercício daqueles cargos até ao final do contrato, quando se trate de rescisão de um contrato antes do termo, qualquer que seja a modalidade de pagamento, quer este seja efectuado directamente pelo sujeito passivo quer haja transferência das responsabilidades inerentes para uma outra entidade;
b) Os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a (euro) 27 500, salvo se o seu pagamento estiver subordinado ao diferimento de uma parte não inferior a 50 % por um período mínimo de três anos e condicionado ao desempenho positivo da sociedade ao longo desse período.
14 - As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores.”
Relativamente ao denominado SIFIDE (sigla de “sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial[1]), nas circunstâncias de tempo que relevam para os presente autos, relembra-se que, segundo o artigo 4º (âmbito da dedução) do diploma citado em nota de rodapé, «os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal ou não, uma atividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objecto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação de 1 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2015, numa dupla percentagem:
a) Taxa de base – 32,5% das despesas realizadas naquele período;
b) Taxa incremental – 50% do acréscimo das despesas realizadas naquele período em relação à média aritmética simples dos dois exercícios anteriores, até ao limite de (euros) 1 500 000.
2 – (...)
3 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior.
4 - As despesas que, por insuficiência de colecta, não possam ser deduzidas no exercício em que foram realizadas poderão ser deduzidas até ao 6.º exercício imediato».
Por sua vez, dispõe o artigo 90º, do CIRC:
«1. A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120º e 122º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) (...)
c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.
2 – Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) A correspondente à dupla tributação internacional;
b) A relativa a benefícios fiscais;
c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106ª;
d) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensaçãoo ou reembolso nos termo da legislaçãoo aplicável.
(...)
6. Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no número 2 relativas a cada uma das sociedades são efetuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do nº 1.
(...)».
Ou seja e em síntese: os valores que traduzam o benefício fiscal em sede de SIFIDE são deduzidos “aos montantes apurados nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência” (sublinhados nossos) e na liquidação respeitante ao período de tributação em que se realizem as despesas para o efeito elegíveis e que, na falta ou insuficiência de colecta apurada nesses termos, as despesas que não possam ser deduzidas no exercício em que forem realizadas «poderão ser deduzidas até ao 6.º exercício imediato».
Pois bem, a coleta a que se refere o artigo 90º quando a liquidação deva ser feita pelo contribuinte (situação que ocorre nos autos), é apurada com base na matéria colectável que conste nessa liquidação/autoliquidação [cf. artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do CIRC]. Sendo o crédito em que se traduz o SIFIDE deduzido apenas à coleta assim apurada, ou seja, à coleta apurada com base na matéria colectável [é o disposto no artigo 5º, alínea a), da Lei reguladora do SIFIDE, impedindo esta expressamente que os créditos dele decorrente sejam deduzidos quando o lucro tributável seja determinado por métodos indiretos].
6. Da natureza da tributação autónoma em sede do IRC: uma perspetiva geral
Em dissertação académica recente sobre o tema da tributação autónoma em sede de IRC, Maria Rita Mesquita [“A Tributação autónoma no CIRC: A sua (in)coerência” Dissertação de Mestrado em Direito Fiscal, Universidade Católica, Faculdade de Direito, Porto, Maio de 2014, p.42 e segs, no capítulo “A tributação autónoma e a conformidade com o princípio da coerência”], sustenta a seguinte análise que, com algumas adaptações que efetuámos ao texto que, no essencial acompanhamos:
“O princípio da coerência no Direito Fiscal tem em conta a congruência entre os diferentes impostos, numa integração lógica com o sistema jurídico global, e a concreta estruturação de cada imposto em particular. Segundo Casalta Nabais, no âmbito dos limites materiais da tributação, devem ser atendidos os limites intra-sistemáticos, apreciando a coerência entre os diferentes impostos e no contexto do sistema fiscal, e os limites extra-sistemáticos, ligados ao sistema jurídico global.
Este princípio não é expressamente consagrado na CRP e, por isso, sofre limitações na sua aplicação. Isto significa que o princípio da coerência não tem autonomia, não pode ser diretamente invocado e a sua violação, só por si, não provoca a invalidade de determinada lei fiscal. No entanto, o seu desrespeito poderá ser um indício de violação de outros princípios, tais como o princípio da igualdade, na forma da capacidade contributiva, ou do princípio da proporcionalidade e razoabilidade.
No plano do sistema politico-constitucional, apontámos como sendo incoerente a recente tendência para baixar o IRC e mantendo no nosso ordenamento um regime de tributação que tem um significativo impacto nas empresas. A TA é, além disso, uma exceção à consagração constitucional do princípio de que as empresas são tributadas fundamentalmente pelo rendimento real, que se justifica por razões de combate à evasão fiscal.
Já referimos com detalhe que o regime da TA é uma exceção ao princípio da capacidade contributiva, porque não tributa o rendimento. Entendemos que a TA deve aproximar-se mais de uma verdadeira exceção e não ser afinal quase um imposto autónomo.
Vimos que, apesar de a TA incidir sobre certas despesas, não pode ser considerada como um imposto sobre o consumo. No âmbito do IRC, a TA relaciona-se com este imposto no enquadramento e definição de certos conceitos, como é o caso da determinação de quem é sujeito passivo e de quais as despesas dedutíveis, no entanto, já se afasta do IRC relativamente à base de incidência, e é devida independentemente do IRC a pagar.
O princípio da capacidade contributiva implica o chamado princípio do rendimento do líquido, segundo o qual, a cada categoria de rendimento devem ser deduzidas as despesas específicas para a sua obtenção. Muitos destes encargos dizem respeito ao âmbito de um ato normal da empresa, sendo alguns reconhecidos como necessários à sua atividade e, por isso, dedutíveis. A incidência da TA sobre despesas dedutíveis contraria o princípio do rendimento líquido.
Não encontramos no regime da TA uma unidade que permita identificar a sua natureza. Desde logo, não existe uma incidência comum, pois a tributação incide sobretudo sobre despesas, mas prevê-se também a tributação na distribuição de lucros. A TA tributa tanto despesas dedutíveis como não dedutíveis e tem taxas diferenciadas. Em determinados casos, o regime deste instituto prevê até taxas diferentes em relação às mesmas despesas.
A TA pode colocar as empresas numa situação de desigualdade, pois algumas das despesas sujeitas a TA são essenciais para a obtenção de rendimentos. Basta pensarmos em duas empresas que à partida poderiam ter a mesma força económica mas uma delas tem interesses económicos longe da sua sede e por isso tem despesas de representação elevadas, sujeitas a TA.
Além disso, a TA cria desequilíbrios na igualdade entre as empresas ao permitir apenas a algumas a opção pelo regime simplificado, com a consequente não sujeição a TA sobre algumas despesas. Há igualmente discriminação na tributação das compensações e bónus a administradores, gerentes ou gestores. Podemos verificar as taxas concretamente estabelecidas não se apresentam proporcionais e razoáveis, sobretudo nos casos em que a taxa aplicável passou a ser igual ou superior à do IRC (23%).
A TA deve compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva consagrado a propósito do imposto os rendimentos das empresas, expressão de que ninguém pode ser obrigado a contribuir para além da sua capacidade, devendo reger-se apenas pelo seu propósito de combate a formas de evasão fiscal.”
Quer isto dizer que, sustentar, mesmo atualmente, uma identidade, semelhança ou subsunção analítica ou conceitual entre IRC e tributação autónoma (TA) está longe de ser unânime, indiscutível ou até evidente. As múltiplas facetas que, num plano geral, jurídico-económico, se podem encontrar nas TA conduzem a que não seja nada fácil dar-lhes uma arrumação definitiva e óbvia quanto ao assunto em causa nos autos.
De referir, ainda, que no Acórdão n.º 310/12, o Tribunal Constitucional concluiu:
“Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo."
Ou seja, e num plano analítico, reconduzir as TA a uma figura assente numa lógica que se impõe como natural e seja economicamente racional, não se afigura ao tribunal como simples ou evidente. Isto para dizer que, neste plano geral, assumir como indiscutível que as TA “são IRC”, ou fazem inequivocamente parte da coleta do IRC, carece de reflexão e não se impõe conceitualmente como indiscutível. (Adiante já veremos a questão no plano legal das normas do CIRC)
7. A dedutibilidadede certas figuras fiscais (v.g., benefícios fiscais, SIFIDE, pagamento especial por conta) à coleta das tributações autónomas - uma apreciação da lei, da doutrina e da jurisprudência antes da alteração ao artigo 88 do CIRC no OE para 2016.
A) Breve excurso doutrinal
Durante largos anos de vigência das TA – que, recorde-se, se incorporaram no CIRC pela Lei 30-G/2000, não se suscitou, tanto quanto seja do conhecimento deste tribunal, a questão de saber se deveriam integrar a coleta do IRC. O desenho do quadro 10 da declaração modelo 22 do IRC separava claramente a coleta do IRC propriamente dito do montante devido a título de TA (tributações autónomas), e tal era, julgamos que pacificamente, seguido pela prática empresarial que interpretava as disposições do CIRC aquando do preenchimento da dita declaração fiscal.
A título de exemplo, da leitura de um dos manuais de referência sobre a interpretação das disposições do CIRC que deveriam presidir ao preenchimento das declaração modelo 22 do IRC, H. Quintino Ferreira (“A determinação da matéria coletável do IRC “, 14 ª edição, 2001, Rei do Livros, p.238 e seguintes) resulta que nenhuma dúvida se suscita sobre a não inclusão das TA, aí apuradas segundo a lei então em vigor, na coleta do IRC, no exemplo numérico aí extensamente desenvolvido.
De igual modo, J. Alberto Pinheiro Pinto, em “Fiscalidade”, 5ª edição, 2011, Areal Editores, refere (p. 265) que “(...)a coleta do IRC (decorrente da aplicação da taxa é matéria coletável...)” Ora, em sede de IRC, face à organização interna do Código, matéria coletável tem um sentido bem preciso, não se cruzando com as TA.
Refere mais este autor, ainda em 2011, que “algumas despesas estão sujeitas a uma tributação autónoma em IRC. No fundo não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas coletivas e não despesas por elas efectuadas...”
Também J. Ricardo Catarino e V. Guimarães (Lições de Fiscalidade, Almedina, 2012, p. 284), referem que: “ À coleta, determinada mediante a aplicação da taxa à matéria coletável são efetuadas as seguintes deduções…”. Ou seja, uma vez mais, a coleta é entendida como resultando da aplicação da taxa do IRC à matéria coletável, tudo conceitos bem precisos e distintos das TA.
De mencionar, ainda que J. Casalta Nabais e J. L. Saldanha Sanches, nos seus manuais de Direito Fiscal, não equiparavam conceitualmente as TA a componentes do IRC e que deveriam por isso integrar a coleta normalmente apurada deste imposto, ou seja a que deriva da tributação do rendimento. Saldanha Sanches sublinhava até a natureza dual do IRC, à medida que se alarga o campo das TA.[2]
Por fim, refira-se que Fernando Araújo e António Oliveira, já em 2014, defendem que “não é, pois, possível enquadrar as tributações autónomas quer como imposto direta ou indiretamente incidente sobre o lucro quer (…) como uma subespécie do IRC”[3]
Como se passou então destas perspetivas, ainda muito recentemente sustentadas, a uma corrente jurisprudencial que passou a considerar que as TA integram a coleta do IRC para efeitos de lhes serem dedutíveis montantes a título de benefícios fiscais ou de pagamento especial por conta (PEC)? Isso veremos de seguida.
B) Os pedidos sobre como se deveria apurar a coleta do IRC, as decisões do CAAD, e seu fundamento, antes da alteração ao artigo 88º, do CIRC no OE para 2016
B.1 Perspetiva dominante nas decisões
No processo n.º 769/2014-T a propósito da dedução à colecta do SIFIDE, concluiu-se do seguinte modo (subl. do tribunal):
“(…) a questão essencial que é objecto do presente processo é a de saber se os créditos fiscais que, no ano de 2011, foram reconhecidos à Requerente, em sede de SIFIDE, podem ser deduzidos à colecta produzida pelas tributações autónomas que a oneraram nesse exercício fiscal, na parte em que não podem ser deduzidos à restante colecta do IRC.
Há tributações autónomas previstas no CIRC (artigo 88.º do CIRC) e tributações autónomas previstas no CIRS (artigo 73.º do CIRS). A colecta por elas proporcionada constitui colecta do imposto respectivo, estando sujeita à generalidade de normas previstas nos códigos referidos, potencialmente aplicáveis.
Quanto ao IRC, para além da unanimidade da jurisprudência, o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a), do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não deixa margem para qualquer dúvida razoável, corroborando o que já anteriormente resultava do teor literal do artigo 12.º do mesmo Código.
(…) o diploma que aprovou o SIFIDE não refere que os créditos dele provenientes são dedutíveis a toda e qualquer colecta de IRC, antes define o âmbito da dedução aludindo, no seu n.º 1 do artigo 4.º, «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência». O n.º 3 do mesmo artigo confirma que é ao montante que for apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC que releva para concretizar a dedução ao dizer que «a dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior».
Assim, a questão que interessa resolver, é, independentemente da natureza do imposto a que se referem as tributações autónomas, a de saber se o montante das tributações autónomas é «apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC», pois, se o for, terá de se concluir que, para determinar o limite da dedução, se atende à colecta proveniente das tributações autónomas.
O artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações prevista no Código, incluindo a liquidação adicional (n.º 10). Por isso, ele aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária nos termos do artigo 90.º do CIRC, não havendo qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação (sublinhado nosso).
A sua autonomia restringe-se às taxas aplicáveis e à respectiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efectuado nos termos do artigo 90.º. (…) Por isso, não se vê fundamento legal, designadamente à face da intenção legislativa que é possível detectar, para afastar a dedutibilidade do benefício fiscal do SIFIDE à colecta das tributações autónomas que resulta directamente da letra do artigo 4.º, n.º 1, do respectivo diploma, conjugado com o artigo 90.º do CIRC.”
E no mesmo sentido se pronunciou o acórdão arbitral proferido no processo n.º 219/2015-T.
Como se observa, e a decisão citada vinca, “(...)a questão que interessa resolver, é, independentemente da natureza do imposto a que se referem as tributações autónomas, a de saber se o montante das tributações autónomas é «apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC”.
Em suma, a conclusão segundo qual a liquidação das TA teria de ser feita nos termos do artigo 90º do CIRC – ou então considerar-se que não havia norma que as suportasse – levou a esta corrente jurisprudencial que passou a interpretar as normas do CIRC como suportando deduções ao valor cobrado (designado de coleta) das TA. Porém, como a seguir se verá, existiram decisões noutro sentido, embora claramente minoritárias.
B.2 Outras perspetivas em sede de decisão arbitral
Se é certo que a perspetiva que se acabou de transcrever, tendo por base os exemplos dos processos 769/2014-T e 219/2015-T (e de outros que se poderiam acrescentar) se apresenta como claramente dominante, também é verdade que existiram processos onde, antes da LOE para 2016 ter modificado ao artigo 88º do CIRC, se decidiu contra a dedutibilidade do PEC ou do SIFIDE ao montante cobrado por via das TA.
Assim, as decisões proferidas nos processos 697/2014-T e 722/2015-T chegam à conclusão de indedutibilidade.
A última das decisões referidas fundamenta-o da seguinte forma:
“Concluiu-se que a coleta das tributações autónomas tem uma raiz diferente, que não pode, sob pena de subversão da ordem de valores, permitir a dedução de benefícios fiscais, sob pena de descaraterização dos princípios que especificamente se pretendem prosseguir. Com efeito, tendo o regime das tributações autónomas uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não se vê por que motivo lógico esse desincentivo poderia, depois, desvanecer-se, o que sucederia se fosse possível deduzir à coleta das tributações autónomas, incentivos fiscais, como a Requerente o pretende.
Essa possibilidade resultaria num duplo efeito estranho: de um lado poderia, no limite, eliminar a coleta resultante das tributações autónomas e, de outro, propiciaria a dedução de certo benefício fiscal (no caso, está em causa o SIFIDE, pelo cumprimento dos objetivos ou adoção das condutas fixadas na norma consagradora do direito ao benefício fiscal) a imposto que tem uma função especificamente anti abuso, de mitigação de comportamentos fiscal e socialmente indesejados. Da conjugação destas possibilidades resultaria um resultado contraditório, ilegal e anti ético, justamente porque a mesma lei fiscal permitiria, no quadro do mesmo sistema fiscal, desonerar o contribuinte do encargo do pagamento de um imposto que é justamente devido pela adoção de condutas abusivas, indesejadas e desincentivadas (relevação como gastos das despesas previstas no art.º 88.º do CIRC).
Conclui-se, desta forma, pela ilegalidade da dedutibilidade do SIFIDE à coleta das tributações autónomas, sem necessidade de se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (OE para 2016), ao artigo 21.º do artigo 88.º do CIRC, que passa a ter o seguinte conteúdo: “21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.” Em suma, o legislador ao aditar este n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC com o conteúdo mencionado limitou-se a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes como ficou demonstrado pelo raciocínio supra exposto.
Termos em que, não assiste razão à Requerente, pelas razões e com os fundamentos invocados, no que respeita à possibilidade de dedução do benefício fiscal relativo ao SIFIDE à coleta das tributações autónomas.”
7.5 O impacto da Lei do OE para 2016, e da alteração ao artigo 88º do CIRC, no caso concreto
A) A lei OE para 2016
A Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (OE para 2016), alterou o artigo 88.º do CIRC, que passa a ter o seguinte conteúdo:
“21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”
O artigo 135º, da LOE atribui carácter interpretativo a tal norma.
B) Sobre a natureza interpretativa
O novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, vem estabelecer expressamente que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efectuadas quaisquer deduções».
Por outro lado, o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao atribuir natureza «interpretativa» àquele novo n.º 21.º do artigo 88.º, conjugado com o artigo 13.º do Código Civil (que é a única norma que define o conceito de lei interpretativa), tem incorporada uma intenção legislativa de aplicar o novo regime às situações anteriores em que não haja «efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza».
Ora Baptista Machado refere, sobre as leis interpretativas, seguinte:
“A razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado.
Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a lei nova que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora.
Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos:
- Que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta;
- E que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.”
Em face desta posição, e face à legislação vigente em 2011, pode aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC que se faz no artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, pois a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do benefício pretendido pela requerente ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor:
– A solução que resultava do teor literal do artigo 90.º, n.º 1, do CIRC era controvertida, como evidenciam os múltiplos litígios entre a AT e os contribuintes. Embora existindo um sentido largamente maioritário de decisão, pela dedutibilidade, é também certo que em decisões arbitrais atrás mencionadas (697/2014-T e 722/2015-T) se concluiu pela indedutibilidade. (Também na decisão 113-2015–T se conclui pela indedutibilidade, embora relativamente ao PEC). A solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia;
– O julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário optimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar, tal como se refere na decisão relativa ao processo 722-T-2015.
No caso dos autos pode concluir-se que se está perante uma lei interpretativa, pois a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.º, já anteriormente podia ser adoptada pelos tribunais, como foi pelos Tribunais Arbitrais que proferiram as decisões nos processos 697/2014-T e 722/2015-T.
Ainda a propósito da questão da lei interpretativa, acolhemos o que se escreveu na decisão arbitral proferida no processo do CAAD n.º 769/2015-T, (na parte geral que importa para este caso, já que o tema decidido neste processo visava o PEC e o pedido foi julgado improcedente tendo em conta a natureza interpretativa, que o tribunal sufragou, do art.º. 88º, nº 21, do CIRC): “Pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o legislador introduziu o n.º 21 ao art. 88.º do CIRC, com a seguinte redacção:“A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos no art. 89.º e tem por base os valores e taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”.
No art. 135.º da referida Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o legislador determinou que a norma em causa terá carácter interpretativo.
A verificar-se que, de facto, o novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC tem carácter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência, pelo que este tribunal terá que concluir pela não dedução do PEC aos montantes devidos a título de tributações autónomas, indeferindo a pretensão da Requerente. Isso mesmo resultaria da aplicação ao caso concreto do art. 13.º do Código Civil que “A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de natureza análoga”.
Antes de mais, há que referir que, embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroatividade da lei, previstos no art. 103.º da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende este tribunal que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas.
A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal - tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal - deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respectivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objetiva, subjetiva, temporal e territorial) do imposto.
Como defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, “A constitucionalidade das normas tributárias retroativas tem de ser aferida em termos diferentes consoante elas digam respeito aos elementos materiais que concorrem para a definição do tipo normativo tributário (incidência, isenções e taxa) ou a outras matérias (garantia dos contribuintes, procedimento de liquidação e de cobrança). A proibição constante do art. 103.º, n.º 3, da CRP diz respeito apenas às primeiras. A conformidade constitucional das segundas tem de ser equacionada à luz dos princípios materiais da segurança jurídica e da tutela da confiança que enformam o Estado de direito (art. 2.º da CRP)”.
Partindo-se da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efectivamente perante uma lei interpretativa.
Considera-se, assim, que, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos:
(i) Haver uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e,
(ii) O legislador consagra uma solução interpretativa que resolve a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.
Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos levados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC era controversa e incerta (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela própria Requerente), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efetivamente chegou, por exemplo, na decisão arbitral proferida no proc. 113/2015-T, de 30-12-2015. A solução não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.
Contra este entendimento não procederá a alegação da Requerente de que, para se estar perante uma efetiva lei interpretativa seria necessária uma corrente jurisprudencial que impusesse determinada solução ao legislador. E esta alegação não procede porquanto, como refere Baptista Machado “(…) Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. (…) Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.”
Face a tudo o que vem exposto supra, resta concluir pelo carácter interpretativo do n.º 21 do art. 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que, sendo diretamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o art. 13.º do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Requerente por determinar expressamente a referida norma que ao montante de tributações autónomas não serão efectuadas quaisquer deduções.”
Quanto à questão da segurança jurídica, de especial relevo por se tratar de um benefício fiscal, é entendimento do tribunal que a requerente não tinha, em face da redação da lei à data dos investimentos (2008, 2009 e 2010, cf,. documento 4 em anexo aos autos) que beneficiaram do SIFIDE, uma garantia ou expetativa de elevada probabilidade segundo a qual, realizando os investimentos, a dedução proporcionada pelo SIFIDE seria dedutível ao valor das TA.
Com efeito, a redação do artigo 90º, estabelecia:
“ 1 — A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste;”
Ora, como já se referiu, matéria coletável é um conceito com significado preciso no contexto do CIRC, sendo fracamente crível a perspetiva segundo a qual haveria expetativas ou garantias de inclusão da coleta das TA no montante liquidado. À data da realização do investimento, e como atrás se mostrou no excurso doutrinal, não havia doutrina nem jurisprudência consolidadas (os acórdãos do Tribunal Constitucional sobre as TA, embora não versassem sobre o caso específico dos autos, eram até de sentido diverso quanto a uma identidade entre IRC e TA), que perfilhasse de forma inequívoca, ou até mesmo simplesmente esperável, a interpretação segundo a qual ao valor das TA se poderiam deduzir os benefícios do SIFIDE.
Tal perspetiva veio, como também atrás se mostrou, a ser acolhida mais tarde, pelas razões apontadas sobre as TA e seu cruzamento com a interpretação do artigo 90º, e não seria elemento matricial ou de sólida expetativa ao tempo (2008-2010) da realização dos projetos de investimento aqui em causa.
Para mais, e numa interpretação económica do tema em causa, a ratio legis do SIFIDE, como expressa na proposta de lei 5/X, de 21 de abril de 2005, era o de fomentar “a capacidade de investigação e desenvolvimento (I&D) das empresas como um factor decisivo não só da sua própria afirmação enquanto estruturas competitivas, como da produtividade e do crescimento económico a longo prazo”.
Ora o crescimento económico, medido, como se sabe, pela variação real do PIB, decorre do valor acrescentado (excedente económico influenciado pelos lucros) das entidades, e não da simples incorrência em custos ou gastos, que são, nas maiorias das vezes em que se aplicam TA, consumos intermédios, que não incrementam o valor acrescentado, o PIB e o crescimento.
Podem ser (e muitas vezes são) elementos necessários para se gerarem lucros, mas não geram crescimento, que só será verificável pela efetiva emergência de resultados e valor acrescentado em função da atividade e da produtividade decorrentes dos investimentos. O rédito e os resultados são aqui componentes essenciais, e são estes que devem presidir ao usufruto da vantagem fiscal.
Acompanhamos assim M.H. FREITAS PEREIRA (Fiscalidade, Almedina, 2014-5.ª ed.) quando sublinha que a dedução relativa a benefícios fiscais, quando se trate de benefícios ao investimento – como é aqui o caso – tem subjacente a lógica segundo a qual o benefício constitui uma vantagem fiscal cuja amplitude varia com rendibilidade dos investimentos, pois, quanto mais elevado foi o lucro obtido e a matéria colectável do IRC maior será a capacidade para efetuar a dedução prevista.
Atribuir a dedução ao valor cobrado das TA seria, num plano de fundamento racional do benefício, algo que se nos afigura inconsistente. Aliás, é precisamente o facto de se entender que um projeto pode demorar algum tempo até gerar lucros (e coleta de imposto sobre o rendimento) que levou a inserir na Lei 40/2005 a regra seguindo a qual “As despesas que, por insuficiência de colecta, não possam ser deduzidas no exercício em que foram realizadas poderão ser deduzidas até ao 6.º exercício imediato.”
Note-se que este período de 6 anos é até mais generoso do que o período geral de reporte de prejuízos que constava, em 2010, no artigo 52º do CIRC, e que era de 4 anos; sendo de 6 anos em 2009. Caso se admitisse a dedução SIFIDE à coleta emergente de custos (gastos), por certo que tal preceito sobre o reporte da dedução a 6 anos posteriores não teria idêntica solidez económico-jurídica.
Assim, por tudo que antecede, é que improcederá totalmente o pedido.
III. DECISÃO
Ponderando a fundamentação exposta, este Tribunal Coletivo decide:
a) Julgar totalmente improcedente a exceção de incompetência material e declarar a competência deste Tribunal Arbitral para dirimir o litígio;
b) Julgar totalmente improcedente o pedido formulado de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento (tácito) do sobredito pedido de revisão do ato de autoliquidação de IRC relativo ao período de tributação correspondente ao ano de 2011;
c) Manter na ordem jurídica esse ato de autoliquidação;
d) Julgar prejudicada a apreciação e decisão das demais questões suscitadas nos autos e,
e) Condenar a requerente no pagamento das custas (artigo 22º-4, do RJAT), fixando estas na importância de € 5.202,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
*
Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 278.067,73
Lisboa, 8 de maio de 2017
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
(Árbitro Presidente)
António Martins
(Árbitro Adjunto)
Nuno de Oliveira Garcia
(Árbitro Adjunto – vencido conforme voto que se segue e integra a presente decisão)
Voto de vencido
Sigo integralmente, o voto de vencido de José Baeta Queiroz, no processo n.º 122/2016 – T, ainda que nesse processo se tratasse da dedução de pagamentos especiais por conta e não de SIFIDE (benefícios fiscais). Sucede que, no âmbito do SIFIDE, existe um argumento adicional a favor da dedução e que respeita à norma do artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento, a qual é expressa no sentido da dedução «da colecta do IRC apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC» (cit.).
De resto, reitere-se que a jurisprudência produzida pelos tribunais arbitrais que funcionam no âmbito do CAAD tem entendido, quase unanimemente, que as tributações autónomas integram o IRC, com a argumentação de que também o presente acórdão se não afastou.
E, se não fosse como se vem decidindo, não haveria norma legal que suportasse a respetiva liquidação, e as tributações autónomas teriam de se considerar inconstitucionais, por violação do nº 3 do artigo 103º da Constituição. Assim, a coleta encontrada mediante a liquidação efetuada nos termos do artigo 90º nº 1 inclui as tributações autónomas, e o n.º 2 do mesmo artigo, na sua alínea c), manda deduzir ao montante apurado, que é um só, “benefícios fiscais”.
De resto, e citando o voto de vencido de José Baeta Queiroz, no processo n.º 122/2016 – T:
«Não vemos como esta norma [artigo 90.º do Código do IRC, in casu em conjugação com o artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento] possa legitimamente interpretar-se senão literalmente. Todos os elementos a que se atende para a interpretação das leis, designadamente, a intenção do legislador, ou a unidade do sistema, de nada valem se o resultado a que se chega não tem expressão bastante na letra da lei. E essa letra, no caso, é clara e não comporta, a nosso ver, senão um sentido» (…)
Cumpre, porém, atentar em que o artigo 133º da lei nº 7-A/2016, de 30 de Março, introduziu no artigo 88º do CIRC um novo nº 21, deste teor:
‘A liquidação das tributações autónomas em IRC é efectuada nos termos previstos no artigo 89º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”» (cit.).
E o artigo 135º da dita lei afirmou a natureza interpretativa do transcrito nº 21 do artigo 88º, não do 90.º.
Sucede que as nossas doutrina e jurisprudência sustentam, desde há muito, que não basta a uma norma, para ser interpretativa, a afirmação do legislador em tal sentido.
Verdade que, no caso, há uma controvérsia jurisprudencial que, em princípio, justificaria uma intervenção interpretativa do legislador. Verdade é, também, que a nova norma, afirmada como interpretativa, vai no sentido de uma das correntes jurisprudenciais pré-existentes, ou seja, já antes alguns julgadores tinham chegado à interpretação agora feita pelo legislador.
Mas atente-se no que em 1997 escreveu o Professor Oliveira Ascensão: ‘não basta que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que a lei seja interpretativa” (apud Saldanha Sanches, “Lei interpretativa e retroactividade em matéria fiscal’, in FISCALIDADE, nº 1, pág. 87). Ao que acrescenta o Professor Saldanha Sanches: ‘É necessário que haja uma efectiva controvérsia, conhecida pelos destinatários da norma, sobre a incerteza da interpretação’.
Este ponto parece-nos relevante. É que os destinatários da norma não são, prima facie, os juristas, os julgadores, mas os cidadãos em geral, todos obrigados ao pagamento de impostos e todos vinculados à lei, cujo desconhecimento não podem invocar.
Ora, a interpretação a que chegaram aqueles tribunais arbitrais não está ao alcance de qualquer cidadão, sem sequer de qualquer jurista, mas só de um fiscalista altamente especializado, capaz de conjugar vários elementos, sejam eles histórico, sistemático e outros, interpretativos, razoavelmente ignorados da maioria das pessoas, destinatários da lei, e nem sequer atingíveis pelos mais empenhados em entendê-la.
Ou seja: o cidadão comum, o bonus pater familias, mesmo que empresário, investidor ou gerente, não conhecendo, nem tendo que conhecer, a jurisprudência dos tribunais arbitrais, contava, antes da lei dita interpretativa, com a possibilidade de dedução à colecta, nela incluídas as tributações autónomas, dos pagamentos especiais por conta. Era isso o que lia na lei então existente.
O que vale por dizer que a norma interpretativa ‘(…) por não corresponder a qualquer coisa com que o contribuinte devesse ou pudesse contar, vem constituir pelo seu carácter imprevisível um comportamento lesivo da segurança jurídica’ (Saldanha Sanches, obra e local citados, pág. 86).
Mais: para o Autor cujo ensinamento temos vindo a acompanhar, ‘(…) não nos parece que a lei interpretativa possa ter lugar em matéria fiscal (…) a [IV] revisão constitucional veio impedir os efeitos retroactivos de qualquer norma em matéria fiscal. Incluindo os provocados por lei interpretativa’ (obra e local citados, pág. 88).
E, para quem pense que esta posição possa ter sido meramente circunstancial, reportada ao ano de 2000, em que foi escrito o artigo que temos vindo a referir, é ver o MANUAL DE DIREITO FISCAL do mesmo professor, em cuja edição de 2007 se lê, a págs. 195, que ‘(…) mesmo quando estamos perante uma lei verdadeiramente interpretativa, e não uma daquelas que o legislador designa de interpretativa “para tornar menos perceptível a retroactividade da lei’ estamos, em todas estas situações, perante casos abrangidos pela proibição constitucional da retroactividade”.
Mais assim é para quem, como nós, entende que a letra da lei anterior à lei do orçamento para 2016 não comportava a interpretação depois adoptada pelo legislador, pois era unívoco o sentido que dessa letra se retirava: os pagamentos especiais por conta eram dedutíveis à colecta apurada nos termos do nº 1 do artigo 90º, incluísse esta, ou não, tributações autónomas. Ou seja, que o nº 21 do artigo 88º do CIRC não é uma verdadeira norma interpretativa. Como, aliás, logo indicia o modo como o legislador procedeu: em vez de dar à norma supostamente ambígua uma nova redacção, agora inequívoca, criou uma outra norma, nova - o nº 21 do artigo 88º do CIRC -, em colisão com o artigo 90º, que não pode deixar de ser a ‘norma interpretada’. E, se o falado nº 21º do artigo 88º do CIRC fosse uma verdadeira norma interpretativa, seria desconforme com o artigo 103º nº 3 da Constituição.
Eis, em rápida súmula, as razões porque não acompanhamos o decidido e por que, consequentemente, julgaríamos procedente o pedido».
Terminada a citação, também nós concluiríamos no sentido de julgar procedente o pedido nestes Autos Arbitrais.
Nuno de Oliveira Garcia
[1] Lei n.º 40/2005, de 3 de Agosto para vigorar entre 2006 e 2010, Lei n.º 55-A /2010, de 31 de Dezembro (artigo 133.º) institui o SIFIDE II a vigorar entre 2011 e 2015, alterado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro.
[2] Veja-se J, Luís Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, 2007
[3] Araújo, Fernando Carreira de, Oliveira, António Fernandes, “A Dedutibilidade em IRC dos Encargos Fiscais com as Tributações Autónomas”, in Cadernos Justiça Tributária, n.º 3, Janeiro/Março 2014, citados por M. Rita Mesquita “A Tributação autónoma no CIRC: A sua (in)coerência” Dissertação de mestrado em Direito Fiscal, Univ. Católica, Faculdade de Direito, Porto Maio de 2014.