Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 605/2016-T
Data da decisão: 2017-05-31  IRC  
Valor do pedido: € 61.424,54
Tema: IRC – Tributações autónomas - SIFIDE
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros José Poças Falcão (árbitro presidente), Diogo Feio e Maria Forte Vaz, designados como árbitros no Centro de Arbitragem Administrativa, para formarem o Tribunal Arbitral acordam no seguinte:

 

I - RELATÓRIO

 

A…, SGPS, S.A., NIPC…, com sede na Rua …, …, …º, …-… Lisboa (doravante apenas designada por Requerente), apresentou, em 11-10-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o art. 102.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).

A Requerente visa a declaração de ilegalidade (i) da autoliquidação de IRC de 2013, correspondente à declaração Mod. 22 submetida com a identificação n.º …-… -…, e (ii) da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa entretanto apresentada relativamente a tal acto tributário.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 13-10-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 30-11-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 19-12-2016.

Notificada para se pronunciar sobre o pedido deduzido pela Requerente, a Requerida apresentou resposta, pugnando pela improcedência do pedido deduzido pela Requerente.

Por despacho de 07-03-2016, foi dispensada a reunião do art. 18.º do RJAT, tendo sido concedido às partes prazo para alegações.

Por requerimento de 17-03-2017, a Requerente veio apresentar um pedido de modificação objectiva da instância, por forma a que fosse apreciada nos presentes autos a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada com referência ao IRC de 2013.

Notificada para se pronunciar sobre este pedido, a Requerida nada disse.

 

DO PEDIDO DA REQUERENTE

No pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos, a Requerente solicitou a declaração de ilegalidade (i) da autoliquidação de IRC do ano de 2013 e (ii) da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada relativamente àquele acto tributário.

Para fundamentar tal pedido, a Requerente alegou, em síntese, que:

a) A 31-12-2013, a Requerente era a sociedade dominante de um perímetro de entidades que integravam o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RGTGS”) que incluía, para além da Requerente, as sociedades:

-B…, S.A., NIPC…;

-C… Unipessoal, Lda., NIPC… .

b) A 30-05-2014 a Requerente entregou a declaração Mod. 22 do grupo consolidado, na qual apurou um valor a pagar a título de tributações autónomas de € 61.424,54.

c) Nessa declaração Mod. 22, a Requerente apurou um montante de € 1.753.767,40 a título de benefícios fiscais decorrentes do Sistema Fiscal de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (“SIFIDE”), tendo transitado para o exercício seguinte o saldo não utilizado, num total € 1.439.365,15.

d) Contrariamente ao que poderia ter feito, a Requerente não deduziu tal crédito fiscal à colecta apurada relativa a tributações autónomas.

e) As tributações autónomas são verdadeiro “IRC”, integrando este imposto, e estão sujeitas às regras gerais de liquidação previstas no art. 90.º do CIRC.

f) Por sua vez, o SIFIDE criou um sistema de incentivos fiscais que permite aos sujeitos passivos, no âmbito do apuramento do IRC, deduzir à colecta apurada nos termos do artigo 90.º CIRC, encargos referentes a Investigação e Desenvolvimento, que sejam elegíveis nos termos do aludido regime.

g) A dedutibilidade do benefício fiscal do SIFIDE ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC não depende exclusivamente da existência de lucro tributável, pois o que aquele de facto exige é que haja colecta de IRC, que pode existir mesmo sem lucro tributável, designadamente por força das tributações autónomas.

h) Correspondendo a colecta das tributações autónomas a colecta de IRC liquidada nos termos do art. 90.º do CIRC, a dedutibilidade do crédito fiscal apurado no âmbito do SIFIDE não pode ser posta em causa.

i) Não tendo deduzido à colecta de IRC resultante de tributações autónomas o valor do crédito fiscal aplicável em 2013, a Requerente determinou imposto a pagar ao Estado superior ao devido pelo que tem direito ao competente reembolso.

No que se refere à modificação objectiva da instância, a Requerente solicita que, ao abrigo do disposto no art. 64.º do CPTA, aplicável por remissão do art. 20.º do RJAT, em substituição da decisão tácita de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, este tribunal se pronuncie sobre a decisão expressa de indeferimento, de 23-02-2017.

Face ao exposto, conclui a Requerente pela ilegalidade da autoliquidação de IRC de 2013 e da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada, pelo que tais actos deverão ser anulados e, em consequência, deve a Requerida ser condenada a reembolsar a Requerente do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º da LGT.

 

DA RESPOSTA DA REQUERIDA

A Requerida pugna pelo indeferimento do pedido deduzido pela Requerente, alegando sucintamente que:

a) A colecta derivada das tributações autónomas, pese embora se tratar de uma colecta em IRC, distingue-se por incidir não sobre os lucros mas, antes sim, sobre despesas incorridas pelo sujeito passivo ou por terceiros que com ele tenham relações.

b) Na realidade, a integração das tributações autónomas, no Código do IRC, conferiu uma natureza dualista, em determinados aspectos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou em apuramentos separados das respectivas colectas, por força de obedecerem a regras diferentes. E isso, pois, num caso, trata-se da aplicação da(s) taxa(s) do art.º 87.º do CIRC à matéria colectável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código e, noutro caso, trata-se da aplicação das taxas aos valores das matérias colectáveis relativas às diferentes realidades contempladas no art.º 88.º do CIRC.

c) Contrariamente ao alegado pela Requerente, não há uma liquidação única de IRC, mas, antes dois apuramentos.

d) Daqui resulta que as deduções previstas nas alíneas do n.º 2 só podem ser efectuadas à parte do colecta do IRC com a qual exista uma correspondência directa, por forma a ser mantida a coerência da estrutura conceptual do regime- regra do imposto.

e) Atenta a diversidade das realidades sujeitas às taxas de tributação autónoma, as finalidades marcadamente anti-evasivas que lhe estão adstritas, a natureza instantânea em matéria de verificação dos factos geradores, é possível concluir que, no quadro do mesmo imposto – o IRC – coexistem modalidades diferentes de imposição criadas por razões de política fiscal, i.e., ao lado de uma estrutura normativa que configura um imposto incidente sobre uma base tributável constituída pelo lucro, existem imposições que tributam de forma autónoma determinadas realidades que se manifestam em despesas ou em rendimentos.

f) Assim sendo, em termos globais, a colecta do IRC apurada nos termos do art.º 89.ºe do n.º 1 do art.º 90.º tem natureza compósita, cindível, por um lado entre a colecta de imposto propriamente dita, resultante da estrutura geral de apuramento do IRC, que é devida com fundamento constitucional assente no dever geral de cada um (neste se englobando as pessoas colectivas) de contribuir para as despesas públicas segundo os seus haveres (Art.º 103.º, n.º 1 da CRP), a que se deduzem as importâncias referidas no n.º 2 do art.º 90.º, nos termos e modos ali referenciados e, por outro, o somatório das colectas das tributações autónomas que incorporam um sentido e fundamentos próprios e que, por isso, não devem ser objecto de confusão.

g) Dada a distinta natureza das colectas em causa, conclui a Requerida que o crédito fiscal previsto no âmbito do SIFIDE não é dedutível à colecta das tributações autónomas, sendo estritamente dedutível ao imposto apurado nos termos gerais com base no lucro tributável do sujeito passivo.

h) Em complemento, refere que as dúvidas que existissem foram eliminadas pelo  Orçamento do Estado para 2016 que aditou o número 21 ao artigo 88.º do CIRC, atribuindo ao mesmo com carácter interpretativo, com o seguinte conteúdo: «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado

i) Para sustentar e validar o efeito interpretativo conferido pelo artigo 135.º constante da Lei do Orçamento de Estado para 2016, a Requerida remete para inúmeras decisões do CAAD que aceitaram a aplicação da prevista exclusão de dedução factos tributários anteriores à entrada em vigor da referida norma.

Conclui, por isso, a Requerida pela improcedência do pedido deduzido pela Requerente, devendo manter-se na ordem jurídica os actos tributários contestados.

 

SANEADOR

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de capacidades tributária e judiciária e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.              A Requerente era, em 2013, a sociedade dominante de um grupo de sociedades (o Grupo A…) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS);

2.              A Requerente entregou, no dia 20-05-2014, a sua declaração agregada de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2013, tendo, nesse momento, procedido à autoliquidação do referido;

3.              Foi apurado um resultado fiscal consolidado no montante de EUR 1.257.611,34 (um milhão, duzentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e onze euros e trinta e quatro cêntimos) e um montante total de tributações autónomas de EUR 61.424,54 (sessenta e um mil, quatrocentos e vinte e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos);

4.              Em sede de benefícios fiscais, foi declarado um montante total de EUR 1.753.767,99 (um milhão, setecentos e cinquenta e três mil, setecentos e sessenta e sete euros e noventa e nove cêntimos) relativos à aplicação do Sistema Fiscal de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial, dos quais transitam para períodos seguintes EUR 1.439.365,15 (um milhão, quatrocentos e trinta e 5 nove mil, trezentos e sessenta e cinco euros e quinze cêntimos), após a dedução do período, no montante de EUR 314.402,84 (trezentos e catorze mil, quatrocentos e dois euros e oitenta e quatro cêntimos);

5.              A Requerente deduziu, no dia 24-05-2016, reclamação graciosa;

6.              Quatro meses decorridos sem que tivesse sido proferida decisão, a Requerente presumiu o indeferimento tácito para efeitos de submissão do presente pedido de pronúncia arbitral;

7.              A 23-02-2017, foi proferido, pela Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de Lisboa, despacho de indeferimento da reclamação graciosa referida no ponto 5. supra.

 

B. Factos não provados

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

 

A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental apresentada e não contestada.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO (CONT)

O DIREITO

 

Modificação do objecto da instância

 

No prazo concedido para alegações, a Requerente apresentou um requerimento com vista à modificação objetiva da instância fundada na prolação superveniente (após a entrada em juízo do pedido de pronúncia arbitral) de despacho, proferido em 23 de fevereiro de 2017, que indeferiu expressamente a reclamação graciosa apresentada.

            Pediu, em consequência, a substituição da decisão de indeferimento tácito pela sobredita decisão de indeferimento expresso.

            Notificada, a AT não se pronunciou.

            Decidindo:

            Formado o indeferimento tácito do ato e impugnado esse indeferimento nos termos legais, ulteriormente e na pendência, portanto, do processo judicial ou arbitral, veio a ser proferido ato expresso de indeferimento.

            Pois bem: esse indeferimento expresso “confirmativo” do indeferimento tácito, não tem relevância ou influência no desenvolvimento da instância ou na estabilidade da mesma tal como configurada com base no requerimento inicial.

            E, sem entrar em, desnecessários, desenvolvimentos, sempre se dirá que os autos de reclamação são (ou deveriam ter sido) imediatamente apensos a este processo arbitral, no estado em que se encontrassem no momento em que foi impugnado o ato (tácito) de indeferimento, sendo a decisão das questões ali (na reclamação graciosa) suscitadas transferida do âmbito administrativo para o âmbito jurisdicional – Cfr. artigo 111.º-3 e 5, do CPPT ex vi artigo 29º, do RJAT.

            Por outro lado, não se deve olvidar que o ato que é verdadeiramente objeto de impugnação em sede arbitral é o ato tributário de 1º grau, ou seja, no caso, a autoliquidação de IRC do exercício de 2013, integrante da Mod. 22 com o código de identificação n.º …-… -…[1].

            Assim é que, por um lado, a Administração Tributária praticou o ato (indeferimento expresso) em momento em que lhe era já vedado fazê-lo na medida em que os autos de reclamação graciosa deveriam ter sido enviados a este processo arbitral, para apensação logo que conhecida a pendência do pedido de pronúncia arbitral, ou seja, em 13-10-2016 [data da notificação da AT da apresentação deste pedido].

            Por outro lado e de qualquer modo, revelar-se-á sempre totalmente inútil ou ineficaz para o desenvolvimento da instância a prática de ato tributário expresso confirmativo de ato tácito de indeferimento.

            Pelo sumariamente exposto, nada há a considerar ou alterar relativamente à instância decorrente da prática do citado ato de indeferimento expresso, prosseguindo os autos a sua normal tramitação como se tal ato de indeferimento não existisse.

            Vai assim indeferido o requerimento para modificação objetiva da instância formulado pela Requerente.

 

Objecto do litígio

 

Em face de tudo o que vem exposto, cumpre a este tribunal decidir se se pode admitir a dedução do montante do SIFIDE à coleta total do IRC, incluindo as tributações autónomas, ou se, pelo contrário, as tributações autónomas estarão excluídas das deduções admitidas.

 

Quanto à legislação pertinente para esta questão deve-se ter em atenção que nas circunstâncias de tempo que relevam para os autos designadamente os seguintes artigos:

Lei n.º 40/2005, de 3 de agosto, alterada pela Lei n.º 55-A/2010 de 31 de dezembro, alterada pela Lei n.º 64-B/2011 de 30 de dezembro

Artigo 4º (Âmbito da dedução):

1 - Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal ou não, uma actividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90. ° do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objecto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação de 1 de Janeiro de 2011 a 31 de Dezembro de 2015, numa dupla percentagem:

a) Taxa de base - 32,5% das despesas realizadas naquele período;

b) Taxa incremental — 50% do acréscimo das despesas realizadas naquele período em relação à média aritmética simples dos dois exercícios anteriores, até ao limite de (euros) 1 500 000.

2 -(...)

3 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.° do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior.

4 - As despesas que. por insuficiência de colecta, não possam ser deduzidas no exercício em que foram realizadas poderão ser deduzidas até ao 6.º exercício imediato.

Artigo 5.º (Condições)

Apenas podem beneficiar da dedução a que se refere o artigo 4.º os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:

a) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indirectos;

b) Não sejam devedores ao Estado e à segurança social de quaisquer impostos ou contribuições, ou tenham o seu pagamento devidamente assegurado.

 

Código do IRC

Artigo 90°:

1. A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120° e 122°, tem por base a matéria coletável que delas conste;

b) (...)

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.

2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:

a) A correspondente à dupla tributação internacional;

b) A relativa a benefícios fiscais;

c) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106";

d) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termo da legislação aplicável. (...)

4. Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no número 2 relativas a cada uma das sociedades são efetuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do n° 1. (...).”

Pela leitura dos artigos, sem mais, torna-se evidente que era o artigo 4.º do primeiro diploma que definia o que devia ser entendido como coleta para efeito de aplicação do benefício fiscal. Nessa medida, seria a interpretação a fazer deste normativo que determinava o montante da dedução a fazer.

De acordo com a interpretação da Requerente, o montante a ter em conta corresponderá à totalidade da colecta apurada, incluindo o montante liquidado a título de contribuições autónomas. Já de acordo com a Requerida, no fundo, só haverá direito à dedução do benefício fiscal caso exista lucro tributável.

Como bem alega a Requerida, na análise da questão haverá que ter em conta que as tributações autónomas existem para desincentivarem certos comportamentos dos contribuintes que podem afetar o lucro tributável pelo que a admissibilidade da sua dedução retiraria esse efeito pretendido pelo legislador.

Por outro lado, como alega a Requerente, é certo que os benefícios fiscais são “medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores ao da própria tributação que impedem”. Neste caso, a relevância é tão grande que o legislador determinou de forma expressa que este benefício está excluído das limitações previstas no artigo 92.º CIRC.

A questão era, como referido, a de saber se o montante das tributações autónomas pode ser reconduzido ao imposto apurado nos termos do artigo 90.º CIRC, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 4.º do referido diploma legal, ou se tal colecta derivada das tributações autónomas está, à partida, excluída de tal norma.

Nesta sede, deveria tomar-se em atenção que o artigo 90.º CIRC se referia a todas formas de liquidação do IRC, fosse pelo sujeito passivo ou pela Administração, fosse qual fosse a fonte do imposto, dado que não existia nenhuma norma que expressamente previsse uma forma de liquidação especifica e própria para as tributações autónomas. As diferenças entre a colecta geral de IRC e da colecta das tributações autónomas referiam-se à determinação da matéria a tributar e às taxas aplicadas, mas não à forma de liquidação. Assim sendo, o imposto apurado no artigo 90.º CIRC incluiria, necessariamente e na ausência de disposição própria, a colecta correspondente às tributações autónomas.

Por aplicação das regras do SIFIDE, mesmo que não existisse lucro tributável, o crédito fiscal poderia ser deduzido até ao montante das tributações autónomas, razão pela qual a autoliquidação em causa parecia enfermar de vício de violação de lei o que justificaria a sua anulação.

 

No entanto, o artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, veio alterar a redação do artigo 88.º CIRC esclarecendo que a coleta de tributação autónoma é feita nos termos do artigo 89.º CIRC – sem qualquer referência ao artigo 90.º CIRC – não sendo admissíveis quaisquer deduções.

Nos termos do artigo 135.º desta lei, a nova redação do n.º 21 do artigo 88.º CIRC tem natureza interpretativa. Significa isto que, à luz do que determina o n.º 1 do art. 13.º do Código Civil, “A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza”. Ou seja, esta norma, tendo carácter interpretativo, é de aplicação imediata, integrando a norma interpretada como se sempre tivesse existido tal previsão legal.

Em face desta alteração e atento o caráter interpretativo da norma, haverá que analisar as implicações para o caso em apreço.

Ressalta, desde logo, que a alteração introduzida veio determinar, para estas situações, a distinção e autonomia do processamento do IRC em sentido estrito. Passam, então, a ser determinados dois procedimentos manifestamente distintos e individualizados: um para a coleta de IRC e outro para a coleta em sede de tributação autónoma. Passaram então a ser determinados, e de forma interpretativa, limites à forma de entender o benefício fiscal em causa.

Passa a ser a lei, e a sua interpretação literal, que não permite que a dedução seja feita. Ainda para mais quando se trata de um regime, o da tributação autónoma, que é excecional no enquadramento jurídico-constitucional, e que por isso tem determinações que devem ser interpretadas de forma restrita e no respeito pela letra da lei. Tendo-se alterado a redacção do artigo 88.º CIRC com efeitos interpretativos, o intérprete fiscal não tem outra alternativa que não seja a de aplicar a norma tal qual ela existe hoje, como se sempre tivesse existido tal redacção. 

Só assim não seria se esta solução fosse incompatível com normas de hierarquia superior, nomeadamente constitucionais. Não sendo este o caso, de acordo com o princípio do primado da lei, deve-se aplicar a regra interpretativa, não havendo nenhuma objecção constitucional a tal.

Sobre este aspecto há que referir que, embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroactividade da lei, previstos no art. 103.º da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende este tribunal que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas. 

Não se acompanha, por isso, a posição defendida por J.L Saldanha Sanches[2] que concluiu que “E por isso não nos parece que a lei interpretativa possa ter lugar em matéria fiscal: se até aqui o que estava em causa eram as leis falsamente interpretativas a revisão constitucional veio impedir os efeitos retroactivos de qualquer norma em matéria fiscal. Incluindo os provocados por lei interpretativa.”. Da mesma forma que se considera que, face à mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de interpretação e delimitação da amplitude do princípio da proibição da retroactividade fiscal[3], as conclusões do acórdão n.º 172/2000, de 22-03-2000, proferido no proc. 762/98, deste Tribunal não justificarão uma proibição absoluta de leis interpretativas.

A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal - tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal - deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respectivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objectiva, subjectiva, temporal e territorial) do imposto.

Com efeito, como escreve Casalta Nabais[4] da redacção do n.º 3 do art. 103.º da CRP resulta “(…) a proibição de normas fiscais retroactivas de incidência oneradoras ou agravadoras da situação jurídica dos contribuintes (…)” (sublinhado nosso).

O mesmo defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[5], “A constitucionalidade das normas tributárias retroactivas tem de ser aferida em termos diferentes consoante elas digam respeito aos elementos materiais que concorrem para a definição do tipo normativo tributário (incidência, isenções e taxa) ou a outras matérias (garantia dos contribuintes, procedimento de liquidação e de cobrança). A proibição constante do art. 103.º, n.º3, da CRP; diz respeito apenas às primeiras. A conformidade constitucional das segundas tem de ser equacionada à luz dos princípios materiais da segurança jurídica e da tutela da confiança que enformam o Estado de direito (art. 2.º da CRP)”.

E a verdade é que a prática jurisprudencial, de que são exemplos os acórdãos do STA de 21-03-2012, proc. n.º 830/11, e de 16-05-2012, proc. n.º 675/11, tem admitido a existência de leis interpretativas de âmbito fiscal.

Partindo-se, assim, da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efectivamente perante uma lei interpretativa.

Para Ferrer Correia[6]Na ausência de outros elementos que permitam dar valor interpretativo a uma norma, o critério fundamental a utilizar para tal fim é ‘que o princípio contido na nova lei possa considerar-se ínsito na lei anterior. Ora esse requisito deve julgar-se satisfeito sempre que possa dizer-se que os tribunais decidiriam normalmente, no domínio da legislação anterior, de acordo com tal princípio. (…) É que, verificando-se este pressuposto, cessam as razões que estão na base do princípio da não retroactividade da lei, que se consubstanciam na tutela dos direitos adquiridos e das expectativas concebidas pelos particulares ao agirem ao abrigo das normas da lei precedente. Se a jurisprudência era claramente favorável a um certo entendimento da legislação anterior, e a nova lei o vem confirmar de modo expresso não se vê razão para não definir esta lei como interpretativa e como tal aplicável mesmo para o passado. Em boas contas ninguém poderá queixar-se de ofensas de direitos subjectivos ou de frustração de expectativas, já que os interessados, se tivessem recorrido aos tribunais para fazer valer um suposto direito ou ver esclarecida determinada situação, não teriam muito provavelmente obtido resultado diverso daquele que agora se tornou certo”.

Este é também o entendimento de Baptista Machado[7] que concluiu que “a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”. Nestes casos, não há verdadeira retroactividade na aplicação da lei interpretativa porque a interpretação da norma originária efectuada à luz do quadro legal em vigor levaria à mesma solução que a consagrada pelo legislador em norma posterior.

Considera-se, assim, que, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos:

(i)            haver uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e

(ii)          o legislador consagra uma solução interpretativa que resolve a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.

Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos levados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC era controversa e incerta (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela Requerente e pela Requerida), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efectivamente chegou, por exemplo, nas decisões arbitrais proferidas nos procs. n.º 697-2014-T e n.º 722/2015-T. É certo que a solução consagrada legalmente não corresponderá à interpretação indiciada no ínicio da presente decisão, mas não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.

Contra este entendimento não procederá a alegação de que, para se estar perante uma efectiva lei interpretativa seria necessária uma corrente jurisprudencial que impusesse determinada solução ao legislador, o que não se verificaria na presente situação dado que existem diversas decisões em sentido contrário, conforme detalhado pela Requerente.

E esta alegação não procede porquanto, como refere Baptista Machado[8](…) Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. (…) Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.” (sublinhado nosso).

Essencial é, pois, que a solução consagrada pelo legislador pudesse ser apurada pelo intérprete ou julgador dentro do quadro normativo em vigor e no âmbito da controvérsia ou incerteza gerada pela norma. Como já referido, apesar de a solução consagrada pelo legislador não ser aquela a que este tribunal poderia chegar, a verdade é que corresponde a uma interpretação possível dentro dos quadros da controvérsia, sustentada logicamente noutras decisões (arbitrais) anteriores.

Acresce que esta conclusão quanto ao carácter interpretativo do novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC, com inerente aplicação da mesma nos termos do art. 13.º do Código Civil, não viola o princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal decorrente do n.º 3 do art. 103.º da CRP porque, como supra referido, o princípio constitucional em causa proíbe a criação de impostos retroactivos, cingindo, assim, o seu âmbito de aplicação às matérias de incidência sujectiva, objectiva, temporal e territorial. Ora, no caso em apreço, não se está a discutir a incidência, a taxa ou o quantum da colecta devida a título de tributações autónomas, que se mantém inalterada; o que se discute é a obrigação de efectuar um desembolso dessa colecta a favor do Estado, impedindo a compensação com um crédito fiscal decorrente do regime do SIFIDE. A obrigação tributária é exactamente a mesma, o que poderia diferir seria a obrigação de pagamento e, como supra referido, esta matéria não goza de qualquer protecção constitucional especial.

Por fim, não se pode concluir que a atribuição de natureza interpretativa à norma em causa ponha em causa o princípio da segurança jurídica porque, adoptando a norma uma das interpretações possíveis (o que é manifestamente o caso), não se está a violar expectativas fundadas. A interpretação que agora se admite era viável antes do surgimento da lei interpretativa. Por essas razões, com esta solução não se ofendem princípios constitucionais, seja o da proibição constitucional de normas fiscais retroativas, seja o princípio da segurança jurídica.

            Em face do exposto, considera-se que não ocorre a pretendida ilegalidade do acto de autoliquidação do IRC de 2013 pelo que improcederá o pedido da Requerente.

 

III -  DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, absolver a Requerida do pedido, mantendo como válidos os actos de autoliquidação de IRC do ano de 2013 e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o mesmo.

 

 

Valor do processo

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 47/2013, de 26 de Junho, 97º - A), nº 1, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 61.424,54.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12º nº 2, 22º nº 4 do RJAT, e artigos 2º e 4º do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária, e Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em 2.448,00 €, a cargo da Requerente, conforme anteriormente decidido.

 

  • Notifique-se

 

[Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 131º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, com versos em branco e revisto pelo colectivo de árbitros].

 

[A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990].

 

Lisboa, 31-05-2017

 

O Tribunal Arbitral Colectivo,

 

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

 

Diogo Feio

(Vogal)

 

 

Maria Forte Vaz

(Vogal)

 



[1] Mesmo em sede judicial estadual se entendia já que o objeto real da impugnação é o ato de liquidação e não o ato que decidiu a reclamação, pelo que são os vícios daquela (liquidação) e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise; daí não estar a impugnação limitada pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do ato tributário (Cfr. Ac. do STA de 18 de maio de 2011, Proc nº 0156/11).

 

[2] Cfr. “Lei interpretativa e retroactividade em matéria fiscal”, Fiscalidade, n.º 1, Janeiro de 2000, p.77 e seguintes.

[3] Acórdão n.º 310/2012, de 20 de Junho, e acórdão 399/2010, de 27 de Outubro

[4] Cfr. Direito Fiscal, Almedina, 3.ª Edição, p.148.

[5] Cfr. Leo Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro de Escrita, 4.ª Edição, 2012.

[6] Cfr. Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo IV, p. 35

[7] Crfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 246 e seguintes.

 

[8] Obra citada, p. 246-247.