DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Rui Duarte Morais (Presidente), Ana Maria Rodrigues
e Gustavo Lopes Courinha acordam no seguinte:
I - RELATÓRIO
A) Constituição do tribunal arbitral e tramitação do processo
A…, S.A., sociedade com sede na …, n.º…, ..., em Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o número único de matrícula e pessoa coletiva … (doravante também designada por Requerente), veio, nos termos legais, apresentar pedido de pronúncia arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT, designou como Árbitro o Sr. Prof. Doutor Gustavo Lopes Courinha.
O dirigente máximo da Administração Tributária designou como Árbitro a Sr.ª Prof. Doutora Ana Maria Rodrigues.
Os Árbitros designados pelas Partes acordaram em designar como árbitro presidente o Sr. Prof. Doutor Rui Duarte Morais.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 14/12/2016.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou, atempadamente, resposta.
Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT.
Em 24/03/2017, realizou-se uma reunião em que foi inquirida a testemunha arrolada pela Requerente e houve lugar à produção de alegações orais.
B) Pedido de pronúncia arbitral
O pedido formulado pela Requerente é o de anulação da liquidação de IRC n.º 2016…, relativa ao exercício de 2014, da qual resultou imposto a pagar no montante de € 280.844,86, bem como da demonstração de acerto de contas n.º 2016 … e demonstração de liquidação de juros n.º 2016… .
II - SANEAMENTO
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão devidamente representadas.
O Tribunal Arbitral é competente quanto à apreciação do pedido de pronúncia arbitral.
Não foram suscitadas quaisquer exceções de que cumpra conhecer.
Não se verificam nulidades que obstem ao conhecimento do mérito.
III - MATÉRIA DE FACTO
§ 1 - Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão da causa:
a) A Requerente é uma Sociedade que se dedica à promoção imobiliária, aquisição, compra e revenda de imóveis (doc.1 junto à p. i.);
b) A Requerente tinha como sócia única a sociedade B…, Lda. (doc.1 junto à p. i.);
c) Os Estatutos da Requerente previam a entrega de prestações acessórias gratuitas e não reembolsáveis (doc. 2 junto à p. i.);
d) Em 08.11.2007, foi deliberada a realização de prestações acessórias em espécie, a título definitivo e gratuito, não reembolsáveis, por parte da sócia única (doc. 3, junto à p. i.);
e) Por escritura pública outorgada no dia 28.11.2007, a sócia única entregou à Requerente, a título de tais prestações acessórias, um conjunto de imóveis, identificados no Doc.º 4 junto à p.i.;
f) Os imóveis estavam inscritos na contabilidade da sócia única pelo valor de € 3.059.425,00;
g) O qual foi o valor atribuído a tais bens, quer na deliberação, quer na escritura;
h) A Requerente contabilizou os imóveis pelo valor de € 7.528.814,00 (doc. 5, junto à p. i.);
i) Montante que considerou corresponder ao seu valor de mercado;
j) Tal valor foi apurado com base em 2 (duas) avaliações, efetuadas por empresas para tal contratadas (Doc. 6, junto à p. i).
k) Tais avaliações ocorrerem em 2008, sendo que a Requerente fez reportar tal alteração ao exercício de 2007, melhor, à data da escritura.
l) Em 03.11.2015, a Requerente foi alvo de uma ação inspetiva motivada pela transmissão dos imóveis em causa, ocorrida durante o ano de 2014, a qual deu origem à liquidação ora impugnada.
§ 2 - Factos não provados
Não existem factos não provados com relevância para a apreciação da causa.
A Requerente refere, também, factos e produz alegações de direito relativos a outra questão, a de saber se a aquisição de tais imóveis (em 2007) está sujeita a IMI. Tal tema extravasa claramente o objeto da presente lide, tendo, aliás, originado outro processo, que corre os seus termos no TAF de Leiria, pelo que o Tribunal Arbitral não os considerou.
§ 3 - Motivação quanto à matéria de facto
Os factos dados como provados constam do relatório de inspeção e não foram controvertidos.
IV- Questão a decidir
A única questão a decidir é a de saber qual o valor que deve ser fiscalmente considerado como sendo o valor de aquisição de imóveis que foram transmitidos à Requerente pela sua sócia única a título de prestações acessórias gratuitas: se o valor pelo qual constavam da contabilidade desta (valor indicado também na deliberação social relativa à realização das prestações acessórias e na escritura que formalizou a transmissão), se o valor pelo qual foram contabilizados pela Requerente, em resultado de uma avaliação, que esta entende corresponder ao valor de mercado de tais bens no momento da transmissão.
A) Fundamentação da liquidação impugnada
A Administração Tributária entende, em suma, que a Requerente realizou uma reavaliação extraordinária sem ter procedido ao correspondente ajustamento fiscal.
Desta forma – entende a AT – logrou majorar o custo dos imóveis, posteriormente alienados no exercício de 2014, os quais já tinham sido mensurados, sendo que os avaliadores lhes atribuíram novos valores – os preços de mercado.
Conclui afirmando que os imóveis deveriam ter sido contabilizados pelo seu custo histórico, recorrendo aos critérios de valorimetria constantes do capítulo 5.3 – Existências, do POC e parágrafo 9 da NCRF 18 – Inventários e que a consideração do valor resultante da avaliação ocorrida em 2008 infringe os princípios contabilísticos de registo e mensuração dessa classe ativos bem como o artigo 26.º do CIRC.
Na sua resposta e nas suas alegações a AT reafirmou este entendimento.
B) Posição da Requerente
A Requerente sustenta, em suma que, a prestação acessória aqui em causa, por não implicar qualquer contrapartida por parte da Requerente, reveste a natureza de uma transmissão gratuita, muito embora sem ter as características de uma liberalidade.
Considera que, no caso de transmissões gratuitas, é aplicável a Diretriz Contabilística n.º 2/91, de 16 de Janeiro de 1992, que determina que os ativos adquiridos a título gratuito são valorizados pelo seu justo valor. No mesmo sentido disporia o n.º 2 do artigo 21.º do CIRC, ao considerar como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado.
A Requerente entende não estar em causa uma reavaliação extraordinária, pois que este é um ajustamento, geralmente por acréscimo, de quantia assentada no ativo e que dá origem a um excedente a inserir no capital próprio, ou seja, é uma (nova) mensuração de ativos, após o reconhecimento inicial. Ainda segundo a Requerente, os imóveis só foram contabilisticamente valorizados uma vez, com referência ao momento da sua transmissão, valor que se manteve sempre inalterado na contabilidade. Isto porquanto os relatórios de avaliação (apesar desta ter ocorrido em 2008) foram realizados em tempo útil, antes do prazo legal de encerramento das contas do exercício de 2007 (exercício em que ocorreu a aquisição dos imóveis).
Conclui afirmando que o princípio do custo histórico (cuja aplicação considera ser sustentada pela AT) não tem qualquer aplicação nesta operação de aquisição de imóveis porque a mesma tem natureza não onerosa, uma vez que a Requerente não incorreu sequer em qualquer custo com tal aquisição.
Nas suas alegações a Requerente reafirmou este entendimento.
V - O Direito
O centro da discussão jurídica do presente caso prende-se com o valor de aquisição a considerar para efeitos da determinação das mais-valias logradas pela Requerente aquando da alienação de um conjunto de imóveis, por permuta ocorrida em 2014.
Tais imóveis passaram a integrar o património societário da Requerente por via da realização de prestações acessórias gratuitas exigidas à sócia única (e por esta realizadas) em 2007, tendo o valor das mesmas sido fixado, na escritura pública que concretizou o cumprimento de tais prestações, em € 3.059.425,00. Este valor coincidia com o valor de registo contabilístico dos imóveis na esfera da sócia.
Já em 2008, tais imóveis foram objeto de uma avaliação levada a cabo pela Requerente, destinada a determinar o seu "valor de mercado", com fundamento no artigo 21.º/n.º 2 do Código do IRC e na Diretriz Contabilística n.º 2/91; o valor resultante de tal avaliação foi de € 7.528.814,00. É este segundo valor que a Requerente considera como valor de aquisição de tais imóveis.
Por seu turno, a AT contesta a consideração deste valor como valor de aquisição para efeitos de determinação da mais-valia registada em 2014, entendendo, ao invés, que deve ser considerado para tal efeito o valor vertido na escritura pública.
II. Entende este Tribunal Arbitral que o artigo 21.º/n.º 2 do Código do IRC e Diretriz Contabilística n.º 2/91 não encontram aplicação no presente caso.
Cremos, com efeito, que o regime consagrado em tais normas - do qual se valeu a Requerente - não se concilia com as prestações acessórias aqui em causa, mesmo assumindo terem natureza gratuita.
Primeiro, porquanto, sendo tais prestações instrumentos de capital próprio (e esta parece ser também a leitura da Requerente), estariam excluídas na quantificação do lucro tributável do exercício em que aconteceram, por força do disposto no art.º 21.º/n.º 1/alínea a) do Código do IRC.
Assim sendo, o artigo 21.º/n.º 2 deste Código não lhes é aplicável, uma vez que esta disposição pressupõe, precisamente, esse concurso na quantificação do lucro tributável: "Para efeitos da determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado...".
Se, do ponto de vista literal, a aplicação direta desta norma se revela, portanto, inadmissível, não menos o será atentos outros elementos que devem presidir à interpretação de um preceito legal, nomeadamente a sua ratio. A posição do prestador de prestações acessórias de "gratuitas" não é, com efeito, idêntica à de um doador, como também a Requerente expressamente reconhece.
Na verdade, atenta a natureza jurídica das operações em causa, vemos que o devedor da prestação de doação (doador) não só não possui direito a uma qualquer contraprestação como, a partir do momento em que realiza a doação, perde definitivamente qualquer interesse ou pretensão sobre o objeto doado.
Diversamente se passam as coisas com o prestador de prestações acessórias gratuitas, o qual, sem prejuízo de não ter direito a uma contraprestação definida e concreta da parte da sociedade - daí a designação legal de "gratuita", como explica a doutrina - reserva, apesar disso, um interesse residual futuro (e que sai alargado por força, precisamente, da realização das prestações gratuitas) na mesma sociedade, fruto da sua condição de sócio.
É, assim, a própria inexistência de identidade de situações que inviabiliza a “extensão” da aplicação daquela norma ao caso concreto.
Acaso não se considerassem tais prestações acessórias instrumentos de capital próprio, o subsequente resultado seria o concurso integral do valor dos imóveis entregues em cumprimento daquelas prestações acessórias para a determinação do lucro tributável e a consequente tributação plena desta variação patrimonial positiva logo em 2007 - o que não sucedeu (não é alegado ter sucedido).
A AT, por seu turno, toma como referência o valor identificado para os imóveis na escritura de concretização das prestações acessórias.
Trata-se, com efeito, de um valor que resultou da convergência da vontade das partes naquele negócio jurídico, do valor do bem por elas estimado naquele momento. É, por conseguinte, um valor válido para consideração fiscal enquanto valor de aquisição em operações futuras que tomem por base os imóveis entregues.
Houve, indiscutivelmente, duas mensurações dos ativos em causa, por diferentes valores: uma no ato da escritura (coincidente com o valor constante da ata da Assembleia Geral da Requerente que decidiu a realização se tais prestações); outra resultante da avaliação posteriormente efetuada pela Requerente. E isto sem prejuízo do facto de na contabilidade de a Requerente apenas constar um único valor (o da avaliação), por os seus efeitos (o valor dela resultante) terem sido reportados à data da escritura.
Note-se a diferença essencial entre estas duas mensurações do valor dos bens transmitidos: a constante da escritura resultou de um acordo bilateral das partes, a Requerente e a sua sócia única. Da avaliação efetuada pela Requerente resultou uma fixação unilateral do valor dos imóveis, que apenas relevou, contabilística e fiscalmente, na esfera desta (como resulta do alegado pela Requerente).
Assim, a admitir-se tal relevância fiscal da avaliação efetuada pela Requerente, tão pouco se compreenderia que o valor pelo qual os bens imóveis passaram a integrar a esfera patrimonial desta sociedade pudesse ser distinto daquele valor pelo qual tais bens deixaram de integrar a esfera patrimonial do sócio prestador. Esta disparidade de registo - que traduziria uma disparidade de valor entre os intervenientes na operação - não abona, igualmente, em favor da tese da Requerente, uma vez que permitiria a artificial criação de um muito significativo valor económico não tributável, um step-up.
Tal divergência resulta, ainda, menos aceitável se tivermos presente o facto de a Requerente ser uma sociedade que era totalmente dominada pela sua sócia única.
Pode, até, aceitar-se que o valor escriturado dos imóveis em causa não correspondia ao seu valor de mercado. Mas, nesse caso, estando em causa o valor de bens transmitidos por força de negócio jurídico bilateral, o valor atribuído teria forçosamente que ser corrigido por acordo de ambas as partes (v.g., através de retificação da escritura), de forma a produzir efeitos, contabilísticos e fiscais, na esfera de ambas.
Concluindo: a avaliação efetuada pela Requerente só pode ser considerada como uma reavaliação, decidida unilateralmente e desprovida de efeitos fiscais (ainda que, porventura, contabilisticamente útil) – como entende a AT -, donde o valor vertido na escritura se consolidou enquanto valor de aquisição para todos os efeitos fiscais.
Por último, sempre se acrescentará que a questão que se coloca no presente caso não é a de saber, em abstrato, como se deve determinar o valor dos bens transmitidos por força de prestações acessórias gratuitas, se o mesmo deve corresponder ao custo histórico ou ao valor de mercado; o que importa, isso sim, é saber, no caso concreto, da relevância fiscal da alteração (para o valor de mercado), tal como foi feita, do valor inicialmente atribuído a tais bens (o qual correspondia ao seu valor histórico).
VI- DECISÃO
Julga-se totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, sendo mantidas as impugnadas liquidação de IRC n.º 2016…, relativa ao exercício de 2014, liquidação de juros n.º 2016…, assim como a demonstração de acerto de contas n.º 2016… .
VII - Valor do processo
Tendo em consideração o disposto no artigo 306º, nº 2, do CPC, no artigo 97º-A, nº 1, do CPPT e no artigo 3º, nº 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 280.844,86.
VIII - CUSTAS
As custas do processo são da responsabilidade da Requerente, nos termos do n.º 2 do art.º 5º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
*
Notifique-se.
Lisboa, 23 de maio de 2017
O Árbitro-Presidente
Rui Duarte Morais
A Árbitro Vogal
Ana Maria Rodrigues
O Árbitro Vogal
Gustavo Lopes Courinha