DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
I.1
-
Em 22 de Setembro de 2016 a contribuinte A…, S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede em Lugar do…–…, …-… ... requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
-
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 10 de Outubro de 2016.
-
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n.º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
-
A AT apresentou a sua resposta em 24 de Janeiro de 2017.
-
Por despacho datado de 26.01.2017 a Requerente foi notificada para, querendo, pronunciar-se sobre a exceção invocada pela Requerida.
-
A Requerente pronunciou-se em 06.02.2017 sobre a exceção invocada pela Requerida.
-
Por despacho de 07.02.2017, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.
-
Em 14 de Fevereiro de 2017 a Requerente apresentou alegações.
-
A Requerida apresentou as suas alegações em 23 de Fevereiro de 2017.
-
Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC n.º 2013…, relativa ao exercício de 2011, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à requerente da quantia de €31.743,63, acrescida de juros indemnizatórios.
II.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
1. A Requerente considera que os valores do benefício fiscal (SIFIDE) que deixaram de ser deduzidos por alegada insuficiência de coleta deverão ser abatidos à parcela da coleta de IRC que inclui as tributações autónomas, na medida em que estas são, também, IRC.
2. As tributações autónomas são componentes do IRC.
3. Os artigos 89.º e 90.º do CIRC, bem como outras normas deste Código, designadamente as relativas às declarações previstas nos artigos 120.º e 122.º, são aplicáveis às tributações autónomas.
4. A nova norma do n.º 21 aditada ao artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, independentemente de ser ou não verdadeiramente interpretativa, em nada altera esta conclusão, pois aí se estabelece, no que concerne à forma de liquidação das tributações autónomas, que ela «é efectuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores».”
5. Acrescenta a Requerente que, por mera interpretação declarativa, conclui-se que o artigo 4.º, n.º 1, do SIFIDE II, ao estabelecer a dedução «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência», implica a dedução ao montante das tributações autónomas que são apuradas nos termos desse artigo 90º.
6. Mais alega que, no caso dos benefícios fiscais, prevê-se explicitamente a possibilidade de interpretação extensiva (artigo 10.º do EBF), mas não de interpretação restritiva, pelo que, em regra, o benefício fiscal não deve ser interpretado com menor amplitude do que a que, em uma interpretação declarativa, resulta do teor da norma que o prevê.
7. Na verdade, não há qualquer sinal, nem na Lei n.º 7-A/2016, nem no Relatório do Orçamento para 2016, nem na sua discussão, de que com o aditamento no artigo 88.º do CIRC de uma norma geral proibindo deduções ao montante global apurado de tributações autónomas, se pretendesse interpretar restritivamente a expressão «deduzir ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC» que consta de uma norma especial de um diploma avulso, como é o SIFIDE II.
8. Na falta de uma intenção inequívoca em sentido contrário, vale a regra de que a lei geral não altera lei especial (artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil), que tem a justificação o facto de que «o regime geral não inclui a consideração das condições particulares que justificaram justamente a emissão da lei especial».”
9. Deste modo, conclui a Requerente que declarada a ilegalidade da autoliquidação peticionada, tem direito não só ao respetivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, a juros indemnizatórios, calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago, em função do incremento da utilização de benefícios fiscais (€ 31.743,63) contados, até ao integral reembolso do mesmo, após um ano da data da apresentação deste pedido de revisão oficiosa do imposto.
II.B Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:
-
O pedido de pronúncia arbitral sub judice vem formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de um ato de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) relativo ao ano de 2011, formulado, em 29.03.2016, ou seja, em circunstâncias de tempo em que se mostrava já decorrido o prazo de reclamação graciosa a que alude o artigo 131º do CPPT.
-
Ora, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, verifica-se a exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido supra, circunstância que impõe se determine a absolvição da Entidade Demandada da Instância [cf. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT].
-
A AT apenas se vinculou, nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de ato de autoliquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de reclamação (nos termos do artigo 132º do CPPT).
-
Quando o legislador se refere ao recurso à via administrativa, quer-se apenas referir aos meios previstos nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, atentos ao elemento literal e, por conseguinte, inelutável, do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011.
-
Ora, se o legislador não previu, no artigo 2.º daquela Portaria, o procedimento de revisão oficiosa como equiparável ao recurso à via administrativa, maxime à reclamação graciosa, para efeitos de aceder ao pedido de pronúncia arbitral, foi, certamente, porque não o pretendeu fazer.
-
Sob pena de, se assim não se entender, tal interpretação ser não só ilegal, mas manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT.
-
Prossegue a requerida alegando que a figura das tributações autónomas tem sido instrumentalizada para a prossecução de objetivos diversos, que abarcam desde o originário propósito de evitar práticas de evasão e de fraude –, através de despesas confidenciais ou não documentadas, ou de pagamentos a entidades localizadas em jurisdições com regimes fiscais privilegiados, à substituição da tributação das vantagens acessórias sob a forma de despesas de representação ou de atribuição de viaturas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, na esfera dos respetivos beneficiários –, até à finalidade de prevenir o fenómeno designado por “lavagem de dividendos” (cfr. n.º 11 do art.º 88.º CIRC) ou de onerar, por via fiscal, o pagamento de rendimentos considerados excessivos (cfr. n.º 13 do mesmo preceito).
-
Na realidade, a integração das tributações autónomas, no Código do IRC (e do IRS), conferiu uma natureza dualista, em determinados aspetos, ao sistema normativo deste imposto, que se corporizou, nomeadamente, no quadro da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º do CIRC, em apuramentos separados das respetivas coletas, por força de obedecerem a regras diferentes.
-
Na realidade, faça-se notar que o traço comum a todas as realidades refletidas nas deduções referidas no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC reside no facto de respeitarem a rendimentos ou gastos incorporados na matéria coletável determinada com base no lucro do sujeito passivo ou pagamentos antecipados do imposto, sendo, por isso, inteiramente alheios às realidades que integram os factos geradores das tributações autónomas.
-
A interpretação da requerente resultaria num duplo efeito contraditório: a consecução dos objectivos de um incentivo fiscal orientado para o desenvolvimento económico do país poderia, no limite, eliminar a coleta resultante das tributações autónomas e propiciar a incentivação de comportamentos traduzidos na realização de despesas que o legislador teve como propósito desincentivar.
-
Finalmente, não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios.
II.C A Requerente respondeu às exceções da seguinte forma:
-
Importa relembrar que sempre que o pedido de revisão do ato tributário tenha por objeto um ato de liquidação – como acontece na presente situação –, aquele se trata, à imagem da reclamação graciosa, de um meio de impugnação administrativa de um ato daquele tipo, podendo naturalmente estribar-se em fundamentos idênticos aos que podem basear a mencionada reclamação graciosa.
-
A resposta não pode ser outra senão a seguinte: a lei tão-só pretende alcançar a administrativização desses atos dos particulares, administrativização essa que também ocorre quando, na sequência de pedido de revisão atinente a ato de autoliquidação, a AT se pronuncie negativamente sobre o mérito da questão, como sucedeu in casu.
-
Assim sendo, deve concluir-se que fazer prevalecer o entendimento da AT equivalerá à prevalência do formal sobre o substantivo, apenas permitida por uma leitura positivista do direito por aquela mobilizado, algo em que se não transige.
II. SANEAMENTO
É invocada uma exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, que cumpre apreciar previamente.
Alega a Requerida que o Tribunal é materialmente incompetente porque o pedido de pronúncia arbitral foi formulado na sequência do indeferimento de um pedido de revisão oficiosa.
A Requerida conclui que não tendo o pedido (anulação da autoliquidação) sido objeto de prévia reclamação graciosa o Tribunal Arbitral está impedido de apreciá-lo (art. 2º, n.º1, al. a) do RJAT e art. 2º, al. a) da Portaria n.º112-A/2011).
Quid Juris?
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é definida, em primeira linha, pelo artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, que estabelece o seguinte:
“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”
Importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão do ato tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD, pelo art. 2.º do RJAT.
Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes atos. No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau, que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos atos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes atos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de atos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau.
Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, interpretou as competências dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação aos casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efetuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa.
No caso em apreço o ato sindicado é a autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2012. A causa de pedir é a suposta ilegalidade da autoliquidação de IRC. Em data prévia a contribuinte apresentou um pedido de revisão (art. 78º da LGT). O pedido de revisão comportou a apreciação da legalidade do ato primário e foi indeferido.
Porquanto, por esta via não existe qualquer impedimento que obstaculize a apreciação do pedido, sendo o Tribunal competente.
Sucede que, em segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é limitada pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1 do RJAT, veio a ser definida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março, que estabelece no art. 2º o seguinte, no que aqui interessa: “Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
(…)”
A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação.
O direito à tutela jurisdicional efetiva é um direito fundamental, que não deve levar-nos a afastar interpretações meramente ritualistas e formais (art. 20º, n.º1 da CRP). A reforma da justiça administrativa condenou expressamente o excesso de formalismo (art. 7º do CPTA). As normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.
Igual filosofia é seguida pelo CPC “(…) que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais” In Ac. do TRC de 24.02.2015, proc. n.º 1530/12.7 TBPBL.C1
Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal, que defende a AT no presente processo, não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1 do Código Civil proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
No âmbito da ponderação dos pressupostos processuais, os princípios antiformalistas, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, pelo que, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área, deve optar-se por aquela que favoreça a ação e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pela parte.
Quanto à correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adotem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.
Por isso, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva “ (…) o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme o pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei.”[1]
A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.
É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de atos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de atos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.
Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que “Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no n.º 1”. Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.
Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adotadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa.
Os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade (art. 266º, n.º2 da CRP e 55 da LGT) impõem que a Requerida corrija a autoliquidação que eventualmente conduza a uma arrecadação de uma quantia que face à lei não seja devida (Neste sentido Cfr. LGT Anotada, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, 4º Ed., 2012, pág. 711. No mesmo sentido Cfr. Acórdãos do STA proferidos em 11.05.005, proc. 319/05, em 12.09/2015, proc. n.º 476/12, em 04.05.2016, proc. n.º 407/15 e Ac. do TCAS proferido em 21/05/2015, proc. n.º 7787/14). A AT tem o dever de revogar atos ilegais, com limitações de índole temporal correspondentes ao prazo de revisão do art. 78º da LGT (Neste sentido Cfr. Ac. do STA de 12.07.2006, proc. n.º 402/06).
A Requerida teve a oportunidade de corrigir uma eventual ilegalidade. Contudo, a Requerida manteve o ato.
Por exigência dos princípios citados, padecendo o ato tributário de algum vício que tenha sido invocado em sede judicial, deve o mesmo ser apreciado.
Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de atos de autoliquidação, pois sendo estes atos tributários, são expressamente referidos no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de atos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do ato tributário em vez da reclamação graciosa.
Por isso, é de concluir que o art. 2º, al. a) da Portaria n.º 112-A/2011, ao fazer referência ao artigo 131.º do CPPT, pretende impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de atos de autoliquidação.
Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do ato tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adoção da interpretação que consagre a solução mais acertada.
É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjetivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.
Desta perspetiva, não se colocam as questões de inconstitucionalidade - (violação dos princípios constitucionais da separação dos poderes e da legalidade) - que a Autoridade Tributária e Aduaneira suscita com base na errada interpretação literal que fez daquela norma.
Não é explicado pela AT porque é que foram violados os preceitos constitucionais invocados.
Ainda assim, a assunção de competência material por este tribunal em nada interfere com a separação de poderes definida na Constituição, na medida em que se exerce uma função jurisdicional (art. 1º do RJAT) que não está adstrita à competência de outros órgãos de soberania (Presidente da República, Assembleia da República ou Governo).
Mais, a solução encontrada por este Tribunal encontra base legal (art. 2º, n.º1, al. a) do RJAT e art. 2º, al. a) da Portaria 112-A/2011 de 22.03) não se deslumbrando a violação da legalidade.
Face ao exposto, em conclusão, o Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.
As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo é o próprio.
Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito do pedido.
III. THEMA DECIDENDUM
A questão central a decidir, tal como colocada pela Requerente, está em saber se a autoliquidação de IRC (incluindo as tributações autónomas) relativa aos exercícios de 2011 padece do vício material de violação de lei, objeto de impugnação porquanto, segundo entende, não deve ser vedada a dedução do SIFIDE à parte da coleta correspondente às tributações autónomas.
IV. – MATÉRIA DE FACTO
IV.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental, o processo administrativo tributário junto e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
-
Em 31 de Maio de 2012 a ora requerente procedeu à apresentação da declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2011.
-
Em 30 de Maio de 2013 a requerente procedeu à entrega da declaração de IRC Modelo 22 de substituição referente ao exercício de 2011, tendo nesse momento procedido à autoliquidação de tributações autónomas desse mesmo ano de 2013, no montante de € 31.743,63.
-
Em face da declaração substitutiva a Requerente passou a declarar um prejuízo fiscal de €505.394,62.
-
Em 29 de Março de 2016 a requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa contra a referida autoliquidação respeitante ao exercício de 2011.
-
A AT indeferiu o pedido de revisão oficiosa por despacho datado de 13.07.2016.
-
A AT não permite que a Requerente deduza a totalidade dos montantes de SIFIDE (€595.801,76) aos montantes apurados a título de tributação autónoma.
IV.2. Factos não provados
Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram considerados provados.
IV.3. Motivação da matéria de facto
Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.
Os factos que constam dos números 1 a 6 são dados como assentes pela análise do processo administrativo, pelos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 3 do pedido de constituição do Tribunal) e pela posição assumida pelas partes.
V. O Direito
V.1. A natureza das tributações autónomas
As taxas de tributação autónoma incidem sobre determinados encargos suportados por sujeitos passivos de IRC, que pela sua natureza podem apresentar uma conexão mais ambígua na realização dos rendimentos sujeitos a tributação ou na manutenção da fonte produtora. Cada vez mais se procura, pelo mecanismo da tributação autónoma, dissuadir alguns excessos na ocorrência deste tipo de encargos.
Ao contrário do que sucede com a filosofia inerente às restantes disposições do Código de IRC não se tributa rendimento mas sim despesas ou gastos.
Com as tributações autónomas pretende-se de algum modo penalizar os sujeitos passivos pela realização de alguns tipos de encargos ou despesas, em determinadas condições, ainda que tais sujeitos passivos tenham obtido prejuízo fiscal e, portanto, nesse exercício não pagassem IRC.
A incidência de tributação autónoma não se circunscreve às sociedades e demais sujeitos passivos de IRC, com finalidade lucrativa, sendo também tal tributação extensiva às associações, fundações, IPSS e outras entidades que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda a todas as entidades que tenham rendimentos isentos ou não sujeitos a IRC.
Relativamente às tributações autónomas, adiante-se que estas são apuradas de forma autónoma e distinta do apuramento processado nos termos do artigo 90º do CIRC.
Desenvolvendo melhor a questão da natureza das tributações autónomas e o seu grau de conexão com o IRC, há que recuar ao ano de 1990 para encontrarmos a primeira intervenção do legislador no sentido de sujeitar determinadas despesas a tributação autónoma, ocorrida com a publicação do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, cujo artigo 4.º previa que «as despesas confidenciais ou não documentadas efetuadas no âmbito do exercício de atividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respetivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10%, sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC.» Esta norma foi objeto de diversas alterações posteriores que, sucessivamente procederam ao aumento da taxa de tributação nela prevista.
Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.
Saldanha Sanches (Cfr. Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 407), a propósito da tributação autónoma prevista no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC (redação de 2005, correspondente, no essencial, ao artigo 88º, n.º3, n.º4 e n.º7, na redação de 2013), escreveu o seguinte: «Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida da taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal. Se na declaração do sujeito passivo não há lucro, o custo pode ser objeto de uma valoração negativa: por exemplo, temos uma taxa de 15% aplicada quando o sujeito passivo teve prejuízos nos dois últimos exercícios e foi comprada uma viatura ligeira de passageiros por mais de € 40 000 (artigo 81.º, n.º 4). Com esta previsão, o sistema mostra a sua natureza dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procura desencorajar, como a aquisição de viaturas para fins empresariais ou viaturas em princípio demasiado dispendiosas quando existem prejuízos. Cria-se, aqui, uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado – excecionalmente – em objeto de tributação.» (sublinhado da nossa autoria).
Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso (tributações autónomas) tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (Cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).
Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).
Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.
Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.
Por esta razão, Sérgio Vasques (Cfr. Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação autónoma do IRC.
As tributações autónomas, de acordo com a sua regulamentação inicial, constituíram como que um sucedâneo do regime da não dedutibilidade anteriormente previsto no CIRC.
Com efeito, na sua génese estava a não aceitação fiscal de uma percentagem de certas despesas, constituindo as tributações autónomas uma forma alternativa e mais eficaz de correção dos custos sempre que se trate de áreas mais propícias à evasão fiscal (ajudas de custo, despesas de representação, despesas com viaturas, etc.).
Assim, não seria razoável (antes até contrário ao motivo que levou o legislador a tributar autonomamente aquelas despesas) que, através da sua dedução ao lucro tributável a título de gastos, fosse eliminado o fundamento da existência das tributações autónomas.
A jurisprudência arbitral tem decidido no sentido de que as tributações autónomas pertencem, por regra, sistematicamente, ao IRC, e não ao IVA, ao IRS, ou a um qualquer outro imposto do sistema fiscal português. É o caso, entre outros, dos processos arbitrais proferidos no âmbito do CAAD, n.ºs 166/2014-T, 246/2013-T, 260/2013-T, 282/2013-T, 6/2014-T e 36/2014-T, 697/2014-T.
Também os Tribunais superiores têm entendido que “as tributações autónomas, embora formalmente inseridas no Código do IRC, sempre tiveram um tratamento próprio, uma vez que não incidem sobre o rendimento, cuja formação se vai dando ao longo do ano, mas antes sobre certas despesas avulsas que representam factos tributários autónomos sujeitos a taxas diferentes das de IRC”(…) “Pese embora tratar-se de uma forma de tributação prevista no CIRC, nada tem a ver com a tributação do rendimento, mas sim com a tributação de certas despesas, que o legislador entendeu, pelas razões atrás apontadas fazê-lo de forma autónoma.” (Acórdão do STA de 21/03/2012, proc. 830/11 e, no mesmo sentido, Ac. do STA de 06/07/2011, proc. n.º0281/11, Ac. do STA de 17.04.2013, proc. n.º 166/13, Ac. do STA de 21.01.2015, proc. n.º 04710/14 e Ac. do TCAS de 16.10.2014, proc. n.º 06754/13).
O Tribunal Constitucional no Ac. n.º 617/2012 de 31/01/2013 defendeu que na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto é instantâneo, pois “esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.”
E no acórdão n.º 310/12, de 20 de junho, ponderou o Tribunal Constitucional que “ (...) contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.”
A generalidade da Doutrina não se afasta do entendimento dos tribunais superiores. Assim e tal como ensina o Prof. RUI MORAIS, “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento.” (RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pp. 202-203). E também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614). Na mesma linha a Professora Ana Paula Dourado assevera que “é consensual que a tributação autónoma atinge a despesa do sujeito passivo-contribuinte e não o seu rendimento.”Direito Fiscal, 2015, Almedina, pág. 237
Não se afigura, deste modo, questionável, que o mecanismo de tributação autónoma do conjunto das realidades previstas no artigo 88.º do CIRC vise, primacialmente, acautelar os equilíbrios gerais do próprio sistema fiscal, os equilíbrios específicos do IRC e a receita do próprio imposto. Isto é, vise impedir que através da relevação significativa de encargos como os previstos no artigo 88.º, se não introduzam entorses afetadoras do sistema e a expetativa sobre o que deverá ser a receita “normal” do imposto. No caso, como é igualmente consabido, do que se trata é de desincentivar a realização / relevação dessas despesas, desde logo porque, pela sua natureza e fins, elas podem ser mais facilmente objeto de desvio para consumos que, na essência, são privados ou correspondem a encargos que não deixam de ter, também, como finalidade específica e última, o evitamento do imposto. Estas são realidades que, tal como já se deixou anteriormente assinalado, apresentam alguma medida de censurabilidade já que, não violando diretamente a lei, geram desequilíbrios sensíveis e importantes sobre a ideia geral de justiça, sobre o dever fundamental de contribuir na proporção dos seus haveres, da igualdade, do sacrifício, da proporcionalidade da medida do imposto em face das manifestações possíveis de riqueza, da tributação do rendimento real e da justiça.
Funcionando de um modo diferente do que constitui o escopo essencial do IRC – que tributa os rendimentos – as tributações autónomas, reafirma-se, tributam certas despesas ou encargos específicos – e constituem uma realidade instrumental, acessória desse imposto, na justa medida em que é em função dele que foram instituídas e são, por isso, passíveis de lhes ser reconhecida uma instrumentalidade ou acessoriedade de fins, radicada na salvaguarda dos fins do próprio imposto onde se manifestam.
Tem-se assim como certo que as tributações autónomas não constituem IRC em sentido estrito mas encontram-se a este (IRC) imbricadas, devendo conter-se nos “outros impostos” de que nos dá conta a parte final da alínea a) do nº 1 do artigo 45º do CIRC (redação em vigor em 2011).
Revelações dessa ligação de funcionalidade, e no quadro da intenção do legislador no seu todo, sobressaem, por exemplo da disciplina do artigo 12º do CIRC a propósito das entidades sujeitas ao regime da transparência fiscal, ao não as tributar em IRC, “salvo quanto às tributações autónomas”, relação essa que igualmente se manifesta face ao nº 14 do artigo 88º do CIRC, no sentido em que as taxas de tributação autónoma têm em consideração o facto do sujeito passivo apresentar ou não prejuízo fiscal.
Analisada ainda sob outro prisma, haverá que considerar as tributações autónomas no contexto de normas anti-abuso específicas e a sua similitude com o regime previsto sob o nº 1 do artigo 65º do CIRC, (“não são dedutíveis para efeitos do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizada e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”). Visando as tributações autónomas reduzir a vantagem fiscal alcançada com a dedução ao lucro tributável dos custos sobre os quais incide e ainda combater a evasão fiscal que este tipo de despesas, pela sua natureza, potencia, não poderá ser ela mesma, através da sua dedução ao lucro tributável a título de custo do exercício, constituir fator de redução dessa diminuição de vantagem pretendida e determinada pelo legislador.
Em conclusão, as tributações autónomas, que incidem sobre encargos dedutíveis em IRC, integram o regime e são devidas a título deste imposto, não constituindo as despesas com o pagamento daquelas tributações encargos dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável.
Este entendimento foi legal e recentemente clarificado pelo artigo 3º da Lei nº 2/2014, de 16 de Janeiro, que aditou o artigo 23º A) ao CIRC (ao mesmo tempo que o seu artigo 13º revogou o artigo 45º) com a seguinte redação:
Artigo 23º A)- Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
“1. Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:
a) o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros”.
Não subsistindo dúvidas quanto ao carácter interpretativo do preceito transcrito, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica, na prática, tal norma, vem expressar o que o legislador sempre entendeu e continua a entender, ou seja que os encargos decorrentes com o custo associado às tributações autónomas, não relevam para efeitos de apuramento do lucro tributável.”
Acresce que, recentemente a Lei n.º 7-A/2016 de 30.03 trouxe uma nova redação ao art. 88º, n.º21 do CIRC:
21 -A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.
De acordo com o art. 88º, n.º21 do CIRC é evidente que às tributações autónomas não são efetuadas quaisquer deduções.
No art. 135º do mesmo diploma, o legislador decidiu conferir carácter interpretativo à norma citada. Como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela deve considerar-se lei interpretativa aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência pelos seus próprios meios poderia ter chegado. Cfr. C.C. Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1987, pág. 62
A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, retroagindo os seus efeitos à entrada em vigor da antiga lei, como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada, ressalvando-se os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença transitada, por transação ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza (art. 13º, n.º1 do Código Civil). De acordo com o n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil, a lei interpretativa considera-se integrada na lei interpretada. Assim, citando os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela: «Isto quer dizer que retroage os seus efeitos até à entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada». In CC anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1987, pág. 62
Como refere o Prof. Baptista Machado “ (…) a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e a situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA [lei antiga] com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas.” In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1996, pág. 246. Mais prossegue o Prof. Batista Machado afirmando: “Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.“ In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1996, pág. 247
No caso em apreço a solução, que resultava de uma interpretação restritiva do art. 88º, e 93º do CIRC era controvertida como revela a decisão do CAAD proferida no processo n.º697/2014-T. Para além disso, a solução pugnada pelo legislador foi ao encontro de uma decisão judicial conhecida até à data em questão, que analisou a dedutibilidade, ou não, dos montantes do SIFIDE ao valor das tributações autónomas. O Tribunal não ignora que existia uma corrente jurisprudencial inversa da citada (proc. 219/2015T do CAAD). Contudo, o legislador fez claramente uma opção pela corrente emanada da decisão n.º 697/2014-T.
A lei interpretativa distingue-se da lei inovadora por visar resolver uma questão duvidosa ou controversa na lei interpretada e por a resolver num sentido que seria possível a qualquer intérprete. Porquanto, tratando-se de uma questão controvertida e tendo a Lei n.º7-A/2016 de 30.03 adotado a interpretação seguida por uma decisão judicial proferida, afigura-se que a lei interpretativa não é inovadora.
V. 2. Quanto à não dedutibilidade do SIFIDE
O sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento (I&D) empresarial (SIFIDE) foi inicialmente aprovado pela Lei n.º 40/2005 de 03.08.
O caso em apreço é relativo ao exercício de 2011, devendo por isso ser considerada a legislação à data em vigor. Para 2011 foi aprovado o SIFIDE II (art. 133º da Lei n.º 55ºA/210 de 31 de Dezembro).
O SIFIDE permite que os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exercessem, a título principal ou não, uma atividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável deduzissem à coleta, e até à sua ocorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento na parte que não tenha sido objeto de comparticipação financeira do Estado, numa dupla percentagem: a) taxa de base – 32,5% das despesas realizadas naquele período; e b) taxa incremental - 50% das despesas realizadas naquele período em relação à média aritmética simples dos dois exercícios anteriores, até ao limite de €1.500.000.
Trata-se, no essencial, na possibilidade de deduzir à coleta de IRC apurada no exercício, o montante de crédito fiscal verificado. As despesas que, por insuficiência de coleta, não possam ser deduzidas no exercício em que foram realizadas podem ser deduzidas até ao sexto exercício imediato.
Tendo em conta os respetivos pressupostos, o SIFIDE é um benefício fiscal automático (artigo 5.º n.º 1 do EBF), por não carecer de reconhecimento prévio. Este benefício fiscal tem uma natureza mista, pois incorpora não só requisitos objetivos relativos ao tipo e natureza das despesas elegíveis (artigo 3.º e 4.º do SIFIDE II), mas também requisitos subjetivos que atendem às condições e natureza dos beneficiários (artigos 5.º a 7.º).
Para poderem beneficiar deste incentivo fiscal, os sujeitos passivos devem cumprir as condições e obrigações previstas nos artigos 5.º a 7.º, entre outras, a não tributação por métodos indiretos, a inexistência de dívidas ao Estado e o processo de documentação fiscal. Este deve conter a declaração comprovativa, de que as atividades exercidas correspondem efetivamente a ações de investigação ou desenvolvimento, os respetivos montantes envolvidos, o cálculo do acréscimo das despesas em relação à média dos dois exercícios anteriores e de outros elementos considerados pertinentes. A declaração comprovativa é emitida por entidade nomeada por despacho do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, a integrar no processo de documentação fiscal do sujeito passivo a que se refere o artigo 130.º do Código do IRC. Nesta documentação deve constar também um documento que evidencie o cálculo do benefício.
Será que os valores reconhecidos em sede de SIFIDE II são deduzidos à coleta produzida pelas tributações autónomas?
Nos termos do art. 4º, n.º3 do SIFIDE II:
3 - A dedução é feita, nos termos do Artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior.
Pois bem, a coleta a que se refere o artigo 90º quando a liquidação deva ser feita pelo contribuinte (situação que ocorre nos autos), é apurada com base na matéria coletável que conste nessa liquidação/autoliquidação [cf. artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do CIRC].
Deste modo, o crédito em que se traduz o SIFIDE é deduzido apenas à coleta assim apurada, ou seja, à coleta apurada com base na matéria coletável e não à coleta resultante das tributações autónomas. Tal como foi referido atrás, a liquidação das tributações autónomas é feita ao abrigo do art. 88º do CIRC, sendo apurada de forma autónoma e distinta do apuramento processado nos termos do artigo 90º do CIRC.
Mais, a liquidação das tributações autónomas não admite qualquer dedução (art. 88º, n.º21 do CIRC).
Deste modo, existe um impedimento legal expresso no Código do IRC para que os créditos SIFIDE II decorrentes sejam deduzidos às tributações autónomas.
Em conclusão, na esteira das decisões proferidas anteriormente no CAAD (proc. n.º 722/2015, proc. n.º 727/2015, proc. n.º 785/2015 e proc. n.º 629/2016) decido pela não dedução dos montantes relativos ao SIFIDE ao montante das tributações autónomas por ser contrária ao disposto nos arts. 88º do CIRC.
V.3 Juros indemnizatórios
A apreciação da condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios fica prejudicada pela solução atrás alcançada.
Mantendo-se o ato tributário sindicado, em consequência, o pedido de juros indemnizatórios deverá também ser julgado improcedente.
III. DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a ilegalidade parcial da autoliquidação de IRC n.º 2013…, relativa ao exercício de 2011;
b) Manter integralmente o ato tributário objeto deste processo;
c) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo, nos termos infra.
Fixa-se o valor do processo em €31.743,63 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar integralmente pela Requerente, uma vez que o pedido foi integralmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 21 de Abril de 2017
O Tribunal Arbitral
___________________________________
(André Festas da Silva)
[1] In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Baptista Machado, Almedina, Coimbra, 1996, Pág. 185