DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 14 de novembro de 2016, a sociedade A…, Ld.ª, com o NIPC … e sede na …, n.º…, …, em Lisboa (doravante designada por Requerente), apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, do RJAT.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 2 de dezembro de 2016, tendo a signatária sido designada como árbitro do tribunal arbitral singular, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
A Requerente pede ao tribunal arbitral a anulação dos despachos de indeferimento do recurso hierárquico e da reclamação graciosa que mantiveram as liquidações de Imposto do Selo (Verba 10.3, da TGIS), na quantia global de € 22 857,29, cuja anulação igualmente requer, relativas a quatro hipotecas por si constituídas em 4 de dezembro de 2009, como contragarantia de outras tantas garantias bancárias autónomas que lhe foram prestadas pela B…, SA.
Mais pede a Requerente a condenação da Requerida no reembolso das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, da Lei Geral Tributária (LGT), desde a data do respetivo pagamento até à data da sua efetiva restituição.
B. Síntese da posição das Partes
a. Da Requerente:
Como fundamento do pedido de anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo impugnados, invoca a Requerente a acessoriedade material das hipotecas que estiveram na sua base, relativamente às garantias bancárias autónomas que lhe foram prestadas pela B…, SA, acessoriedade da qual decorre a exclusão daquelas hipotecas do âmbito de incidência da verba 10.3, da TGIS, por as referidas garantias bancárias autónomas consubstanciarem contratos especialmente tributados na mesma Tabela Geral (verba 10, da TGIS), formulando, a final, as seguintes conclusões:
1. As liquidações impugnadas são ilegais, por erro na aplicação do direito, dada a violação da exclusão de incidência prevista na verba 10, da TGIS, decorrente do não reconhecimento da verificação dos pressupostos da sua aplicação;
2. As liquidações impugnadas são ilegais, porque violam a proibição de acumulação do imposto relativamente ao mesmo ato ou documento, consagrada no n.º 2 do artigo 22.º, do Código do Imposto do Selo;
3. As liquidações impugnadas são ainda ilegais, por violarem os princípios da igualdade fiscal e da capacidade contributiva, consagrados nos artigos 4.º, n.º 1 e 5.º, n.º 2, da LGT e nos artigos 13.º, n.º 1 e 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
b. Da Requerida:
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo, defendendo a legalidade e a manutenção dos atos de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:
1. O Imposto do Selo “…incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”, conforme o disposto no artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo (CIS);
2. Nos termos da verba 10, da TGIS, ficam sujeitas a Imposto do Selo as garantias das obrigações, independentemente da sua natureza ou forma, nomeadamente a garantia bancária autónoma e a hipoteca, exceto quando materialmente acessórias de outros contratos especialmente tributados na mesma Tabela e sejam constituídas em simultâneo com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diversos;
3. É entendimento da Requerente que é suficiente, para haver acessoriedade, uma qualquer relação de causalidade, ainda que indireta, entre a obrigação e uma garantia prestada; todavia, para efeitos da exclusão prevista na verba 10, da TGIS, a acessoriedade pressupõe uma relação de dependência entre a garantia e a obrigação garantida;
4. A Circular n.º 15/2000 qualifica a garantia bancária autónoma como mera promessa de prestação de garantia, não abrangida pela incidência do Imposto do Selo;
5. Resulta do exposto que as mencionadas hipotecas não são juridicamente a garantia, ou se se quiser, a contragarantia do contrato de garantia bancária autónoma, mas são a garantia do cumprimento do conjunto de deveres assumidos pelo devedor/ordenante no contrato promessa de prestação de garantia.
Termina a AT por requerer a dispensa de produção da prova testemunhal oferecida pela Requerente, dado a questão submetida à apreciação do tribunal arbitral ser uma questão estritamente jurídica e constar dos autos prova documental suficiente.
II. SANEAMENTO
1. O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 1 de fevereiro de 2017, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
2. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
4. A cumulação de pedidos, ainda que relativamente a diferentes atos é admissível, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, na medida em que a respetiva procedência depende da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, no caso concreto, a verba 10, da Tabela Geral do Imposto do Selo.
5. Não foram invocadas exceções que o tribunal arbitral deva apreciar.
6. Por despacho arbitral de 13 de março de 2017, foram as Partes notificadas da possibilidade de dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, se a Requerente a isso se não opusesse, com convite à produção de alegações escritas sucessivas, pelo prazo de 10 dias, com início na Requerente;
7. As Partes não produziram alegações, nem orais nem escritas.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Antes de entrar na apreciação das questões de direito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo (PA) juntos aos autos e, tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:
A) Factos Provados
1. Em 23 de novembro de 2009, foram celebrados entre a Requerente, por si e em nome e por conta dos seus representados, na qualidade de ordenadora e a B…, SA (adiante B…), na qualidade de garante, quatro contratos para prestação de garantia bancária, nos quais era beneficiária a sociedade C…, SA, com a finalidade de “caucionar o bom e integral pagamento pelos representados da ORDENADORA, na dupla qualidade acima indicada, do montante que vier a considerar-se devido em processo arbitral relacionado com o contrato de empreitada celebrado em 2 de Outubro de 2005 entre estes representados e a BENEFICIÁRIA”: (i) Operação n.º…, para garantia da responsabilidade até € 700 000 (setecentos mil euros); (ii) Operação n.º…, para garantia da responsabilidade até € 700 000 (setecentos mil euros); (iii) Operação n.º…, para garantia da responsabilidade até € 422 701,88 (quatrocentos e vinte e dois mil, setecentos e um euros e oitenta e oito cêntimos e (iv) Operação n.º…, para garantia da responsabilidade até € 700 000 (setecentos mil euros), tendo por cada contrato sido pago o Imposto do Selo da Verba 8, da TGIS, da quantia de € 5,00 – Doc. 1 junto à P. I.;
2. Em todos os referidos contratos, em que a B… condicionou a perfeição do contrato e a consequente emissão da garantia à prévia entrega ou depósito à sua ordem, pela Ordenadora, do valor correspondente ao Imposto do Selo devido pela mesma, ficou acordado que (i) a garantia se destinava a vigorar enquanto subsistisse a obrigação que visava garantir – cláusula 7; (ii) a Ordenadora, ora Requerente, autorizava a B… a efetuar os pagamentos que lhe fossem solicitados pela Beneficiária, não tendo de apreciar ou averiguar a justiça do direito desta, limitando-se a notificar a Ordenadora, por escrito, de quaisquer pedidos de pagamento feitos pela Beneficiária, com indicação da data em que procederia ao mesmo – cláusula 9, e, (iii) as quantias que viessem a ser devidas à B… pela Requerente no âmbito do contrato de garantia, ficariam garantidas por hipoteca sobre prédios de sua propriedade, a constituir na Nota Privativa da B…, na data da perfeição daqueles contratos – cláusula 19;
3. Em 4 de dezembro de 2009, foram emitidas as garantias bancárias referentes às Operações n.ºs…, …, … e …, nos termos das quais a B… se obrigava a pagar “imediatamente após a interpelação, em dinheiro, à Beneficiária, e até ao limite desta garantia, todas e quaisquer importâncias que lhe venham a ser solicitadas” (…) “não tendo de cuidar da sua justeza ou conformidade com o disposto no contrato da identificada empreitada” (…), mediante “certidão da decisão do Tribunal Arbitral (…)”, tendo sido pago o Imposto do Selo da verba 10.3, da TGIS, das quantias de € 4 200,00, € 4 200,00, € 2 536,21 e € 4 200,00, respetivamente – Docs. 2 e 3, juntos à P. I.;
4. Na mesma data anterior, foram celebradas, no Notário Privativo da B…, ali se encontrando registadas sob os nºs…, …, … e… , quatro escrituras de constituição de hipoteca sobre imóveis da propriedade da Requerente, nos termos da cláusula 1.ª de cada uma das quais, estas se destinavam à “garantia das responsabilidades decorrentes de um contrato de prestação de garantia bancária, datado de 23 de Novembro de 2009 (…), abrangendo tais responsabilidades: o crédito da … resultante do pagamento que, em execução de uma garantia bancária por ela prestada, (…) vier a fazer à beneficiária da garantia (…)” – Doc. 4, junto à P. I.;
5. Pela constituição das referidas hipotecas, foi liquidado, à taxa de 0,6%, e pago pela Requerente, o Imposto do Selo da verba 10.3, da TGIS, das quantias de € 6 339,70, € 6 339,70, € 3 838,19 e € 6 339,70, num total de € 22 857,29 – Doc. 5, junto à P. I.;
6. A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de Imposto do Selo indicadas no ponto anterior (n.º …2010…, do Serviço de Finanças de Lisboa …), de cujo indeferimento foi notificada através do ofício n.º…, da Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 25 de novembro de 2010 – Doc. 6, junto à P. I.;
7. O recurso hierárquico apresentado da decisão anterior, registado sob o n.º …2010…, foi igualmente indeferido, conforme despacho da Senhora Subdiretora-Geral dos Impostos, de 02/05/2016, notificado à Requerente pelo ofício n.º…, da Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 12 de agosto de 2016 (Registo dos CTT n.º RD … PT) – Doc. 8, junto à P. I.
B) Factos não provados
Não existem factos com relevância para a causa que tenham sido considerados não provados.
III.2 DO DIREITO
1. A questão decidenda
O litígio que o tribunal arbitral é chamado a dirimir prende-se com a questão de saber se, face à redação da verba 10, da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), as hipotecas constituídas pela Requerente como contragarantia de garantias bancárias autónomas, em simultâneo com as mesmas, embora em instrumento diferente, beneficiam da exclusão da incidência ali prevista, por deverem considerar-se acessórias de um contrato especialmente tributado na mesma TGIS, como vem defendido pela Requerente ou se, pelo contrário, as mencionadas hipotecas não são juridicamente a garantia do contrato de garantia bancária autónoma, mas antes garantia do cumprimento do conjunto de deveres assumidos pelo devedor/ordenante no contrato promessa de prestação de garantia, como defende a Requerida.
A fim de dar resposta a tal questão, importa determinar a natureza e o objeto do contrato de garantia bancária autónoma e se entre esse contrato e a contragarantia constituída por uma hipoteca, também ela uma garantia especial das obrigações, abrangida pela verba 10, da TGIS, existe uma relação de acessoriedade material que justifique a exclusão da incidência do Imposto do Selo, da verba 10, da TGIS, na qual se dispõe que o imposto incide sobre “Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro-caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente (…)”.
1.1 Da natureza e objeto do contrato de garantia bancária autónoma
A garantia bancária autónoma, à primeira solicitação, “on first demand” ou “a prima richiesta”, tem sido caraterizada pela doutrina nacional como um contrato atípico, celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 405.º, do Código Civil), que ocorre quando uma determinada entidade, em regra uma instituição bancária, vem, mediante remuneração, garantir pessoalmente o cumprimento de uma obrigação alheia, obrigando-se a pagar ao beneficiário uma certa quantia em dinheiro, em caso de inexecução ou execução defeituosa de um determinado contrato (dito contrato-base), “sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato”[1].
Assim sendo, a garantia autónoma desliga-se ou abstrai-se das vicissitudes do contrato principal, no que se distingue da fiança, pois enquanto o fiador se vincula ao cumprimento da obrigação do devedor, o garante está vinculado a uma obrigação própria que, segundo Francisco Cortez, “pode ser classificada de garantia pela causa (função de garantia), e de indemnização pelo fim (destina-se a reparar os danos do credor) (…)”[2].
Não podemos, pois, deixar de concordar com a Requerida quando afirma que “Nessa medida, porque é necessariamente independente do chamado contrato base, jamais a garantia bancária autónoma pode ser considerada acessória de contrato especialmente tributado na TGIS” (artigo 20.º, da resposta) e que “É, assim, por natureza, inaplicável à garantia bancária autónoma a exclusão tributária da verba 10, parte final, da Tabela Geral do Imposto de Selo” (artigo 22.º, da Resposta).
Mas essa é questão que não vem colocada pela Requerente que, pelo contrário, afirma expressamente nos artigos 39.º e 40.º, da petição inicial, que “Aliás, convém referir que o que aqui se sustenta é a existência de acessoriedade entre as hipotecas constituídas em contragarantia e as garantias bancárias autónomas, …” e “… e não a existência de acessoriedade entre as garantias bancárias autónomas e a obrigação garantida por estas últimas – as eventuais responsabilidades de pagamento decorrentes da decisão do tribunal arbitral no litígio que opôs a Requerente à sociedade construtora C…”.
Para fundamentar a não acessoriedade das hipotecas constituídas pela Requerente como contragarantia dos contratos de garantia bancária autónoma que lhes estão subjacentes, invoca a Requerida as diversas relações contratuais pressupostas pela garantia bancária autónoma, a saber: (i) a que resulta do contrato-base constitutivo da obrigação garantida, celebrado entre credor garantido e devedor/ordenante; (ii) a estabelecida entre o devedor e o garante e, (iii) aquela pela qual a garantia bancária autónoma é prestada pelo garante ao credor do contrato-base, para concluir que é esta última que se pode considerar de garantia bancária autónoma.
Assim, os contratos celebrados entre a Requerente e a B… não passariam, segundo a AT, de meros contratos-promessa de garantia, que não são especialmente tributados na TGIS, e nos quais ficou previsto não apenas a obrigação de o garante celebrar, nos termos aí fixados, o contrato de garantia bancária autónoma com o credor, mediante uma contrapartida patrimonial do devedor/ordenante, mas ainda o dever do reembolso ao banco, em caso de a garantia vir a ser executada e as eventuais garantias desse eventual direito do garante perante o devedor/ordenante, designadas como contragarantias (artigo 31.º, da Resposta).
Crê-se, no entanto, que lhe não assiste razão, pois a função da garantia bancária autónoma é precisamente a de garantia de uma obrigação que pode ser eventual: o garante não presta garantia ao beneficiário e se for chamado a satisfazer o crédito deste sobre o devedor/ordenante, fica extinta a obrigação garantida assim como a própria garantia, por falta de objeto, restando apenas o direito de regresso do garante contra o ordenante.
Permitimo-nos citar as palavras de Jorge Duarte Pinheiro a tal propósito: “O contrato- promessa é o contrato pelo qual uma ou ambas as partes se obrigam a celebrar novo contrato.
Através do contrato banco-devedor principal, uma das partes (o banco) assume perante a outra (o dador da ordem) a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro (o beneficiário), estranho ao contrato. Uma vez que a prestação que o banco se obriga a efectuar perante o devedor principal é a celebração de um contrato de garantia autónoma com o beneficiário, o contrato banco-devedor aparenta ser (pacta de contrahendo cum tertio).
Aparenta. Não é. O pactum de contrahendo cum tertio é “o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar com terceiro, por sua conta, um negócio jurídico.
O banco obriga-se a celebrar o contrato de garantia por conta do dador da ordem. Ou seja, na intenção de transferir para o dador os encargos da sua intervenção. À partida o dador da ordem obriga-se a reembolsar o banco do pagamento que este venha a efectuar a solicitação do beneficiário da garantia autónoma.”[3].
Esclarece ainda o mesmo Autor que o contrato de garantia bancária autónoma é um contrato não real, ou seja, para cuja perfeição não é exigida a tradição de uma coisa[4].
Em face do que se vem dizendo, fica claro, por um lado, que o contrato de garantia bancária não é um contrato-promessa de garantia, mas sim o contrato que tem por objeto a garantia pessoalmente assumida pelo banco do cumprimento da obrigação do ordenante para com o beneficiário, sendo um contrato especialmente tributado pela TGIS, como efetivamente foi no caso em análise.
Poderia, talvez, conceder-se que os contratos celebrados entre a Requerente e a B… em 23 de novembro de 2009, pelos quais foi pago o Imposto do Selo da então verba 8, da TGIS, entretanto revogada pela Lei n.º 3-B/2010-28/04 (Escritos de quaisquer contratos não especialmente previstos nesta Tabela, incluindo os efetuados perante entidades públicas - por cada um - € 5), tivessem a natureza de contratos-promessa de constituição de garantia, condicionados ao depósito a favor do garante, da quantia correspondente ao Imposto do Selo devido pela prestação de garantia, mas não as garantias constituídas em 4 de dezembro de 2009, que seriam, nessa hipótese, os contratos prometidos.
Nem se afigura que o contrato de garantia bancária se constitua apenas no momento em que o garante seja chamado a indemnizar o credor do contrato-base. Por um lado, o credor do contrato-base é um terceiro relativamente ao contrato estabelecido entre o garante e o ordenante; por outro, nada justificaria a tributação da garantia bancária em data anterior à da sua constituição, sendo que, no limite, em caso de a garantia bancária não chegar a ser executada, não haver tributação, por não ter sido constituída.
1.2 A hipoteca como garantia especial das obrigações. Acessoriedade relativamente ao contrato de garantia bancária autónoma.
Nos termos do artigo 686.º, do Código Civil, a hipoteca é uma das garantias especiais das obrigações, que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros e, embora seja “um direito acessório, que só existe em função da obrigação cujo cumprimento assegura”[5], ainda que a obrigação garantida possa ser futura ou condicional.
Sendo uma garantia das obrigações, a hipoteca é especialmente tributada em sede de Imposto do Selo (verba 10, da TGIS) e, enquanto direito real de garantia, é um direito acessório da obrigação garantida.
As hipotecas constituídas pela Requerente mais não são do que garantia da garantia bancária autónoma visando, como bem assinala a Requerida, no artigo 19.º, da sua Resposta, “assegurar o direito de regresso do garante contra o devedor/ordenador, em caso de o garante ser chamado a honrar a garantia, e não a obrigação assumida pelo garante perante o credor do contrato base, no contrato de garantia bancária autónoma”.
É que o contrato de garantia bancária, nunca é demais frisá-lo, é um contrato celebrado entre o garante e o devedor/ordenador, a que o credor do contrato-base é estranho. E os contratos acarretam para as partes um feixe de direitos e deveres recíprocos. Assim, o devedor/ordenador, para além da comissão acordada para prestação da garantia, está ainda obrigado a restituir ao garante a quantia pecuniária que este vier a despender com a execução da garantia, sendo normal que, como qualquer credor e, por maioria de razão, dado tratar-se de uma empresa comercial, o banco exija uma garantia do bom cumprimento do contrato por parte do dador da ordem – neste caso a hipoteca.
Conclui-se, pois, que existe uma verdadeira acessoriedade material entre as hipotecas constituídas pela Requerente e as obrigações que visaram garantir, decorrentes do contrato de garantia bancária.
Embora no caso tratado pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) no Acórdão de 24.10.2012, Proc.º n.º 028.12, disponível em http://www.dgsi.pt, a pretensão tributária da AT se reportasse a uma hipoteca que não chegou a ser registada e que se destinava a contragarantia de uma garantia bancária autónoma que não chegou a ser emitida, não deixou o STA de referir a questão da acessoriedade da hipoteca relativamente à garantia bancária autónoma, o que fez nos seguintes termos:
“O contrato de hipoteca compreende-se à luz das exigências que de regra as instituições financeiras impõem aos seus clientes para a prestação de certas garantias ou empréstimos. Nessa medida e atento o probatório supra destacado deve ser classificado como um contrato acessório do principal que no caso dos autos era a prestação de uma garantia bancária (Contratos acessórios são aqueles que têm por finalidade assegurar o cumprimento de outro contrato, denominado principal de que o mais esclarecedor exemplo é a fiança.).
No caso dos autos e como bem analisou a sentença recorrida vem provado que a hipoteca constituída a 30.07.2003, se destinou a garantir emissão de garantia bancária pela Caixa Económica Montepio Geral, sendo que nesse mesmo dia o processo relativo à garantia bancária foi arquivado por aquela instituição de crédito, devido à desistência dos clientes, aqui Impugnantes. Assim, se naquela data tivesse sido emitida a garantia bancária, o imposto de selo era devido, nos termos do art° 5°, alínea h) do CIS, no momento da cobrança da comissão respectiva, debitada em conta bancária dos Impugnantes. Não o tendo sido não ocorre facto tributário pois a hipoteca foi, no caso em apreço, uma garantia materialmente acessória do contrato relativo à concessão de garantia bancária a celebrar nessa ocasião, e que acabou por não ser celebrado.
Cremos que nesta linha de entendimento vai o estudo de Bruno Santiago in “As Garantias das Obrigações e o Imposto do Selo” Coimbra Editora, quando a fls. 130 e ao analisar o excerto do ponto 10 da Tabela Geral do Imposto de Selo, supra destacado refere: “O excerto da norma em apreciação exclui da tributação as garantias quando sejam acessórias de outros contratos que também sejam tributados em IS. A intenção do legislador é clara e compreensível: evitar situações de dupla tributação sempre indesejáveis e que onerariam excessivamente as operações. No entanto, para acautelar possíveis abusos por parte dos contribuintes, esta excepção foi rodeada de requisitos apertados: i) a necessidade de uma acessoriedade material e não meramente formal; e, ii) a constituição da garantia na mesma data que a obrigação garantida”
Na mesma linha de entendimento cfr Luís Fragoso “Garantias Bancárias Autónomas e Imposto do Selo (Tributar ou não tributar? Essa é a questão), Verbo Jurídico, Março de 2010” o qual referindo-se à Verba n.º 10 da TGIS, explana:
“Averiguemos, então, de forma independente, qual o sentido e alcance desta norma legal, procurando dar uma resposta segura à questão a que nos propomos responder, tendo em atenção que o problema reside, essencialmente, no significado do conceito indeterminado que é o da “acessoriedade material”.
Ora, conforme resulta da primeira parte da citada norma, o legislador determinou que todas as garantias de obrigações, “qualquer que seja a sua natureza ou forma,” são tributadas em sede de imposto do selo. E para reforçar que a natureza ou forma das garantias é irrelevante, deu vários exemplos de garantias, com naturezas e formas diferentes. Razão pela qual mencionou o aval, a garantia bancária autónoma e o seguro-caução a par da hipoteca e da caução – estas últimas exemplos clássicos de garantias de obrigações.
Assim, a natureza ou forma das garantias é irrelevante para efeitos de tributação em sede de imposto do selo, pelo que resulta da primeira parte da Verba n.º 10 da TGIS que também as garantias bancárias autónomas, simples ou à primeira solicitação, estão, em regra, sujeitas a imposto do selo.
Todavia, a segunda parte da citada Verba n.º 10 da TGIS estabelece uma importante excepção ao estabelecer que todas as garantias de obrigações, “qualquer que seja a sua natureza ou forma,” não são tributadas em sede de imposto do selo caso se verifique que:
- são “materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela; e
- sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente”
Esta segunda parte da Verba n.º 10 da TGIS estabelece, assim, três requisitos cumulativos, para que as garantias não sejam tributadas em sede de imposto do selo. São eles:
- a existência de acessoriedade material entre a garantia e a obrigação;
- a obrigação garantida seja especialmente tributada pela TGIS; e
- simultaneidade entre o nascimento da obrigação garantida e a constituição da respectiva garantia; O requisito da simultaneidade não nos levanta problemas em alcançar o seu sentido, uma vez que é pacificamente entendido que ele se verifica quando a garantia e a obrigação garantida nascem no mesmo dia, ainda que sejam constituídas ou formalizadas em documentos distintos. (1 Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, da Direcção de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, dos Impostos Rodoviários e das Contribuições, que refere no seu ponto 4 “A constituição simultânea opera quando forem comuns as datas do contrato principal e do contrato de prestação de garantia.”)
Por sua vez, o requisito da obrigação garantida estar especialmente tributado pela TGIS também não nos levanta problemas quanto ao seu sentido, pois dele resulta que só são relevantes as garantias de obrigações emergentes de um acto especialmente tributado pela TGIS. A título de exemplo, veja-se o caso de uma garantia – seja ela qual for – que seja prestada para assegurar o bom cumprimento das obrigações emergentes de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel. Uma tal garantia, mesmo que cumpra os requisitos da acessoriedade e da simultaneidade, não poderá gozar de exclusão de tributação, dado que o contrato garantido (o contrato-promessa) não está especialmente tributado na TGIS.
Resta-nos, então, aferir qual o significado do requisito da “acessoriedade material” e se o mesmo também se verifica, ou não, no caso das garantias autónomas. É que não basta estarem verificados os requisitos da simultaneidade e da obrigação garantida estar especialmente prevista pela TGIS, para que possamos concluir pela não tributação das garantias em causa.
Ora, acerca do sentido do requisito da “acessoriedade material”, entendem ANTÓNIO CAMPOS LAIRES e JORGE BELCHIOR LAIRES, que “(…) como se retira da expressão «materialmente acessórias», constitui um requisito essencial para o funcionamento desta exclusão tributaria a verificação de uma acessoriedade em sentido material, ou seja, a existência de uma efectiva ligação entre obrigação garantida e garantia prestada, quer exista quer não uma acessoriedade em sentido formal, entendendo-se esta como a inserção daqueles actos no mesmo instrumento ou título. Assim, segundo pensamos, não deverão beneficiar desta exclusão as garantias que, ainda que constituídas no mesmo documento ou título de um contrato especialmente tributado pela Tabela, garantam as obrigações decorrentes de um outro contrato celebrado pelas partes intervenientes.” 2 (In “Código do Imposto de selo Anotado e Comentado”, Alda Editores, 2000, p. 131).
Também acerca do conceito de “acessoriedade material” já se pronunciou a Direcção de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, dos Impostos Rodoviários e das Contribuições, no seu Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, no qual veio dizer: “A hipoteca tem natureza acessória quando existe um direito de crédito associado à sua sorte: a noção de acessoriedade exprime então a conexão temporal entre a garantia e o crédito garantido. Assim, quando exista acessoriedade e caso o crédito se extinga ou reduza, a garantia termina ou diminui. Não existe acessoriedade quando a hipoteca vise garantir não só as responsabilidades emergentes de um contrato de empréstimo, mas também as responsabilidades assumidas ou que venham a ser assumidas pelo mutuado [mutuário] junto da instituição de crédito e emergentes de quaisquer outras operações bancárias.”
Parece-nos que o que é dito neste Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, é aplicável a todas as garantias constituídas nos termos da Verba n.º 10 da TGIS, uma vez que, como vimos, a hipoteca é uma das garantias aí previstas, a título exemplificativo, e o entendimento resultante do Ofício-Circulado é compatível com o disposto na Verba n.º 10 da TGIS, bem com com outro tipo de garantias.
Adicionalmente, não podemos esquecer que o requisito da acessoriedade material foi introduzido, pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, na actual redacção da Verba n.º 10 da TGIS.”.
Aderindo à jurisprudência e doutrina citadas e, antecipando a decisão, dir-se-á que não poderão as liquidações impugnadas manter-se na ordem jurídica, por erro nos pressupostos de direito em que assentaram.
2. Do pedido de juros indemnizatórios e moratórios
O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se que se compreendem na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os mesmos poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, como é o de apreciar o erro imputável aos serviços.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 43.º, da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.
São, assim, requisitos cumulativos do direito a juros indemnizatórios: “ – que haja um erro num ato de liquidação de um tributo; – que ele seja imputável aos serviços; – que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial; – que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”[6].
No caso em apreço, se bem que as liquidações de Imposto do Selo impugnadas, incidentes sobre as hipotecas acessórias de contratos de garantia bancária, não tenham sido emitidas pela AT, mas antes pelo Notário Privativo da B…, na qualidade de sujeito passivo (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto do Selo, obrigado à entrega da prestação tributária ao Estado, que a arrecada e recebe, através da Administração Tributária, será o Estado responsável pelos juros indemnizatórios devidos, tanto mais que o Notário Privativo da B… atuou em conformidade com a instrução administrativa veiculada pela Circular n.º 15/2000 da DGCI, de 5 de julho, nos termos da qual:
“Garantias associadas a contragarantias
19.O contrato para prestação de garantia, na medida em que consubstancia uma promessa, está sujeito, apenas, ao selo do n.º 8 da Tabela Geral. O termo de garantia associado, por seu lado, configura o escrito em que é formalizada a constituição da garantia. Sendo assim, uma vez que a garantia é especialmente tributada, o escrito não está sujeito ao selo do referido n.º 8 da Tabela. Se houver uma contragarantia associada ao contrato de prestação de garantia e de constituição da mesma, tudo no mesmo documento, há lugar ao pagamento de imposto pela garantia e pela contragarantia, mas não pelo escrito, pelos motivos que se vêm referindo.”.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:
a. Declarar a ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo (verba 10.3, da TGIS) impugnadas, por erro nos pressupostos de direito, determinando a sua anulação;
b. Condenar a AT à restituição das quantias indevidamente pagas pela Requerente a título do Imposto do Selo que lhe foi liquidado e cobrado, acrescidas de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido até à data da emissão das respetivas notas de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 22 857,29 (vinte e dois mil, oitocentos e cinquenta e sete euros e vinte e nove cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 20 de abril de 2017.
O Árbitro,
/Mariana Vargas/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Telles, Inocêncio Galvão, “Garantia Bancária Autónoma”, in O Direito, ano 120, 1988 III-IV, julho-dezembro, págs. 275 e ss.
[2] CORTEZ, Francisco, “A Garantia bancária Autónoma – Alguns Problemas”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, II, julho 1992, págs. 513 e ss.
[3] PINHEIRO, Jorge Duarte, “Garantia Bancária Autónoma”, in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 52, 1992, pág. 434.
[5] VARELA, J. M. Antunes, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1997, pág.550.
[6] Cfr. SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado, I Volume, Áreas Editora, 2006, pág. 472.