DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A - Geral
1.1. A…, LDA., com o número único de matrícula e de pessoa colectiva…, com sede na Rua …, n.º…, em Lisboa (de ora em diante designado “Requerente”), apresentou, no dia 29.07.2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo referente ao ano de 2015, respeitante à verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (de ora em diante “TGIS”), relativos a prédio de que é proprietária, como adiante melhor se verá, e que deu origem às notas de cobrança n.º 2016…, n.º 2016 … e n.º 2016 …, concernentes às primeira, segunda e terceira prestações, respectivamente, no valor global de € 18.114,20 (dezoito mil cento e catorze euros e vinte cêntimos), e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido de prestações tributárias.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro, não tendo as Partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.
1.3. Por despacho de 26.09.2016, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. B… e Dra. C… para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.
1.4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 14.11.2016.
1.5. No dia 17.11.2016 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.
1.6. No dia 15.12.2016 a Requerida apresentou a sua resposta.
B – Posição da Requerente
1.7. A Requerente, a 31.12.2015 era proprietária do prédio urbano designado por Lote …/…, que é um “terreno para construção”, sito na Rua … e Rua …, freguesia do … Lisboa, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, com um valor patrimonial tributário (de ora em diante “VPT”) de € 1.811.420,00 (um milhão oitocentos e onze mil quatrocentos e vinte euros), a que corresponde a caderneta que a Requerente anexa ao seu pedido como documento n.º 2, cujo teor se tem por reproduzido (de ora em diante designado “Prédio”).
1.8. A Requerida, no dia 05.04.2016 procedeu à liquidação do Imposto do Selo (de ora em diante designado “IS”) referida em 1.1., cujos documentos de cobrança relativos à primeiras e segundas prestações foram anexados ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.ºs 7 e 8, cujos teores se têm por reproduzidos, que se baseou no art.º 1.º do Código do Imposto do Selo (de ora em diante o “CIS”) e na verba 28.1 da TGIS.
1.9. A Requerente procedeu ao pagamento das primeiras e segundas prestações do IS supra referidas nos dias 29.04.2016 e 30.06.2016, respectivamente.
1.10. Alega a Requerente, em primeiro lugar, que a Liquidação ora contestada padece do vício de violação da norma de incidência tributária, a saber, a verba 28 da TGIS, com a redacção em vigor à data dos factos, na medida em que essa disposição não poderia aplicar-se ao Prédio já que este se não destina à construção de habitação, mas antes à construção de habitação conjuntamente com comércio/serviços.
1.11. Em segundo lugar, a verba 28.1. da TGIS, com a redacção hoje em vigor, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça e da igualdade e da imparcialidade, previsto nos artigos 13.º, 104.º e 266.º da Lei Fundamental.
1.12. O legislador, ao pretender onerar fiscalmente a propriedade de terrenos para construção, e destes apenas aqueles cujas edificações se destinem a habitação, está a tributar arbitrariamente os bens afectos a uma actividade económica, discriminando abusivamente os terrenos com afectação habitacional, quando comparados com os terrenos com diferente afectação (comercial, industrial, serviços ou outra).
1.13. Um terreno para construção cuja edificação seja para habitação só deveria ser tributado em sede da verba 28.1 da TGIS se e na medida em que alguma das fracções autónomas ou unidades independentes de habitação para ali previstas tivesse um VPT igual ou superior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
1.14. Entende ainda que viola o princípio da igualdade pretender tributar um terreno que não proporciona habitação, nem de luxo nem mais modesta, deixando de fora hotéis de cinco estrelas que visam justamente proporcionar habitação de luxo aos seus hóspedes.
1.15. Acresce que existe uma manifesta duplicação de colecta na medida em que o mesmo facto tributário, que é a titularidade de um prédio a 31.12.2015 é tributado em sede de IMI e em sede de IS simultaneamente, impostos que neste caso assumem a mesma natureza.
1.16. A exigência de juros indemnizatórios, uma vez que a Requerente pagou prestações tributárias a seu ver ilegais, está prevista no art.º 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).
C – Posição da Requerida
1.17. Entende a Requerida que a Liquidação impugnada resulta da aplicação directa da norma legal, que se traduz em elementos objectivos, sem qualquer apreciação subjectiva ou discricionária.
1.18. Na caderneta predial do Imóvel, o tipo de prédio é “terreno para construção”, com as áreas de implantação do edifício e de construção perfeitamente definidas.
1.19. Não há dupla tributação, porquanto o IMI e o IS são impostos diferentes, como bem distingue a Requerente.
1.20. Também não há inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade porquanto este não impede, em termos absolutos, qualquer diferenciação de tratamento. Impede apenas a ocorrência de discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, aquelas que não tenham justificação ou fundamento, cabendo ao tribunal arbitral verificar se a solução legislativa em causa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, por não se encontrar para ela qualquer fundamento inteligível.
1.21. De igual modo, a verba 28.1 da TGIS, com a redacção que tinha à data dos factos, também não fere os princípios da proporcionalidade, da legalidade, da confiança e da capacidade contributiva.
1.22. Entende a Requerida que o Prédio tem natureza jurídica de prédio com afectação habitacional, a única que consta da respectiva caderneta predial, pelo que o acto de liquidação objecto do presente pedido de pronúncia arbitral deve ser mantido, por consubstanciar uma correcta interpretação da verba 28 da TGIS.
D – Conclusão do Relatório e Saneamento
1.23. Por despacho de 21.02.2017 o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, que se previu pudesse ter lugar até ao dia 10.04.2017, tendo as partes prescindido do direito de apresentarem alegações.
1.24. O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
1.25. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
1.26. A cumulação de pedidos (declaração de ilegalidade de acto de liquidação, por um lado, e reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, por outro) efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade das liquidações postas em crise.
1.27. O processo não padece de qualquer nulidade nem foram invocadas quaisquer excepções, pelo que pode passar-se de imediato à apreciação do mérito da causa.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. A Requerente é a única proprietária do Prédio (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.2. Ao Prédio foi atribuído o tipo de coeficiente de localização: habitação (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.3. A área total do Prédio é de 667 m2, estando matricialmente prevista uma área bruta de construção de 6.671,5 m2 (docs. n.º 2, n.º 4 e n.º 5, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.4. Foi autorizada pela Câmara Municipal de Lisboa a construção no Prédio de um edifício com 17 pisos (5 dos quais em cave), com uma área de construção total de 7.511 m2 (sendo 2.668 m2 destinados a estacionamento, 1.363 m2 a comércio/escritórios e 3.480 m2 destinados a habitação (doc. n.º 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.5. Ao Prédio, à data dos factos, foi atribuído o valor patrimonial tributário de € 1.811.420,00 (um milhão, oitocentos e onze mil, quatrocentos e vinte euros) (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
2.1.6. A Requerente foi notificada dos documentos de cobrança referentes ao acto de liquidação de IS de 2015, respeitante à verba 28.1 da TGIS, relativo ao Prédio, no valor de € 18.114,20 (dezoito mil, cento e catorze euros e vinte cêntimos) (docs. n.º 7, 8 e 11, juntos, os dois primeiros, com o pedido de pronúncia arbitral e o terceiro com o requerimento da Requerente de 14.03.2017).
2.1.7. A Requerente procedeu ao pagamento da primeira prestação no dia 29.04.2016, a segunda prestação no dia 30.06.2016 e a terceira e última prestação no dia 30.11.2016 (docs. n.º 7, 8 e 11, juntos, os dois primeiros, com o pedido de pronúncia arbitral e o terceiro com o requerimento da Requerente de 14.03.2017).
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.
3. Matéria de direito
3.1. Questões a decidir
Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, duas:
a) A de saber se, à data a que se reportam os factos, o Prédio é “terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação nos termos do disposto no Código do IMI”, para efeitos da aplicação do art.º 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS; e
b) A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação contestado, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente às quantias por si entregues para satisfação das prestações tributárias por esta ilegalmente exigidas.
3.2. A verba 28.1 da TGIS na redacção que resultou da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro
A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, entre várias alterações que promoveu ao CIS, aditou, pelo seu art.º 4.º, a verba 28 à TGIS, que contava, até 31.12.2013, com a seguinte redacção:
«28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 - Por prédio com afetação habitacional - 1%;
Como se constata, a verba 28.1, com aquela redacção, referia-se a “prédios com afectação habitacional”. Ora, não só este conceito não surge definido em qualquer disposição do CIS, como tão-pouco é usado no CIMI, diploma para que expressamente remete o n.º 2 do art.º 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba 28.
3.3. O sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”
Não podem ser fixados o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional” sem ter presente o significado do próprio vocábulo “afectação”. E esse terá de ser encontrado nos dicionários, colhendo-se neles o benefício do estudo criterioso dos lexicógrafos. Assim, “afectação”, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, é a acção de destinar alguma coisa a determinado uso e “afectar”, consequentemente, é sinónimo de destinar a um uso ou a uma função específica.
a) As regras de interpretação de normas fiscais
A questão a que primeiramente cumpria dar resposta não dispensava, antes implicava, que se surpreendesse o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional” a que fazia apelo a verba 28.1 da TGIS. Na ausência de uma definição legal, quer no CIS, quer em qualquer outro diploma, tem o intérprete-aplicador desta disposição o dever de convocar as normas que regem o necessário exercício hermenêutico.
Não há verdadeiramente um regime especial de interpretação de normas tributárias. O n.º 1 do art.º 11.º da LGT manda observar, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam”, “as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.
Os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis são os estabelecidos no art.º 9.º do Código Civil:
ARTIGO 9º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Note-se, porém, que a interpretação das normas, também das normas fiscais, não se esgota num exercício meramente lexical. Não envolve apenas, nem sequer sobretudo, a dissecação vocabular. Não estava, pois, em causa saber exactamente o que significava “prédio com afectação habitacional”, mas antes surpreender o sentido e o alcance desse conceito no âmbito do que dispunha a verba 28.1 da TGIS. O mesmo é dizer, sublinhe-se, que só haveria utilidade processual do esforço hermenêutico, no âmbito deste concreto pedido de pronúncia arbitral, se ele fosse dirigido a descortinar se o legislador, com a redacção então escolhida para a verba 28.1 da TGIS, quis nela abranger os prédios urbanos com as características do Prédio.
b) A “afectação habitacional” – prédios habitacionais e com afectação habitacional
A afectação dos imóveis é um coeficiente que concorre para a sua avaliação. Contudo, importava saber se a verba 28 da TGIS, na redacção que vigorou em 2012 e 2013, compreendia quer os prédios edificados quer aqueles que fossem tidos por terrenos para construção.
O n.º 1 do art.º 6.º do CIMI, com preocupação taxinómica, distingue “prédios habitacionais” de “terrenos para construção”. Os primeiros serão, nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta dessa licença, os que tenham como destino normal esse fim. Já os terrenos para construção, esclarece o n.º 3 do preceito a que vimos fazendo referência, são aqueles para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, com algumas excepções.
Resulta claro, pois, que um terreno para construção não é, segundo esta classificação, um prédio habitacional. Importava ainda dilucidar a questão de saber se “prédio com afectação habitacional”, conceito então usado pela verba 28.1 da TGIS, correspondia, mau grado a diversidade literal, a “prédio habitacional”, noção empregue na classificação acabada de visitar.
Afectação, pelo que aprendemos com os dicionaristas, convoca o destino dado a certo bem. Já “habitacional” é relativo a habitação, sendo esta, por sua vez, e segundo o Dicionário que vimos usando, lugar ou casa em que se vive ou mora. Ora, afectação habitacional não poderá sugerir outro sentido que não seja a acção de dar a certo bem – no caso o Prédio, ainda que se admita para estes efeitos que é um terreno para construção – o destino de casa ou lugar onde se mora.
É sabido que o CIMI faz, em diversas disposições, uso da expressão “afectação”. Fá-lo, por exemplo:
-
No art.º 3.º, quando refere, relativamente a prédios rústicos, uma utilização geradora de rendimentos agrícolas;
-
No art.º 9.º, quando impõe aos sujeitos passivos o dever de comunicarem aos serviços de finanças que um terreno para construção passou a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda ou que um prédio passou a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a sua venda;
-
No art.º 27.º, quando relaciona certos edifícios e construções à produção de rendimentos agrícolas.
Em todas as situações apresentadas, como se pode ver, a afectação não é referida em termos potenciais, de vocação ou de expectativa. É justamente ao contrário. Sugere um destino efectivo ou directo, para usar uma expressão a que o legislador faz apelo no art.º 27.º.
Contudo, o CIMI faz também abundante uso da expressão “afectação” quando enuncia as regras que devem aplicar-se à determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos (artigos 38.º e seguintes do CIMI). Poderia ser extraído das regras de determinação do valor patrimonial algum elemento útil que nos permitisse surpreender o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”?
c) A relevância das regras de determinação do valor patrimonial tributário
A noção de afectação de prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis. Para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é clara a aplicação do coeficiente de afectação em sede de avaliação.
É certo que para a determinação do valor patrimonial tributário dos prédios se tem atendido à “afectação” do que neles possa ser edificado.
A mera constituição de um direito de potencial construção faz aumentar imediatamente o valor do imóvel em causa, em função, justamente, do que nele possa ser construído. Por isso, o art.º 45.º do CIMI “manda separar as duas partes do terreno”: de um lado, teremos de considerar “a parte do terreno onde vai ser implantado [rectius, onde pode vir a ser implantado] o edifício a construir, e do outro a área de terreno livre. Apurado o montante da primeira parte, reduz-se o valor determinado a uma percentagem entre 15% e 45% (…), em virtude de a construção não estar ainda efectivada”. É bom de ver que a aplicação daquela percentagem permite justamente atender à circunstância de não haver ainda construção, mas não autoriza o legislador que se ignore que o valor económico, ou de mercado, de um terreno está relacionado com a sua capacidade construtiva.
Dizer o que precede não significa, porém, afirmar que o legislador sente a necessidade de impor a tributação automática e necessária, em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis, a todos os terrenos. Basta ler o que dispõe a alínea d) do já referido art.º 9.º do CIMI:
ARTIGO 9º
(Início da tributação)
1. O imposto é devido a partir:
(…)
d) Do 4.º ano seguinte, inclusive, àquele em que um terreno para construção tenha passado a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda;
(…)
Ou seja, ainda que o legislador entenda ser razoável, como parece ser, determinar o valor patrimonial tributário de um terreno levando em linha de conta a sua capacidade construtiva e, concedamos a benefício de raciocínio, a natureza ou vocação do que possa sobre ele ser edificado, não deixa de ser sintomático que tenha optado, do mesmo passo, por suspender essa tributação nos casos em que esses terrenos figurem no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda. Nos casos em que, poder-se-ia também dizer, esses prédios urbanos integram um processo produtivo que tende a continuar e a produzir, a jusante, frutos também eles tributáveis.
Se o sentido primacial de “afectação”, como deixámos dito, sugeria um destino efectivo, directo, dado a um determinado bem, não vemos como pudesse este entendimento ser infirmado pela constatação de que o legislador, no âmbito da avaliação de terrenos para construção, autoriza o uso do coeficiente de afectação, tendo em vista o que nele pode vir a ser construído. Na verdade, não parecia razoável admitir neste cenário o recurso a normas de determinação da matéria colectável para alargar a previsão das normas de incidência.
Face ao exposto, a boa interpretação do disposto na verba 28.1 da TGIS com a redacção aplicável aos anos de 2012 e 2013, impunha o entendimento segundo o qual a afectação habitacional de um prédio urbano sugeria que se lhe desse esse efectivo destino, ou se lhe pudesse directamente dar esse destino.
Não se diga que este juízo colide com a possibilidade de ver aplicado a um terreno para construção o coeficiente de afectação a que se faz referência na secção II do Capítulo VI do CIS. Na verdade, uma coisa são as regras que o legislador impõe para determinar o valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não sendo estranho que se atenda à sua capacidade construtiva e à natureza e vocação do que neles possa ser edificado, outra, bem diversa, é pretender que essas regras sejam convocadas para recortar o campo da previsão normativa das regras de incidência.
Aliás, a interpretação que aqui se acolhe, e amplamente sufragada pela jurisprudência judicial e arbitral, está de harmonia com o que parece ter sido a intenção do Governo, autor da proposta que resultou nesta pouco rigorosa intervenção legislativa.
Aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente[1]:
“O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.”
Ora, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresentou esta proposta de lei referindo as expressões “prédios urbanos habitacionais”, que são os que constam da alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do CIS e, como bem refere a Requerida, “casas”, sendo manifesto que, num caso e noutro, nesses conceitos não cabem, sem mais, terrenos, mesmo que para construção.
Assim, mau grado a infelicidade da técnica legislativa e sem prejuízo da redacção posterior, resultava com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS, não podia ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos imóveis com as características do Prédio, pelas razões supra aduzidas. Antes parece que o sentido e o alcance do conceito de “prédios com afectação habitacional” era o equivalente ao de “prédios habitacionais” mencionados na alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do CIS.
3.4. A verba 28.1 da TGIS com a redacção imposta pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, a verba 28.1 da TGIS passou a ler-se assim:
28.1 - Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI;
Cuidemos, pois, de saber se o Prédio, no que se refere à liquidação de IS de 2015 está abarcado pela norma de incidência.
Estão as partes de acordo que o Prédio é um terreno para construção. Ora, já visitámos o n.º 1 do art.º 6.º do CIMI, a propósito da distinção entre “prédios habitacionais” e “terrenos para construção”, ou seja, aqueles para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, com algumas excepções, como se lê no n.º 3 do mesmo preceito.
Contudo, a preocupação do intérprete aplicador da norma não deve circunscrever-se ao conceito de “terreno para construção”. Esse exercício seria desprovido de qualquer utilidade se ignorasse a norma de incidência que o convoca.
Na verdade, mais do que saber se o Prédio é, ou não, um terreno para construção, importa descortinar se o Prédio é, para efeitos da verba 28.1 da TGIS, um “terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI”. Este é o ponto, no que se refere á liquidação de 2015.
Não é a simples inscrição matricial como “terrenos para construção” que acarreta a inelutável aplicação da verba 28.1 da TGIS, já que ela não constitui, por si só, demonstração cabal de que um prédio tem uma edificação para habitação prevista.
Veja-se a este propósito JOSÉ MANUEL FERNANDES PIRES, (Lições de Impostos sobre o Património e do Selo. Coimbra, Almedina, 3.ª ed., 2015, págs. 110 a 112): “O direito a construir não está ínsito no direito de propriedade, mas só nasce ex novo no património do proprietário quando um ato administrativo da entidade pública competente reconhece e autoriza o proprietário a construir ou a lotear. [...] só quando esse direito se constitui na esfera jurídica do proprietário é que o Código do IMI estabelece que estamos perante um terreno para construção”.
Assim, parece claro que para a verificação da previsão normativa não basta a mera inscrição matricial de um prédio como terreno para construção afecto a habitação, porquanto o recorte da incidência objectiva ora em apreço não abdica da demostração de uma efectiva potencialidade de edificação, necessariamente revelada pela existência de suportes documentais que a autorizam. O mesmo é dizer que a incidência do imposto, para efeitos do disposto na verba 28.1 da TGIS, só se materializa, e mesmo assim não em termos definitivos ou completos, com a verificação de uma “afectação efectiva”, para utilizar a feliz expressão de JOSÉ MANUEL FERNANDES PIRES (ob. cit., p. 507). No mesmo sentido, cfr., entre outros, o Acórdão do CAAD proferido no processo n.º 524/2015-T.
Ora, sem a demonstração dessa efectiva potencialidade de edificação não se mostra aplicável a verba 28.1 da TGIS. Contudo, para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS não basta essa efectiva potencialidade de edificação. É necessário provar que a edificação, autorizada ou prevista, é para habitação. O mesmo é dizer que não pode ser para fim diverso do que habitação, já que a edificação para comércio ou indústria não dará lugar à aplicação das normas a que vimos fazendo referência.
Ora, no Prédio, como se viu, está autorizada pela Câmara Municipal de Lisboa a construção de um edifício com 17 pisos (5 dos quais em cave), sendo 2.668 m2 de construção destinados a estacionamento e 1.363 m2 destinados a comércio / escritórios. Ou seja, dos 7.511 m2 de construção, apenas 3.480m2 se destinam a habitação.
É certo que o Prédio está matricialmente dado como sendo “terreno para construção” afecto a habitação, todavia, resulta claro que a Câmara Municipal de Lisboa autorizou a edificação não apenas para fins habitacionais mas também para comércio e escritórios, não se fazendo qualquer distinção entre as áreas que se destinam a habitação, em sentido próprio, das outras que mostram ter afectação alternativa.
O que é seguro concluir é que o legislador não pretendeu tributar em sede de IS, por aplicação da verba 28.1. da TGIS, os terrenos para construção cuja edificação autorizada ou prevista tivesse por destino escritórios ou serviços. Quis apenas tributar aqueles que se destinassem a habitação. Ora, atenta esta opção legislativa, que pode efectivamente suscitar o problema de saber se tal desiderato se mostra compatível, nomeadamente, com o princípio constitucional da igualdade tributária, não pode aplicar-se aquela verba a um imóvel para o qual se autorizou a construção de escritórios. Onde o legislador distingui, não pode o intérprete-aplicador pretender ignorar a distinção.
Assim, a liquidação posta em crise, enferma do vício de violação de lei, porque estribada no que entende o tribunal arbitral ser uma errónea interpretação da verba 28.1 da TGIS, por erro sobre os pressupostos de direito.
3.5. Dos juros indemnizatórios
A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.
Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à Administração Tributária e Aduaneira. Encontramos manifestações desse princípio no n.º 1 do art.º 43.º da Lei Geral Tributária e no art.º 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Assim, justifica-se a apreciação do pedido de pagamento de juros indemnizatórios feito pela Requerente.
São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Ora, tendo a Requerente pago o tributo que pela liquidação reclamada lhe foi, por erro imputável aos serviços, exigido, tem ela direito não apenas ao reembolso de tudo quanto pagou mas ainda a perceber juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento de cada uma das prestações, até ao seu integral reembolso.
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Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com a consequente anulação da liquidação impugnada, com todas as consequências legais, desde logo o reembolso à Requerente de todos os montantes por ela pagos, relativamente à liquidação ora anulada;
b) Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, sendo eles contados desde a data do pagamento de cada uma das três prestações tributárias ora declaradas indevidas, até ao seu integral reembolso.
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Valor do processo
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 18.114,20 (dezoito mil cento e catorze euros e vinte cêntimos).
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Custas
Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.
Lisboa, 3 de Abril de 2017
O Árbitro
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(Nuno Pombo)
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.
[1] V. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32.