DECISÃO ARBITRAL
DECISÃO ARBITRAL, proferida em resultado do acórdão do Tribunal Constitucional de 9 janeiro de 2019, através da qual se reforma a decisão arbitral proferida em 17 de abril de 2017
I - RELATÓRIO
A..., Lda., contribuinte n.º..., com sede na ..., n.º..., ..., ...–... Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou em 28/07/2016 pedido de pronúncia arbitral no qual peticiona a anulação de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2015, no montante de € 32 345,44.
O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), designou em 03/10/2016 como árbitro, Francisco Nicolau Domingos.
No dia 19/10/2016 ficou constituído o tribunal arbitral.
Cumprindo a estatuição do art. 17.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT) foi a Requerida, em 21/10/2016 notificada para, querendo, apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e para remeter o processo administrativo (PA).
Em 23/11/2016 a Requerida apresentou a sua resposta.
Em 14/03/2017, o tribunal decidiu dispensar a realização da reunião a que o art. 18.º, n.º 1 do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas, cfr. art. 16.º, al. c) do RJAT, concedeu prazo para que as partes, querendo, apresentassem as alegações finais escritas e designou o dia 19/04/2017 como data limite para proferir decisão arbitral.
As partes apresentaram alegações finais escritas no dia 23/03/2017 nas quais mantiveram as suas posições iniciais.
POSIÇÃO DAS PARTES
Em primeiro lugar, a Requerente defende que a liquidação de Imposto do Selo é nula ou subsidiariamente anulável, visto que, a verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na redação em vigor à data do facto tributário, é inconstitucional.
Deste modo, começa por sustentar que as empresas que se dedicam à compra para revenda de «terrenos para construção» ou que se dedicam à construção de edifícios seriam negativamente discriminadas em relação aqueloutras que não a desenvolvem, visto que, os «terrenos para construção» são matérias-primas em carteira para as empresas que têm tal escopo societário. Argumentos que utiliza para defender que a verba 28.1 da TGIS, na redação dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, descritos nos artigos 266.º, n.º 2, 13.º e 104.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Em segundo lugar, a Requerente vislumbra ainda uma outra inconstitucionalidade na verba 28.1 da TGIS, quando institui uma tributação da titularidade de um terreno destinado a habitação, cujo valor patrimonial tributário (VPT) seja superior a € 1 000 000 e a não tributação da titularidade de outro terreno destinado a fim distinto da habitação, com um VPT idêntico ou mesmo superior, criando uma discriminação sem qualquer fundamento ou espécie. E, como tal, viola o princípio da igualdade tributária e o princípio da capacidade contributiva que deste decorre. Para alicerçar tal conclusão alega ainda que há uma absoluta igualdade de circunstâncias, no plano fiscal, entre a posição dos contribuintes que detêm um «terreno para construção» cuja edificação terá uma afetação habitacional e a posição dos contribuintes que são titulares de um «terreno para construção» cuja edificação terá uma afetação para serviços ou indústria.
Acrescenta ainda que, a incidência da verba 28.1 da TGIS afasta-se dos princípios do reforço da equidade social, da efetiva repartição dos sacrifícios e da igualdade, porquanto, nada justifica que «…ao proprietário de um prédio com afetação habitacional com o VPT de um milhão de euros sejam cobrado € 10 000 a título de Imposto do Selo, e, ao proprietário de um conjunto de imóveis cujo VPT total ascenda a cinquenta milhões de euros não seja cobrado rigorosamente nada, pela única razão de que nenhum dos prédios que perfazem aquele VPT total…» tem, isoladamente, um VPT igual ou superior a € 1 000 000.
Termina, peticionando o reembolso do imposto pago e o pagamento de juros indemnizatórios, em resultado de erro imputável aos serviços no momento da liquidação.
A Requerida, na sua resposta defende-se por impugnação e começa por dizer que, o que está em causa nestes autos é uma liquidação que resulta da aplicação direta da norma legal e que se traduz em elementos objetivos, sem qualquer apreciação subjetiva ou discricionária.
No que respeita à questão do desrespeito da verba 28.1 da TGIS com o texto constitucional, defende que o tribunal não deverá aferir ou discutir da bondade da medida legislativa e do seu alcance, devendo cingir-se à apreciação da sua conformação com o texto constitucional.
Quanto à violação do princípio da igualdade em sentido estrito e da sua manifestação da capacidade contributiva refere que o legislador definiu um pressuposto económico, constitucionalmente válido, como manifestação da capacidade contributiva – cujos destinatários têm efetivamente uma especial capacidade contributiva em face do critério adotado para o pagamento deste imposto. Em concreto, com a previsão da verba 28.1 na TGIS o legislador pretendeu distribuir por todos os sacrifícios impostos pela austeridade, permitindo a discriminação de patrimónios sem que tal ofenda os princípios constitucionais em análise, porquanto não resultam diferenças injustificadas de tratamento entre contribuintes.
Acrescenta ainda que é uma norma de carácter geral e abstrato, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se preencham os respetivos pressupostos de facto e de direito. O facto do legislador estabelecer um valor de € 1 000 000, como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha quanto à fixação do «âmbito material dos imóveis habitacionais de luxo» que se pretende tributar de modo mais gravoso.
Mais, a diferente valoração e tributação de um imóvel com afetação habitacional face a um imóvel destinado a comércio, indústria ou serviços resulta da diferente aptidão dos imóveis em causa, o que sustenta o diferente tratamento dado pelo legislador que, por razões económicas e sociais, decidiu, no âmbito da sua liberdade conformadora, afastar da incidência do imposto os imóveis destinados a outros fins que não os habitacionais.
Refere igualmente neste âmbito que, apesar de não competir à AT, no exercício das suas funções, tecer comentários acerca da alegada inconstitucionalidade da verba 28.1 da TGIS, a mesma não viola os princípios da proporcionalidade, da legalidade, da confiança dos cidadãos e da capacidade contributiva.
Termina sustentando que a liquidação em crise não provém de qualquer erro dos serviços, mas decorre da aplicação da lei, pelo que, no seu juízo, não há direito a juros indemnizatórios.
QUESTÕES A DECIDIR
Nesta sequência, pede a Requerente que:
a) Seja declarada a ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto do Selo sub judice, porque assente em normas inconstitucionais, sendo o mesmo anulado;
b) Seja a AT condenada a reembolsar a Requerente do valor de Imposto do Selo pago;
c) Seja a AT condenada no pagamento à aqui Requerente de juros indemnizatórios, à taxa legal, até reembolso integral da quantia devida e calculados sobre o imposto pago.
SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades, não foram suscitadas quaisquer questões que obstem à apreciação do mérito da causa, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
II - FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
1. Factos que se consideram provados
1.1. A Requerente é proprietária do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo..., freguesia de ..., concelho de Loulé, inscrito como «terreno para construção».
1.2. Tal prédio tinha um VPT de € 3 234 544,42 em 31 de dezembro de 2015.
1.3. A Requerente dedica-se à compra de prédios para construção.
1.4. A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo do prédio descrito em 4.1.1., relativa ao ano de 2015, no valor total de € 32 345,44.
1.5. A AT notificou, nomeadamente, a Requerente para pagar tal montante da seguinte forma: 1.ª prestação no valor de € 10 781,82 e a 2.ª prestação no valor de € 10 781,81.
1.6. A Requerente procedeu ao pagamento da 1.ª prestação no dia 27/05/2016 e da 2.ª no dia 25/07/2016.
1.7. O prédio descrito em 4.1.1. encontrava-se à data do facto tributário matricialmente inscrito como «terreno para construção».
2. Factos que não se consideram provados
Não existem quaisquer factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.
3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada
A matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos juntos pela Requerente e os constantes do PA, cuja autenticidade não foi colocada em causa.
MATÉRIA DE DIREITO
1. Enquadramento histórico da verba 28.1 da TGIS
Em primeiro lugar, urge traçar a cronologia de vida da verba 28.1 da TGIS. Na verdade, em 2012, através da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro decidiu o legislador aditar um facto sujeito a Imposto do Selo, tendo em vista tributar os prédios de elevado valor patrimonial e com o objetivo de aumentar a receita do Estado em contexto de absoluta recessão económica.
Para tanto a redação inicial da verba supra descrita foi a seguinte:
«28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 – Por prédio com afetação habitacional…».
Deste modo, ficaram sujeitos a Imposto do Selo, os prédios que: i) fossem urbanos e ii) detivessem um valor patrimonial tributário superior a € 1 000 000.
Acontece que, ainda na vigência da referida redação, a interpretação promovida pela AT apontava no sentido de ficarem sujeitos a tributação os prédios construídos e afetos a habitação, como também os terrenos já classificados como para construção em zonas nas quais o tipo de construção previsto é a habitação.
Sucede que esta interpretação foi reiterada e sistematicamente afastada pela jurisprudência estadual e arbitral, como são disso exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos no processo 1870/13, de 09/04/2014, no qual assumiu a função de relatora a Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA, o processo 46/14, de 14/05/2014, no qual assumiu a função de relator o Conselheiro ASCENSÃO LOPES e o processo 0272/2014, de 23/04/2014, no qual assumiu a função de relator o Conselheiro PEDRO DELGADO.
A verdade é que o legislador, através da Lei do Orçamento do Estado de 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), alterou a redação da verba de Imposto do Selo em análise, ampliando a incidência no sentido de incluir expressamente os «terrenos para construção» onde esteja prevista ou aprovada a construção para a habitação, sempre na condição de que aqueles tenham um VPT superior a € 1 000 000. Por isso, à data do facto tributário, os «terrenos para construção» cuja edificação autorizada ou prevista seja a habitação encontram-se sujeitos à tributação prevista na verba 28.1 da TGIS , exigindo a norma de incidência que se prove que o direito à construção já se encontra determinado por atuação de entidade pública, visto que tal direito apenas se constitui quando essa entidade autoriza o proprietário a construir ou a lotear .
Em resumo, a incidência de Imposto do Selo sobre os «terrenos para construção», exige, não só a mera propriedade, como também a emissão de título administrativo que autorize, nomeadamente, tal proprietário a construir ou a lotear.
Ainda assim, a verba determina que o imposto incide sobre «…o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI…» e sobre tal matéria deve incidir a taxa de 1% «…por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI…», contudo mesmo quando a construção autorizada ou prevista para o terreno não seja exclusivamente a habitação é o VPT, o único que existe previamente à edificação. Isto é, ainda que a construção autorizada ou prevista para o terreno seja em frações suscetíveis de utilização independente, que são consideradas autonomamente para efeitos de IMI, como dispõe o art. 12.º, n.º 3 do CIMI e o VPT do terreno compute o valor das edificações autorizadas ou previstas, é o VPT que a norma de incidência demarca que é utilizado para determinar o âmbito do imposto.
Razão pela qual, a verba 28.1 da TGIS determina que, o que se deve ter em consideração, no âmbito da incidência do imposto, é o VPT do terreno.
2. Questão da divergência da verba 28.1 da TGIS com o princípio constitucional da igualdade e da capacidade contributiva, no segmento relativo a «terrenos para construção», por discriminação fiscal negativa: i) às empresas que se dedicam à compra de terrenos para construção e revenda e ii) dos terrenos com afetação habitacional, relativamente aos terrenos com diferente afetação (comercial, industrial e serviços)
Neste âmbito há que, em primeiro lugar, apurar se existe incompatibilidade da verba 28.1 da TGIS com o princípio constitucional da igualdade, no segmento relativo a «terrenos para construção», por discriminação negativa às empresas que exercem habitualmente a atividade de compra e venda de terrenos para construção e revenda.
A este respeito sustenta a Requerente que a atividade económica das empresas que se dedicam à construção de edifícios para habitação e assim detêm «terrenos para construção», ou seja, matérias-primas em carteira, estaria a ser claramente discriminada de forma negativa. Isto é, na sua visão, a tributação da verba 28.1 da TGIS de prédios urbanos habitacionais e de «terrenos para construção» cuja edificação seja a habitação de valor igual ou superior a € 1 000 000, mesmo quando não seja uma manifestação de luxo dos seus proprietários, mas um desenvolvimento da sua atividade social seria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
A questão de constitucionalidade objeto destes autos foi julgada pelo Tribunal Constitucional através do acórdão n.º 22/2019, de 4 de julho, nos seguintes termos:
«E quanto à segunda norma, relativa à aplicabilidade do imposto previsto na verba 28.1 da TGIS a situações em que os terrenos para construção pertencem a empresas que se dedicam à comercialização para revenda - empreendedores imobiliários – o mesmo Acórdão responde nos seguintes termos:
“Deve, contudo, sublinhar-se que o imposto previsto na Verba 28.1, como é próprio dos impostos sobre o património, delimita o seu âmbito de incidência por referência exclusiva à titularidade de determinados valores patrimoniais, «independentemente da função desempenhada por tais ativos (capital produtivo, aplicação de fundos ou poupança ou consumo duradouro)» (Decisão Sumária n.º 214/2017). Por outro lado, sendo um imposto sobre o património, também não individualiza nem distingue os respetivos sujeitos passivos por recurso a outro critério que não seja precisamente a titularidade desses valores patrimoniais. Assim, aplica-se indistintamente a pessoas singulares e pessoas coletivas e, dentro desta categoria, a associações, fundações e sociedades comerciais, independentemente do ramo económico em que estas últimas operem e dos específicos riscos comerciais existentes nos respetivos sectores de atividade, aliás próprios de toda e qualquer atividade comercial.
Ora, como vimos, a opção por tal modelo de tributação é constitucionalmente legítima, sendo virtualmente apta, com tal configuração, a prosseguir o programa que a Constituição lhe associa de contribuir para a igualdade entre os cidadãos, não decorrendo da argumentação expendida na decisão sob recurso a demonstração fundada de que efetivamente ocorre «arbitrariedade intolerável» na opção normativa de alargar a incidência do referido imposto aos terrenos para construção.
De facto, se é certo que a simples titularidade de terrenos para construção de habitações de valor igual ou superior a €1.000.000,00 não permite, só por si, determinar a concreta e completa situação económico-financeira em que se encontra o sujeito passivo do imposto – o que, repete-se, não é constitucionalmente exigível -, também não autoriza juízos extrapolativos sobre o tipo de contribuintes atingidos por tal norma de incidência, o ramo de atividade em que atuam e as vicissitudes conjunturais, nomeadamente de mercado, a que poderão estar sujeitos.
Como se referiu, a norma em causa parte da ponderação de concretas situações jurídico-patrimoniais, delimitadas em função do valor patrimonial tributário do imóvel e sua afetação social normal, integrando no seu âmbito subjetivo de aplicação um conjunto indeterminado de contribuintes de acordo com um critério uniforme: a titularidade de terrenos para construção de edifícios para habitação de elevado valor patrimonial tributário. Em relação a nenhum deles é valorada a sua concreta situação económico-financeira (rendimentos ou lucros), a sua natureza (singular ou coletiva), estrutura de organização (empresarial ou não empresarial), concreta forma jurídica assumida (sociedade comercial ou outra) e, muitos menos, os diversos setores de atividade em que eventualmente atuam os comerciantes abrangidos e os riscos específicos inerentes a cada um desses ramos de atividade.
A mera probabilidade estatística de serem atingidos pela norma em questão sociedades comerciais dedicadas à promoção imobiliária, associada à ponderação de varáveis económicas de verificação incerta, como seja o impacto económico do imposto nesse particular ramo de atividade comercial – cujo valor, aliás, não deixará de ser considerado como custo da atividade -, não constitui razão suficientemente sólida para suportar um juízo de inconstitucionalidade da norma em causa, na específica hipótese em apreciação, considerando, além do mais, o caráter negativo do controlo constitucional ditado pelo princípio da igualdade».
7. No caso presente, a dimensão normativa impugnada corresponde a esta última, e que já foi apreciada nos Acórdãos n.ºs 378/18 e 605/18: aplicação da verba 28.1 da TGIS a situações em que os terrenos para construção pertencem a empresas que se dedicam à comercialização de terrenos para revenda. Nesta vertente, em aplicação daquele primeiro Acórdão e respetivos fundamentos - nos seus números 11, 12 e 13 – é de concluir igualmente no sentido da não inconstitucionalidade.
Para além de não se vislumbrar que a distinção efetuada na decisão recorrida, atinente ao destino habitacional e não habitacional dos terrenos para construção, se mostre desprovida de fundamento racional e exceda a margem de conformação do legislador no domínio fiscal, de acordo com o escopo, estrutura e natureza da norma em causa, há que considerar que, tal como o IMI, o imposto do selo sobre os prédios urbanos de elevado valor é um imposto de natureza real, que incide apenas sobre o valor patrimonial tributável de cada prédio individualmente considerado, sem atender à situação social do contribuinte e sem agregar sequer o valor dos prédios de que é titular. Como refere Cardoso da Costa, o imposto real é aquele «que atinge a matéria coletável objetivamente determinada, isto é, abstraindo do condicionalismo económico em que se encontra o obrigado tributário» (Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed. Almedina, 1972, pág. 41).
Ora, na tributação prevista na verba 28.1 da TGIS, de acordo com a própria ratio que presidiu à sua criação, sobressai o elemento objetivo da sua incidência: «valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis». De modo que se pretendeu tributar a riqueza em função dela própria, sem referência especial às condições pessoais do seu titular. Assim sendo, o facto tributário definido na norma de incidência da verba 28.1 da TGIS – valor patrimonial tributário igual ou superior a um milhão de euros de prédios urbanos de afetação habitacional – revela a mesma capacidade contributiva do sujeito passivo quer ele se dedique à compra e venda de terrenos para construção e revenda quer os comercializar para outras finalidades.
Portanto, a capacidade contributiva mede-se nesta espécie tributária pela titularidade de um prédio urbano habitacional de elevado valor patrimonial. A opção político-legislativa de tributar esta particular manifestação de riqueza tem como limite a medida da força económica do contribuinte. Não obstante o legislador gozar de uma ampla liberdade na escolha dos factos tributáveis, não pode deixar de atender a uma situação que exprima a capacidade contributiva dos cidadãos. Por isso, um prédio urbano com as características definidas na verba 28.1 da TGIS constitui um índice de capacidade contributiva, na medida em que, na sua substância, reflete uma força económica acrescida do seu titular, quer o mesmo se dedique à compra e venda de terrenos para construção quer os destine a outros fins».
Em resumo, a circunstância de sociedades comerciais que têm por escopo social a promoção imobiliária serem abrangidas pela incidência ou o impacto económico neste setor de atividade, não são bastantes para alicerçar um juízo de inconstitucionalidade.
De igual modo, a verba 28.1 da TGIS aplica-se a todos sem exceção (geral); trata de forma igual aqueles que se encontram na mesma situação e de forma distinta aqueles que se encontram em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva (uniformidade) e veda discriminações entre contribuintes sem fundamento racional (não arbitrária).
Como também a tributação pela verba 28.1 da TGIS não é manifestamente excessiva, pois o legislador:
«…pretendeu, como se viu, alargar a base tributável à riqueza exteriorizada na propriedade de prédios urbanos destinados à habitação de elevado valor e, numa perspetiva de promoção da consolidação orçamental, como instrumento de obtenção de mais receita e, correspondentemente, de alívio do esforço que pudesse vir a incidir sobre outras fontes de receita ou sobre a redução da despesa pública, com vista a cumprir as metas de défice público, não sofre dúvida que as verbas de Imposto do Selo arrecadadas por via da incidência prevista na verba nº 28, qualquer que seja o seu montante, são aptas e idóneas a realizar as finalidades de repartição ampliada do esforço em período de sacrifícios fiscais e financeiros adicionais que o legislador procurou atingir. Como, enquanto medida fiscal dirigida a afetar mais intensamente os titulares de direitos reais de gozo sobre prédios urbanos de vocação habitacional e de mais alto valor, ao alcance apenas dos detentores de força económica elevada, não se vislumbram razões para concluir pelo desrespeito das dimensões da necessidade ou da justa medida, contidas no princípio da proporcionalidade »;
e
«Argumenta a reclamante, no essencial, que os fundamentos plasmados no Acórdão n.º 590/2015 não são aplicáveis à apreciação da constitucionalidade da norma erigida como objeto do recurso, nomeadamente quanto à violação do princípio da igualdade, não se descortinando diferença de capacidade contributiva entre os titulares de direitos reais sobre os terrenos com construção autorizada ou prevista para habitação e os titulares dos mesmos direitos sobre terrenos com construção autorizada ou prevista para comércio, indústria ou serviços.
Não lhe assiste, porém, razão.
Como já se concluiu no âmbito do Acórdão n.º 568/2016 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, onde poderão ser encontrados os restantes arestos doravante citados), desta 2.ª Secção, “[n]não obstante a alteração de redação já assinalada [respeitante à norma aqui em sindicância, cujo preceito de suporte foi alterado relativamente à redação apreciada no âmbito do Acórdão n.º 590/2015,] a argumentação que então foi adotada [no Acórdão n.º 590/2015] é inteiramente aplicável nas situações em que está em causa a liquidação de Imposto do Selo sobre terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI, e cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a (euro) 1 000 000» .
Deste modo, a liquidação de Imposto do Selo não padece de erro sobre os pressupostos de direito e, como tal, mantêm-se na ordem jurídica.
III – DECISÃO
Nestes termos decide julgar-se totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral relativamente à anulação da liquidação em crise, com todas as consequências legais.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 32 345,44, nos termos do art. 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do art. 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
CUSTAS
Custas a suportar pela Requerente, no montante de € 1 836, cfr. art. 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 2 de dezembro de 2019
O árbitro,
(Francisco Nicolau Domingos)
DECISÃO ARBITRAL
• RELATÓRIO
• A…, Lda., contribuinte n.º…, com sede na …, n.º…, …, …–…Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou em 28/07/2016 pedido de pronúncia arbitral no qual peticiona a anulação de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2015, no montante de € 32 345,44.
• O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), designou em 03/10/2016 como árbitro, Francisco Nicolau Domingos.
• No dia 19/10/2016 ficou constituído o tribunal arbitral.
• Cumprindo a estatuição do art. 17.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) foi a Requerida, em 21/10/2016 notificada para, querendo, apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e para remeter o processo administrativo (PA).
• Em 23/11/2016 a Requerida apresentou a sua resposta.
• Em 14/03/2017, o tribunal decidiu dispensar a realização da reunião a que o art. 18.º, n.º 1 do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas, cfr. art. 16.º, al. c) do RJAT, concedeu prazo para que as partes, querendo, apresentassem as alegações finais escritas e designou o dia 19/04/2017 como data limite para proferir decisão arbitral.
• As partes apresentaram alegações finais escritas no dia 23/03/2017 nas quais mantiveram as suas posições iniciais.
• POSIÇÕES DAS PARTES
Em primeiro lugar, a Requerente defende que a liquidação de Imposto do Selo é nula ou subsidiariamente anulável, visto que, a verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na redacção em vigor à data do facto tributário, é inconstitucional.
Deste modo, começa por sustentar que as empresas que se dedicam à compra para revenda de «terrenos para construção» ou que se dedicam à construção de edifícios seriam negativamente discriminadas em relação aqueloutras que não a desenvolvem, visto que, os «terrenos para construção» são matérias-primas em carteira para as empresas que têm tal escopo societário. Argumentos que utiliza para defender que a verba 28.1 da TGIS, na redacção dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, descritos nos artigos 266.º, n.º 2, 13.º e 104.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Em segundo lugar, a Requerente vislumbra ainda uma outra inconstitucionalidade na verba 28.1 da TGIS, quando institui uma tributação da titularidade de um terreno destinado a habitação, cujo valor patrimonial tributário (VPT) seja superior a € 1 000 000 e a não tributação da titularidade de outro terreno destinado a fim distinto da habitação, com um VPT idêntico ou mesmo superior, criando uma discriminação sem qualquer fundamento ou espécie. E, como tal, viola o princípio da igualdade tributária e o princípio da capacidade contributiva que deste decorre. Para alicerçar tal conclusão alega ainda que há uma absoluta igualdade de circunstâncias, no plano fiscal, entre a posição dos contribuintes que detêm um «terreno para construção» cuja edificação terá uma afectação habitacional e a posição dos contribuintes que são titulares de um «terreno para construção» cuja edificação terá uma afectação para serviços ou indústria.
Acrescenta ainda que, a incidência da verba 28.1 da TGIS afasta-se dos princípios do reforço da equidade social, da efectiva repartição dos sacrifícios e da igualdade, porquanto, nada justifica que «…ao proprietário de um prédio com afectação habitacional com o VPT de um milhão de euros sejam cobrado € 10 000 a título de Imposto do Selo, e, ao proprietário de um conjunto de imóveis cujo VPT total ascenda a cinquenta milhões de euros não seja cobrado rigorosamente nada, pela única razão de que nenhum dos prédios que perfazem aquele VPT total…» tem, isoladamente, um VPT igual ou superior a € 1 000 000.
Termina, peticionando o reembolso do imposto pago e o pagamento de juros indemnizatórios, em resultado de erro imputável aos serviços no momento da liquidação.
A Requerida, na sua resposta defende-se por impugnação e começa por dizer que, o que está em causa nestes autos é uma liquidação que resulta da aplicação directa da norma legal e que se traduz em elementos objectivos, sem qualquer apreciação subjectiva ou discricionária.
No que respeita à questão do desrespeito da verba 28.1 da TGIS com o texto constitucional, defende que o tribunal não deverá aferir ou discutir da bondade da medida legislativa e do seu alcance, devendo cingir-se à apreciação da sua conformação com o texto constitucional.
Quanto à violação do princípio da igualdade em sentido estrito e da sua manifestação da capacidade contributiva refere que o legislador definiu um pressuposto económico, constitucionalmente válido, como manifestação da capacidade contributiva – cujos destinatários têm efectivamente uma especial capacidade contributiva em face do critério adoptado para o pagamento deste imposto. Em concreto, com a previsão da verba 28.1 na TGIS o legislador pretendeu distribuir por todos os sacrifícios impostos pela austeridade, permitindo a discriminação de patrimónios sem que tal ofenda os princípios constitucionais em análise, porquanto não resultam diferenças injustificadas de tratamento entre contribuintes.
Acrescenta ainda que é uma norma de carácter geral e abstracto, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se preencham os respectivos pressupostos de facto e de direito. O facto do legislador estabelecer um valor de € 1 000 000, como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha quanto à fixação do «âmbito material dos imóveis habitacionais de luxo» que se pretende tributar de modo mais gravoso.
Mais, a diferente valoração e tributação de um imóvel com afectação habitacional face a um imóvel destinado a comércio, indústria ou serviços resulta da diferente aptidão dos imóveis em causa, o que sustenta o diferente tratamento dado pelo legislador que, por razões económicas e sociais, decidiu, no âmbito da sua liberdade conformadora, afastar da incidência do imposto os imóveis destinados a outros fins que não os habitacionais.
Refere igualmente neste âmbito que, apesar de não competir à AT, no exercício das suas funções, tecer comentários acerca da alegada inconstitucionalidade da verba 28.1 da TGIS, a mesma não viola os princípios da proporcionalidade, da legalidade, da confiança dos cidadãos e da capacidade contributiva.
Termina sustentando que a liquidação em crise não provém de qualquer erro dos serviços, mas decorre da aplicação da lei, pelo que, no seu juízo, não há direito a juros indemnizatórios.
Nesta sequência, pede a Requerente que:
d) Seja declarada a ilegalidade do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo sub judice, porque assente em normas inconstitucionais, sendo o mesmo anulado;
e) Seja a AT condenada a reembolsar a Requerente do valor de Imposto do Selo pago;
f) Seja a AT condenada no pagamento à aqui Requerente de juros indemnizatórios, à taxa legal, até reembolso integral da quantia devida e calculados sobre o imposto pago.
• SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades, não foram suscitadas quaisquer questões que obstem à apreciação do mérito da causa, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
4. MATÉRIA DE FACTO
4.1. Factos que se consideram provados
4.1.1. A Requerente é proprietária do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo…, freguesia de…, concelho de Loulé, inscrito como «terreno para construção».
4.1.2. Tal prédio tinha um VPT de € 3 234 544,42 em 31 de Dezembro de 2015.
4.1.3. A Requerente dedica-se à compra de prédios para construção.
4.1.4. A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo do prédio descrito em 4.1.1., relativa ao ano de 2015, no valor total de € 32 345,44.
4.1.5. A AT notificou, nomeadamente, a Requerente para pagar tal montante da seguinte forma: 1.ª prestação no valor de € 10 781,82 e a 2.ª prestação no valor de € 10 781,81.
4.1.6. A Requerente procedeu ao pagamento da 1.ª prestação no dia 27/05/2016 e da 2.ª no dia 25/07/2016.
4.1.7. O prédio descrito em 4.1.1. encontrava-se à data do facto tributário matricialmente inscrito como «terreno para construção».
4.2. Factos que não se consideram provados
Não existem quaisquer factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.
4.3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada
A matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos utilizados para cada um dos factos alegados e cuja autenticidade não foi colocada em causa.
5. MATÉRIA DE DIREITO
5.1. Enquadramento histórico da verba 28.1 da TGIS
Em primeiro lugar, urge traçar a cronologia de vida da verba 28.1 da TGIS. Na verdade, em 2012, através da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro decidiu o legislador aditar um facto sujeito a Imposto do Selo, tendo em vista tributar os prédios de elevado valor patrimonial e com o objectivo de aumentar a receita do Estado em contexto de absoluta recessão económica.
Para tanto a redacção inicial da verba supra descrita foi a seguinte:
«28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 – Por prédio com afectação habitacional…».
Deste modo, ficaram sujeitos a Imposto do Selo, os prédios que: i) fossem urbanos e ii) detivessem um valor patrimonial tributário superior a € 1 000 000.
Acontece que, ainda na vigência da referida redacção, a interpretação promovida pela AT apontava no sentido de ficarem sujeitos a tributação os prédios construídos e afectos a habitação, como também os terrenos já classificados como para construção em zonas nas quais o tipo de construção previsto é a habitação.
Sucede que esta interpretação foi reiterada e sistematicamente afastada pela jurisprudência estadual e arbitral, como são disso exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos no processo 1870/13, de 09/04/2014, no qual assumiu a função de relatora a Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA, o processo 46/14, de 14/05/2014, no qual assumiu a função de relator o Conselheiro ASCENSÃO LOPES e o processo 0272/2014, de 23/04/2014, no qual assumiu a função de relator o Conselheiro PEDRO DELGADO.
A verdade é que o legislador, através da Lei do Orçamento do Estado de 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), alterou a redacção da verba de Imposto do Selo em análise, ampliando a incidência no sentido de incluir expressamente os «terrenos para construção» onde esteja prevista ou aprovada a construção para a habitação, sempre na condição de que aqueles tenham um VPT superior a € 1 000 000. Por isso, à data do facto tributário, os «terrenos para construção» cuja edificação autorizada ou prevista seja a habitação encontram-se sujeitos à tributação prevista na verba 28.1 da TGIS , exigindo a norma de incidência que se prove que o direito à construção já se encontra determinado por actuação de entidade pública, visto que tal direito apenas se constitui quando essa entidade autoriza o proprietário a construir ou a lotear .
Em resumo, a incidência de Imposto do Selo sobre os «terrenos para construção», exige, não só a mera propriedade, como também a emissão de título administrativo que autorize, nomeadamente, tal proprietário a construir ou a lotear.
Ainda assim, a verba determina que o imposto incide sobre «…o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI…» e sobre tal matéria deve incidir a taxa de 1% «…por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI…», contudo mesmo quando a construção autorizada ou prevista para o terreno não seja exclusivamente a habitação é o VPT, o único que existe previamente à edificação. Isto é, ainda que a construção autorizada ou prevista para o terreno seja em fracções susceptíveis de utilização independente, que são consideradas autonomamente para efeitos de IMI, como dispõe o art. 12.º, n.º 3 do CIMI e o VPT do terreno compute o valor das edificações autorizadas ou previstas, é o VPT que a norma de incidência demarca que é utilizado para determinar o âmbito do imposto.
Razão pela qual, a verba 28.1 da TGIS determina que, o que se deve ter em consideração, no âmbito da incidência do imposto, é o VPT do terreno.
5.2. Questão da divergência da verba 28.1 da TGIS com o princípio constitucional da igualdade, no segmento relativo a «terrenos para construção», por discriminação fiscal negativa às empresas que se dedicam à compra de terrenos para construção e revenda
Neste âmbito há que, em primeiro lugar, apurar se existe incompatibilidade da verba 28.1 da TGIS com o princípio constitucional da igualdade, no segmento relativo a «terrenos para construção», por discriminação negativa às empresas que exercem habitualmente a actividade de compra e venda de terrenos para construção e revenda.
A este respeito sustenta a Requerente que a actividade económica das empresas que se dedicam à construção de edifícios para habitação e assim detêm «terrenos para construção», ou seja, matérias-primas em carteira, estaria a ser claramente discriminada de forma negativa. Isto é, na sua visão, a tributação da verba 28.1 da TGIS de prédios urbanos habitacionais e de «terrenos para construção» cuja edificação seja a habitação de valor igual ou superior a € 1 000 000, mesmo quando não seja uma manifestação de luxo dos seus proprietários, mas um desenvolvimento da sua actividade social seria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
Adiantamos já, com razão . Na verdade, as empresas com este escopo social necessitam inexoravelmente de adquirir os «terrenos para construção» para realizarem a sua finalidade social, pelo que, não é possível sustentar que revelem uma adicional capacidade contributiva. Mais, a tributação não tem conexão com o rendimento real da actividade comercial destas empresas e mantém-se mesmo naqueles exercícios em que existem prejuízos, acentuando-se a sua intensidade. Deste modo, não encontramos razões para impor esta tributação adicional às empresas que se dedicam à compra e venda de terrenos para construção e revenda.
Nesta linha, não se encontram fundamentos para diferenciar as empresas que se dedicam à venda de terrenos para construção de edifícios habitacionais e as que os vendem para outras finalidades. Consequentemente, a verba 28.1 da TGIS corporiza uma discriminação negativa infundada das empresas que se dedicam à compra e venda de terrenos para construção e revenda, violadora do princípio da igualdade e, como tal, materialmente inconstitucional.
Consequentemente, a verba 28.1 da TGIS na redacção à data do facto tributário é materialmente inconstitucional, porquanto sujeita à tributação em Imposto do Selo a propriedade dos «terrenos para construção» cujo VPT seja superior a € 1 000 000, na medida em que se aplica a hipóteses em que os «terrenos para construção» pertencem a empresas que se dedicam à compra e venda de terrenos para construção e revenda.
Assim, a liquidação objecto do presente pedido padece do vício de violação de lei, por manifestar erro nos pressupostos de direito ao aplicar uma norma materialmente inconstitucional, o que alicerça a sua anulação.
5.3. Reembolso de Imposto do Selo pago e juros indemnizatórios
A Requerente solicita o reembolso da quantia de € 21 563,63 respeitante à liquidação de Imposto do Selo de 2015 e o pagamento de juros indemnizatórios.
A este propósito, o art. 100.º da Lei Geral Tributária, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT, prevê que: «A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei». Isto é, a anulação judicial do acto implica a destruição dos seus efeitos ex tunc, ou seja, tudo se deve passar como se este não tivesse sido praticado.
Ora, a reconstituição da situação hipotética actual alicerça a obrigação de reembolso do imposto que foi pago. Razão pela qual, no caso concreto, perante a ilegalidade da liquidação, há indiscutivelmente lugar a reembolso do montante de Imposto do Selo pago pela Requerente.
Mas é legítimo formular a seguinte questão: e o sujeito passivo terá direito aos juros indemnizatórios?
O art. 43.º, n.º 1 da LGT dispõe que: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Por outras palavras, são três os requisitos do direito aos referidos juros: i) existência de um erro em acto de liquidação de imposto imputável aos serviços; ii) determinação de tal erro em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e iii) pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
E o pagamento de juros indemnizatórios pode ser determinado em processo arbitral tributário como o art. 24.º, n.º 5 do RJAT admite, desde que, naturalmente, se verifiquem os requisitos supra descritos.
Mas existirá um erro imputável aos serviços da AT quando o único vício que se vislumbra consiste na aplicação de norma inconstitucional?
À questão responde a jurisprudência , de modo uniforme e reiterado, que: «… a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respectivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.). É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT. A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…».
Consequentemente, quando uma liquidação seja anulada por vício com fonte em aplicação de norma inconstitucional, não se verifica qualquer erro imputável aos serviços da AT e, como tal, indefere-se o pedido de juros indemnizatórios.
6. DECISÃO
Nestes termos decide-se:
i) julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral relativamente à anulação da liquidação em crise;
ii) julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 21 563,63, condenando-se a AT ao seu integral reembolso;
iii) julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e, em consequência, absolver-se a AT de tal pedido.
7. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 32 345,44, nos termos do art. 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do art. 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
8. CUSTAS
Custas a suportar pela Requerida, no montante de € 1 836, cfr. art. 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 17 de Abril de 2017
O árbitro,
(Francisco Nicolau Domingos)
DECISÃO ARBITRAL
· RELATÓRIO
· A…, Lda., contribuinte n.º…, com sede na …, n.º…, …, …–…Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou em 28/07/2016 pedido de pronúncia arbitral no qual peticiona a anulação de liquidação de Imposto do Selo do ano de 2015, no montante de € 32 345,44.
· O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), designou em 03/10/2016 como árbitro, Francisco Nicolau Domingos.
· No dia 19/10/2016 ficou constituído o tribunal arbitral.
· Cumprindo a estatuição do art. 17.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) foi a Requerida, em 21/10/2016 notificada para, querendo, apresentar resposta, solicitar a produção de prova adicional e para remeter o processo administrativo (PA).
· Em 23/11/2016 a Requerida apresentou a sua resposta.
· Em 14/03/2017, o tribunal decidiu dispensar a realização da reunião a que o art. 18.º, n.º 1 do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas, cfr. art. 16.º, al. c) do RJAT, concedeu prazo para que as partes, querendo, apresentassem as alegações finais escritas e designou o dia 19/04/2017 como data limite para proferir decisão arbitral.
· As partes apresentaram alegações finais escritas no dia 23/03/2017 nas quais mantiveram as suas posições iniciais.
· POSIÇÕES DAS PARTES
Em primeiro lugar, a Requerente defende que a liquidação de Imposto do Selo é nula ou subsidiariamente anulável, visto que, a verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), na redacção em vigor à data do facto tributário, é inconstitucional.
Deste modo, começa por sustentar que as empresas que se dedicam à compra para revenda de «terrenos para construção» ou que se dedicam à construção de edifícios seriam negativamente discriminadas em relação aqueloutras que não a desenvolvem, visto que, os «terrenos para construção» são matérias-primas em carteira para as empresas que têm tal escopo societário. Argumentos que utiliza para defender que a verba 28.1 da TGIS, na redacção dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, descritos nos artigos 266.º, n.º 2, 13.º e 104.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Em segundo lugar, a Requerente vislumbra ainda uma outra inconstitucionalidade na verba 28.1 da TGIS, quando institui uma tributação da titularidade de um terreno destinado a habitação, cujo valor patrimonial tributário (VPT) seja superior a € 1 000 000 e a não tributação da titularidade de outro terreno destinado a fim distinto da habitação, com um VPT idêntico ou mesmo superior, criando uma discriminação sem qualquer fundamento ou espécie. E, como tal, viola o princípio da igualdade tributária e o princípio da capacidade contributiva que deste decorre. Para alicerçar tal conclusão alega ainda que há uma absoluta igualdade de circunstâncias, no plano fiscal, entre a posição dos contribuintes que detêm um «terreno para construção» cuja edificação terá uma afectação habitacional e a posição dos contribuintes que são titulares de um «terreno para construção» cuja edificação terá uma afectação para serviços ou indústria.
Acrescenta ainda que, a incidência da verba 28.1 da TGIS afasta-se dos princípios do reforço da equidade social, da efectiva repartição dos sacrifícios e da igualdade, porquanto, nada justifica que «…ao proprietário de um prédio com afectação habitacional com o VPT de um milhão de euros sejam cobrado € 10 000 a título de Imposto do Selo, e, ao proprietário de um conjunto de imóveis cujo VPT total ascenda a cinquenta milhões de euros não seja cobrado rigorosamente nada, pela única razão de que nenhum dos prédios que perfazem aquele VPT total…» tem, isoladamente, um VPT igual ou superior a € 1 000 000.
Termina, peticionando o reembolso do imposto pago e o pagamento de juros indemnizatórios, em resultado de erro imputável aos serviços no momento da liquidação.
A Requerida, na sua resposta defende-se por impugnação e começa por dizer que, o que está em causa nestes autos é uma liquidação que resulta da aplicação directa da norma legal e que se traduz em elementos objectivos, sem qualquer apreciação subjectiva ou discricionária.
No que respeita à questão do desrespeito da verba 28.1 da TGIS com o texto constitucional, defende que o tribunal não deverá aferir ou discutir da bondade da medida legislativa e do seu alcance, devendo cingir-se à apreciação da sua conformação com o texto constitucional.
Quanto à violação do princípio da igualdade em sentido estrito e da sua manifestação da capacidade contributiva refere que o legislador definiu um pressuposto económico, constitucionalmente válido, como manifestação da capacidade contributiva – cujos destinatários têm efectivamente uma especial capacidade contributiva em face do critério adoptado para o pagamento deste imposto. Em concreto, com a previsão da verba 28.1 na TGIS o legislador pretendeu distribuir por todos os sacrifícios impostos pela austeridade, permitindo a discriminação de patrimónios sem que tal ofenda os princípios constitucionais em análise, porquanto não resultam diferenças injustificadas de tratamento entre contribuintes.
Acrescenta ainda que é uma norma de carácter geral e abstracto, aplicável de forma indistinta a todos os casos em que se preencham os respectivos pressupostos de facto e de direito. O facto do legislador estabelecer um valor de € 1 000 000, como critério delimitativo da incidência do imposto, abaixo do qual não se preenche a previsão da norma tributária, constitui uma legítima escolha quanto à fixação do «âmbito material dos imóveis habitacionais de luxo» que se pretende tributar de modo mais gravoso.
Mais, a diferente valoração e tributação de um imóvel com afectação habitacional face a um imóvel destinado a comércio, indústria ou serviços resulta da diferente aptidão dos imóveis em causa, o que sustenta o diferente tratamento dado pelo legislador que, por razões económicas e sociais, decidiu, no âmbito da sua liberdade conformadora, afastar da incidência do imposto os imóveis destinados a outros fins que não os habitacionais.
Refere igualmente neste âmbito que, apesar de não competir à AT, no exercício das suas funções, tecer comentários acerca da alegada inconstitucionalidade da verba 28.1 da TGIS, a mesma não viola os princípios da proporcionalidade, da legalidade, da confiança dos cidadãos e da capacidade contributiva.
Termina sustentando que a liquidação em crise não provém de qualquer erro dos serviços, mas decorre da aplicação da lei, pelo que, no seu juízo, não há direito a juros indemnizatórios.
Nesta sequência, pede a Requerente que:
a) Seja declarada a ilegalidade do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo sub judice, porque assente em normas inconstitucionais, sendo o mesmo anulado;
b) Seja a AT condenada a reembolsar a Requerente do valor de Imposto do Selo pago;
c) Seja a AT condenada no pagamento à aqui Requerente de juros indemnizatórios, à taxa legal, até reembolso integral da quantia devida e calculados sobre o imposto pago.
· SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades, não foram suscitadas quaisquer questões que obstem à apreciação do mérito da causa, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
4. MATÉRIA DE FACTO
4.1. Factos que se consideram provados
4.1.1. A Requerente é proprietária do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo…, freguesia de…, concelho de Loulé, inscrito como «terreno para construção».
4.1.2. Tal prédio tinha um VPT de € 3 234 544,42 em 31 de Dezembro de 2015.
4.1.3. A Requerente dedica-se à compra de prédios para construção.
4.1.4. A Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo do prédio descrito em 4.1.1., relativa ao ano de 2015, no valor total de € 32 345,44.
4.1.5. A AT notificou, nomeadamente, a Requerente para pagar tal montante da seguinte forma: 1.ª prestação no valor de € 10 781,82 e a 2.ª prestação no valor de € 10 781,81.
4.1.6. A Requerente procedeu ao pagamento da 1.ª prestação no dia 27/05/2016 e da 2.ª no dia 25/07/2016.
4.1.7. O prédio descrito em 4.1.1. encontrava-se à data do facto tributário matricialmente inscrito como «terreno para construção».
4.2. Factos que não se consideram provados
Não existem quaisquer factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.
4.3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada
A matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos utilizados para cada um dos factos alegados e cuja autenticidade não foi colocada em causa.
5. MATÉRIA DE DIREITO
5.1. Enquadramento histórico da verba 28.1 da TGIS
Em primeiro lugar, urge traçar a cronologia de vida da verba 28.1 da TGIS. Na verdade, em 2012, através da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro decidiu o legislador aditar um facto sujeito a Imposto do Selo, tendo em vista tributar os prédios de elevado valor patrimonial e com o objectivo de aumentar a receita do Estado em contexto de absoluta recessão económica.
Para tanto a redacção inicial da verba supra descrita foi a seguinte:
«28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 – Por prédio com afectação habitacional…».
Deste modo, ficaram sujeitos a Imposto do Selo, os prédios que: i) fossem urbanos e ii) detivessem um valor patrimonial tributário superior a € 1 000 000.
Acontece que, ainda na vigência da referida redacção, a interpretação promovida pela AT apontava no sentido de ficarem sujeitos a tributação os prédios construídos e afectos a habitação, como também os terrenos já classificados como para construção em zonas nas quais o tipo de construção previsto é a habitação.
Sucede que esta interpretação foi reiterada e sistematicamente afastada pela jurisprudência estadual e arbitral, como são disso exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos no processo 1870/13, de 09/04/2014, no qual assumiu a função de relatora a Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA, o processo 46/14, de 14/05/2014, no qual assumiu a função de relator o Conselheiro ASCENSÃO LOPES e o processo 0272/2014, de 23/04/2014, no qual assumiu a função de relator o Conselheiro PEDRO DELGADO.
A verdade é que o legislador, através da Lei do Orçamento do Estado de 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro), alterou a redacção da verba de Imposto do Selo em análise, ampliando a incidência no sentido de incluir expressamente os «terrenos para construção» onde esteja prevista ou aprovada a construção para a habitação, sempre na condição de que aqueles tenham um VPT superior a € 1 000 000. Por isso, à data do facto tributário, os «terrenos para construção» cuja edificação autorizada ou prevista seja a habitação encontram-se sujeitos à tributação prevista na verba 28.1 da TGIS[1], exigindo a norma de incidência que se prove que o direito à construção já se encontra determinado por actuação de entidade pública, visto que tal direito apenas se constitui quando essa entidade autoriza o proprietário a construir ou a lotear[2].
Em resumo, a incidência de Imposto do Selo sobre os «terrenos para construção», exige, não só a mera propriedade, como também a emissão de título administrativo que autorize, nomeadamente, tal proprietário a construir ou a lotear.
Ainda assim, a verba determina que o imposto incide sobre «…o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI…» e sobre tal matéria deve incidir a taxa de 1% «…por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI…», contudo mesmo quando a construção autorizada ou prevista para o terreno não seja exclusivamente a habitação é o VPT, o único que existe previamente à edificação. Isto é, ainda que a construção autorizada ou prevista para o terreno seja em fracções susceptíveis de utilização independente, que são consideradas autonomamente para efeitos de IMI, como dispõe o art. 12.º, n.º 3 do CIMI e o VPT do terreno compute o valor das edificações autorizadas ou previstas, é o VPT que a norma de incidência demarca que é utilizado para determinar o âmbito do imposto.
Razão pela qual, a verba 28.1 da TGIS determina que, o que se deve ter em consideração, no âmbito da incidência do imposto, é o VPT do terreno.
5.2. Questão da divergência da verba 28.1 da TGIS com o princípio constitucional da igualdade, no segmento relativo a «terrenos para construção», por discriminação fiscal negativa às empresas que se dedicam à compra de terrenos para construção e revenda
Neste âmbito há que, em primeiro lugar, apurar se existe incompatibilidade da verba 28.1 da TGIS com o princípio constitucional da igualdade, no segmento relativo a «terrenos para construção», por discriminação negativa às empresas que exercem habitualmente a actividade de compra e venda de terrenos para construção e revenda.
A este respeito sustenta a Requerente que a actividade económica das empresas que se dedicam à construção de edifícios para habitação e assim detêm «terrenos para construção», ou seja, matérias-primas em carteira, estaria a ser claramente discriminada de forma negativa. Isto é, na sua visão, a tributação da verba 28.1 da TGIS de prédios urbanos habitacionais e de «terrenos para construção» cuja edificação seja a habitação de valor igual ou superior a € 1 000 000, mesmo quando não seja uma manifestação de luxo dos seus proprietários, mas um desenvolvimento da sua actividade social seria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
Adiantamos já, com razão[3]. Na verdade, as empresas com este escopo social necessitam inexoravelmente de adquirir os «terrenos para construção» para realizarem a sua finalidade social, pelo que, não é possível sustentar que revelem uma adicional capacidade contributiva. Mais, a tributação não tem conexão com o rendimento real da actividade comercial destas empresas e mantém-se mesmo naqueles exercícios em que existem prejuízos, acentuando-se a sua intensidade. Deste modo, não encontramos razões para impor esta tributação adicional às empresas que se dedicam à compra e venda de terrenos para construção e revenda.
Nesta linha, não se encontram fundamentos para diferenciar as empresas que se dedicam à venda de terrenos para construção de edifícios habitacionais e as que os vendem para outras finalidades. Consequentemente, a verba 28.1 da TGIS corporiza uma discriminação negativa infundada das empresas que se dedicam à compra e venda de terrenos para construção e revenda, violadora do princípio da igualdade e, como tal, materialmente inconstitucional.
Consequentemente, a verba 28.1 da TGIS na redacção à data do facto tributário é materialmente inconstitucional, porquanto sujeita à tributação em Imposto do Selo a propriedade dos «terrenos para construção» cujo VPT seja superior a € 1 000 000, na medida em que se aplica a hipóteses em que os «terrenos para construção» pertencem a empresas que se dedicam à compra e venda de terrenos para construção e revenda.
Assim, a liquidação objecto do presente pedido padece do vício de violação de lei, por manifestar erro nos pressupostos de direito ao aplicar uma norma materialmente inconstitucional, o que alicerça a sua anulação.
5.3. Reembolso de Imposto do Selo pago e juros indemnizatórios
A Requerente solicita o reembolso da quantia de € 21 563,63 respeitante à liquidação de Imposto do Selo de 2015 e o pagamento de juros indemnizatórios.
A este propósito, o art. 100.º da Lei Geral Tributária, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT, prevê que: «A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei». Isto é, a anulação judicial do acto implica a destruição dos seus efeitos ex tunc, ou seja, tudo se deve passar como se este não tivesse sido praticado.
Ora, a reconstituição da situação hipotética actual alicerça a obrigação de reembolso do imposto que foi pago. Razão pela qual, no caso concreto, perante a ilegalidade da liquidação, há indiscutivelmente lugar a reembolso do montante de Imposto do Selo pago pela Requerente.
Mas é legítimo formular a seguinte questão: e o sujeito passivo terá direito aos juros indemnizatórios?
O art. 43.º, n.º 1 da LGT dispõe que: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Por outras palavras, são três os requisitos do direito aos referidos juros: i) existência de um erro em acto de liquidação de imposto imputável aos serviços; ii) determinação de tal erro em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e iii) pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
E o pagamento de juros indemnizatórios pode ser determinado em processo arbitral tributário como o art. 24.º, n.º 5 do RJAT admite, desde que, naturalmente, se verifiquem os requisitos supra descritos.
Mas existirá um erro imputável aos serviços da AT quando o único vício que se vislumbra consiste na aplicação de norma inconstitucional?
À questão responde a jurisprudência[4], de modo uniforme e reiterado, que: «… a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respectivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.). É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT. A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…».
Consequentemente, quando uma liquidação seja anulada por vício com fonte em aplicação de norma inconstitucional, não se verifica qualquer erro imputável aos serviços da AT e, como tal, indefere-se o pedido de juros indemnizatórios.
6. DECISÃO
Nestes termos decide-se:
i) julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral relativamente à anulação da liquidação em crise;
ii) julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 21 563,63, condenando-se a AT ao seu integral reembolso;
iii) julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e, em consequência, absolver-se a AT de tal pedido.
7. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 32 345,44, nos termos do art. 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do art. 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
8. CUSTAS
Custas a suportar pela Requerida, no montante de € 1 836, cfr. art. 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 17 de Abril de 2017
O árbitro,
(Francisco Nicolau Domingos)
[1] Neste sentido v. decisão arbitral n.º 507/2015-T, de 17/03/2016 e na qual assumiu as funções de presidente o Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA.
[2] Neste sentido, v. a decisão arbitral n.º 467/2015-T, 04/02/2016 e na qual assumiu funções de presidente a Conselheira FERNANDA MAÇÃS.
[3] Seguiremos de perto a fundamentação constante na decisão arbitral n.º 507/2015-T, de 17/03/2016 e na qual assumiu as funções de presidente o Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA e a n.º 529/2015, de 29/06/2016 na qual assumimos a função de árbitro.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0703/14, de 21/01/2015, em que foi relator o conselheiro ARAGÃO SEIA, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0704/14, de 11/05/2016, em que foi relator o Conselheiro ASCENSÃO LOPES e acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 01529/14, de 04/03/2015, em que foi relator o Conselheiro CASIMIRO GONÇALVES.