Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 190/2013-T
Data da decisão: 2014-01-15  IRC  
Valor do pedido: € 869.928,74
Tema: Derrama municipal - Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS)
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Processo n.º 190/2013-T

 

 

Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Prof. Doutor Guilherme d’Oliveira Martins e Dr. Álvaro Caneira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 01-10-2013, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

 

1. A…, SGPS, S.A., NIPC …, apresentou, em 29-07-2013, um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida como AT ou Requerida).

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 29-07-2013.

 

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 12-09-2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 01-10-2013.

 

6. No dia 15-11-2013, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo o representante da Requerente declarado pretender juntar aos autos um documento e prescindir de alegações orais. O Representante da Requerida declarou não se opor à junção do documento, desde que lhe fosse concedido prazo para vista, tendo também declarado prescindir da realização de alegações orais. O Tribunal admitiu a junção do documento, tendo concedido um prazo de 10 dias à Requerida para esta, querendo, exercer o contraditório. Em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, o Tribunal designou o dia 31.01.2014 para o efeito da prolação do acórdão final. Foi ainda acordado que as decisões de mero expediente que coubesse ao Tribunal proferir poderiam sê-lo por despacho do Presidente.

 

7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

8. O processo não enferma de nulidades.

 

I. a) Sintese das alegações da Requerente no pedido de pronúncia arbitral.

 

A Requerente deduziu impugnação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa de autoliquidação apresentada no 1.º Serviço de Finanças de …, em 11-01-2013, à qual foi atribuído o n.º …2013… e que foi indeferida por despacho do Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes de 24-05-2013, com vista à declaração de ilegalidade parcial do ato de autoliquidação de IRC n.º 2012 …, de 22-08-2012, referente ao exercício de 2011, no montante a reembolsar de € 23.367.097,01, na parte relativa à derrama. Em consequência pede o restituição do valor global de € 869.928,74, correspondente à derrama indevidamente liquidada pelo Grupo no âmbito da referida autoliquidação. Para fundamentar o seu pedido, a Requerente invoca a violação das normas de incidência da derrama municipal no âmbito do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), em concreto no que respeita à determinação da base de incidência daquele imposto. Entende a Requerente que, tendo um grupo de sociedades optado pela aplicação do RETGS, a expressão “sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC” constante do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, deve ser entendida como uma referência ao lucro tributável global, i.e., consolidado, e não ao lucro tributável individual de cada uma das sociedades que integram o grupo. Assim, e ainda que, para efeito de preenchimento das declarações de rendimentos individuais, tenham sido apurados os montantes de derrama para cada uma das sociedades que constituem o perímetro fiscal do grupo, com base na taxa de derrama apurada sobre o respetivo lucro tributável individual, o montante a pagar pelo grupo deve incidir sobre o lucro tributável apurado por este, ou seja, considerando a soma dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados a nível individual por cada uma das sociedades.

 

A Requerente pede ainda que a Autoridade Tributária e Aduaneira seja condenada a pagar-lhe juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de € 869.928,74, até efetivo e integral reembolso do mesmo, bem como a ressarcir as despesas resultantes da lide para a Requerente.

 

I. b) Síntese das alegações da Entidade Requerida na resposta apresentada.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na resposta apresentada, começou por suscitar as seguintes questões prévias:

(i) ilegitimidade passiva da AT para estar em juízo como única demandada em matéria respeitante a derrama municipal, imposto co-administrado com os Municípios (sujeitos ativos do imposto em causa) que, por esse motivo, deveriam ter intervenção processual, suscitando, a título de incidente processual, a intervenção provocada dos Municípios como forma de sanação da exceção de ilegitimidade passiva;

(ii) interesse em agir dos referidos municípios neste litígio, porquanto têm um interesse pessoal e direto no seu resultado, devendo qualquer decisão que seja proferida sobre o litígio fazer necessariamente caso julgado em relação a estes;

(iii) incompetência do Tribunal arbitral para proferir decisão de mérito sobre a questão em litígio porquanto esta não será apta a fazer caso julgado em relação aos Municípios, o que terá consequências relevantes no caso de ser dado provimento ao pedido da Requerente, ficando esta impossibilitada de executar a decisão arbitral contra os Municípios, por não ter quanto a eles a natureza de caso julgado.

 

Quanto ao mérito do pedido formulado pela Requerente, sustenta a AT que, no caso concreto das sociedades abrangidas pelo RETGS, cada uma das sociedades é sujeito passivo de IRC e gera rendimentos sujeitos a IRC, sendo que em momento algum é consagrada qualquer situação de não sujeição, de isenção ou de exclusão de tributação para essas sociedades ou para os seus rendimentos; o que prevê o RETGS é apenas que as sociedades que integram um grupo possam agregar os seus vários lucros tributáveis/prejuízos fiscais, individualmente apurados, e assim chegar ao denominado “lucro tributável do grupo”. Todas as sociedades que integram o grupo têm a obrigação legal de proceder à entrega da sua própria declaração de rendimentos, na qual apuram o seu próprio lucro tributável, lucro tributável esse que será relevante para efeitos do cálculo da derrama devida pela sociedade, pelo que, inexistindo qualquer estatuição que considere não sujeitos ou isentos de IRC os rendimentos das sociedades que integram o perímetro de um grupo de sociedades, não podem os mesmos estar afastados da tributação em sede de derrama.

 

I. c) Síntese das alegações da Requerente no articulado superveniente

 

Quanto à ilegitimidade passiva da AT, a Requerente remete para anteriores decisões proferidas por tribunais arbitrais, designadamente nos processos n.º 112/2012-T, n.º 5/2012-T, n.º 53/2012-T, n.º 82/2012-T e n.º 6/2013-T, em que se decidiu no sentido da improcedência da exceção invocada pela AT com os seguintes fundamentos: por um lado, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, e tendo em conta o disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, a competência dos tribunais arbitrais inclui a apreciação da legalidade dos atos de liquidação de impostos. Por outro lado, resulta ainda da mesma portaria que a AT está vinculada à jurisdição arbitral quando se trate de impostos que são administrados pela mesma, o que sucede com a derrama municipal. Esta conclusão resulta também do disposto nos números 8.º a 10.º do artigo 14.º da Lei das Finanças Locais (9.º a 11.º na redação introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2012). Com efeito, é à AT que compete conduzir o procedimento de liquidação e cobrança da derrama municipal, confirmando os valores declarados e liquidados pelos sujeitos passivos, que cabe emitir liquidações adicionais e/ou oficiosas, fiscalizar o cumprimento das obrigações acessórias relativas a este imposto, apreciar e decidir reclamações graciosas que tenham a derrama municipal como objeto – tudo isto apesar de serem os municípios os credores da receita proveniente da derrama municipal. Ainda a propósito da ilegitimidade passiva, a Requerente acrescenta que a AT, na fase administrativa que antecedeu o presente processo arbitral, não invocou qualquer ilegitimidade para apreciar e decidir o processo de reclamação graciosa, não tendo, nessa sede, feito qualquer menção ao interesse dos municípios no imposto em causa, e ainda que a questão em discussão no presente processo está relacionada com o entendimento aplicado pela AT em sede de derrama municipal e que está previsto no Ofício-Circulado n.º 20132, de 14.04.2008, da autoria da própria AT. Do exposto concluem pela legitimidade passiva da AT e pela competência do Tribunal arbitral.

 

Quanto à eventual intervenção provocada do Município, defendem que a mesma, além de ser inócua quanto ao julgamento fáctico e jurídico da causa, não é processualmente admissível pelos seguintes motivos: porque estando em causa a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, o Tribunal não deve ter em conta as repercussões financeiras eventualmente decorrentes da procedência da ação pelo que a referida intervenção constituiria um ato inútil proibido por lei nos termos do artigo 137.º do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT; porque o ato tributário impugnado foi praticado pela AT e porque mesmo que o tivesse sido pela município a Fazenda Pública seria representada por licenciado em Direito ou por Advogado designado para o efeito pela respetiva autarquia (nos termos do artigo 54.º, n.º 2 do ETAF), o que continuaria a não justificar a intervenção provocada; porque a lei prevê a intervenção do Ministério Público para tutela da legalidade, promoção do interesse público e salvaguarda do interesse do Estado, nele incluída a administração central e a administração local (artigo 14.º, n.º 1 do CPPT e 69.º do ETAF); por fim, porque no processo de impugnação judicial existe norma especial, aqui aplicável, a determinar que apenas são admissíveis os incidentes de assistência, de habilitação e de apoio judiciário (artigo 127.º, n.º 1, do CPPT).

 

Concluídas as alegações relativas às exceções invocadas pela AT, a Requerente trouxe ainda ao conhecimento deste Tribunal o Ofício-Circulado n.º 19208, de 08.11.2013, através do qual a Direção de Serviços do IRC veiculou o entendimento de que a derrama municipal incide sobre o lucro tributável do grupo. A Requerente juntou ainda cópia de uma notificação da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas – Divisão de Conceção – da qual consta o seguinte segmento com relevância para a matéria em apreciação nos presentes autos: “(...) foi proferido, pelo SEAF, o despacho n.º 464/2013 – XIX – de 18 de outubro de 2013, exarado na informação da Direção de Serviços do IRC n.º 1846/2013, determinando a não aplicação do Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14 de abril de 2008, da DS IRC, na parte que se refere ao RETGS (n.º 2 daquele ofício-circulado), relativamente aos períodos de imposto cujo facto tributário se considera ocorrido entre 1 de janeiro de 2007 e 31 de dezembro de 2011, retomando-se em pleno a sua aplicabilidade nos períodos seguintes, em conformidade com a nova redação do artigo 14.º da LFL (Lei n.º 2/2007). Assim, nos procedimentos que estejam pendentes de decisão, como sejam, nomeadamente, as reclamações, os recursos ou as impugnações, deverá ser refletido o entendimento segundo o qual, relativamente às sociedades sujeitas a tributação em IRC no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama municipal incide sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades.”

 

 

 

II. Matéria de facto.

 

II.1. Factos que se consideram provados.

 

  1. No exercício de 2011, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo de sociedades tributado de acordo com as normas do RETGS, previstas nos artigos 69.º a 71.º do CIRC;
  2. Enquanto sociedade dominante do referido grupo de sociedades, a Requerente submeteu, atempadamente, a sua declaração de rendimentos modelo 22 do IRC relativa ao exercício de 2011, tendo apresentado prejuízos fiscais no montante de € 28.281.721,66.
  3. Na mesma declaração foi autoliquidado, no campo 364 do quadro 10, o montante de € 1.254.560,15, correspondente ao lançamento da derrama sobre o lucro tributável de cada uma das empresas que compunham o aludido grupo de sociedades, ou seja, a soma algébrica de todos os montantes correspondentes à derrama apurados por todas as sociedades a título individual;
  4. O sistema informático da AT não permite a submissão da declaração modelo 22 senão nos termos enunciados na alínea anterior;
  5. Em 11-01-2013, a Requerente apresentou junto do 1.º Serviço de Finanças de … reclamação graciosa do ato de autoliquidação de IRC n.º 2012 …, de 22-08-2012, referente ao exercício de 2011, no montante a reembolsar de € 23.367.097,01, à qual foi atribuído o n.º …2013…;
  6. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Senhor Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes de 24.05.2013, notificado à Requerente através do ofício n.º …, de 20.06.2013.

 

A convicção sobre os factos assim dados como provados fundou-se na prova documental não impugnada junta aos autos pela Requerente (cf. documentos 1 a 3 juntos com o Pedido de Pronúncia Arbitral e documento junto na reunião, em 15-11-2013, do Tribunal com as partes, prevista no artigo 18º, do RJAT – cfr. ata respetiva) e nos documentos incluídos no processo administrativo tributário junto pela Entidade Requerida.

 

II.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não tenham sido dados como provados.

 

2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

A fixação da matéria de facto baseou-se no processo administrativo, nos documentos juntos à petição inicial, em afirmações da Requerente que não são impugnadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira e no depoimento da testemunha … que aparentou depor com isenção e com conhecimento dos factos sobre que depôs.

 

III. Questões a decidir

 

São questões a decidir no presente caso as seguintes:

1) As exceções invocadas pela Entidade Requerida;

2) A validade ou invalidade do ato de autoliquidação que é objeto do pedido e, consequentemente, a questão dos juros indemnizatórios e da responsabilidade civil extracontratual, bem como a imputação das despesas resultantes da lide.

 

 

III. 1 Análise das exceções.

 

As exceções que, por poderem obstar ao conhecimento do pedido e ao julgamento de mérito do objeto do processo é necessário apreciar e decidir a título prévio são as seguintes: a) a competência do Tribunal; b) a legitimidade da Entidade Requerida e o incidente de intervenção provocada.

 

A apreciação de cada uma destas exceções supõe que a respetiva decisão não seja prejudicada pela solução dada a outra (cf. o artigo 608.º, n.º 2, do atual Código de Processo Civil, 660.º, n.º 2, na redação anterior, aplicável por força da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

 

Por outro lado, não procedendo as invocadas exceções, passar-se-á ao julgamento de mérito sobre o objeto do pedido de pronúncia arbitral, que passa pela questão de saber como se processa o apuramento da derrama no âmbito dos grupos de sociedades sujeitos ao RETGS. Da decisão sobre essa questão dependerá também a decisão a dar aos pedidos da Requerente sobre a questão dos juros indemnizatórios a liquidar a seu favor e sobre a imputação das despesas que para si decorrem desta lide à Entidade Requerida.

 

III. 1 a) Exceção de incompetência do Tribunal.

 

As questões prévias da incompetência dos tribunais arbitrais e da ilegitimidade passiva estão relacionadas na medida em que, caso se apure que a legitimidade passiva é, efetivamente, dos municípios que são credores da derrama, então os tribunais arbitrais deverão ser considerados materialmente incompetentes, por os municípios em causa não se terem vinculado à sua jurisdição, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, nos termos do qual “a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

 

Não obstante, far-se-á primeiro o exame da questão da competência, por ser de conhecimento prioritário, como decorre do disposto no artigo 13.º do CPTA, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 2, alínea c), do RJAT. Com efeito, com exceção precisamente da sua própria competência, o tribunal que seja incompetente está impedido, não só de apreciar o mérito da causa, mas todos os demais pressupostos processuais. Assim, de acordo com o bem conhecido princípio da competência‐competência, de acordo com o qual o tribunal tem competência para averiguar da sua própria competência, seja qual for o critério de que ela derive, ainda que para concluir pela sua incompetência, cabe, previamente, proceder à apreciação desta matéria.

 

A competência do tribunal para julgar a causa que nele foi instaurada, que constitui pressuposto processual essencial e, como tal, condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, é a medida da sua jurisdição, pelo que um certo tribunal só será competente para o julgamento de uma determinada causa se e quando os critérios determinativos da sua competência lhe atribuirem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação. Por outro lado, a competência do tribunal deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, tendo em conta o modo como surgem formulados na petição inicial, independentemente da sua procedência ou não (vd., assim, entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4-03-2010, proc. 2425/07.1TBVCD.P1.S1 e de 10-12-09, proc. 09S0470, divulgados em www.dgsi.pt).

 

No caso concreto, o pedido objeto dos presentes autos arbitrais é o de declaração parcial de ilegalidade do ato de liquidação da derrama municipal, estando o mesmo dependente da questão de se saber como deve ser efetuado o cálculo da derrama municipal no âmbito de um grupo societário tributado nos termos do RETGS. Temos, portanto, um pedido que é formulado com referência a um ato de liquidação da derrama municipal, e que tem em vista a sua anulação parcial com base em vícios de violação de lei que são diretamente atribuídos à mesma liquidação.

 

Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende, nomeadamente, as pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 de março, vincula a AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida.

 

Ora, conforme resulta dos n.ºs 8 a 10 do artigo 14.º da LFL, na sua redação inicial, e dos n.ºs 9 a 11, na redação introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2012, é à Direção-Geral de Impostos que é atribuída a competência para a liquidação e cobrança das derramas municipais[1]. Com efeito, tal como se refere no acórdão 82/2012-T, “é por ser atribuída tal competência à Direção-Geral de Impostos que se prevê que lhe seja comunicada a deliberação sobre o lançamento da derrama e é porque só a Direção-Geral de Impostos tem competência para liquidar e cobrar derramas municipais que a parte final do n.º 9 inicial e atual n.º 10 estabelece perentoriamente que, sem a comunicação aí prevista, «não há lugar à liquidação e cobrança da derrama». E é também por ser a Direção-Geral de Impostos quem tem competência para cobrar a derrama que se prevê que o seu produto do seu apuramento por esta entidade seja transferido para os municípios.” Por outro lado, como também se refere naquele aresto, “a Direção-Geral de Impostos e a Autoridade Tributária e Aduaneira, na sua prática administrativa, não põem sequer em dúvida esta sua competência para liquidar e cobrar derramas, pois é isso que explica que a Direção-Geral de Impostos até tenha elaborado um ofício circular estabelecendo regras para a sua liquidação e cobrança e tenha, sem qualquer vestígio de hesitação, recebido as quantias autoliquidadas pela Requerente e apreciado a reclamação graciosa e o recurso hierárquico que esta apresentou”.

 

Em suma, a Direção-Geral dos Impostos sempre teve e, subsequentemente, a AT passou a ter e mantém, as competências de liquidação e de cobrança de derramas municipais. Ora, de acordo com a norma consagrada no n.º 3 do artigo 1.º da LGT, é justamente o exercício dessas competências que constitui aquilo que se convencionou denominar por “administração tributária”. Com efeito, ali se prevê que “integram a administração tributária, para efeitos do número anterior, a Direção-Geral dos Impostos, a Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, a Direção-Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros, as demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e os órgãos igualmente competentes dos Governos Regionais e autarquias locais.” (itálico e negrito nossos). O atributo de “administração tributária” depende, como se vê, do exercício daquelas duas competências e não, como pretende a Entidade Requerida, da qualidade de credor tributário. E nem poderia ser de outra maneira já que é a administração tributária, isto é, o conjunto de entidades incumbidas da liquidação e cobrança de tributos, quem se relaciona com o contribuinte no decorrer das atividades que conduzem à cobrança dos tributos e, portanto, quem pode praticar atos cuja validade importa poder ser apreciada. O credor não interage necessariamente com o sujeito passivo, não sendo, por conseguinte, a sua atuação que releva para efeitos de procedimento e de processo tributário, quer se esteja em fase graciosa, quer se esteja em fase contenciosa.

 

Ora, destas conclusões decorre necessariamente uma outra: a de que a jurisdição arbitral, que compreende, nomeadamente, as pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta relativas a impostos cuja administração esteja cometida à A,  é evidentemente competente para apreciar pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação da derrama municipal, cuja administração está, justamente, cometida à AT. Por conseguinte, o presente Tribunal é competente para apreciar a pretensão suscitada pela Requerente.

 

Improcede, assim, a exceção de incompetência deste Tribunal Arbitral.

 

III. 1 b) Exceção de ilegitimidade passiva da Entidade Requerida e incidente de intervenção provocada

 

O artigo 9.º do CPPT, relativo à legitimidade, estabelece o seguinte:

 

“Artigo 9.º 
Legitimidade

1 - Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.

2 - A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal.

3 - A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.

4 - Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”

O artigo 44.º do CPPT, relativo ao procedimento tributário, consagra o seguinte:

“Artigo 44.º 
Procedimento tributário

1 - O procedimento tributário compreende, para efeitos do presente Código:

a) As ações preparatórias ou complementares da liquidação dos tributos, incluindo parafiscais, ou de confirmação dos factos tributários declarados pelos sujeitos passivos ou outros obrigados tributários;

b) A liquidação dos tributos, quando efetuada pela administração tributária;

c) A revisão, oficiosa ou por iniciativa dos interessados, dos atos tributários;

d) A emissão, retificação, revogação, ratificação, reforma ou conversão de quaisquer outros atos administrativos em matéria tributária, incluindo sobre benefícios fiscais;

e) As reclamações e os recursos hierárquicos;

f) A avaliação direta ou indireta dos rendimentos ou valores patrimoniais;

g) A cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial;

h) A contestação de caráter técnico relacionada com a classificação pautal, a origem ou o valor das mercadorias objeto de uma declaração aduaneira, sem prejuízo da legislação especial aplicável;

i) Todos os demais atos dirigidos à declaração dos direitos tributários.

2 - As ações de observação das realidades tributárias, da verificação do cumprimento das obrigações tributárias e de prevenção das infrações tributárias são reguladas pelo Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária.”

Decorre da norma prevista no n.º 1 do artigo 9.º que, no âmbito do procedimento tributário, a legitimidade ativa é conferida à “administração tributária”. Ora, conforme ficou explicitado no ponto anterior, a AT exerce as competências de liquidação e cobrança da derrama municipal, sendo, para esse efeito, “administração tributária” tal como a mesma é concebida pela norma contida no n.º 3 do artigo 1.º da LGT. Isto significa que, no que respeita à derrama municipal, é a AT quem tem competência para intervir no procedimento tendente à liquidação e cobrança do tributo, realizando todas as competências previstas no artigo 44.º do CPPT, nomeadamente para apreciar reclamações graciosas e recursos hierárquicos, como a administração tributária fez, e bem, no caso em apreço.

 

Do que ficou exposto decorre, como aliás se refere no já citado acórdão 82/2012-T, que não releva, “para se apurar a legitimidade procedimental em matéria derramas municipais, saber quem é o credor tributário, mas sim determinar a quem são atribuídas as competências para liquidação e cobrança do tributo.” Ora, o que vem de se referir a propósito do procedimento tributário é aplicável também ao processo judicial tributário visto que o n.º 4 do mencionado artigo 9.º do CPPT atribui legitimidade para os processos judiciais “às entidades referidas nos números anteriores”, inclusivamente à “administração tributária” referida no n.º 1, a qual será, dependendo da forma como o processo seja configurado, ativa ou passiva (note-se que o regime do referido n.º 4 do artigo 9.º, com referência ao n.º 1, do CPPT, é aplicável subsidiariamente ao processo arbitral previsto no RJAT, por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do seu artigo 29.º, uma vez que não há qualquer norma deste diploma que defina a legitimidade passiva). O que não se verifica em matéria de legitimidade, quer procedimental, quer processual, tributária, é a atribuição à figura do “credor tributário”, a esse exclusivo título, de qualquer tipo de função procedimental ou processual. Por outras palavras, o legislador não atribui, para efeitos de legitimidade procedimental ou processual tributária, qualquer relevância autónoma a entidades que apenas ocupem a posição de credores de tributos, mas que não sejam simultaneamente responsáveis pela sua liquidação e cobrança – o que, de resto, tem toda a razão de ser já que são as relações entre as entidades que procedem à liquidação e cobrança de tributos, através de atos potencialmente ilegais, e os contribuintes, que são os sujeitos passivos dos mesmos tributos, que importa apreciar no âmbito do processo tributário. Ora, sendo o estatuto dos municípios em matéria de derrama municipal justamente o de credor tributário que não exerce simultaneamente as funções de liquidação e cobrança do tributo, os mesmos não podem dispor de legitimidade processual – não obstando a esta conclusão as potenciais consequências financeiras da decisão para o credor tributário, já que as mesmas não relevam, nos termos da lei, em concreto dos artigos 9.º do CPPT e 1.º, n.º 3, da LGT, para se aferir da legitimidade processual. Para concluir este ponto importa ainda referir que, sendo o artigo 9.º, n.º 4, uma norma especial de legitimidade no âmbito do processo judicial tributário, afasta a norma geral prevista no artigo 26.º do CPC., invocada pela Entidade Requerida.

 

A AT invoca ainda o artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, para corroborar a tese da autonomia dos municípios na defesa dos seus interesses em juízo. A norma ali prevista estabelece que “as competências atribuídas no código aprovado pelo presente decreto-lei a órgãos periféricos locais serão exercidas, nos termos da lei, em caso de tributos administrados por autarquias locais, pela respetiva autarquia”, reportando-se, portanto, aos tributos cujas liquidação e cobrança são realizadas pelas autarquias locais, razão pela qual a mesma não afasta, contrariamente ao que pretende a Entidade Requerida, o entendimento supra referido. Por outro lado, quanto à representação de autarquias locais nos tribunais tributários, prevista no artigo 54.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que estabelece que “quando estejam em causa receitas fiscais lançadas e liquidadas pelas autarquias locais, a Fazenda Pública é representada por licenciado em Direito ou por advogado designado para o efeito pela respetiva autarquia” (n.º 3 na redação introduzida pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, que constitui o n.º 2 na redação anterior), também não afeta o entendimento aqui sufragado, bem pelo contrário. Efetivamente, a representação ali prevista só tem lugar quando os tributos são liquidados pelas autarquias locais, o que implica que a representação nos outros casos em que estejam em causa receitas autárquicas, isto é, naqueles em que a liquidação e cobrança seja efetuada pela AT, é assegurada exclusivamente pelos representantes desta entidade.

 

Do que fica exposto decorre, portanto, a legitimidade passiva exclusiva da AT, já que a nenhuma outra entidade atribui a lei semelhante posição processual. Por isso, improcede também a questão prévia da ilegitimidade passiva.

 

III. 1 c) Questão prévia da intervenção provocada dos municípios

 

Quanto a este aspeto, remete-se para o que a esse propósito se disse no Acórdão n.º 82/2012-T no sentido de não poder ser atendida a pretensão da AT de intervenção provocada dos municípios. Com efeito, porque o processo arbitral foi criado como alternativa ao processo de impugnação judicial, ser-lhe-ão aplicáveis, preferencialmente, as normas reguladoras deste último, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Sucede que, no âmbito do processo de impugnação judicial, não é admissível a intervenção provocada, porquanto o artigo 127.º, n.º 1, do CPPT apenas indica como incidentes admissíveis os de assistência, habilitação e falsidade.Assim, e fora dos casos especialmente previstos nos incidentes de assistência e habilitação, estará afastada a intervenção de terceiros.

 

Acresce, como bem se assinala no citado aresto, que, no sistema de contencioso objetivista, em que se faz radicar a legitimidade passiva no exercício de poderes tributários com referência ao ato impugnado, não é admitida a intervenção de outras entidades públicas.

 

Por fim, no que concerne a intervenção acessória provocada ao abrigo do disposto no artigo 321.º do CPC (artigo 330.º do antigo CPC), em que se prevê que “o réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal”, não se está claramente perante uma situação enquadrável nesta norma, pois não se vislumbra a que título poderá a AT ter um direito de indemnização em relação a municípios que não praticaram qualquer ato lesivo dos seus interesses.

 

Nestes termos, não pode ser atendida a pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira de intervenção provocada de municípios.

 

 

III.2. A validade ou invalidade do ato de autoliquidação que é objeto do pedido e, consequentemente, a questão dos juros indemnizatórios e da responsabilidade civil extracontratual, bem como a imputação das despesas resultantes da lide.

 

III.2 a) Da ilegalidade do ato de liquidação de derrama municipal.

 

Improcedendo as exceções e fixada a matéria de facto relevante, constata-se que a questão principal a conhecer no presente processo consiste em saber se, relativamente ao exercício de 2011, a derrama municipal deveria ser apurada com base no lucro tributável do grupo de sociedades sujeito ao RETGS, conforme entendimento da requerente, ou se, diversamente, como pretende a requerida, deveria aquele tributo ser calculado com base no lucro individual de cada uma das sociedades que o integram.

 

Importa, pois, antes de mais, uma breve incursão ao regime da derrama, bem como ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, previstos no Código do IRC.

 

 

III.2 b) Do regime da derrama.

 

De acordo com o artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), as autarquias locais dispõem de património e finanças próprios, dispondo de poderes tributários nos casos e nos termos previstos na lei. Entre outros, traduzem-se estes na possibilidade de lançar derramas. Nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da Lei de Finanças Locais (LFL) - Lei n.º 42/98, de 06-08 - os municípios podiam “… lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.” Posteriormente, a Lei n.º 2/2007, de 15-01, veio fixar um novo regime para o lançamento de derrama, prevendo, no n.º 1 do seu artigo 14.º, que "Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.” - sendo este o regime vigente à data dos factos a que se reporta o pedido que originou o presente processo.

 

Da análise do regime instituído pela Lei de Finanças Locais (LFL) de 2007, por comparação com o anterior, resulta que:

 

a) A derrama municipal que, no regime anterior, configurava um adicional ao IRC, sendo apurada através da aplicação da taxa fixada pelos municípios à coleta deste imposto, passou, no domínio da Lei n.º 2/2007, a ser determinada por aplicação daquela taxa ao lucro tributável, constituindo, assim, o que a doutrina usualmente denomina de adicionamento. [2]

 

b) Estabelecendo regras específicas no tocante à definição, incidência subjetiva e determinação da base tributável, por remissão expressa para as regras do IRC, a derrama, manteve-se condicionada a um imposto principal (IRC), de que depende, conservando, assim, a anterior característica de imposto acessório. [3]

 

c) Todavia, o referido regime não regulava, de forma completa, a correspondente relação jurídico tributária, mantendo-se, assim, dependente do regime do IRC relativamente às matérias omissas, designadamente no que concerne a regras de liquidação, pagamento, garantias e obrigações acessórias.

 

O regime da derrama municipal, à data da ocorrência do facto tributário a que se reportam os presentes autos, era omisso relativamente à determinação da base tributável no caso de grupos abrangidos pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), cujos contornos essenciais se encontram previstos nos artigos 69.º a 71.º do Código do IRC.

 

Relativamente a este regime especial, estabelece o n.º 1 do artigo 69.º do Código do IRC que “existindo um grupo de sociedades, a sociedade dominante pode optar pela aplicação do regime especial de determinação da matéria coletável em relação a todas as sociedades do grupo.” Segundo o n.º 1 do artigo 70.º, do mesmo Código, “…o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo.”

 

A questão que, desde logo se veio a colocar, foi a de saber se a base tributável apurada nos termos supra referidos para o IRC relevaria igualmente para efeitos de cálculo da derrama.

 

A esta questão respondeu a Administração Tributária e Aduaneira (AT), divulgando, através do Ofício-Circulado n.º 20 132, de 14-04-2008, o seguinte entendimento[4]:

 

" A nova lei das finanças locais (Lei nº 2/2007, de 15-01), alterou a forma de cálculo da derrama para o exercício de 2007 e seguintes.

Tendo sido suscitadas dúvidas sobre o cálculo e a aplicação de derrama aos regimes especiais de tributação do IRC, informa-se o seguinte:

...

2. Regime especial de tributação de grupos de sociedades

No âmbito do regime especial de tributação de grupos de sociedades, a determinação do lucro tributável do grupo é feita pela forma referida no artigo 64º do Código do IRC, correspondendo à soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais.

Se é verdade que nas declarações periódicas individuais não há um verdadeiro apuramento de coleta, o mesmo já não se pode dizer relativamente ao lucro tributável.

Com efeito, cada sociedade apura um lucro tributável na sua declaração individual.

Assim, para as sociedades que integram o perímetro do grupo abrangido pelo regime especial de tributação de grupos de sociedades, a derrama deverá ser calculada e indicada individualmente por cada uma das sociedades na sua declaração, sendo preenchido, também individualmente, o Anexo A, se for caso disso.

O somatório das derramas assim calculadas será indicado no campo 364 do Quadro 10 da correspondente declaração do grupo, competindo o respetivo pagamento à sociedade dominante, em consonância com o entendimento sancionado por despacho de 2008-03-13, do substituto legal do Diretor-Geral."

 

Tal entendimento não viria, porém, a ser acolhido pela jurisprudência, designadamente dos tribunais superiores. Com efeito, de forma reiterada e unânime, se vem pronunciando o Supremo Tribunal Administrativo (STA) no sentido de que não resultando da Lei de Finanças Locais (LFL) - na redação anterior à que lhe foi conferida ao seu artigo 14.º pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro - regras específicas de apuramento da base da incidência da derrama nos casos de grupos abrangidos pelo regime especial de tributação de grupos de sociedades, haverá de seguir-se, para o cálculo da derrama, as regras do imposto principal (IRC).

 

Com efeito, pronunciou-se aquele Supremo Tribunal sobre a matéria em causa em acórdão de 02-02-2011, proferido no Recurso 909/10, nos seguintes termos:

 " É certo que, de acordo com a atual redação da LFL de 2007, se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito ativo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objetiva comum (v. Saldanha Sanches, in revista citada, p. 137 e 138).

Por outro lado, a base de incidência da derrama deslocou-se, como vimos, da coleta de IRC para o lucro tributável em IRC.

A base de incidência da derrama passou, deste modo, a coincidir com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos que exerçam a título principal atividade comercial, industrial ou agrícola, quer sejam residentes ou não residentes que exerçam tal atividade através de estabelecimento estável situado em território português (artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CIRC).

Esta coincidência entre bases de incidência apenas foi afastada quanto aos lucros sujeitos mas isentos de IRC, os quais ficaram expressamente excluídos da base de incidência da derrama.

Esta deslocação suscita novas questões, entre as quais sobressai a da determinação da matéria coletável da derrama cujas regras permanecem omissas no atual regime legal.

Não obstante a autonomização acima assinalada em relação à incidência, à coleta e à taxa do IRC, a derrama continua, todavia, a depender do regime do IRC em todos os outros campos que definem a sua relação jurídica tributária.

Com efeito, além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação da matéria coletável, liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias, para elencar apenas aquelas em que tradicionalmente se analisa a relação jurídica tributária.

Ora, como sustenta Manuel Anselmo Torres, a propósito da relevância dos prejuízos fiscais na matéria coletável da derrama, in Fiscalidade n.º 38, a fls. 159, a única via para integrar essas lacunas consiste em aplicar à derrama o regime previsto para o IRC.

Na verdade, como refere o autor citado, só o CIRC nos permite concluir, por exemplo, que a derrama deve ser objeto de autoliquidação e paga até ao fim do 5.º mês seguinte ao fim do período de tributação.

E o mesmo deverá, quanto a nós, suceder no caso de grupos de sociedades.
Prevendo o CIRC, nos seus artigos 69.º a 71.º, um regime especial de tributação dos grupos de sociedades, situação em que se encontra a impugnante, ora recorrida, e tendo esta optado, como a lei lhe faculta, pela aplicação desse regime para determinação da matéria coletável em relação a todas as sociedades do grupo, a determinação do lucro tributável, para efeitos de IRC, é apurada através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos prejuízos fiscais apurados nas declarações individuais das sociedades que pertencem ao grupo.

E, assim determinado o lucro tributável para efeito de IRC, está necessariamente encontrada a base de incidência da derrama.

Tal entendimento, sufragado na decisão recorrida, é o que melhor se harmoniza com os preceitos legais aplicáveis e em nada desvirtua os fins que a LFL pretende alcançar ou ofende qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os mencionados pela recorrente na conclusão 9 das suas alegações.

Por último, a circunstância de, relativamente às sociedades que integrem um grupo de empresas e que optem pelo regime especial de tributação previsto nos artigos 69.º a 71.º do CIRC, se determinar o lucro tributável do grupo, em vez do lucro tributável de cada uma das sociedades individualmente, e, dessa forma, se encontrar a base de incidência da derrama devida globalmente, em vez de se apurar uma pluralidade de derramas individuais, nada tem a ver com a questão suscitada na conclusão 10 das alegações de recurso – a relevância dos prejuízos fiscais na matéria coletável da derrama – a qual não foi sequer objeto de apreciação na decisão sob recurso.

Razão por que se impõe, desta forma, a confirmação da sentença recorrida, assim se negando provimento ao recurso."

 

Esta jurisprudência, à qual aderimos inteiramente, tem vindo a ser reiterada e uniformemente mantida em numerosos arestos do STA, de que se destacam, entre outros, os acórdãos proferidos nos processos 309/11 de 22.06.2011, 234/2012 de 02.05.2012, 206/12, de 05-07-2012, 265/12, de 05-07-2012, 1302/12, de 09-01-2013, 1301/12, de 23-01-2013, 14082, de 13-03-2013, 105/13, de 13-03-2013, 1315/12, de 05-06-2013 e 1004/13, de 04-12-2013.

 

No mesmo sentido de que sempre que seja aplicável o regime de especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama deve incidir sobre o lucro tributável do grupo e não sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades que o integram, a jurisprudência arbitral, também de forma reiterada e unânime, se tem revelado inteiramente convergente com a do STA, conforme se extrai das decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 18/2011-T, 87/2012-T, 88/2012-T, 94/2012-T, 147/2012-T, 6/2013, 11/2013-T, 13/2013-T e 93/2013-T, entre outros.

 

É, pois, esta a jurisprudência que sufragamos inteiramente e que a própria Autoridade Tributária e Aduaneira, alterando entendimento anterior, veio igual e recentemente a sufragar por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nº 464/2013 – XIX, de 18 de outubro de 2013 [em que se determinou a não aplicação do citado ofício circulado nº 20 132, de 14 de abril de 2008, da Direção dos Serviços do IRC, na parte que se refere ao RETGS (nº 2 daquele ofício) relativamente aos períodos de imposto cujo facto tributário se considera ocorrido entre 1 de janeiro de 2007 e 31 de dezembro de 2011 (Cfr documentos juntos pela requerente na audiência de partes de 15-11-2013)]-

É certo que a Lei nº 64-B/2011, de 30-12 - que aprovou o Orçamento do Estado para 2012 - procedeu à alteração de diversos preceitos da LFL de 2007, tendo aditado ao seu artigo 14.º um novo n.º 8, com a seguinte redação: " Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, a derrama incide sobre o lucro tributável individual de cada uma das sociedades do grupo, sem prejuízo do disposto no artigo 115.º do Código do IRC.”

 

Assim, em vigor a partir de 01-01-2012, passou a vigorar, quanto à determinação da base de incidência da derrama, uma regra específica aplicável aos grupos sujeitos ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, sendo aplicável apenas a factos tributários que ocorram após aquela data, como, aliás, foi entendido no sobredito despacho nº 464/2013-XIX, de 18 de outubro..

 

Com efeito, o legislador não lhe atribuiu caráter interpretativo pelo que, tendo em consideração o princípio constitucional da irretroatividade da lei fiscal plasmado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, aquela norma não pode ser aplicada retroactivamente.

 

Tratando-se, assim, de norma inovadora e não interpretativa, o novo n.º 8 do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15-01, vigora apenas para o futuro, ou seja, para os exercícios iniciados em ou a partir de 01-01-2012, não sendo, assim, aplicável ao caso a que se reportam os presentes autos, em que está em causa a derrama relativa ao exercício de 2011.

 

Do exposto decorre que o ato de autoliquidação da derrama relativa àquele exercício encontra-se ferido de ilegalidade, por vício de violação da lei porquanto, conforme alega a Requerente, deveria ter sido calculada com base no lucro tributável do grupo e não, como pretende a Requerida, com base no lucro tributável individual de cada uma das sociedades que o integram. E, assim, deve o ato ser parcialmente anulado, com as legais consequências.

 

III.2 c) Do direito a juros indemnizatórios.

 

A par da declaração da ilegalidade da autoliquidação da derrama, a Requerente peticiona, ainda, que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, matéria que se insere no âmbito das competências deste Tribunal, conforme expressamente prevê o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT.

 

Determinada a ilegalidade da liquidação e a sua consequente anulação parcial, e encontrando-se paga a dívida tributária indevida, o direito a juros indemnizatórios subsiste, sempre que tal decorra de erro imputável aos serviços da AT, conforme prevê o n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

 

No presente caso, está-se perante uma autoliquidação, efetuada em conformidade com instruções genéricas divulgadas pela AT através do Ofício-Circulado n.º 20132, de 14-04-2008. De acordo com o n.º 2 do citado artigo, "considera-se haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas."

 

Assim, com base nas disposições dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), são devidos juros indemnizatórios sobre a importância indevidamente liquidada e paga, contados a partir do dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito, à taxa legal.

 

III.2 d) Da responsabilidade civil extracontratual.

 

Para além do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, a Requerente peticiona, ainda, a condenação da Requerida ao ressarcimento das despesas resultantes da lide.

 

Trata-se, porém, de matéria de qual, por extravasar o âmbito de competência deste Tribunal, tal como definida no artigo 2.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20-01, se não toma conhecimento.

 

 

IV. Decisão.

 

Em face do exposto, o presente Tribunal Arbitral acorda:

 

- Julgar procedente, por violação de lei, a impugnação parcial da legalidade da autoliquidação de derrama municipal relativa ao exercício de 2011, no montante de €869 928,74 (oitocentos sessenta e nove mil novecentos e vinte e oito euros e setenta e quadro cêntimos), anulando-se, nessa parte, tal liquidação e condenando-se a Requerida a restituir a referida importâncias;

- Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do pagamento da importância indevida, até ao momento da restituição das quantias indevidamente liquidadas e pagas.

- Não tomar conhecimento do pedido de ressarcimento de despesas realizadas pela Requerente.

- Fixar o valor do processo em €869 928,74 (oitocentos e sessenta e nove mil, novecentos e vinte e oito euros e setenta e quatro cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

- Fixar o montante das custas em €12.240 (doze mil duzentos e quarenta euros), nos termos da Tabela 1 do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a pagar integralmente pela Requerida(artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de janeiro de 2014

 

Os Árbitros

 

(José Poças Falcão)

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

(Álvaro Caneira)

 



[1] Com a extinção da Direção-Geral de Impostos, resultante do DL n.º 118-A/2011, de 15 de dezembro, estas competências passaram para a Autoridade Tributária e Aduaneira, para a qual se consideram feitas «as referências deitas em quaisquer leis», por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do seu art. 12.º.

[2]  Vd., neste sentido, Rui Duarte Morais, "Passado, Presente e Futuro da Derrama" e Sérgio Vasques, "O Sistema de Tributação Local e Derrama", ambos em Fiscalidade, n.º 38, Abril-Julho 2009.

[3]  Neste sentido, vd, STA, Acórdão de 4-12-2013, Recurso n.º 01004/13, bem como doutrina e jurisprudência no mesmo citadas.

[4] Como se verá  adiante este entendimento veio a ser alterado por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nº 464/2013 – XIX, de 18 de outubro que determinou a não aplicação do ofício circulado nº 20 132 relativamente aos períods de imposto cujo facto tributário tenha ocorrido entre 1 de janeiro de 2007 e 31 de dezembro de 2011.