Decisão Arbitral
Os árbitros Juiz Conselheira Dra. Maria Fernanda dos Santos Maças, (árbitro presidente), Dr. Artur Maria da Silva e Dr. André Festas da Silva (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 05 de Janeiro de 2017, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
I.1
1. Em 20.10.2016 a contribuinte A…, S.A. com sede na Rua …, …, …-…, …, com o número de pessoa coletiva e de identificação fiscal…, requereu nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do colectivo de três árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto na al. a), n.º 2 do artigo 6.º do referido diploma.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 21 de Dezembro de 2016.
3. A Requerente não procedeu à nomeação dos árbitros, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a) e artigo 6.º, n.º2, al. a) do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Colectivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
4. A AT apresentou a sua resposta em 2 de fevereiro de 2017.
5. Por despacho de 03.02.2017, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e fixada a data para prolação da decisão o dia 5 de Julho de 2017.
6. A Requerente apresentou alegações, no dia 24.02.2017
7. A Requerida apresentou as suas alegações em 01 de março de 2017.
8. Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa, a ilegalidade das autoliquidações de IRC, relativas ao exercício de 2013 (liquidação n.º 2015…) e 2014 (liquidação n.º 2015…) e, bem assim, a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.
I.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
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Em consequência da aprovação das candidaturas ao Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), foram atribuídos à Requerente créditos fiscais nos montantes de € 65.938,28 com referência ao exercício de 2012 e € 552.570,13 com referência ao exercício de 2013.
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A Requerente utilizou nos exercícios em análise (2013 e 2014) parte dos créditos fiscais disponíveis.
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Igualmente, nos períodos de tributação em causa (2013 e 2014), a Requerente incorreu em despesas que foram sujeitas a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.° do Código do IRC no montante de € 119.080,77 em 2013 e € 123.999,81 em 2014.
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A Declaração Modelo 22 e o sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira não o permitiam, à data em que foram efetuadas as autoliquidações de IRC cuja anulação se requer, que a Requerente deduzisse a totalidade dos montantes de SIFIDE reportáveis à coleta apurada nos períodos de tributação de 2013 e 2014, a qual inclui os montantes apurados a título de tributação autónoma.
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No entendimento da Requerente o apuramento da coleta das tributações autónomas é efetuada nos termos do referido artigo 90.º do Código do IRC pelo que não deve subsistir quaisquer obstáculos à dedução do crédito de imposto decorrente do SIFIDE à coleta proveniente das tributações autónomas.
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Aliás, a introdução do novo artigo 23.°- A do Código do IRC vem clarificar que as tributações autónomas se devem conter na parte “O IRC” do referido artigo e não na parte “outros impostos”, uma vez que a referência a outros impostos se mantém, sendo as tributações autónomas incluídas como parte integrante do IRC, o que é claro na redação da alínea a) do n.° 1 daquele preceito na parte que refere “O IRC, incluindo as tributações autónomas”.
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A simples realização de determinada despesa não determina de forma instantânea o montante de tributação autónoma a ser suportado, pois a mesma está intimamente relacionada com o resultado apurado no período de tributação em causa.
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Torna-se claro para a Requerente que as tributações autónomas, como o restante IRC, são um imposto de formação sucessiva, podendo o apuramento de ambos, dependente do resultado final de determinado exercício ser reconduzido a um lucro tributável ou a um prejuízo fiscal.
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Mais, prossegue a Requerente alegando que o apuramento da tributação autónoma não é efetuado de forma independente, mas sim com algumas diferenças, quais sejam a taxa aplicável e a incidência, estando todas essas diferenças expressamente previstas no Código do IRC.
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Nestes termos, é manifesto que existe apenas uma norma em todo o CIRC que regula a liquidação do IRC, sendo essa norma o artigo 90.° do Código do IRC.
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É, nestes termos, absolutamente claro para a Requerente que a liquidação da tributação autónoma não é efetuada de modo separado, independente ou diferente do disposto no artigo 90.° do CIRC, uma vez que aceitar tal facto significaria aceitar a existência de uma liquidação efetuada sem base normativa, e como tal estaria enferma de ilegalidade e, neste caso, de inconstitucionalidade (art. 103º, n.º 3 da CRP).
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Deve ser reconhecido que o apuramento da coleta das tributações autónomas é efetuada nos termos do referido artigo 90.º do Código do IRC pelo que deve ser admitida a dedução do crédito de imposto decorrente do SIFIDE à coleta proveniente das tributações autónomas.
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Em face do exposto, a Requerente entende que se deverá reconhecer nos presentes autos o seu direito de deduzir o seu crédito fiscal atribuído por via do SIFIDE à coleta das tributações autónomas, no valor de € 119.080,77 em 2013 e € 123.999,81 em 2014.
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Mais alega a Requerente que os benefícios fiscais são derrogatórios dos princípios da generalidade e da igualdade da tributação e são insusceptíveis de aplicação a casos que não tenham sido expressamente contemplados no benefício concedido, devendo ser objecto de interpretação estrita ou declarativa.
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“Uma interpretação da lei, não expressamente imposta pelo texto legal, que restrinja o “aproveitamento” dos benefícios fiscais em causa feriria a credibilidade das “promessas legislativas” em matéria fiscal, seria, em suma, contrária ao princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito.”.
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Para além da quantia referente a imposto indevidamente liquidado, a Requerente peticiona o seu ressarcimento através do pagamento de juros indemnizatórios calculados desde a data do pagamento indevido do imposto até efetivo e integral pagamento, à taxa de 4% ao ano, nos termos dos artigos 35.º, n.º 10, 43.º, n.º 4 da LGT, 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril.
I.B. Na sua resposta a AT invocou, o seguinte:
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Os montantes em que se traduz o SIFIDE são deduzidos “aos montantes apurados nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência” e na liquidação respeitante ao período de tributação em que se realizem as despesas para o efeito elegíveis.
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Para a Requerida a colecta a que se refere o artigo 90º quando a liquidação deva ser feita pelo contribuinte (situação que ocorre nos autos), é apurada com base na matéria colectável que conste nessa liquidação/autoliquidação. (cf. artigo 90.º, n.º 1, alínea a) do CIRC).
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Elucidativo da circunstância de que o crédito em que se traduz o SIFIDE é deduzido, e apenas, à colecta assim apurada, ou seja, à colecta apurada com base na matéria colectável, é o disposto no artigo 5º, alínea a), da lei reguladora do SIFIDE, que impede que os créditos dele decorrente sejam deduzidos quando o lucro tributável seja determinado por métodos indirectos.
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E muito menos no que respeita à consideração das tributações autónomas, que, como é sabido, são determinadas de forma autónoma e distinta do apuramento levado a efeito nos termos que decorrem do artigo 90 ° do CIRC.
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Assim, não seria razoável para a Requerida, antes até contrário ao motivo que levou o legislador a tributar autonomamente aquelas despesas que, através da sua dedução ao lucro tributável a título de gastos, fosse eliminado o fundamento da existência das tributações autónomas.
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Prossegue a Requerida alegando que a situação que ficou mais clara na nova redacção da alínea a) do n.º1 do artigo 23.º-A do CIRC, a qual expressamente refere que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável: “O IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre lucros "tendo-se limitado a explicitar o que já decorria da ordem jurídica por aplicação das regras de interpretação.
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Nesse sentido, seria contrário ao espírito do sistema, permitir que, por força das deduções a que se refere o n.º 2 do artigo 90.° do CIRC, fosse retirado, ou pelo menos desvirtuado, às tributações autónomas esse caráter anti-abusivo que presidiu à sua implementação no sistema do IRC.
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Isto posto, resulta claro que não devem as tributações autónomas ser consideradas para efeitos das deduções referidas no n.º 2 do artigo 90.° do CIRC.
II. SANEAMENTO
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.
As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo é o próprio.
Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito do pedido.
III. THEMA DECIDENDUM
A questão central a decidir, tal como colocada pela Requerente, está em saber se as autoliquidações de IRC (incluindo as tributações autónomas) relativas aos exercícios de 2013 e 2014 padecem do vício material de violação de lei, objeto de impugnação porquanto, segundo entende, não deve ser vedada a dedução do SIFIDE à parte da coleta de IRC correspondente às tributações autónomas.
IV. – MATÉRIA DE FACTO
IV.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental, o processo administrativo tributário junto e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
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A Requerente candidatou-se ao Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE).
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Em consequência da aprovação das candidaturas foram-lhe atribuídos créditos fiscais nos montantes de € 65.938,28 com referência ao exercício de 2012 e € 552.570,13 com referência ao exercício de 2013.
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A Requerente é uma entidade sujeita e não isenta de IRC, tendo efetuado as correspondentes autoliquidações de IRC de 2013 (liquidação n.º 2015…) e 2014 (liquidação n.º 2015…) mediante a apresentação das respetivas declarações Modelo 22.
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A declaração de 2013 foi entregue em 13.03.2015 e a declaração de 2014 foi entregue em 21.05.2015.
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A Requerente utilizou nos exercícios de 2013 e 2014 parte dos créditos fiscais disponíveis, no montante de € 167.190,25 em 2013 e no montante de € 102.145,48 em 2014.
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A Requerente tinha a sua situação tributária regularizada junto do Estado.
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A Requerente fez constar do processo de documentação fiscal como foi apurado o crédito fiscal declarado.
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Após a dedução parcial do crédito fiscal atribuído, a Requerente ficou com um crédito fiscal no montante de € 350.417,15, para deduzir nos exercícios seguintes.
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Nos períodos de tributação de 2013 e 2014, a Requerente incorreu em despesas que foram sujeitas a tributação autónoma, no montante de € 119.080,77 em 2013 e € 123.999.81 em 2014.
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A Declaração Modelo 22 e o sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira não o permitem que a Requerente deduza a totalidade dos montantes de SIFIDE aos montantes apurados a título de tributação autónoma.
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A Requerente apresentou, em 17 de maio de 2016, uma Reclamação Graciosa contra as autoliquidações de IRC de 2013 e 2014.
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A Reclamação Graciosa não foi decidida.
IV.2. Factos dados como não provados
Não existem factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.
IV.3. Motivação da matéria de facto
Os factos que constam dos números 1 a 12 são dados como assentes pela análise do processo administrativo, pelos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 9 do pedido de constituição do Tribunal Arbitral) e pela posição assumida pelas partes.
V. Aplicação do direito aos factos
V.1.1. A natureza das tributações autónomas na jurisprudência e na doutrina
No sentido de com as tributações autónomas se tributar a despesa e não o rendimento aponta-se, entre o mais, o voto de vencido do Exmo Senhor Conselheiro Vítor Gomes, aposto no Acórdão n.º 204/2010 do Tribunal Constitucional, em que afirma, referindo-se às tributações Autónomas:
“Embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula, (….). Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta.
Deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC”.
Foi igualmente reconhecido pela jurisprudência do STA (2.ª secção, processo 830/11, de 21-03-2012) “que sob a designação de tributações autónomas se escondem realidades muito diversas, incluindo, nos termos do n.º 1 do (então) art.º 81.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas, que são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, que será elevada para 70%, nos casos de despesas efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola (n.º 2 do [então] art.º 81.º) e que não são consideradas como custo no cálculo do rendimento tributável em IRC.
Refira-se, contudo, que já as despesas de representação e as relacionadas com viaturas ligeiras, nos termos do disposto no (então) art. 81.º n.º 3 do CIRC e ajudas de custo estão afectas á actividade empresarial e “indispensáveis” pelo que são fiscalmente aceites nalguns casos ainda que dentro de certos limites.
Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 18/11, diz-nos que existem factos sujeitos a tributação autónoma, que correspondem a “encargos comprovadamente indispensáveis à realização dos proveitos” e que por isso a proibição da aplicação retroativa da lei nova não se aplica, pois tais encargos teriam sido incorridos independentemente do regime fiscal aplicável: isto significa que a tributação autónoma também recai sobre encargos que correspondem ao núcleo do conceito de rendimento real, rendimento líquido e cumprimento de obrigações contabilísticas. Este argumento do Tribunal Constitucional, a propósito da aplicação retroativa da lei fiscal às tributações autónomas (e esta matéria da aplicação da lei no tempo não cabe no objeto desta decisão), interessa-nos apenas salientar que o Tribunal reconhece que este regime constitui uma limitação à tributação do rendimento real (a qual é garantida pelo art.º 104.º n.º 2 da CRP).
Em recente Acórdão (n.º 310/12, de 20 de Junho, Relator Conselheiro João Cura Mariano), o Tribunal Constitucional vem reformular a doutrina do Acórdão n.º 18/11, aproximando-se do então voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes e do Acórdão do STA n.º 830/11, todos citados nos parágrafos anteriores, nos termos seguintes. “Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º,n.º 9, do CIRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo. Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.”
Jurisprudência reiterada pelo Acórdão do Plenário, no Acórdão n.º 617/2012, processo n.º 150/12, de 31/1/2013 e no Acórdão n.º 197/2016, processo n.º 465/2015.
Em relação à doutrina constatamos que, no essencial, o conceito e a natureza das tributações autónomas não se afasta substancialmente do entendimento da jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional.
Como refere RUI MORAIS, “está em causa uma tributação que incide sobre certas despesas dos sujeitos passivos, as quais são havidas com constituindo factos tributários. É difícil descortinar a natureza desta forma de tributação e, mais ainda, a razão pela qual aparece prevista nos códigos dos impostos sobre o rendimento.” (RUI DUARTE MORAIS, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pp. 202-203).
No mesmo sentido, JOSÉ ALBERTO PINHEIRO PINTO afirma que “não se trata propriamente de IRC – que visa tributar o rendimento das pessoas colectivas e não despesa por elas efectuadas -, mas da substituição de uma tributação de rendimentos “implícitos” de pessoas singulares, que se considera não exequível directamente”. Também CASALTA NABAIS considera que se “trata de uma tributação sobre a despesa e não sobre o rendimento” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 6.ª Ed., p. 614. No mesmo sentido, cfr. ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal, Lições, 2015, p. 237).
Em suma, alguma doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores e do Tribunal Constitucional consideram que as tributações autónomas são factos tributários autónomos, que incidem sobre a despesa. Assim, apesar de inseridas formalmente no Código do IRC, dizem respeito a uma tributação distinta do imposto sobre o rendimento.
Acresce que é aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as tributações autónomas visam prevenir práticas abusivas de remuneração de trabalhadores, gerentes e sócios/accionistas da sociedade. Como refere SALDANHA SANCHES, “Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente
fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida de taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal.” (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, p. 406). “Trata-se de uma tributação que se explica pela necessidade de prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da sociedade, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam…”(CASALTA NABAIS, Idem, p. 614).
V.1.2. Evolução da figura das tributações autónomas
Na redação inicial do Código do IRC, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, não se fazia nenhuma referência expressa ou implícita a tributações autónomas, no âmbito do IRC. Só com a Lei n.º 101/89, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1990, foi feita uma primeira referência a tributações autónomas no âmbito do IRC, através da autorização legislativa que consta do n.º 3 do seu artigo 15.º, em que se preceitua o seguinte:
3 - Fica o Governo autorizado a tributar autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa agravada em 10% e sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC, as despesas confidenciais ou não documentadas efectuadas no âmbito do exercício de atividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respetivo Código.
Como é consabido, a origem no ordenamento jurídico fiscal português das tributações autónomas remonta a 1990, com a publicação do Decreto-Lei nº 192/90, de 9 de junho, onde concretamente no seu artigo 4º, com relação a despesas confidenciais ou não documentadas se estabelecia uma tributação autónoma à taxa de 10% e, relativamente a despesas de representação e encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, uma taxa de 6,4%. Concretizando esta autorização legislativa, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 192/90, em que incluiu, à margem dos códigos do IRS e do IRC, uma norma sobre tributações autónomas em que se estabelece o seguinte:
Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho
Artigo 4.º
As despesas confidenciais ou não documentadas efectuadas no âmbito do exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respectivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10% sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC.
Esta norma e de uma forma geral, o regime das tributações autónomas, veio a ser objeto de diversas alterações (v. g. a Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro; a Lei n.º 87-B/97, de 31 de Dezembro; a Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril; a Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro) nomeadamente através de sucessivas modificações, quer das taxas, quer da sistematização e redação às mesmas conferida, nos respetivos códigos sobre os impostos sobre os rendimentos, ou seja, quer no CIRC, quer no CIRS.
Com a aprovação da Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, o Decreto que consagrou as “tributações autónomas” foi revogado, aditando-se ao CIRC o artigo 69º-A – correspondente à data dos factos subjacentes (2012 e 2013) ao artigo 88º, onde para além da manutenção da incidência destas às despesas não documentadas, às despesas de representação e às despesas com viaturas, se estendeu a mesma a outras situações da natureza diversa.
Podemos, assim, retirar duas ilações de princípio:
(i) A primeira é a de que as tributações autónomas incidem quer sobre encargos dedutíveis, quer sobre encargos não dedutíveis em sede de IRC;
(ii) A segunda é a de que as tributações autónomas visam evitar a erosão da base tributável em sede de IRC, fazendo incidir tributação sobre encargos que podem ser deduzidos pelos sujeitos passivos de IRC, mas que, sendo-o, se transformam num agravamento da tributação, pretendendo, portanto, servir como desincentivo à despesa com tais encargos.
Em relação às tributações autónomas sobre despesas não dedutíveis, caso se admitisse a sua dedutibilidade, estaria a admitir-se a dedutibilidade de um encargo não indispensável para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.
Podendo ter-se como assente, e para o que relevará no sentido da decisão a proferir no âmbito dos presentes autos os seguintes pressupostos:
(i) as tributações autónomas de IRC ancoradas nos diversos números e alíneas do artigo 88º do CIRC traduzem situações diversas, às mesmas cabendo também taxas de tributação diferentes;
(ii) as tributações autónomas de IRC incidentes sobre determinados encargos de sujeitos passivos de IRC devem ser entendidas como pagamentos independentes da existência ou não de matéria coletável;
(iii) interpretadas como pagamentos, associados ao IRC, ou com este pelo menos relacionado podendo entender-se como uma exceção no que respeita ao princípio da tributação das pessoas coletivas de acordo com o lucro real e efetivo apurado (artigo 3º do CIRC),
(iv) nas tributações autónomas, o facto tributário que dá origem à tributação é instantâneo: esgota-se no acto de realização de determinadas despesas que estão sujeitas a tributação (embora o apuramento do montante de imposto resultante das diversas taxas de tributação aos diversos actos de realização de despesas consideradas, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário);
(v) o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não o transforma num imposto periódico, de formação sucessiva ou de carácter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa;
(vi) a tributação autónoma não é equivalente à não dedutibilidade das despesas realizadas pelo sujeito de IRC.
Reconhecem-se aqui, assim, aquelas caraterísticas que há já alguns anos a doutrina vem apontando às tributações autónomas em causa, como sejam:
a) A tributação autónoma só faz sentido porque os custos/gastos relevam como componentes negativas do lucro tributável do IRC. É isso que motiva os sujeitos passivos do IRC a relevar um valor tão elevado quanto possível desses gastos para diminuir a matéria tributável do IRC, a colecta e, consequentemente, o imposto a pagar;
b) Pretende-se desincentivar esse tipo de gastos em sujeitos passivos que apresentam resultados negativos mas que, independentemente disso, continuam a evidenciar estruturas de consumo pouco ou nada compagináveis com a saúde financeira das suas empresas;
c) Trata-se, em tese mais geral, de modelar o sistema fiscal de modo que este revele um certo equilíbrio tendo em vista uma melhor repartição da carga tributária efetiva entre contribuintes e tipos de rendimento;
d) Considera-se desfavoravelmente determinados gastos em que, reconhecidamente, não é fácil determinar a medida exata da componente que corresponde a consumo privado, e relativamente aos quais é conhecida a prática geral de abuso na sua relevação.
V.1.3.A causa e a função das tributações autónomas em sede de IRC
É pacífico que as tributações autónomas radicam, como se aflorou, na necessidade de evitar abusos quanto à relevação de certos encargos ou despesas e que poderão ser facilmente objeto de desvio para consumos privados ou que, de algum modo, são suscetíveis de configurar formalmente um gasto da pessoa coletiva, mas que, substancialmente, representam ou podem configurar abusos em ordem a minimizar a medida real do imposto.
Ciente desta dificuldade de muitas vezes, se efetuar uma separação rigorosa destas duas realidades, foi sucessivamente “enxertado”, conforme supra descrito, no regime de tributação do lucro real e efetivo estabelecido no CIRC, como padrão geral, um regime autónomo de tributação de certos gastos, no todo ou em parte indesejados e indesejáveis que contaminam os termos do dever de imposto, que assim, surge configurado abaixo da real capacidade contributiva da entidade que a releva como tal.
Nestes termos, na ontologia das coisas pode afirmar-se que as tributações autónomas surgem integradas no regime do IRC, são apuradas e devidas no âmbito da relação jurídica de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas e é no quadro dela que se efetua o seu apuramento. Mas não “são IRC”, tout court como a Requerente lapidar e definitivamente o afirma. Para que o fossem teriam, desde logo, que tributar o rendimento, e isso não é o que sucede, em momento algum, pelo que, neste respeito, não nos parece necessário lucubrar mais profundamente. Embora exista – não se nega -, uma instrumentalidade evidente entre o IRC e o modelo de tributação da renda em Portugal e as tributações autónomas, facto de resto bem evidenciado na jurisprudência dos Tribunais Superiores e, em especial, do Tribunal Constitucional, prevalece o entendimento de que as tributações autónomas tributam despesas.
De facto, elas são um instrumento que, afastando-se e introduzindo alguma medida de entorse num sistema que declara tributar rendimentos reais e efetivos, afinal também tributa gastos, dedutíveis ou não em IRC. Sem que com isso fiquem violados os ditames constitucionais já que a norma aplicável (art.º 104.º, n.º 2 da CRP) declara imperativa a tributação das empresas “fundamentalmente” sobre o seu rendimento real, sem prejuízo quer das situações de tributação segundo os lucros ou o rendimento real quando seja apurado por métodos indiretos, quer das situações de tributação de gastos objeto de tributação autónoma por expressa opção de lei, do estabelecimento de soluções técnicas como é o caso do pagamento especial por conta e das regras específicas visando a sua devolução.
Vale lembrar, a propósito, que nem os sistemas fiscais nem os modelos de imposição concreta correspondem a modelos puros, isentos de elementos de extraneidade ao próprio sistema fundacional, de valores, ou ao próprio regime geral de um qualquer imposto abstratamente considerado. Todos os impostos possuem caraterísticas ou soluções que, quando vistas isoladamente, podem representar objetivamente uma descaraterização do modelo tal como na pureza dos conceitos foi concebido, mas que, quando articuladas com o modelo, se verifica que concorrem para a sua efetividade, e lhe conferem ou reforçam a sua coerência.
Essas soluções, mais pragmáticas ou específicas, não ferem tais ditames valorativos essenciais, sejam eles de proteção da receita ou de densificação dos ideais valorativos gerais (da ordem tributária) ou específicos do imposto, como é o caso da necessidade de evitamento de abusos. Desde que, eles mesmos não sejam de tal modo relevantes que abjurem o modelo de tributação-regra ou falseiem estruturalmente os valores em que radica.
Embora, no caso, a opção da lei fundamental e da lei ordinária, por consequência, haja sido claramente no sentido de tributar o rendimento das pessoas coletivas e, nas formas possíveis de apuramento deste, se haja escolhido a tributação do rendimento real e efetivo como manifestação do mais elevado padrão de justiça fiscal, a verdade é que o sistema sempre conheceu desvios mais ou menos relevantes. Seja porque certos gastos não são considerados como tal pela lei fiscal, embora objetivamente possam ser imputáveis a uma atividade comercial, seja porque a lei fiscal, reconhecendo essa essencialidade, teme a ocorrência de abusos, como é o caso das tributações autónomas, genericamente falando.
Em parte este afastamento da pureza dos conceitos é uma consequência inevitável da complexidade das relações da vida, seja porque modelos de imposição fiscal puros são mais onerosos de implementar e gerir já que requerem informação relevante muito mais apurada, seja porque no campo dos impostos, como noutros campos da vida, há que temperar o ideal de justiça consagrado com soluções de razoabilidade normativa na qualificação dos factos relevantes e técnica nas soluções e exigências a estabelecer. Tudo para evitar que os modelos tributários sejam excessivamente complexos e onerosos deixando de atingir as realidades e práticas que mitiguem a carga tributária ou concorram para uma má distribuição da mesma.
Ora, deste balanceamento dos valores que suportam o dever de estabelecer / suportar imposto com as realidades da vida pode resultar a necessidade de estabelecer limites (fiscais ou outros) ao comportamento dos sujeitos passivos, em ordem a manter dentro de padrões gerais de equilíbrio, as soluções legais do sistema.
Por outro lado, importa ter presente, porque isso releva para efeitos da decisão a tomar, que as TA’s configuram normas anti - abuso dirigidas a racionalizar comportamentos específicos dos contribuintes face ao dever de imposto, pelos quais tradicionalmente conseguiam alcançar uma medida de imposto inferior ao que o evidenciava a sua capacidade contributiva efetivamente revelada mas que, mercê, desses comportamentos abusivos era passível de ser mitigada ou eliminada. E com evidente violação ou postergação do princípio da justiça, de justa repartição da carga fiscal por quem revela capacidade contributiva.
Consequentemente, faz sentido admitir que se façam deduções gerais à coleta do imposto, que são permitidas por lei para dar sentido efetivo ao princípio da tributação do rendimento real e efetivo. Mas que, com relação à coleta devida por tributações autónomas, essa dedução geral deixa de fazer sentido porque, não tributando os lucros, mas despesas, não se coloca, quanto a elas, a questão da justiça na repartição do encargo geral do imposto, pelo que seria ilógico permitir a dedução de encargos quando tal dedução, na prática, destruiria o sentido anti abusivo que as impregna; o desincentivo de comportamentos desviantes que a sua instituição reprime ou dirime.
Ora, as tributações autónomas, como parece claro, não têm uma finalidade marcadamente reditícia, isto é, não visam, primacialmente, a obtenção de (mais) receita fiscal, embora este possa não ser um aspeto despiciendo, verificável. Elas visam dissuadir comportamentos, práticas ou opções das empresas radicadas em razões essencialmente de natureza de poupança fiscal, reditícia. Por outro lado, preservam os equilíbrios próprios do regime de tributação das pessoas coletivas, evitando distorções não apenas ao nível dos resultados tributáveis, como ondas de comportamentos desviantes, afetadores da expetativa jurídica da receita, em cada ano económico.
E forçam, através destas cláusulas gerais anti abuso, a manutenção de uma correlação saudável entre os volumes de negócios, os lucros tributáveis e o imposto devido a final pelas entidades sujeitas a IRC, em linha com os níveis médios de carga fiscal efetiva que recai sobre os diferentes grupos de contribuintes, dentro do sistema fiscal português e, até, comparativamente com a dos estados membros da OCDE ou fora dela.
As tributações autónomas, incluindo as previstas na alínea b) do n.º 13 do art.º 88.º do CIRC têm, pois, uma função disciplinadora geral que não é alheia às finalidades sistémicas do imposto. E isto porque elas – as tributações autónomas – como mecanismo anti abuso, não são alheias aos fins gerais do sistema fiscal.
A adoção de regimes legais que limitem os efeitos nefastos que resultem de comportamentos afetadores da equilibrada repartição da carga fiscal sobre os diferentes grupos de contribuintes não constitui apenas uma opção do legislador, mas é, antes, uma obrigação estrita, em resultado na obrigatoriedade de gizar e fazer funcionar o sistema como um todo de forma equilibrada. As tributações autónomas introduzem, é certo, mecanismos de tributação que, naturalmente, desagradarão aos seus destinatários, mas impedem ou limitam os efeitos nefastos de práticas abusivas que prejudicariam outros e são, por isso, necessárias à preservação dos equilíbrios do sistema. Ora, as empresas, tal como as pessoas singulares, também estão sujeitas e com a mesma intensidade ao dever geral de pagar impostos e, nesta medida, a lei fiscal não pode deixar de consagrar mecanismos que limitem procedimentos desviantes. Exatamente porque cada um deve suportar o imposto segundo o que pode, isto é, segundo são as suas capacidades contributivas reveladas.
Importa notar que nos nossos dias se adotou, como regra geral, o regime da tributação segundo o rendimento real e efetivo para as pessoas coletivas. Ora, este não constitui apenas uma mera opção de funcionamento do sistema fiscal, de entre várias outras possíveis. Ela é, antes, uma manifestação concreta da modernidade e da maturidade de um sistema fiscal que exige dos seus destinatários / beneficiários uma madureza da mesma estatura pois representa também uma nova forma de responsabilização ética e social perante o fenómeno do imposto (a propósito das questões sobre os limites da moral face ao imposto vejam-se SUSANNE LANDREY, STEF VAN WEEGHEL e FRANK EMMERINK). Pois que existe uma interligação profunda e indiscutível entre o direito e a moral (JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 9.ª Reimp. pp. 50 e segs.).
Como referiu oportunamente SALDANHA SANCHES, citado na Decisão Arbitral 187/2013-T, pp. 28, que as tributações autónomas constituem uma forma de obstar a atuações abusivas: “... que o “normal” funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir, sendo que outras, incluindo formas mais gravosas para o contribuinte, eram possíveis. Este caráter anti abuso das tributações autónomas, será não só coerente com a sua natureza “anti sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Prof. Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que o cita. Elas “terão então materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade “parcial” das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular)” (A Decisão Arbitral do CAAD 210/13-T fala em “despesas que partilham entre si um risco de não empresarialidade, isto é, um risco de não serem realizadas com fins empresariais, mas sim extra-empresariais ou privados”.
Todas estas considerações convocam o que nos parece ser a verdadeira sententia legis, posto que a descoberta do verdadeiro sentido da lei constitui um imperativo, pois que importa assegurar que a atividade do intérprete atinja um sentido interpretativo pelo qual a lei exteriorize o seu sentido mais benéfico, mais profícuo e mais salutar, no dizer de FRANCESCO FERRARA, no seu Interpretação e Aplicação das Leis, Arménio Amado, editores, 1978, p. 137 e segs. Por outro lado, o sentido lógico da interpretação não nos conduz senão no sentido de que as tributações autónomas assentam numa lógica segundo a qual a lei pretende evitar ou desincentivar tais pessoas coletivas de relevar (abusivamente) como gastos valores relativos a bónus ou remunerações variáveis. É a relevação como gasto para efeitos de IRC, na sua inteireza, que se pretende desincentivar.
Fazendo apelo à ratio legis fica claro que as tributações autónomas são cobradas no âmbito do processo de liquidação do IRC de acordo com uma raiz e uma dogmática próprias que levam a que a colecta total do imposto não seja uma realidade unitária mas composta (MANUEL DE ANDRADE, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis). Assim, é nela possível descortinar a coleta de imposto propriamente dita, resultante da mecânica geral de apuramento do IRC, que é devida com fundamento constitucional assente no dever geral de cada um (neste se englobando as pessoas coletivas) de contribuir para as despesas públicas segundo os seus haveres (art.º 103.º, n.º 1 da CRP). Tudo no respeito e em cumprimento dos princípios da justiça, da igualdade e do dever de pagar imposto segundo a capacidade contributiva revelada. E a que se deduzem as importâncias referidas no artigo 90.º do CIRC e nos termos e modos ali referenciados.
A esta coleta geral, radicada neste fundamento de ordem fundacional, adiciona-se a colecta específica, devida por tributações autónomas, que tem, como se deixou claro, uma raiz, um sentido e um fundamento próprios, qual seja o de desincentivar a adoção dos comportamentos por elas tributados, elencados no art.º 88.º do Código do IRC, que configura, com é pacífica doutrina, uma norma anti abuso, o que nos permite convocar aqui toda a dogmática própria em que se fundamenta. Sendo que, neste caso, por se tratar de cumprir finalidades que extravasam os fins puramente reditícios do imposto, para se situar no campo dos comportamentos que a lei considera abusivos e / ou não desejados, nos parece claro que não faz sentido que se lhe efetuem deduções, sob pena de se esvaziar, na prática, de qualquer sentido o regime anti abusivo criado.
Atento o que vai exposto, estamos agora em condições de analisar o pedido da Requerente, quanto à legalidade da dedução do SIFIDE à parte da coleta de IRC correspondente às tributações autónomas.
V. 2. Quanto à não dedutibilidade do SIFIDE
Concluiu-se que a coleta das tributações autónomas tem uma raiz diferente, que não pode, sob pena de subversão da ordem de valores, permitir a dedução de benefícios fiscais, sob pena de descaraterização dos princípios que especificamente se pretendem prosseguir.
Com efeito, tendo o regime das tributações autónomas uma função desincentivadora de comportamentos abusivos, não se vê por que motivo lógico esse desincentivo poderia, depois, desvanecer-se, o que sucederia se fosse possível deduzir à coleta das tributações autónomas, incentivos fiscais, como a Requerente o pretende. Essa possibilidade resultaria num duplo efeito estranho: de um lado poderia, no limite, eliminar a coleta resultante das tributações autónomas e, de outro, propiciaria a dedução de certo benefício fiscal (no caso, está em causa o SIFIDE[1], pelo cumprimento dos objetivos ou adoção das condutas fixadas na norma consagradora do direito ao benefício fiscal) a imposto que tem uma função especificamente anti abuso, de mitigação de comportamentos fiscal e socialmente indesejados.
Da conjugação destas possibilidades resultaria um resultado contraditório, ilegal e anti ético, justamente porque a mesma lei fiscal permitiria, no quadro do mesmo sistema fiscal, desonerar o contribuinte do encargo do pagamento de um imposto que é justamente devido pela adoção de condutas abusivas, indesejadas e desincentivadas (relevação como gastos das despesas previstas no art.º 88.º do CIRC).
Conclui-se, desta forma, pela ilegalidade da dedutibilidade do SIFIDE à coleta das tributações autónomas, sem necessidade de se lançar mão do carácter interpretativo dado pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (OE para 2016), ao n.º 21) do artigo 88.º do CIRC, que passa a ter o seguinte conteúdo: “21 - A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”
Em suma, o legislador ao aditar este n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC com o conteúdo mencionado limitou-se a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes como ficou demonstrado pelo raciocínio supra exposto.
Assim sendo, por tudo quanto vai exposto, improcede também o argumento invocado pela Requerente, no sentido da ilegalidade das liquidações, por ausência de base legal para a sua efetivação, com base nos artigos 8.º, n.º 2, alínea a), da LGT e 103.º, n.º 3, da Constituição, preceito este que estabelece que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Com efeito, a solução encontrada por este coletivo encontra base legal clara sem necessitar sequer de fazer aplicação da norma do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, como ficou demonstrado da argumentação supra exposta.
Termos em que, não assiste razão à Requerente, pelas razões e com os fundamentos invocados, no que respeita à possibilidade de dedução do benefício fiscal relativo ao SIFIDE à coleta das tributações autónomas.
V. 3 Juros Indemnizatórios
A apreciação da condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios fica prejudicada pela solução atrás alcançada.
Mantendo-se os atos tributários sindicados, em consequência, o pedido de juros indemnizatórios deverá também ser julgado improcedente.
VI. DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
1. Julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa e das consequentes autoliquidações de IRC, relativas ao exercício de 2013 (liquidação n.º 2015…) e 2014 (liquidação n.º 2015…);
2. Manter integralmente os atos tributários objeto deste processo;
3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo, nos termos infra.
Fixa-se o valor do processo em € 243.080,58 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária a pagar integralmente pela Requerente, uma vez que o pedido foi integralmente indeferido, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de março de 2017
Os Árbitros
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Dra. Maria Fernanda dos Santos Maças -Árbitro Presidente
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Dr. Artur Maria da Silva
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Dr. André Festas da Silva-(Relator)
[1] O Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial visa aumentar a competitividade das empresas, apoiando o seu esforço em Investigação e Desenvolvimento através da dedução à colecta do IRC das respetivas despesas.
O SIFIDE foi criado em 1997 como medida de estímulo à participação do setor empresarial no esforço global de I&D. A experiência resultante da sua aplicação permite concluir que este mecanismo tem contribuído para um incremento efetivo da atividade de I&D por parte das empresas portuguesas. O sistema de incentivo passou por diversas revisões. O SIFIDE II passou a vigorar a partir de 2011 com a introdução de algumas alterações à legislação que o tornam ainda mais atrativo para as empresas. A Lei do Orçamento do Estado para 2011 – Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, alterado posteriormente pela Lei 83-C/2013 de 31 de Dezembro, veio instaurar o SIFIDE II, que veio substituir o SIFIDE, com o objetivo de continuar a aumentar a competitividade das empresas, apoiando os seus esforços em I&D. O Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarias II, a vigorar no período de 2013 a 2020, visa apoiar as atividades de Investigação e de Desenvolvimento, relacionadas com a criação ou melhoria de um produto, de um processo, de um programa ou de um de um equipamento, que apresentem uma melhoria substancial e que não resultem apenas de uma simples utilização do estado atual das técnicas existentes.