Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, S.A., NIPC…, com sede na Praça…, n.º…, no Porto, (doravante apenas designado por Requerente), apresentou, em 13-09-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do art. 99.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
O Requerente solicita a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo da verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), referente ao ano de 2012, no montante de € 16.667,30 e a consequente condenação da Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 13-09-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 10-11-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 25-11-2016.
Notificada para se pronunciar, a Requerida apresentou a competente resposta em que conclui pela total improcedência do pedido deduzido pelo Requerente.
Por despacho de 18-01-2017, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido concedido às partes prazo para apresentação de alegações escritas sucessivas.
II. OBJECTO DO PEDIDO
O Requerente vem solicitar a declaração de ilegalidade da liquidação Imposto do Selo (“IS”) da verba 28.1 da TGIS, do ano de 2012, com o número 2013…, no montante de € 16.667,30, referente ao prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia de … sob o artigo …, correspondente ao actual artigo … da União das freguesias de … e … .
Embora, à data da liquidação, o prédio estivesse inscrito na matriz como afecto a habitação e como tal tivesse sido avaliado, na realidade, o imóvel vinha descrito como “Edifício tipo industrial, constituído essencialmente por (…) um corpo de escritórios e compartimentos de apoio em 2 pisos. PISO TÉRREO: entrada de pessoal e viaturas, pavilhão para máquinas de impressão, balneários, posto médico, cantina, gabinetes dos chefes (…) PISO INTERMÉDIO (sic): entrada para pessoa, recepção, escritórios, fotocomposição, arquivos (…) POSTO DE TRANSFORMAÇÃO” (cfr. art. 36.º da p.i.). Tratando-se, materialmente, de um prédio destinado a indústria que sempre esteve descrito como prédio com fins industriais, não haverá fundamento legal para a liquidação de IS aqui contestada uma vez que a Verba 28.1 da TGIS se referia, expressamente, a “prédio com afectação habitacional”.
Por não se conformar com tal liquidação, o Requerente apresentou reclamação graciosa que veio a ser indeferida, tendo interposto recurso hierárquico da mesma. O recurso hierárquico foi, também ele, indeferido pelo que Requerente deu entrada do pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.
O Requerente entende que a liquidação efectuada é ilegal, devendo, em consequência, ser anulada por errónea afectação do prédio uma vez que “(…) a situação fáctica do prédio em apreço não se reconduz à norma de incidência tributária acima referida pelo facto de o mesmo não ter afectação habitacional” (cfr. art. 35.º da p.i.). O imóvel em causa não reúne quaisquer condições para habitação, sendo antes dotado de equipamentos industriais, pelo que apenas por lapso se poderá ter efectuado tal qualificação. O facto de a avaliação promovida pela Autoridade Tributária não ter sido autonomamente impugnada - seja por via de pedido de segunda avaliação, seja por via de impugnação do valor fixado - não impede a contestação dos termos da mesma no âmbito de processo em que se conteste a legalidade da liquidação efectuada, como é o presente caso. Isso mesmo resulta do disposto no art. 54.º do CPPT, defendendo o Requerente que “(…) sempre que um acto destacável seja simultaneamente, imediatamente lesivo dos direitos dos contribuintes, poderá ser sempre discutida a sua legalidade no momento em que a legalidade da liquidação de imposto – a qual o tem por base – é posta em causa”.
Alega, também, o Requerente que a liquidação é ilegal porquanto “(…) quando a aludida verba se refere a prédio habitacional deve entender-se que quer abarcar os prédios que reúnem as condições físicas para habitação, o que não sucede no caso em apreço, e não os prédios cuja caderneta predial qualifica como afectos a habitação e não reúnem tais características” (cfr. art. 81.º da p.i.). Assim, pelo princípio da substância sobre a forma, deveria prevalecer a verdade factual e não a verdade formal, sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva.
Na óptica do Requerente, o facto de a avaliação oficiosa promovida pela Autoridade Tributária não ter sido contestada – tendo-se consolidado na ordem jurídica – não implica a aceitação pelo Requerente da qualificação do imóvel como afecto a habitação. Tal conclusão implicaria a violação do princípio da legalidade e da igualdade na medida em que permitiria que, por mera vontade ou inércia do contribuinte e da Autoridade Tributária, fosse definida uma situação tributária sem correspondência à lei e aos critérios e definições legais, sujeitando contribuintes na mesma situação fáctica a regimes de tributação diferentes.
O Requerente invoca, ainda, a inconstitucionalidade material da Verba 28.1 da TGIS “na medida em que viola o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), por onerar o Requerente mais gravosamente pelo simples facto de ter recebido em dação em pagamento um imóvel (que a AT qualificou como) afecto a fins habitacionais”. Com efeito, a norma em causa visava tributar imóveis de luxo exigindo, assim, um esforço adicional aos contribuintes que revelassem uma capacidade contributiva acima da média. Ora, o Requerente só detém imóveis habitacionais de valor superior a € 1.000.000 quando os seus devedores incumprem os contratos, sendo, assim, uma capacidade contributiva especial “forçada”; se os contratos fossem cumpridos, o Requerente não seria forçado a ser proprietário de tais imóveis.
O Requerente sustenta, por fim, a inconstitucionalidade da referida verba com referência ao ano de 2012 por violação do princípio da capacidade contributiva inscrito no n.º 2 do art. 104.º da CRP, uma vez implica a ocorrência de duas tributações do mesmo facto no mesmo exercício: (i) a liquidação efectuada em 2012 ao abrigo do regime transitório previsto na Lei n.º 55-A2012, de 29 de Outubro; e (ii) a liquidação efectuada em 2013, ao abrigo do regime geral inscrito no Código do Imposto do Selo.
Conclui, por isso, o Requerente pedindo a anulação do acto de liquidação de IS, com consequente reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
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Em resposta, a Requerida, contesta o pedido do Requerente, alegando que:
a) não tendo sido requerida segunda avaliação, a avaliação inicial consolidou-se para o ano de 2012. O Requerente tinha meios procedimentais próprios e adequados ao propósito pretendido, não sendo esta a via para discutir matérias relacionadas com actos de inscrição matricial. Conclui, assim, “Portanto, este acto de fixação de valor patrimonial é um acto destacável do procedimento de liquidação do imposto, pelo que tem de ser impugnado autonomamente, não podendo ser corrigida a afectação do imóvel àquela data, em sede de impugnação da liquidação” (cfr. art. 25.º da resposta).
b) a Verba 28.1 da TGIS não implica a violação de quaisquer princípios fiscais, nomeadamente o princípio da igualdade e da legalidade, tendo isso mesmo já sido declarado pelo Tribunal Constitucional no acórdão de 11/11/2015, processo n.º 542/14.
c) inexiste, no caso em concreto e porque não demonstrada pelo Requerente, qualquer dupla tributação, estando-se antes perante dois factos tributários distintos: (i) um, que tem por base o valor patrimonial tributário de 2011, e é regulado pelo regime transitório aprovado pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro; e (ii) outro, que tem por base o valor patrimonial tributário de 2012, e é regulado pelo Código do IS. Em qualquer caso, mesmo que tivesse havido dupla tributação esta não é proibida pela Constituição, considerando a Requerida que “em parte alguma da Constituição da República Portuguesa existe a proibição da dupla tributação” (cfr. art. 55.º da resposta).
Conclui, a final, pela total improcedência do pedido.
III. SANEADOR
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
IV. MATÉRIA DE FACTO
A. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
1. O Requerente é proprietário do prédio urbano sito na Av. …, …, inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de … e …, concelho de …, sob o artigo … (anterior artigo … da freguesia de …, concelho de …).
2. Para o prédio foi emitido pela Câmara Municipal de…, em 29/11/1994, o alvará de licença n.º … para “utilização de um edifício com 3 ocupações”.
3. No formulário do alvará, consta, em rodapé, a referência como afectações possíveis alternativas “Habitação ou ocupação”.
4. O imóvel foi objecto de avaliação pela Autoridade Tributária em Março de 2013, tendo sido fixado o valor patrimonial tributário de € 1.666.730,00.
5. A avaliação foi efectuada ao abrigo do regime aprovado pela Lei n.º 60-A/2011, de 30 de Novembro, que reviu o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro.
6. Na avaliação efectuada, o imóvel foi considerado como afecto a “habitação”.
7. O Requerente não solicitou segunda avaliação, nem impugnou a avaliação efectuada.
8. O valor patrimonial tributário foi inscrito na matriz com efeitos a 2012.
9. Da caderneta predial do imóvel constava a seguinte descrição:
10. A 14/07/2013, a Autoridade Tributária efectuou a liquidação n.º 2013 …, no valor de € 16.667,00, referente a Imposto do Selo da Verba 28.1 do ano de 2012, relativo ao imóvel identificado em 1, à taxa de 1%.
11. O imposto liquidado foi pago a 02/12/2013.
12. A 17/02/2014, o Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação identificada.
13. A 18/09/2014 foi feita nova avaliação do imóvel da qual resultou um valor patrimonial tributário de € 1.494.600,00.
14. A partir desta avaliação a informação constante da caderneta predial passou a ser:
15. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho da Senhora Chefe de Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, notificado ao Requerente por ofício registado de 22/12/2014.
16. A 23/01/2015, o Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
17. O recurso hierárquico foi indeferido por Director de Serviço Central da Direcção de Serviços do IMT, Imposto do Selo, notificado ao Requerente por ofício registado com aviso de recepção, recebido a 17/06/2016.
B. Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.
C. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental invocada e não contestada.
V. MATÉRIA DE DIREITO
A. Da ilegalidade do acto tributário
O Requerente solicita a anulação da liquidação de IS da Verba 28.1 da TGIS do ano de 2012, alegando, desde logo, ter havido um erro na avaliação efectuada pela Requerida ao qualificar o prédio identificado como imóvel afecto a habitação quando, da própria descrição constante da caderneta predial urbana, resulta que se trata de um edifício industrial.
Na resposta, a Requerida defendeu que, não tendo o Requerente reagido atempadamente à avaliação efectuada com vista a corrigir o erro imputado, não pode, nesta sede, suscitar essa questão. Com efeito, não tendo havido contestação, a avaliação em causa consolidou-se na ordem jurídica, não havendo lugar à sua reapreciação no âmbito de processo em que se conteste o imposto liquidado com base em tal valor.
No entender do Tribunal, há que reconhecer razão à Requerida, neste ponto.
É princípio geral do Direito Fiscal que o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, segundo as formas de processo legalmente previstas, como resulta do n.º 1 do art. 95.º da LGT. Para concretizar este ponto, a alínea b) o n.º 2 da referida norma qualifica expressamente como acto potencialmente lesivo “a fixação de valores patrimoniais”. Daí que no art. 86.º da LGT se determine que a avaliação directa é susceptível de impugnação contenciosa directa, nos termos legais.
Assim sendo, por uma questão de coerência do ordenamento jurídico, o legislador previu as formas de processo adequadas para contestação de tais actos pelo interessado que se sinta lesado. No caso do IMI, essas formas de processo são a segunda avaliação, regulada no art. 76.º do CIMI, e a impugnação judicial, prevista no art. 77.º do CIMI, devendo estas regras ser articuladas com o art. 134.º do CPPT. No âmbito da avaliação geral dos prédios urbanos levada a cabo ao abrigo do regime instituído pelos arts. 15.º e 15.º-A a 15.º-P do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, introduzidos pela Lei n.º 60-A/2011, de 30 de Novembro, como é o caso em apreço, os meios de reacção vinham expressamente previstos nos arts. 15.º-F (segunda avaliação) e 15.º-G (impugnação).
É, pois, inquestionável que a fixação do valor patrimonial tributário de imóvel resulta de um procedimento tributário próprio e específico, sendo o acto final que conclui esse mesmo procedimento. E é exactamente por se tratar de um acto final, destacável, que produz efeitos na esfera jurídica do contribuinte, condicionando e balizando a relação jurídico-tributário, que o legislador previu expressamente meios de reacção formais. Daí que a este acto não seja aplicável o princípio da impugnação unitária previsto no art. 54.º do CPPT e que o Requerente invoca.
E não estando o acto de fixação do valor patrimonial do imóvel sujeito a tal regime de impugnação, a sua validade ou invalidade, os erros ou incorrecções de que padeça não podem ser apreciadas em sede de impugnação do acto de liquidação que originaram. Não tendo o contribuinte reagido atempadamente por via dos meios legalmente previstos, não pode, posteriormente, pretender obter o mesmo resultado por via da impugnação do próprio acto de liquidação.
Como refere Jorge Lopes de Sousa[1] “Tanto nos casos em que os actos de avaliação directa se inserem no procedimento tributário de liquidação, como naqueles em que são objecto de um procedimento autónomo [Como sucede relativamente à Contribuição Autárquica e ao IMI (…)], os vícios que afectem o acto de avaliação directa, quer os existentes no próprio acto final de avaliação quer os que se reportem ao respectivo procedimento de avaliação, apenas podem ser invocados na respectiva impugnação e não na impugnação do acto de liquidação que venha a ser praticado com base no acto de avaliação”.
Este entendimento volta a ser expressamente reiterado pelo A. citado[2] ao defender, nos comentários ao art. 134.º do CPPT, que “Como resulta dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, os actos de fixação de valores patrimoniais podem ser impugnados autonomamente, com fundamento em qualquer ilegalidade. Esta impugnabilidade autónoma está em sintonia com o preceituado no art. 86.º, n.º 1, da LGT (…). Tratando-se de actos destacáveis e inexistindo tal restrição relativa às ilegalidades que podem ser objecto de impugnação contenciosa, os vícios de que enferma o referido acto de avaliação apenas poderão ser arguidos em impugnação do acto de avaliação e não do acto de liquidação que seja praticado com base naquele, já que a atribuição da natureza de acto destacável tem por fim, precisamente, autonomizar os vícios deste acto para efeitos de impugnação contenciosa. Sendo assim, não haverá possibilidade de apreciação da correcção do mesmo acto em impugnação do acto de liquidação, tendo aí de ter-se como pressuposto o valor fixado na avaliação”.
Face ao exposto, conclui este Tribunal que é de indeferir o pedido de anulação da liquidação contestada com fundamento no erro da avaliação efectuada ao imóvel e que está na origem daquela.
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Resolvido este ponto, cumpre avaliar se, como defende a Requerida, a liquidação foi efectuada no estrito cumprimento da lei e se estamos perante “uma liquidação que resulta da aplicação directa da norma legal, que se traduz em elementos objectivos, sem qualquer apreciação subjectiva ou discricionária, não existindo qualquer erro na qualificação do facto tributário” (cfr. art. 13.º da resposta).
Para tal, há que recordar que, a 31/12/2012, a Verba 28.1 da TGIS dispunha o seguinte:
“28. Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a (euro) 1 000 000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1. Por prédio com afetação habitacional - 1 %
(…)”
Da letra da lei resulta que o imposto em causa incidia sobre:
(i) prédio urbano;
(ii) com afectação habitacional;
(iii) com valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000.
Estes são, resumidamente, os pressupostos essenciais que delimitam o âmbito de incidência objectiva da Verba 28.1 da TGIS.
Assim, para que a liquidação contestada seja válida, como defende a Requerida, todos estes elementos terão que se verificar no caso concreto.
Tendo em conta os factos dados como provados supra, não há qualquer dúvida quanto à verificação dos requisitos (i) e (iii) uma vez que o imóvel objecto da liquidação é um prédio urbano com valor patrimonial à data do facto tributário superior a € 1.000.000.
O mesmo já não se pode dizer quanto ao requisito (ii). Com efeito, não obstante a informação inscrita na matriz à data da liquidação do imposto, a verdade é que material e substancialmente o prédio em causa não estava afecto a habitação, destinando-se antes a armazém e actividade industrial. Isso mesmo veio a ser reconhecido pela própria Requerida quando, em 2014, fez nova avaliação do prédio e atribuiu ao prédio a referida afectação.
Não dispondo o Código do IS de normas que permitam determinar a afectação dos prédios urbanos para efeitos de aplicação da referida verba, haverá que recorrer ao Código do IMI, mais concretamente ao disposto no art. 41.º devidamente conjugado com o n.º 2 do art. 6.º do referido código, por remissão do n.º 2 do art. 67.º do Código do IS. A afectação do prédio deverá ser, assim, aferida em função da licença camarária emitida e, na ausência de licença, em função da sua utilização efectiva ou potencial, atendendo às características concretas do mesmo.
No caso em apreço, a licença emitida não foi para habitação, conforme resulta do ponto 2. dos factos provados, sendo que a descrição do prédio constante da matriz predial permite concluir pela sua utilização na actividade industrial e não para habitação (ver pontos 9. e 14. dos factos provados quando se refere “Edifício de tipo industrial”). Esta posição não foi, em momento algum, contraditada pela Requerida que, não contestando este enquadramento, se limitou à invocação formal da classificação constante da matriz.
Face ao exposto, não estando o prédio em causa licenciado para habitação, nem tendo efectivamente tal utilização, conclui este Tribunal que não pode ser considerado como “prédio com afectação habitacional” para efeitos da Verba 28.1 da TGIS.
Falta, assim, um pressuposto essencial para que se possa concluir pela verificação do facto tributário, como pretendido pela Requerida.
É certo que a Requerida efectuou a liquidação com base na informação constante da matriz que, nesta sede, deve ser valorada como indício relevante, mas que não se pode sobrepor à prova produzida pelo Requerente e que contraria frontalmente essa mesma informação.
É um princípio geral do procedimento tributário, previsto no art. 74.º da LGT, que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.
Aplicando este princípio ao caso em apreço, consideramos que, tendo a Autoridade Tributária a pretensão de liquidar o imposto da Verba 28.1 da TGIS, cabe-lhe comprovar os pressupostos dos factos constitutivos de tal obrigação tributária, nomeadamente a afectação para habitacional do prédio. Em contrapartida, recairia sobre o Requerente a prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão da Autoridade Tributária, competindo-lhe demonstrar que a situação concreta não se poderia subsumir à previsão da norma em causa, nomeadamente pelo facto de o prédio não ter “afectação habitacional”.
Ora, a Requerida limitou-se à prova formal recolhida da matriz predial urbana, alegando que o prédio em causa estava inscrito na matriz como “habitação”. Esta prova meramente formal foi materialmente afastada pelo Requerente que demonstrou que o prédio não estava licenciado para habitação e não permitia tal afectação dadas as suas características e composição.
Note-se que o legislador, ao delimitar a incidência deste imposto se referiu a “prédio com afectação habitacional” e não a prédio classificado ou inscrito na matriz como “habitação”. Ao socorrer-se da expressão “afectação” o legislador pretendeu que a determinação do âmbito de incidência fosse efectuada com base numa análise material e substantiva dos factos que tivesse em conta a utilização de cada prédio urbano, e não com base numa análise puramente formal de classificação matricial.
Face ao exposto, procede assim o entendimento do Requerente ao alegar que “quando a aludida verba se refere a prédio habitacional deve entender-se que quer abarcar os prédios que reúnem as condições físicas para habitação, o que não sucede no caso em apreço, e não os prédios cuja caderneta predial qualifica como afectos a habitação e não reúnem tais características” (cfr. art. 81.º da p.i.).
Por tudo isto, este tribunal considera procedente o pedido do Requerente, concluindo que o acto de liquidação de IS da Verba 28.1 da TGIS, do ano de 2012, enferma do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação [artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do disposto no artigo 2.º, alínea c), da LGT].
Concluindo-se pela anulação da liquidação de IS com este fundamento fica prejudicada, por ser inútil, a apreciação dos demais vícios invocados pelo Requerente.
B. Do direito a juros indemnizatórios
Nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Ora, no caso concreto, não se pode considerar que o erro do acto de liquidação seja exclusivamente imputável à Autoridade Tributária.
Como o próprio Requerente reconheceu no pedido de pronúncia arbitral, estamos perante um acto executado informaticamente, em massa, que tem por base a informação constante da matriz que, não obstante notificada ao Requerente, não foi por este contestada ou corrigida em devido tempo.
Na verdade, se o prédio estava inscrito na matriz como habitação e o Requerente não contestou tal classificação, é legitimo que a Requerida, ao proceder à liquidação do imposto, considerasse essa informação correcta e daí retirasse as devidas consequências legais.
Face ao exposto, por considerar que o erro não é exclusivamente imputável à Requerida, dado que o Requerente contribuiu, por inércia ou negligência, para a situação de facto criada, indefere-se o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
VI. DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:
(i) julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal a liquidação de Imposto do Selo da verba 28.1 da TGIS, no montante de € 16.667,30, bem como as decisões de indeferimento da reclamação graciosa e recurso hierárquico deduzidos, ordenando-se a sua anulação, e condenando a Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago;
(ii) indeferir o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.
Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 16.667,30 correspondente ao valor total do Imposto do Selo liquidado e cuja anulação aqui se ordenou.
Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00 de acordo com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, 30-03-2017
O Árbitro Singular
(Maria Forte Vaz)
[1] Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 5.ª Edição, 2006, Áreas Editora, pág.425.
[2] Cfr. obra citada, págs. 962 e seguinte.