Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Marcolino Pisão Pedreiro e Diogo Leite de Campos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 30 de Agosto de 2016, A…, Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A., pessoa colectiva n.º…, com sede na Rua …, n.º…, …, ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto de Selo no montante de € 600.000,00, incidente sobre um penhor de quotas e direitos inerentes, constituído no âmbito de financiamento obrigacionista, e do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa por si submetido, que sobre ela recaiu.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que estará isenta do imposto liquidado, por força do disposto no artigo 7.º/1/d) do Código do Imposto do Selo.
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No dia 31 de Agosto de 2016, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 03 de Novembro de 2016, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 18 de Novembro de 2016.
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No dia 03 de Janeiro de 2017, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.
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Cumprido o contraditório quanto à matéria de excepção, foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e que o processo arbitral se rege pelos princípios da economia processual e proibição da prática de actos inúteis.
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Foi fixado o prazo de 60 dias para a prolação de decisão final.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- No dia 4 de Novembro de 2015, por ocasião de uma emissão por subscrição particular de até 1.500 obrigações, no montante total de até € 150.000.000,00, denominada “…”, foram celebrados entre a Requerente e o Banco B…, um contrato de organização, montagem, colocação e garantia parcial da colocação, um contrato de serviço de agente pagador, e um contrato de garantia.
2- Através dos referidos contratos, o BANCO B… obrigou-se, perante a Requerente, a proceder à organização e montagem de um empréstimo obrigacionista e a assessorá-la em toda a tramitação do processo de admissão à negociação dos respectivos títulos.
3- A oferta era relativa a até 1.500 obrigações, representativas do empréstimo obrigacionista “…”, a emitir por séries, mediante subscrição particular e directa, nos termos do Código dos Valores Mobiliários, do Código das Sociedades Comerciais e demais legislação aplicável.
4- De acordo com o disposto nos contratos atrás mencionados, poderiam ser emitidas até 1.500 obrigações, com o valor unitário de € 100.000,00 e global de até e 150.000.000,00, sendo que, na primeira série, o BANCO B… obrigou-se, perante a ora Requerente, a colocar e garantir a colocação de 1.000 obrigações, correspondentes ao montante de €100,000.000,00.
5- As obrigações cuja emissão ocorreu por efeito dos contratos referidos são valores mobiliários escriturais, nominativos, inscritos na Central de Valores Mobiliários (CVM) gerida pela C…, S.A. ( “C…”).
6- A C… tem, e tinha à data dos facto tributário, por objecto a gestão de sistemas de liquidação e de sistemas centralizados de valores mobiliários, operando no âmbito de poderes legais, regulamentados e organizados com registo na CVM.
7- A emissão de obrigações foi decidida em 3 de Novembro de 2015, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 350.º do Código das Sociedades Comerciais, tendo sido o Banco B…, em virtude de tal decisão, mandatado para representar a ora Requerente no referido processo, nomeadamente para a representar perante a D… (D…), a E…, S.A. (E…) e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), e designado como agente pagador dos montantes referentes a juros e amortizações de capital devidos aos titulares das obrigações.
8- A creditação ou entrega da quantidade de obrigações, emitidas na conta de intermediário financeiro, ocorreu na Central de Valores Mobiliários, e a emissão das obrigações ficou inscrita na D…, mercado não regulamentado reservado à negociação de instrumentos financeiros estruturados (Mercado de Estruturados).
9- Para garantia do cumprimento pontual e tempestivo das obrigações de reembolso do capital e do pagamento de juros devidos pela Requerente em virtude da emissão das obrigações, no dia 4 de Novembro de 2015, foi constituído penhor, sobre as quotas de que a ora Requerente era dona e legítima possuidora e que representavam 46,5% do capital social e direitos de voto da F…, Sociedade Gestora de Participações Sociais, Ld.ª, e, bem assim, sobre todos os direitos, interesses, benefícios e vantagens de qualquer género delas resultantes, livres de quaisquer ónus e encargos.
10- Pela constituição do penhor foi liquidado, no local da celebração do contrato, o montante de € 600.000.00 (seiscentos mil euros) a título de Imposto do Selo, tendo o pagamento ocorrido por transferência interbancária, a débito de uma conta da ora Requerente, tendo a declaração de IS sido submetida pelo Banco B… a 18-12-2015, através do documento nº … - declaração de retenções na fonte -, do qual consta o montante total de €746.319,86, referente a operações ocorridas em Novembro do mesmo ano.
11- A Requerente apresentou, em 04/02/2016, um pedido de revisão oficiosa tendo por objecto a sobredita liquidação de IS, que não foi decidido no prazo legalmente previsto para o efeito.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Concretamente, e no que diz respeito ao facto constante do ponto 10 dos factos provados, embora a Requerida sustente que o documento ali referido não permite determinar quais as operações que lhe estiveram subjacentes, o certo é que não contesta ter recebido o imposto no mesmo contido, sendo que tal recebimento, e os factos tributários que os justificam, se deverão considerar factos pessoais de que a Requerida deva ter conhecimento, nos termos e para os efeitos do artigo 574.º/3 do Código de Processo Civil, pelo que, valorada ao abrigo do artigo 110.º/7 do CPPT a posição da Requerida, que, se ignora, é porque não procurou saber factos que legitimam a recolha de imposto de que beneficiou, quando podia e devia fazê-lo, se considera provado o facto em causa, nos termos constantes supra, que de resto acaba por ser expressamente confessado pela Requerida, no artigo 66.º da sua Resposta.
B. DO DIREITO
i. Da matéria de excepção
Começa a Requerida por arguir a ilegitimidade processual da Requerente, com base em duas ordens de razões, a saber:
i) a Requerente não é parte legítima na relação jurídico-tributária estabelecida entre o sujeito activo (AT) e o sujeito passivo (Banco B…), uma vez que não é nem contribuinte de direito, nem contribuinte de facto, o que a impede de, nos termos do artigo 18.º, n.º 4, al. a) da LGT, reclamar, recorrer, impugnar judicial ou arbitralmente;
ii) verificam-se três dificuldades de ordem prática para que se possa reconhecer à Requerente legitimidade para ser parte nos presentes autos, relacionadas com a averiguação sobre se o valor que a Requerente afirma ter pago respeita a imposto do selo relativo à operação aqui em causa, e sobre se tal montante se encontra na liquidação exibida como doc.3 do pedido arbitral, bem como com a circunstância de, no entender da AT, a restituição do imposto, caso seja determinada, far-se-ia, necessariamente, para o sujeito passivo, e nunca para a Requerente com quem a AT, neste campo, não manteve qualquer relação tributária.
Relativamente ao primeiro fundamento da ilegitimidade arguida pela Requerida, considera-se que o mesmo não corresponde à leitura correcta da norma em que assenta, do artigo 18.º, n.º 4, al. a) da LGT, que dispõe precisamente no sentido contrário ao sustentado pela Requerida, conforme decorre, para além do mais, das normas dos artigos 9.º/1 do CPPT, 54.º/2, 65.º e 95.º da LGT, e 268.º/4 da CRP, e conforme doutrina e jurisprudência pertinentemente citada pela Requerente no exercício do seu direito ao contraditório na matéria, sendo certo que a norma, revogada, do artigo 50.º do CIS, conforme decorre do n.º 3 da mesma, em nada prejudica a conclusão tirada.
De resto, tão evidente é que a posição da entidade que liquida o imposto de selo não é relevante para efeitos da relação jurídico-tributária processual, que no Ac. do STA de 25-03-2015, proferido no processo 0180/13[1], se considerou que:
“III - Ocorrendo como nos autos uma situação de falta de entrega do imposto de selo por parte da sociedade substituída, por erro do substituto Notário, a única solução materialmente correcta é a de responsabilizar o substituído pelo tributo, desonerando o substituto de qualquer responsabilidade, desde que este tenha empregue na tarefa da cobrança a diligência que dele se deve esperar.
IV - A liquidação adicional do imposto de selo devido no acto de uma escritura pública de venda o que não sucedeu pelo facto de o notário considerar, que havia isenção, (foi considerado que os actos de constituição de sociedade e de transferência de activos patrimoniais, estavam isentos de tributação nos termos do artigo 6.º, alínea a) do CIS deve ser exigida à sociedade outorgante da escritura que adquiriu os bens.”
Relativamente ao segundo dos fundamentos apresentados pela Requerida, nos sentido de afastar a legitimidade processual da Requerente, diga-se, desde logo, que os próprios termos em que aquele é formulado, denotam a sua irrelevância para a questão em causa.
Com efeito, a legitimidade processual, deve, nos termos legais, ser aferida pelo interesse em demandar (ou ser demandado, no caso da legitimidade passiva), face à relação material controvertida, tal como apresentada em juízo pelo autor, não podendo, evidentemente, ser concedida ou retirada por razões (de dificuldades) práticas.
Sem prejuízo de tal, sempre se dirá que as aventadas dificuldades em averiguar sobre se o valor que a Requerente afirma ter pago respeita a imposto do selo relativo à operação aqui em causa, e sobre se tal montante se encontra na liquidação exibida como doc.3 do pedido arbitral, é matéria de prova, a ser decidida, como foi, em sede de julgamento da matéria de facto.
Já quanto à necessidade de a restituição do imposto, caso seja determinada, haver de se fazer para o sujeito passivo, e não para a Requerente, é matéria de direito substantivo (e não processual) a ser dirimida em sede própria.
Deste modo, e pelo exposto, considera-se a Requerente parte legítima na presente acção arbitral tributária, improcedendo a excepção de ilegitimidade, suscitada pela Requerida.
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ii. Da questão de fundo
Avançando, então para o fundo da questão, em causa nos presentes autos está a aplicação da norma do artigo 7.º/1/d) do Código do Imposto do Selo, que dispõe que:
“1 - São também isentos do imposto: (...)
d) As garantias inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados ou através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar, ou ainda por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tenham por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas;”.
Entende a Requerente que tal norma a isenta do imposto que lhe foi liquidado e contra o qual se insurge nos autos, sustentando a AT, precisamente, o contrário.
Vejamos, então.
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Conforme, com precisão, aponta a AT, o ónus da prova na matéria que nos ocupa, impende sobre a Requerente. Em cumprimento do disposto no artigo 74.º/1 da LGT, sendo a Requerente quem se pretende prevalecer do regime da norma legal transcrita, será contra ela que se terá de decidir, caso não estejam devidamente provados, nos autos, os pressupostos de tal norma.
Para que uma garantia, nos termos do normativo em questão, esteja isenta de IS será, então, necessário que:
a) seja inerente a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de:
i. entidade gestora de mercados regulamentados;
ii. entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar;
iii. entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM.
b) e tenham por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas.
O requisito a que alude a al. b) supra, é consensualmente reconhecido por ambas as partes como, in casu, verificado. Com efeito, a própria Requerida o reconhece, referindo, no artigo 66.º da sua Resposta que “considerando os elementos carreados ao processo, assume-se como estando preenchidos esses requisitos na medida em que as obrigações são valores mobiliários, conforme decorre do art. 1º alínea b) do Código dos Valores Mobiliários (CVM)”.
Daí que cumpra apenas aferir se, face aos factos dados como provados, está demonstrado que a operação relativa aos valores mobiliários causais da garantia tributada pela liquidação ora em crise, foi realizada, registada, ou compensada através de uma das entidades descritas nos pontos a)ii. ou a)iii. supra, sendo que, manifestamente, face aos factos dados como provados, não o foi por uma entidade descrita no ponto a(i[2].
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Estando dado como provado que os valores mobiliários a que se reporta operação em causa foram “inscritos na Central de Valores Mobiliários (CVM) gerida pela C…, S.A.”, de onde decorre terem aí sido registados[3], resta apurar se aquela entidade – a Interbolsa – actuou, ou não, enquanto uma:
i. entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar; ou
ii. entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM.
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A norma ora em apreciação reporta-se directamente a conceitos relativos aos mercados de valores mobiliários - “mercados regulamentados” e “mercados organizados” - cujo regime central está fixado no Código de Valores Mobiliários.
Compulsado o referido diploma, verifica-se que, se é relativamente fácil obter um conceito de “mercados regulamentados”, não é, ali, efectuada qualquer definição do que sejam “mercados organizados”.
Assim, se o primeiro dos conceitos é de fácil e imediata apreensão – “mercados regulamentados” serão aqueles que correspondam à respectiva definição do CVM – o segundo requer já alguma elaboração doutrinal.
Como refere António Soares[4], “Para o novo Código dos Valores Mobiliários a grande distinção é agora, à semelhança do que já ocorre com a Directiva 93/22/CEE (Directiva de Serviços de Investimento), entre mercados regulamentados de valores mobiliários e outros mercados organizados.”.
Continuando com o mesmo autor:
“Para além dos mercados regulamentados prevê ainda o novo Código dos Valores Mobiliários a possibilidade de existirem outros mercados organizados de valores mobiliários, os quais funcionarão de acordo com as regras que para o efeito venham a ser livremente estabelecidas pela respectiva entidade gestora. Contrariamente ao que sucede com os mercados regulamentados, cuja criação depende de autorização do Ministro das Finanças, a prestar através de Portaria, a constituição de mercados organizados não regulamentados passa a ser livre, afastando-se também aqui o novo Código dos Valores Mobiliários do Código do Mercado de Valores Mobiliários que fazia depender a criação de qualquer mercado secundário de valores mobiliários de autorização prévia do Ministro das Finanças. A criação de mercados não regulamentados deixa portanto de ficar sujeita a qualquer autorização, dependendo o seu funcionamento apenas de um controlo prévio da respectiva legalidade por parte da CMVM, o que ocorrerá no momento em que se deva proceder ao respectivo registo junto dessa entidade. Admite ainda o novo Código dos Valores Mobiliários a criação de mercados organizados em que haja intervenção directa dos investidores institucionais que assumirão, para o efeito, a qualidade de membros desse mercados – n.º 3 do artigo 203º – do novo Código dos Valores Mobiliários ou de mercados em que a função tradicional dos membros pode ser exercida pela respectiva entidade gestora – n.º 6 do artigo 203º do mesmo diploma legal.”
É neste contexto que o art.º 198.º do CVM dispõe que:
“1 - É permitido o funcionamento em Portugal, sem prejuízo de outras que a CMVM determine por regulamento, das seguintes formas organizadas de negociação de instrumentos financeiros:
a) Mercados regulamentados;
b) Sistemas de negociação multilateral;
c) Internalização sistemática.”[5]
Face a esta norma, dever-se-á, então, considerar que a referência do artigo 7.º/1/d) do CIS a mercados organizados, se deverá reportar às formas organizadas de negociação de instrumentos financeiros, que não sejam mercados regulamentados.
Daí resulta que não se possa validar o entendimento da Requerida, segundo o qual “fica fora da norma de isenção toda e qualquer actuação (...) em mercados não regulamentados”[6], uma vez que a referida norma de isenção, não se restringe a mercados regulamentados, mas abrange também os mercados organizados, que, sob pena de redundância, não se poderão identificar com aqueles.
Verifica-se, como se viu, que a operação relativa aos valores mobiliários causais da garantia tributada pela liquidação ora em crise não foi realizada, registada, ou compensada através de uma entidade gestora de mercados regulamentados. Coloca-se, então, a questão de saber se o foi através de uma “entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar.” ou de uma “entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM”.
Conforme resulta dos factos provados, “a creditação ou entrega da quantidade de obrigações, emitidas na conta de intermediário financeiro, ocorreu na Central de Valores Mobiliários, e a emissão das obrigações ficou inscrita na D…, mercado não regulamentado reservado à negociação de instrumentos financeiros estruturados (Mercado de Estruturados)”.
Ora, o mercado de estruturados “D…”, sendo, evidentemente um mercado não regulamentado (não subsumível à al) a) do n.º 1 do artigo 198.º do CVM) é um sistema de negociação multilateral, conforme, para além do mais, resulta do Regulamento II – Regras de Mercado Não Harmonizadas, da E…[7], pelo que será, nos termos da al. b) do referido n.º 1 do artigo 198.º do CVM, e para efeitos do artigo 7.º/1/d) do CIS, considerado um mercado organizado.
Para além disso, o Mercado de Estruturados está registado na CMVM, como resulta do Comunicado da CMVM de 16-09-2004[8], e da Nota Informativa, também da CMVM, de 30-09-2004[9].
Verifica-se, assim, que, no caso, estamos perante as garantias inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tiveram por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, mostrando-se preenchidos, por isso, os pressupostos do artigo 7.º/1/d) do CIS, e gozando, consequentemente, a Requerente da isenção aí consagrada, pelo que deverá o presente pedido arbitral ser julgado procedente.
Não obsta a tal conclusão a circunstância, relevada pela Requerida, de “o recurso aos serviços da C… constitui uma mera opção do emitente”[10], dado que a norma de isenção não distingue, nem se vislumbram razões para distinguir, as circunstâncias em que a intervenção de entidade gestora de mercados organizados, registados na CMVM, é voluntária ou obrigatória.
Não obsta à mesma conclusão, igualmente, a alegação de que “a ratio subjacente à norma de isenção do art. 7º do Código de Imposto de Selo(...), a pretensão do legislador foi a de evitar duplicação de imposto quando a garantia estivesse ligada a um contrato ou operação que, ele próprio, estivesse também sujeito a imposto.”, uma vez que se julga que, em primeira linha, a norma de isenção visa a finalidade extrafiscal de favorecer e incentivar o recurso aos mercados regulamentados e organizados.
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Cumula a Requerente, com o pedido anulatório dos actos tributários objecto dos presentes autos, o pedido de condenação da AT na devolução do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.
Contesta a Requerida a possibilidade da devolução do imposto indevidamente liquidado, alegando que a restituição do imposto, caso seja determinada, far-se-ia, necessariamente, para o sujeito passivo, e nunca para a Requerente com quem a AT, neste campo, não manteve qualquer relação tributária.
Ressalvado o respeito devido, entende-se não ter qualquer cabimento a alegação da Requerida, que não só é contraditória com a jurisprudência, incluindo a invocada por si própria[11], como com posições assumidas por si mesma noutros processos[12].
Ora, demonstrando-se, como é o caso, que o imposto foi repercutido na Requerente, é a esta que o mesmo, se indevido, como também é o caso, deve ser devolvido.
Face à procedência do pedido anulatório, deverão ser restituídas as prestações que, relativamente ao acto tributário anulado, se venham a verificar como pagas pela Requerente, se necessário em execução de sentença. No caso em apreço, é manifesto que a ilegalidade do acto de liquidação anulado, cuja quantia a Requerente pagou, é imputável à Requerida, que, por intermédio da entidade encarregue da liquidação, os praticou sem suporte legal.
Com efeito, como se escreveu no Ac. do STA de 12-11-2003, proferido no processo 01368/03:
“Pretende a Fazenda Pública recorrente que a liquidação do imposto é da responsabilidade da Câmara Municipal de … pelo que o excesso de cobrança não é imputável à Administração Tributária, não obstante o pagamento ter sido efectuado na Tesouraria da Fazenda Pública.
O imposto de selo incide, nos termos do artigo 1º do respectivo código, sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral. É uma receita do Estado cuja liquidação compete, no caso das escrituras públicas, ao notário interveniente, nos termos do artigo 14º do mesmo código. Por isso, sendo o imposto liquidado arrecadado e recebido pelo Estado através da Administração Tributária, será o Estado o responsável pelos juros indemnizatórios que eventualmente sejam devidos.
(...) O responsável pelo pagamento de tais juros, por erro imputável aos serviços, não pode deixar de ser quem usufruiu dos montantes ilegalmente cobrados, não cabendo aqui e agora apreciar as relações de subordinação ou não do notário ao Estado, isto é, da entidade liquidadora à entidade recebedora.”.
Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT. Deverá a Requerida dar execução ao presente acórdão, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, determinando o montante a restituir ao Requerente e calcular os respetivos juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).
Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento indevido até ao processamento da nota de crédito, em que são incluídos.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:
a) Anular a liquidação de IS objecto dos presentes autos;
b) Condenar a Requerida à restituição do montante de imposto indevidamente pago em execução da liquidação anulada, e ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados, sobre o referido montante;
c) Condenar a AT nas custas do processo, no montante de € 8.874,00.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 600.000,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 8.874,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi apenas totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa 17 de Março de 2017
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho - Relator)
O Árbitro Vogal
(Marcolino Pisão Pedreiro)
O Árbitro Vogal
(Diogo Leite de Campos)
[2] A própria requerente o reconhece, no artigo 23.º do seu Requerimento Inicial.
[3] Não se trata aqui de qualquer “equivalência” a registo. A inscrição é um acto de registo, como o são o averbamento e o cancelamento, por exemplo. Considera-se, assim, que a inscrição, pressupõe, justamente, um registo onde ocorre, sendo que no caso, tal registo é expressamente referido como tal, no Aviso 3/2004 da C… .
Questão diferente, que é a que se aborda de seguida, é se a C… é, ou não, uma entidade das referidas na norma sob aplicação, o que, obviamente, condiciona a relevância do registo para efeitos de tal norma.
[4] “Mercados Regulamentados e Mercados Não Regulamentados” in Cadernos da CMVM, N.º 7 - Abril 2000, p. 281 e s..
[6] Artigo 77.º da Resposta.
[10] Artigo 101.º da Resposta.
[11] No Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul de 30- 04-2013, proferido no processo n.º 04457/11, citado pela Requerida, pode ler-se: “apenas nas situações em que a caixa de crédito agrícola mútuo é detentora da capacidade contributiva, por ser a beneficiária da operação financeira em causa, então justifica-se a não tributação; ao invés, nos demais casos em que a caixa de crédito agrícola mútuo intervém na realização de operações financeiras, as razões da não tributação já não ocorrem, seja porque o sujeito beneficiário das mesmas é um terceiro, seja porque o imposto é suportado por terceiro alheio à forma de organização e funcionamento da cooperativa, seja porque não está em causa entidade filiada nos princípios cooperativos, cuja protecção constitui a razão de ser da isenção (...)
Em face do exposto e uma vez que a liquidação em causa se fundou na falta de entrega do imposto devido em relação às operações pelas quais a tributação em IS não constitui encargo próprio da impugnante”.
[12] Cfr., por exemplo, os processos arbitrais 348/2014T e 63/2015T, onde a Requerida alegou, para além do mais, que “Restituir à ora Requerente o montante de imposto que liquidou e recebeu dos seus clientes (consumidores finais, neste caso), traduzir-se-ia num enriquecimento sem causa, que a lei nacional e o direito comunitário não consente.” e que “de acordo com os princípios básicos do funcionamento do imposto e das suas características, nomeadamente, da repercutibilidade e neutralidade – o imposto não constitui um gasto dos sujeitos passivos”. Note-se que, nos processos referidos, apurou-se que não ocorreu a repercussão do imposto ali em causa.